O testemunho como linguagem do indizível. Um objeto inobjetável e sua jurisdição de possibilidades a partir da fenomenologia de Jean-Luc Marion.
Testimony as language of the unspeakable. An unobjectionable object and its jurisdiction of possibilities based on the phenomenology of Jean-Luc Marion.

Donizete José Xavier*
*Doutorado em Teologia Fundamental pela Pontificia Universidade Gregoriana, PUG, Itália. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Contato: djxavier@pucsp.br
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Resumo
A categoria testemunho tem alcançado nas últimas décadas um significado decisivo. Depois de um longo período de esquecimento emerge no âmbito eclesial, principalmente a partir do Concílio Vaticano II, como um instrumento de possibilidade de redescoberta da positividade da relação entre a Verdade comunicada e a liberdade responsiva. Nessa perspectiva, o testemunho pertence a ordem do mistério da liberdade humana. O presente artigo examina a categoria testemunho como linguagem do indizível, uma vez que, compreendido como linguagem, a categoria não se apresenta simplesmente como um argumento para a razão, mas portadora de “algo a mais” e indizível, capaz de dar sentido a uma vida que se entrega até às últimas consequências em uma plena liberdade. A reflexão, fundamentando-se na relação entre fenomenologia e teologia em Jean-Luc Marion, tem a responsabilidade de demonstrar que o testemunho enquanto linguagem do indizível excede em sentido e se manifesta como fenômeno saturado.

Palavras chave:Testemunho, dom, adonado, possibilidade.

 

Abstract
The testimony category has achieved a decisive meaning on last decades. After a long period of oblivion, it emerges into the ecclesial dimension, mainly as from the Second Vatican Council, as an instrument of possibility of rediscovery from the positivity of the relation between the communicated Truth and the responsive freedom. In this perspective, the testimony belongs to the order of human freedom mystery. The present article examines the testimony category as language of unspeakable, once, understood as language, the category doesn’t simply present itself as an argument to the reason, but carrier from that “something else” and unspeakable, able to give sense to a life that gives itself up to the ultimate consequences in a full freedom. The reflection, grounded at the relation between phenomenology and theology in Jean-Luc Marion, has the responsibility of demonstrate that testimony qua unspeakable language exceeds in sense and manifests itself as a saturated phenomenon.

Keywords:Testimony, gift, owner, possibility.

Introdução

Ainda pouco explorado no campo da nossa investigação teológica, Jean-Luc Marion se apresenta como um dos grandes fenomenólogos da atualidade que coloca o seu trabalho na fronteira com a teologia. Sabemos que, na análise das temáticas humanas, a fenomenologia é, sem dúvida, um dos movimentos de maior importância nos últimos tempos. Diversas ciências têm reencontrado nela novas orientações e possibilidades. A antropologia, a teologia, a ciência da religião e outras ciências humanas, graças à fenomenologia, despertam-se para novos aspectos decisivos no que diz respeito às perguntas pertinentes referentes ao ser humano. Quando falamos em fenomenologia, rapidamente nos lembramos de Husserl e Heidegger, filósofos contemporâneos que marcaram o século XX com seus pensamentos inovadores propondo uma nova forma de raciocínio. Para Husserl, a fenomenologia, ciência filosófica do fenômeno, se ocupa do ato do aparecer, ou ainda, compreende como fenômeno tudo aquilo que aparece e que se coloca em evidência. Para ele a fenomenologia analisa o fenômeno em seu aparecer original a partir da sua intencionalidade e seus modos e desvelamentos (WALTON, 2009, pp. 11-38). Já o filósofo Heidegger, que se ocupa em ampliar o pensamento do seu mestre Husserl, confere ao conceito de fenomenologia a etimologia grega da palavra phainomenon, definindo fenômeno como aquilo que se mostra e dando uma significação ao conceito logos como o tornar-se manifesto (RICOEUR, 1980, p. 101). O filósofo de Friburgo aponta diretamente para a ideia do apophansis, ressaltando a estreita relação entre o deixar ver e o desvelar. Se para os gregos, a função primordial do logos é apophainesthai, fazer ver aquilo que se manifesta, o retorno ao sentido grego de apophansis é para Heidegger, a máxima da primeira fenomenologia (Ibidem, p. 132). É nessa esteira que encontraremos a fenomenologia de Jean-Luc Marion, uma vez que o seu pensamento fenomenológico se desdobra num profundo diálogo com Husserl e Heidegger. A sua intenção é demonstrar que, em última instância, todo fenômeno tem a sua fenomenalidade, sua redução à doação.

A fenomenologia de Jean Luc-Marion

Na escola francesa, com seus grandes fenomenólogos e suas leituras críticas filosóficas, a fenomenologia contemporânea avança cada vez mais no seu entendimento em relação à pergunta sobre o ser humano. Nomes como, Emmanuel Levinas, Paul Ricoeur, Michel Henry, Jacques Derrida e outros se apresentam com seus esforços criativos numa perspectiva pós- -metafísica do sujeito onde os temas teológicos são incluídos. A partir da reflexão fenomenológica desses pensadores marca historicamente uma mudança de pensamento que será chamado por alguns “pejorativamente” de “giro teológico” e para outros, “giro antropológico”, ou ainda, giro “para uma filosofia primeira”. Para Juan Carlos Scanonne, independente da denominação que se assume, em cada uma delas inclui-se o pensamento de Jean-Luc Marion (2009, p. 396).

Mas para nós, uma pergunta do filósofo é categórica: “O que espera a teologia da fenomenologia?” (MARION, 2012, p. 14). De fato, para ele o campo teológico desses fenomenólogos pós-metafísicos reclama que a própria fenomenologia atinja todas as denominações religiosas e também os ateus. Marion aborda a questão de Deus sempre desde um marco fenomenológico. Para isso, introduz a possibilidade da elaboração de uma fenomenologia da doação onde as categorias: fenômeno saturado, doação, redução e adonado são capitais.

A fenomenologia de Marion tem-se ocupado da questão da existência e sua razão de ser como realidade pertencente a ordem fenomênica. Ao mesmo tempo em que a existência humana é um fenômeno, está determinada pelo aparecer suscetível entre o subjetivo e o que aparece por si mesmo. Esse dar-se por si mesmo ou ainda o aparecer por si caracteriza a questão do fenômeno e é, simultaneamente, a estrela-guia de uma nova reflexão filosófica sobre a relação Deus e o homem com implicações no âmbito do pensamento teológico. Como afirma Marcelo Neri em sua obra Il Corpo di Dio. Dire Gesù nella cultura contemporana, a fenomenologia francesa coloca sua atenção na via da interioridade como horizonte da imanência e, concomitantemente, na via da alteridade como horizonte da transcendência, e nos ajuda a assumir tópicos fenomenológicos como chave de leitura da qualidade específica da manifestação de Deus na história dos homens (NERI, 2010, p. 96).

Para Marion, pensador seminal da fenomenologia da doação, entre todos os fenômenos que o ser humano experimenta, é possível pensar teologicamente os grandes temas da condição humana na ótica de uma heurística da doação. A pretensão do filósofo é devolver a fenomenalidade do fenômeno, o que significa compreender a sua ideia de redução fenomenológica, o que para ele, em última instância, toda redução fenomenológica remete a uma primeira redução, a uma redução radical que toca a fenomenalidade mesma de todo fenômeno (GRASSI, 2015, p. 29).

Trata-se de não eliminar a fenomenalidade, como a prevera o “princípio de todos dos princípios” de Husserl com sua colocação em primeiro plano da intuição, como analisa Walton em La fenomenología. Sus origenes, desarrollos u situación (WALTON, 2019, p. 17), mas de ressignificação tanto do polo subjetivo como do polo objetivo da intencionalidade. Marion chamará esse processo de fenômeno adonado ou ainda fenômeno dado. Em suas palavras: “esta ressignificação da intencionalidade tem lugar graças ao estudo dos fenômenos saturados” (2015, p. 29). Com o conceito de fenômeno saturado, Marion quer abrir os limites da fenomenologia; limites que se opõem ao aparecer do fenômeno; isto porque por fenômenos saturados compreende-se, segundo ele, “aqueles fenômenos que, por sua riqueza fenomenológica, excedem a qualquer possibilidade que tenha a consciência de constituí-los” (2015, p. 29).

Em sua obra Le visible et le révélé, Marion esclarece:

Mas a possibilidade de um fenômeno – então possibilidade de declarar um fenômeno impossível, isto é, invisível – não pode por sua vez se fixar sem estabelecer também os termos da possibilidade tomado em si. Enviando o fenômeno a jurisdição da possibilidade” (2010, p. 36).

De fato, quando se trata da jurisdição da possibilidade, a fenomenalidade do próprio fenômeno ganha nova significação, isto porque, a possibilidade depende da fenomenalidade, já que é o fenômeno que impõe sua própria possibilidade. Continua o filósofo: “a filosofia expõe em efeito em plena luz sua própria definição da possibilidade nua. A questão sobre a possibilidade do fenômeno implica a questão sobre o fenômeno da possiblidade” (2010, p. 36).

Nesse sentido, o fenômeno saturado é um reconhecimento de que todo fenômeno está na atmosfera da jurisdição da possibilidade. Diante disso, fica-nos claro que, para Marion, o fenômeno saturado é um novo conceito fenomenológico que ultrapassa a própria intencionalidade do fenômeno, isto porque “a condição de possibilidade a respeito de saturação de segundo grau não consiste em delimitar a priori excluindo impossibilidades, senão em liberar a possibilidade excluindo toda condição prévia mediante a eliminação das pretendidas impossibilidades”, como afirma Walton (2019, p. 17). No fenômeno há um dar-se que lhe é próprio, em que a intuição por si mesma não dá conta deste horizonte inerente de possibilidade abertamente incondicionado.

A fenomenologia da doação

Para Marion a experiência que o homem faz de sua realidade existencial está marcada por uma dimensão de gratuidade que se caracteriza como doação. Trata-se da realidade fenomenológica da sua existência, isto porque, no entendimento marioniano, a doação do fenômeno permite compreender um caminho metodológico que vai desde a doação das coisas mesmas à doação de Deus (MARION, 2010, p. 20). O fenômeno saturado, assim denominado por ele, capaz de exceder a própria intencionalidade do fenômeno, abre em si rumos para uma reflexão teológica mais próxima dos fenômenos da revelação e da Revelação, esta compreendida enquanto acontecimento histórico de Deus experimentado pelo homem. E distinguindo as propriedades da filosofia e da teologia nos fala da distinção entre possibilidade e efetividade.

De fato, quando se diz respeito à questão dos fenômenos religiosos, Marion fala efetivamente do fenômeno saturado, o que significa, na sua compreensão, que fenômenos religiosos específicos não podem ser descritos objetivamente (MARION, 2010, p. 20). De acordo com sua citação acima, a Revelação de Deus não pode ser confundida com a revelação, enquanto fenômeno possível. A Revelação excede o domínio de toda ciência. Nesse sentido, a distinção entre possibilidade e efetividade é decisiva para não confundir o sentido, o que já está definido pela própria tradução gráfica. Sendo assim, quando submete o fenômeno à jurisdição da possibilidade, Marion afirma que há sempre uma intuição doadora que justifica a condição de um fenômeno religioso. Se um fenômeno religioso não pode ser objetivado, ele é um fenômeno impossível cuja visibilidade da sua invisibilidade só é possível na compreensão de sua fenomenalidade. Nas palavras de Marion: “submetendo o fenômeno à jurisdição da possibilidade, a filosofia expõe, com efeito, à plena luz sua própria definição da possibilidade nua. A questão sobre a possibilidade do fenômeno implica a questão sobre o fenômeno da possibilidade” (MARION, 2010, p. 38).

Nesse horizonte, Marion considera que uma pessoa pode conhecer qualquer coisa de in-objetável previamente por um ato de doação. A doação do fenômeno determinante do que é dado, isto é, do que é doado, garante a visibilidade do que é invisível. Prossegue o filósofo:

melhor, se se mede a dimensão racional de uma filosofia pela amplidão daquilo que ela torna possível, ela se medirá, também, pela amplidão daquilo que ela torna visível – pela possibilidade em si da fenomenalidade. O fenômeno religioso tornar-se-ia assim, conforme se encontre admitido ou rejeitado, um indício privilegiado da possibilidade da fenomenalidade (MARION, 2010, p. 38).

Tudo está submetido à jurisdição da possibilidade. Para Marion, tudo o que se mostra, primeiro se dá e a questão do dado pode ser pensado também desde uma perspectiva linguística pragmática.

A apofásis e a pragmática da ausência

Marion em sua obra Dieu sans l’être (2002) vislumbra a compreensão de Deus sem o recurso à noção do ser, afirmando que Deus não é ausência no mundo, mas sim o seu excesso. Se a constituição onto-teológica da metafisica designou Deus para o ser, pensar Deus sem ser não significa insinuar que Deus não seja, mas ao contrário, diante da existência de todas as coisas, Deus tem que ser (MARION, 2002, pp. 10-11). Porém, diante da questão exposta, Marion, com a sua fenomenologia do dom, nos ajuda a pensar um Deus de amor totalmente livre do problema metafisico do ser. O que significa a priori o reconhecimento do Amor como a primeira nomeação a Deus, isto, como afirma o filósofo, “porque Deus não vem do ser, ele nos advém como um dom” (Ibidem, p. 12). Já em De Sucroît (2015b), Marion confronta a fenomenologia da doação com o pensamento apofático e místico de Dionísio Areopagita. Para ele, o pensamento do teólogo místico oferece uma nova forma de acesso a uma linguagem decisivamente não predicativa, a saber a oração de louvor (Ibidem, p. 128). Esse tipo de linguagem “renomeia à luz dos operadores linguísticos ‘como’ e ‘em qualidade de’, mostrando assim a impropriedade dos nomes e a hora de pensar a Deus” (PIZZI, 2019, p. 6).

Marion vê em Dionísio a construção de uma terceira via para se renomear a Deus. Para ele, o teólogo não isola a teologia apofática, nem elimina sua relação com a via catafática, mas inclui a apofasis num conjunto tripartido onde um terceiro caminho se faz necessário: a via eminente sem a característica hiperbólica como denunciara Derrida, mas com sua marca de “Docta ignorantia”. Para Marion, a partir da ideia da docta ignorantia o caminho está limpo e aberto para uma reflexão incompreensível como tal (MARION, 2015b, p. 130). Esse caminho proposto por Areopagita não tem outra função senão ir além da afirmação e da negação. Dionísio indica uma função pragmática da linguagem, um modo indireto de proclamar o indizível de Deus para dar a entender que Deus não se esgota em nenhuma palavra que D’ele se possa dizer. Esse indizível de Deus, compreendido pelo método dionisiano abre um novo horizonte linguístico, a dos paradoxos. Os paradoxos místicos ajudam a reflexão teológica em suas formulações teóricas mais profundas e articuladas, cumprindo assim, uma função de significatividade linguístico-fenomenológica.

Marion compreendendo tudo isso, define a teologia mística dionisiana de teologia pragmática da ausência” – (theologie pragamatique de l’ausence). Para ele, a ‘teologia pragmática da ausência’ ocupa-se não dá não presença de Deus, mas do nome que se dá a Deus ou que se dá como Deus e que tem por função a proteção do Deus da presença. A afirmativa de Marion é categórica, numa pragmática teológica da ausência, na lógica do paradoxo, “o nome é dado sem nome” (MARION, 2015b, p. 145). Para ele, nesse horizonte da indizibilidade cujas vozes mais eloquentes são a oração e o louvor, também compreendidas como linguagens apofáticas, essas vozes não dizem algo sobre Deus, senão que permitem que Deus fale na ausência de nomes (PIZZI, 2019, p. 6). Se assim compreendermos, a terceira via proposta por Dionísio de Areopagita insere-se na lógica da fenomenalidade particular do paradoxo, isso porque a teologia apofática não diz o nome de Deus como não o diz a teologia catafática.

Não seria aqui um caso da fenomenalidade de Deus? Para Marion, a partir da leitura da terceira via, “ninguém pode dizer o nome, não apenas porque ele ultrapassa qualquer nome, qualquer essência, qualquer presença, mas porque ele não pode ser dito, não porque ele não se entrega, não se doa, mesmo que seja negativamente, mas para que possamos renomeá-lo” (MARION, 2015b, p. 150). Desde o ponto de vista semântico, poderia dizer-se que a teologia mística com sua linguagem apofática possui um caráter descritivo por sua referência a uma realidade única e singular. Para Marion a força do ato perlocutório na comunicação da experiência mística nunca se trata de falar de Deus, mas falar a Deus. Nesse sentido, para ele, “a teologia mística não busca encontrar um nome para Deus, senão de permitirmos receber seu nome indizível” (MARION, 2015b, p. 147).

Como esclarece Scannone, a terceira via assumida por Marion em sua reflexão sobre a relação entre a fenomenologia e a apofasis, destaca-se o seu aproximar-se de Pseudo-Dionísio, pois a partir dele, da teologia mística proposta pelo Areopagita, o que vem à tona é a superação a mera linguagem predicativa, bem como ao binômio afirmação/ negação, síntese/separação, presença/ausência etc. A evidência está colocada na via eminentiae, na palavra não predicativa do hino e da oração que recorre a função pragmática da linguagem que leva a Docta ignorantia (2019, p. 54). Falar de uma pragmática linguística nesse horizonte do indizível, pressupõe compreender, como afirma Vicente Vide em sua obra Los linguajes de Dios, que “se trata de um modo indireto de proclamar a inefabilidade do Mistério para dar a entender que Deus não se deixa encerrar em nenhuma das nossas palavras ou categorias” (VIDE, 1999, p. 199).

A partir desses paradoxos que emergem da teologia mística, Marion com sua proposta de uma teologia pragmática da ausência intenta pôr em manifesto esse tipo de linguagem que permite indicar aquele âmbito do excesso da intuição, isto é, a excedência, ou ainda a saturação. Quando se trata de falar de Deus, não é suficiente a construção de um discurso teológico conceitual; esse parece não ser satisfatório para dar conta da dizibilidade do que é indizível. Parece-nos que os paradoxos, as metáforas, a poièsis que os místicos utilizam, ajudam-nos a formular teorias mais profundas e articuladas para dizer o que é indizível. Marion, recorrendo a função pragmática linguística, tem consciência que por meio dela, se abre um novo horizonte linguístico, o horizonte do indizível cuja voz mais eloquente é a do silêncio. Marion analisa o apofatismo sob a ótica da vida, que silenciosamente encarna o indizível através da práxis humana. Nesse sentido para ele, a regra absoluta das pragmáticas teológicas da ausência que se opõe a uma onto-teologia, ou metafísica da presença, como ressalta Scanonne, “não se refere predicativamente a um nome ou alguém, senão que se refere pragmaticamente ao locutor e aos nomes, sempre inapropriados que este nomeia –, a um interlocutor ao mesmo tempo inalcançável, mas além de todo nome e negação do nome” (2019, p. 54).

No centro da fenomenologia de Marion está a ideia de fenômeno saturado. Para ele, há sempre uma superabundância da doação do fenômeno, essa superabundância, ou excedência que lhe é própria, recebe do filósofo o nome de fenômeno saturado. Um fenômeno quando satura e também desborda não somente a intenção de um sujeito, mas também todo o horizonte prévio da compreensão se evidencia como destinatário, co-doado com a doação originária, a(d)-donado (SCANNONE, 2009, p. 405).

Em Étant donné, Marion esclarece que “um fenômeno saturado se recusa a deixar olhar como um objeto, precisamente porque ele aparece com um excesso múltiplo e indescritível que anula todo esforço da constituição (1997, pp. 297-298). Essa não objetivação é a afirmação que um fenômeno saturado contradiz as condições subjetivas da experiência que não se deixa constituir como objeto. Afirma o filósofo: “o fenômeno saturado se doa enquanto permanece, segundo a modalidade, in-objetável” (Ibidem, p. 298). O fenômeno saturado se mostra pelo seu excesso não a um sujeito transcendental, mas a uma testemunha, o que garante, segundo Marion, o advento de um paradoxo. Como explica Scannone, paradoxos pelos quais se dá uma contra aparência, pois a intencionalidade se reveste em contra intencionalidade, enquanto se dá um giro que inverte o giro copernicano: a prioridade a tem e o fenômeno que se dá e, se é saturado, supera toda objetividade (Husserl) e sendo (étantité: Heidegger), pois se dá com superabundância da doação, a qual excede então qualquer horizonte e descentra o eu (2009, p. 405).

Trata-se do advento de uma extravagância, de uma atmosfera de possibilidade, de “um advento de um paradoxo” (MARION, 1997, p. 302).

O paradoxo e o testemunho

Nas palavras de Marion: “O paradoxo não apenas suspende a relação de sujeição do fenômeno ao eu – ele inverte. Pois, longe de constituir esse fenômeno, o eu se encontra constituído por ele. O sujeito constituinte, portanto, sucede a testemunha – a testemunha constituída” (1997, p. 302). Nessa perspectiva, podemos compreender o conceito de testemunho enquanto um fenômeno religioso in-objetável. Analisado em sua dimensão existencial, enquanto realidade paradoxal, insere-se na jurisdição das possibilidades, uma vez que o homem toma consciência que os signos que o Absoluto doa de si na contingência da história são pertinentes a sua consciência e a sua autocompreensão como sujeito livre (MARTINELLI, 2002, pp. 89-96) A realidade, na qual o ser humano está inserido, é também mais do que um objeto sujeito à investigação, assim como o ser humano é muito mais que a subjetividade repousante em si mesmo. A realidade, quando se reconhece o seu caráter irredutível de dados, de um fundamento que se dá de si e por si, esta também se reveste do caráter irredutível do dom. Tudo está sob a jurisdição das possibilidades. Porém, constituído testemunho, afirma Marion, “o sujeito torna-se operário da verdade, mas não pode pretender ser ele o produtor. Sob o título de testemunha, é preciso escutar uma subjetividade despojada de carácteres que lhe deu uma classificação transcendental” (1997, p. 302).

Consequentemente, se partimos da noção da submissão do fenômeno à jurisdição das possibilidades, o ser humano se apresenta como aquele que é constituído de uma fenomenalidade, de tal modo que se reconhece destinatário de uma doação a qual está chamado. Scannone explica esse processo com as seguintes palavras: “o acontecimento histórico advém, surpreende e, assim, ‘convoca’ a ser interpretado e reinterpretado; a obra de arte ‘chama’ a que se volta a contemplar uma e outra vez [...]; o rosto do outro interpela’ a uma resposta responsável que reverte a intencionalidade em um ‘aqui estou’” (2009, p. 407). Para o filósofo, esse chamado e essa resposta caracterizam “o adonado” (adonné), a forma pura do chamado.

Marion compreende que em todos os fenômenos saturados emerge originalmente esse chamado, essa interpelação. Nesse caso, o ser humano compreendido como um eu adonado, como aquele que se recebe a si mesmo. Receber a si mesmo, como propõe a compreensão do fenômeno da doação, não significa um ato de egoísta ou niilista, mas a possibilidade de adentrar no horizonte dos fenômenos saturados e a perceber o excesso de intuição das suas objetivações e das impossibilidades dos mesmos. Se os fenômenos saturados não se condicionam a quaisquer estruturas a priori, esses por si mesmos possuem um caráter de revelação, ou melhor, uma função revelante, que irrompe nos múltiplos condicionamentos que determinam os fenômenos de direito comum, como afirma o fenomenólogo (MARION, 2010, p. 72).

De fato, vista a partir do fenômeno da doação, e especificamente como fenômeno saturado, a concepção da subjetividade é metamorfoseada. Como afirma Martina Korelc, “o fenômeno da doação e do dado como fenômeno saturado é capaz de evidenciar e superar os limites da associação entre a objetividade e o fenômeno e mudar a concepção do ser, sobretudo do ser da subjetividade e o seu papel de aparecer” (2016, p. 36). Sendo assim, para Marion a subjetividade, para além de defini-la como ente, a define como aquela que recebe a doação, nesse sentido, o adonado, ou ainda, o convocado ou a testemunha. Aqui podemos compreender a lógica do paradoxo proposta pelo filósofo. Para ele o “paradoxo dos paradoxos não é escolher entre a catafasis e a apofasis, mas entre a saturação e a penúria da intuição; as utiliza a todas para levar ao seu termo a fenomenalidade que não se mostra senão que se dá” (MARION, 1997, p. 338).

Essa Compreensão de uma subjetividade transformada, modificada, permite pensar a categoria testemunho como fenômeno saturado, justamente pelo seu excesso de intuição e pela impossibilidade de objetivação que exige um fenômeno. Quando se observa a condição primeva e originante do fenômeno da doação é possível retomar amplamente o caráter de gratuidade da verdade que se doa ao ser humano. Quando se trata da análise do fenômeno, a realidade, como afirma Martinelli, não é aqui constituída ou medida antes de tudo pela atividade intencional do sujeito; mas o sujeito aparece constituído da gratuidade do dom, de tal modo aparece um pouco mais sugestiva a estrada que se abre sobre a possibilidade originária do ser humano de conceber-se como testemunha da doação (2002, p. 81).

Testemunho e martírio

Marion em Dieu sans l’etre aborda o tema do martírio. Para ele, o martírio, pela sua própria riqueza semântica, vincula-se à confissão da fé da Comunidade originária. A afirmação querigmática que Jesus é o Senhor caracteriza o seu ponto de partida para a reflexão da temática no horizonte da doação. Em suas palavras: “confissão de fé, enquanto supreendentemente envolve o crente [...], ela passa pelo enunciador, mas ela vem de longe e vai para mais longe” (MARION, 2002 p. 275). Por outro lado, sabemos, se de um lado, a origem do termo testemunho vem do termo latino testis, que indica aquele que está como terceiro, por outro lado, o termo grego que indica testemunho é martyria, que tem raiz em memoriável. Um mártir tem sua carne associada à carne do Filho de Deus e atesta a verdade de sua fé cristã. A sua vida torna-se palavra e acontecimento memorial, pois dá testemunho da própria testemunha de Deus que é Cristo. Convicto do mistério que lhe afeta, na forma crística de viver, testemunha com a própria vida todo processo de configuração de sua carne a carne de Jesus de Nazaré.

O martírio aprova a testemunha da verdade de Deus e a liberdade do homem, isto porque há uma circularidade originária entre martírio e inteligência da fé. Entre intellectus fidei e confessio fidei. A categoria de testemunho se coloca em relação com a tradição da fé, a martyria, já presente na Didaqué, a catequese dos apóstolos. A circularidade entre Martyria e testemunho é fruto de uma história de fé. Em cada testemunho martirial vincula-se uma profunda questão teológica. A consciência em sua liberdade absoluta é precedida pela verdade originária de Deus. O evento original de Deus é o seu Filho Jesus de Nazaré, encarnado na história da humanidade. Nesse contexto, a categoria de testemunho “constitui algo essencial no contexto de uma fenomenologia da fé, dado que não existe sem referência a um testemunho específico” (DUQUE, 2004, p. 223). A categoria de testemunho surge no âmbito da articulação entre a narração e a confissão da fé. A fé é uma decisão livre, benevolente e existencial.

Diante desta perspectiva da confissão de fé, podemos entender, como afirma Marion, “uma decisão existencial não teria algum valor, se ela não se escrevesse numa lógica do amor [...], onde aquele que confessa que Jesus é o Senhor, prega, portanto, um ato de amor [...] Sem dúvida essa confissão torna incoativamente ordenada a caridade” (1991, p. 275). É aqui, na lógica de uma fenomenologia do amor que se pretende compreender o testemunho na sua condição de fenomenalidade. Em Figures de Phénoménologie, Marion afirma que, “a fenomenalidade do testemunho encontra assim o terceiro, embora não o esgota. O que é próprio da testemunha é que ela experimenta um evento sem tê-lo previsto, nem entendido adequadamente” (2015a, p. 169). Tudo está submetido à jurisdição da possibilidade, da extravagância, da indizibilidade, a essa comunidade de objetos que caracteriza a sua fenomenologia da doação.

Recorda-se que desde a fenomenologia husserliana, podemos dizer que, no relacionar-se intencionalmente a alguma coisa, a nossa consciência assume o perfil que lhe consente conhecer o objeto que lhe está a sua frente, assim não conhecemos mais simplesmente um objeto, mas um objeto que vem intencionado a nós no momento de sua manifestação. Marion, dando um passo adiante com sua ideia de fenômeno saturado, garante o caráter revelador das coisas que irrompe nos múltiplos condicionamentos que determinam os fenômenos de direito comum. Em termos teológicos isto significa que o testemunho da doação é compreendido desde a função revelante da fé, isto porque a fé pressupõe o amor como sua condição primeira e originante.

Nessa perspectiva, o ser humano coincide com o Ser testemunha de uma verdade doada. Constitui-se testemunho o sujeito que permanece a serviço da verdade, porém esse sujeito não pode pretender ser ele mesmo o produtor. De fato, como compreendera Levinas, “quem testemunha diz algo, pelo simples fato de testemunhar, que não é dono e nem origem daquilo que testemunha, mas que é dom e originado por aquele de quem dá testemunho” (DUQUE, 2004, p. 120). No testemunho tudo é gratuidade, tudo é doação. O Ser da subjetividade e seu papel de aparecer constitui o testemunho como aquele que recebe a doação: o adonado, o convocado, a testemunha.

O abismo da fé e a alteridade da consciência

O testemunho lança-nos numa reflexão profunda de “algo a mais” que habita a testemunha que somente a lógica do abismo da fé pode garantir. “Algo a mais” e indizível, mas que testemunha que, depois da experiência de sofrimento e abandono, há sempre uma nova realidade que reluz e faz emergir uma nova descoberta que pressupõe um acolhimento de um Outro como si mesmo (SCANNONE, 2019, pp. 54-55). Nas palavras de Marion, “o martírio doa ao confessor a capacidade de ser o portador do caráter de Cristo” (1991, p. 276). Esse é o testemunho dos mártires, uma vez que, com o mistério das suas existências, se deixam envolver nos sinais que o próprio Deus toca a humanidade. Sinais “pertinentes à consciência do homem na sua necessidade de compreender- -se como sujeito livre” (MARTINELLI, 2002, p. 90).

Quando estamos diante de uma “alteridade da consciência”, estamos diante de uma autêntica exposição de fé. Explanação de alguém que na experiência “de um não sentido” encontra o sentido de sua vida. Encontrar o sentido no não-sentido é o que permite dizer que uma fé no Deus da vida não pode ser real à margem do escândalo do sofrimento dos inocentes, sem que haja a suspensão do não sentido por um sentido insuspeitável. Como diria Ricoeur: “a liberdade é a capacidade de viver segundo a lei paradoxal da superabundância da negação da morte e da afirmação do excesso de sentido sobre o não-sentido em todas as situações desesperadas” (2006, p. 105). Nessa perspectiva, está a compreensão de Marion quando afirma que “para aquele que confessa, o martírio doa, como ele tem doado de entrar e conhecer as condições onde a confissão de fé se torna absolutamente livre” (2002, p. 276).

Pensar o testemunho na lógica da fenomenologia da doação, permite adentrar numa reflexão profunda que coloca em evidência o vínculo da responsabilidade testemunhal com o affectus fidei. A decisão de dar a vida tem que ser sinceramente fundada nesse “algo a mais”, nessa extravagância de sentido, ou ainda, nessa excedência ou saturação, a persuasão de uma verdade que não lhe pertence e, todavia, lhe é dada e confiada. De uma livre afeição se vai a uma livre obediência que resulta numa livre entrega. Nas palavras do Apóstolo Paulo: “livres para a própria liberdade” (Gl 5,1). Essa radical expressão de uma liberdade fundamental faz com que o testemunho torne-se a ação testemunhada de um homem interior, que em sua convicção e sua fé leva à dizibilidade aquele “algo a mais”, indizível, em que o homem jamais poderia ser o seu produtor. Quando livre para a própria liberdade, o testemunho é também o compromisso de um coração puro, um compromisso que vai até a morte. Na fenomenologia da doação não há senão uma contínua entrega de si mesmo, em amor, excedendo-o em si e embarcando na vivência plena da alteridade. No abismo da fé, o testemunho se configura como o “adonado”.

O testemunho como linguagem do indizível

Um dos pontos decisivos para se falar do dizível e o indizível no pensamento de Marion é a distinção que o filósofo realiza entre o ídolo e o ícone, conceitos fundamentais de sua fenomenologia. Em sua obra Dieu sans l’être esclarece que ambos conceitos não se referem a entes, mas antes a modo de ser do olhar. Em suas palavras: “o ídolo não indica, mais do que o ícone, um ser em particular, nem mesmo uma classe de seres, ícone e ídolo indicam um modo de ser, ou pelo menos alguns deles” (MARION, 2002 p. 15). Se, de fato, o ídolo e o ícone têm a sua base sob o domínio da filosofia do visível, essa mesma analogia pode- -se aplicar também à filosofia do dizível. Nesse sentido, Marion, à luz das reflexões de Dionísio Areopagita como vimos acima, soube elaborar uma passagem de uma fenomenologia da visão a uma fenomenologia da linguagem (PIZZI, 2018, p. 9).

O ídolo mantém a estrutura fenomenológica tradicional da intencionalidade, na medida em que fascina e cativa o olhar, pois como afirma Marion, “ele não se encontra nada que não se deva expor ao olhar, atrair, preencher e reter” (2002, p. 18). O ícone doa ao ver o invisível, convoca o olhar deixando o visível saturar-se do invisível. A saturação fenomenológica acontece porque “o ícone é capaz de referir-se ao homem a uma transcendência que não pode assumir como propriedade fabricada a sua medida e ao serviço de seu controle cognoscitivo” (BARRETO GONZÁLEZ, 2017, p. 200). Há uma função que lhe é própria, como que “um espelho visível do invisível”, uma vez que devolve ao olhar humano o que nele deposita. Para Marion, “o ícone convoca o olhar a superar-se e nunca paralisar-se em um visível, pois o visível é apresentado aqui apenas em vista do invisível” (1982, p. 29). A analogia a um espelho visível do invisível é consistente na medida em que se constitui como tal, satura o olhar, para seguir o curso do invisível.

Como afirma Maria André em sua Douta Ignorância, “o ícone instaura assim a distância em que o olhar se refaz continuamente neste jogo entre o visível e invisível. Ídolos e ícones podem inscrever-se no domínio visível, no domínio do dizível e no domínio do conceptual [...]” (2019, p. 392). A passagem de uma fenomenologia da visão a uma fenomenologia da linguagem, permite que de alguma forma os fenômenos de saturação sejam também compreendidos nos acontecimentos linguísticos. Marion ao abrir a sua reflexão à questão da linguagem, observa que o lugar fundamental de edifício linguístico ressignificado é a manifestação linguística da saturação. Nas palavras de Bassas Vilas, a particularidade da fenomenologia marioniana está na esfera da linguagem, impor a irredutível distância entre o dito e a referência que evidencia dois aspectos deste modo de descrição: “a plasticidade da linguagem e a relação entre linguagem e subjetividade” (2017, pp. 220-221). Continua o pensador: “em efeito, a linguagem fenomenológico marioniana assume com a partícula ‘como’ uma abertura estrutural irredutível, modificando-se essencialmente ao transformar para seus fins uma partícula e forma linguística da teologia” (Ibidem, p. 221)

É nessa plasticidade da linguagem analítica que nos propomos falar do testemunho como linguagem do indizível à luz da fenomenologia da doação de Jean-Luc Marion. O caráter plástico e verbal da linguagem fenomenológica nos autoriza sublinhar o jogo lúdico dialógico entre o dizível e o indizível, abrindo novas possibilidades que as noções de saturação e doação podem nos dar. Dizer que o testemunho é um fenômeno saturado requer que reconheçamos primeiramente que o mesmo seja um acontecimento comunicativo que se insere eficazmente na linguagem humana. Assumindo a ideia da ontophania de Heidegger, quando nos fala da linguagem como modalidade do ser, o homem mais do que possui-la, pertence a própria linguagem (HEIDEGGER, 2005, p.170). Por isso que, “antes de ser palavra dirigida a alguém, a linguagem é dizer, é a palavra como manifestação do ser” (GEFFRÈ, 1989, p. 46). Para Marion essa manifestação linguística se dá como saturação, ou melhor, articula e possibilita uma “linguagem saturada” (BASSAS VILAS, 2017, p. 220).

Linguagem saturada, extravagante, dotada de sentido, que eclode em doação, excede a qualquer possibilidade em que o sujeito que fala possa constitui-la. É linguagem ostensiva, impensável e indizível pelo seu excesso. O testemunho insere-se nessa dinâmica linguística precedente, por isso exige o descentrar-se de si para que sua dinâmica interna se sature, pois de uma liberdade que se extravasa se vai a uma liberdade que se torna a expressão da verdade contida no interior do próprio testemunho (GAUTHIER, 2004, p. 100). Disso decorre afirmar que essa verdade não pode ser relativa, muito menos identificada como qualquer tipo de ideologia. Ela não passa pelos vieses das convicções científicas, das estruturas e modelos políticos, muito menos pelas facções e fanatismos religiosos. A verdade que se impõe no testemunho é uma razão e um sentido que emanam da experiência do Absoluto. Nesse sentido, a fenomenalidade do testemunho não se vincula à consciência solipsista e nem à região da imanência, mas à jurisdição da possibilidade de uma doação que se extravasa. Lá onde aquele que aparece, não se refere negativamente, como uma aparência ao ser, mas sim, como aquele que goza do direito de toda a fenomenalidade.

Com suas características peculiares, o testemunho se apresenta como aquela relação fundamental mediante a qual o homem comunica ao outro o que tem intimamente conhecido como a origem autêntica de cada comunicação. Assumindo uma forma de expressão apofática, o testemunho manifesta aquele “algo a mais”, indizível e inassimilável. Para Marion, a abordagem do indizível não toca o terreno do ser, mas o da alteridade absoluta que está para além do dizer. Mormente, o homem, somente pode ser testemunha de uma verdade doada. Ele se apresenta como aquele que se reconhece constituído destinatário da doação (MARTINELLI, 2002, p. 80).

Diante de tudo isso que foi dito, podemos afirmar que a categoria do testemunho e do martírio, em razão de serem levados ao interior da linguagem, escapam da ordinariedade da linguagem e despertam uma linguagem de segunda ordem, uma vez que expressam um sentido e um referente último, o que permite compreender, como diria Ricoeur, que “o compromisso da testemunha no testemunho é o ponto fixo em torno do qual gira o leque de sentido” (1994, p. 115). O testemunho é um acontecimento dotado de sentido, tornando-se assim, um acontecimento da palavra e da ação. Para Marion, na perspectiva da manifestação da linguística da saturação, o vazio da linguagem, a indizibilidade e a não verbalidade das palavras testemunham o apofático quando de Deus só podemos dizer aquilo que não é. Nesse sentido, na compreensão marioniana, o testemunho apresenta-se como fenômeno saturado, respondendo ao “eu” como adonado, como convocado.

Conclusão

O artigo teve como objetivo explicitar a ideia do testemunho como linguagem do indizível. Para isso serviu-se da análise fenomenológica de Marion, procurando destacar o testemunho como realidade fenomênica e sua condição inobjetável quando se refere ao seu sentido teológico. O testemunho como linguagem do indizível insere-se na lógica do paradoxo das situações-limite daqueles que professam a sua fé apesar do abismo do injustificável. São os acontecimentos, atos e palavras que atestam que o injustificável é superado, abrindo um novo caminho para uma fenomenologia do credo.

O testemunho pertence a ordem do mistério da liberdade humana, concomitantemente, afeta o limite entre a contingência e a esperança e revela o interior de quem atesta um chamado e uma liberdade extravagante que manifesta o mistério de Deus. Entendido a partir de uma fenomenologia da doação, o testemunho enquanto fenômeno saturado evidencia a superabundância de sentido; a doação de uma referência- -Última; um advento de extravagância e de paradoxo.

Ele invoca um descentrar-se da razão absoluta, da pretensão à autopossessão, da autofundação e da evidência intuitiva. Aquele que testemunha, esvazia-se das pretensões arrogantes do “eu” para tornar o “eu” – adonado, o convocado. Esta ressignificação da intencionalidade tem lugar graças ao reconhecimento do testemunho como um fenômeno saturado, pois ele excede a qualquer possibilidade que tenha a consciência de constitui-lo. Inevitavelmente, na lógica da fenomenologia da doação, não há como negar que o testemunho em sua dimensão existencial possui “algo” de inaudito, aquele “algo a mais” que se revela como sabedoria despertando fascínio e credibilidade.

Situar o testemunho na lógico do indizível é reconhecê-lo como um dos traços constitutivos da linguagem humana, pois na linha do fenômeno, o testemunho possui em si um grau de performidade que a palavra por si mesma seria incapaz de expressá-lo. Uma linguagem performativa é aquela que se vincula à autoimplicação, pois é linguagem da inclusão, pois por meio dela se torna visível a vontade da autoimplicação por parte de Deus com o ser o humano e do ser humano com Deus. O testemunho é linguagem dizível da fé, cuja a liberdade se extravasa à uma liberdade que expressa a verdade contida no interior do testemunho.

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