CRÍTICA À ESTADOLATRIA:
CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA
ANARQUISTA À PERSPECTIVA
ANTIRRACISTA E DECOLONIAL
CRITICISM OF STATOLATRY:
CONTRIBUTIONS FROM ANARCHIST
PHILOSOPHY TO ANTI-RACIST AND
DECOLONIAL PERSPECTIVE
Wallace dos Santos de Moraes*
*Professor de Ciência
Política e dos Programas
de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGF) e História
Comparada (PPGHC)
da UFRJ. Contato: wktmoraes@outlook.com
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Resumo
A partir do conceito de epistemicídio de
Boaventura de Souza Santos, procuramos situar a colonialidade do saber exercida tanto
contra a filosofia anarquista quanto à perspectiva decolonial (que coloca no foco central
o pensamento indígena e negro). Apontamos
para a conexão entre estadolatria (inclusive
como teologia política) e as literaturas ocidentais e ocidentalizadas de um lado; e as literaturas decoloniais e sabedorias dos povos
nativos de outro. O artigo apresenta a importância da perspectiva de análise decolonial
ao apontar o racismo como eixo estruturante da Modernidade. Com vistas a aumentar
a eficácia da critica decolonial, resgatamos
alguns dos principais conceitos da filosofia
anarquista. Objetivamos, assim, fazer confluir
essas duas escolas interpretativas e mostrar
que parte da crítica anarquista pode ser muito útil aos propósitos antirracistas. Para tanto,
simultaneamente, apresentamos o significado
de alguns conceitos importantes: estadolatria, colonialidade do poder, ação direta e autogoverno. Também articulamos as categorias de liberdade e de igualdade como centrais tanto para o pensamento
anarquista quanto para o decolonial. Mostramos como o Estado foi uma das
principais instituições responsáveis pela escravização, tortura e assassinatos
de negros e indígenas, assim como a estadolatria unifica diferentes filosofias
europeias.
Palavras chave:Estadolatria; filosofia anarquista; antirracismo
Abstract
Based on the concept of epistemicide by Boaventura de Souza Santos, we
seek to situate the coloniality of knowledge exercised both against anarchist
philosophy and the decolonial perspective (which places indigenous and black
thinking at the center). We point to the connection between statolatry (including
as political theology) and western and westernized literature on the one hand;
and the decolonial literature and wisdom of the native peoples of another. The
article presents the importance of the perspective of decolonial analysis when
pointing out racism as a structuring axis of Modernity. In order to increase the
effectiveness of decolonial criticism, we recover some of the main concepts of
anarchist philosophy. We aim, therefore, to bring these two interpretative schools
together and show that part of anarchist criticism can be very useful for anti-racist
purposes. Therefore, simultaneously, we present the meaning of some important
concepts: statehood, coloniality of power, direct action and self-government. We
also articulate the categories of freedom and equality as central to both anarchist
and decolonial thinking. We show how the State was one of the main institutions
responsible for the enslavement, torture and murders of blacks and indigenous
people, as well as the statehood unifying different European philosophies.
Keywords:Statolatry; anarchist philosophy; anti-racism
1. INTRODUÇÃO
Boaventura de Souza Santos (2011b: 29) assevera que vivemos nas ciências sociais a monocultura do saber e do rigor que preconiza como único saber rigoroso o científico; por consequência, todo o conhecimento alternativo, popular, é destruído. Assim, as práticas sociais baseadas nos conhecimentos indígenas, negros, populares, não são consideradas como rigorosas, tornando-se invisíveis. Ele denomina este fenômeno de “epistemicídio”.
Utilizaremos o conceito vislumbrado por Santos com propósitos um pouco mais amplos, na busca por apreender outros aspectos da ciência social, pois o epistemicídio não nega apenas o conhecimento produzido fora da Universidade, sem o rigor científico, como refletiu Santos - fato que já é gravíssimo -, mas para além disso, corroborando para o aumento do grau de gravidade, ele assassina no nascedouro todas as opções teóricas-metodológicas produzidas na academia que negam o Estado e o capitalismo enquanto instituições legítimas e necessárias para a humanidade, em duas palavras: Modernidade e Colonialidade. Em outros termos, sobrevivem ao epistemicídio somente as teorias produzidas na academia e/ou nos grandes oligopólios de comunicação de massa, que concebem a Modernidade e suas instituições, principalmente o Estado e o capitalismo, como legítimas e no máximo passíveis de reformas. Não se constitui, portanto, em mero preconceito em relação àquilo que é produzido fora da academia, mas a todo conhecimento crítico ao establishment, à colonialidade do poder, do ser, do saber e da natureza.
Certamente, se a produção intelectual for de fora do mundo acadêmico e ao mesmo tempo contestar o sistema como um todo será mais facilmente rejeitada por esses doutos em defender o Estado, a desigualdade, a exploração, as hierarquias, os preconceitos, o racismo e a limitação da liberdade para alguns como parte do curso natural da História. Todas as teorias que se enquadram no princípio geral de conceber as instituições estatais como resultado do progresso e/ou da razão são aceitas. Liberalismo, social-democracia, marxismo, conservadorismo e fascismo, por exemplo, em que pese suas profundas diferenças, concordam em torno da existência do Estado e consequentemente da dicotomia entre governantes e governados. Pode-se pensar em diversas formas de exercício do poder estatal, mas jamais na sua imediata e completa negação. São os fantasmas hobbesiano-hegelianos impondo suas assombrações.1
Por consequência, o epistemicídio possui um efeito duplo: 1) valoriza toda a produção científica engendrada por “intelectuais”, geralmente, homens, brancos, heterossexuais, judaico-cristãos, proprietários, ligados aos governantes em geral. Normalmente, são oriundos da Europa e dos EUA, mas não só, pois em todas as partes do mundo existem os defensores do Estado, do capitalismo, das desigualdades, das hierarquias sociais, das autoridades, da superioridade europeia, em suma, da colonialidade do poder (Quijano, 2005; Grosfoguel, 2012); 2) ignora tudo que é produzido por movimentos sociais autônomos principalmente se forem compostos por indígenas e negros e resgatar seus valores e culturas de antes da modernidade/colonialidade; 3) desvaloriza tudo que é produzido pelos intelectuais que contestam a ordem capitalista/estadolátrica, sejam eles oriundos da Europa, EUA, e com maior veemência se tiver procedência de continentes onde suas populações são consideradas inferiores, com agravante estupendo se contestar o Estado, o capitalismo, o patriarcado branco, as hierarquias, os valores ligados às religiões, ao militarismo, em resumo, à plutocracia vigente e sua ordem nefasta para os governados. Aqui se trata da colonialidade do saber (Maldonado-Torres, 2018). Do ponto de vista europeu, Foucault (2002) denominou esse processo por “saberes sujeitados”
Em resumo, o epistemicídio ataca todas as experiências populares e teóricas que não se enquadram nos padrões de exaltação do Estado, do capitalismo e não se encontra dentro dos moldes “científicos” acadêmicos, positivistas, colonialistas, amplamente parciais sob a farsa da neutralidade axiológica.2
A própria ideia de neutralidade acadêmica/intelectual cartesiana que se diz guiada pela objetividade faz parte da colonialidade do saber, pois parte do princípio da possibilidade de uma separação da alma e do corpo e olhar o mundo pelos olhos de Deus, acima de tudo e de todos, onipresente, universal. Por consequência, a literatura moderna ocidental e a ocidentalizada (criada fora da Europa ocidental, mas em absoluto acordo com ela) se apresentam como representante de um pensamento universal, único, racional, objetivo, neutro, capaz de dar conta de tudo que acontece no restante do mundo. Assim, se ignora solenemente o lugar de fala, a experiência, as particularidades e idiossincrasias de cada cultura, comunidade, coletivo. Essa presunção, soberba, da perspectiva ocidental, é muito bem criticada pela literatura decolonial (Grosfoguel, 2018; Quijano, 2005). Mas antes dela, no próprio contexto da sua consolidação, no século XIX, a filosofia anarquista já a denunciara. Bakunin, por exemplo, disse:
Todo individuo humano é o produto involuntário de um meio natural e social no seio do qual nasceu, desenvolveu e do qual continua a sofrer influência. As três grandes causas de toda imoralidade humana são: a desigualdade tanto política quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua consequência necessária: a escravidão (Bakunin, 2006: 110).
Castoriadis (2007: 69), também na contramão do pensamento ocidental dentro do ocidente, ressalta que grande parte dos pensadores tentou ocultar o fato de que a sociedade se auto-institui, buscando apresentar suas instituições como tendo uma origem extra-social, divina, racional ou como sendo fundada em leis da história. O principal objetivo dessa ocultação é retirar por completo o papel dos humanos na criação do seu próprio mundo. É a obliteração da crítica das instituições existentes, bem como da possibilidade de criar/resgatar novas formas de convívio social. Partimos do princípio, por consequência, de que a sociedade deve ter a liberdade de se auto-instituir. Com efeito, a história deve ser tratada como auto-instituição comunitária.
Noam Chomsky (2017), de forma astuta, descreve os dois papéisque intelectuais3 podem cumprir na sociedade: 1) bajulador do sistema, dos governos e dos donos do poder, justificando suas ações e seus crimes; 2) crítico independente das posturas governamentais e defensor da justiça. Os primeiros, nos diz Chomsky, são respeitados e idolatrados na sociedade pelos mesmos governos e seus seguidores, enquanto os críticos e independentes são desvalorizados e taxados como orientados por valores e/ou por ideologia.
Outrossim, entendemos que tanto as interpretações decoloniais, que colocam o racismo como eixo central da Modernidade, quanto as anarquistas que valorizam a ação direta dos governados, ambas em detrimento do reconhecimento do papel do Estado como legítimos, são marginalizadas pela colonialidade do saber inclusas nos saberes sujeitados (Foucault, 2002) ou sofrem perfeitamente do epistemicídio acadêmico (Santos, 2011b). Com vistas a superar essa discriminação epistemológica e preencher essa lacuna acadêmica, importantizamos desenvolver a pesquisa que segue.
O objetivo desse artigo é apresentar alguns conceitos da filosofia anarquista que podem ser úteis para a perspectiva decolonial no sentido de sua luta de descolonizar o poder, o saber e o ser. Trata-se de uma filosofia que, embora tenha raízes na própria Europa, foi desenvolvida sob racismo europeu e ampliada em outros continentes. O mérito dela é não estar pautada pela ideia da razão supostamente superior eurocêntrica, nem pelas ideias dualistas, cristãs, estadolátricas, modernas, colonialistas, capitalistas. Assim, acreditamos na possibilidade de apontar algumas contribuições para os propósitos de libertação popular, que também é o objetivo da filosofia decolonial. Evidentemente, para tanto, precisaremos não estar carregados de um preconceito determinista geográfico, nem racial, segundo a qual tudo que for compartilhado por europeus deve ser rejeitado.
Antes de continuarmos, é importante frisar também o contrário, isto é, a filosofia anarquista tem muito o que aprender com a perspectiva decolonial, a começar pelo entendimento de que a modernidade e a sua economia política possuem como eixo central, organizador, o racismo. Não se trata meramente de uma exploração de classe, que também existe, obviamente4 , mas ela gira sob o eixo da raça. Em suma, o princípio organizador da modernidade e do capitalismo foi o racismo. Ao admitirmos as suposições arroladas acima, podemos incluir a interseccionalidade defendida pelas feministas negras, incluindo explorações de gênero e classe.
Outro aspecto importante que a filosofia anarquista deve considerar é a cosmogonia dos povos não europeus e respeitar suas crenças e culturas. Nestes termos, a o pensamento libertário tem que compreender e assimilar alguns pontos fundamentais de povos não europeus. Não obstante, veremos a seguir que os postulados centrais da epistemologia anarquista compõem um terreno absolutamente fértil para esse aprendizado, pois seus princípios lhes possibilitam aprender com a teoria da colonialidade sem nenhum trauma. Ao contrário, eles em alguma medida já estavam lá, mas precisavam ser concatenados. Para os parâmetros desse artigo, não será possível apresentar os ensinamentos da teoria decolonial fundamentais para o pensamento anarquista. Todavia, vamos apresentar como a teoria anarquista pode contribuir para o pensamento decolonial. Dito isso, podemos avançar.
As reflexões de Kropotkin (2000, p. 98) é bastante pertinente sobre esse assunto. Vejamos.
Compreende-se facilmente porque é que aos historiadores modernos, educados no espírito das coisas romanas e empenhados em fazer derivar todas as instituições de Roma, lhes seja muito difícil abarcar o verdadeiro sentido do movimento comunalista do século XII. Afirmação vital do indivíduo que consegue constituir a sociedade pela livre federação dos homens, das aldeias, das povoações e das cidades, este movimento é uma negação absoluta do espírito unitário e centralizador romano, mediante o qual se pretende explicar a história nas nossas universidades. É que este movimento não anda ligado a nenhuma personalidade histórica, a nenhuma instituição centralizada. É um desenvolvimento natural, pertencendo, como a tribo e como a comuna rural, a uma determinada fase da evolução humana, e não a tal ou qual nação ou região.
Destarte, a filosofia, a história e a ciência social oficiais realizam o epistemicídio, cujas principais características são a idolatria do Estado, que chamaremos daqui em diante por estadolatria, bem como o impedimento de se pensar em outras organizações societais para além dos limites do capitalismo e da ideia de representação política, como se existisse uma camisa de força que obstasse reflexões mais generosas para as díades: autonomia-emancipação; autogestão-sem alienação.
Como agravante, a colonialidade do saber ignora o racismo como componente principal, fundador e organizador da modernidade. O Estado, indubitavelmente, cumpriu um papel central na estruturação do racismo. Assim, foi o Estado europeu que não só patrocinou, como foi o executor, do colonialismo, da escravidão, dos estupros, das humilhações, das extorsões, da destruição da pachamama, do genocídio de diferentes povos. Aliás, o maior genocídio da história da humanidade. Foi essa instituição através de seu militarismo e com apoio das igrejas cristãs que tratou indígenas e negros como sub-humanos ou nos termos de Grosfoguel (2018) como um não-ser, situado em uma zona diferente da do europeu ocidental. A partir dessas constatações, o Estado moderno europeu, se alimentou reciprocamente com o colonialismo, praticando- -o, foi, portanto, oriundo como um necro-racista-Estado, manchado pelo sangue e suor das suas vítimas, caracterizado por não reconhecer negros e indígenas como humanos. Os novos Estados latino-americanos, caribenhos e da América do Norte foram gestados a imagem e semelhança dos seus pais. Portanto, continuaram a política da morte e do encarceramento colonialista baseados nas leis ou não.
A despeito dessa História, filósofos, historiadores e cientistas sociais continuam a venerar e defender o Estado. Como defendeu Foucault (2002), a gênese do Estado é o direito soberano de matar. Foi desde sempre um necro-racista-Estado.
Para o intelectual francês, o poder da soberania, de acordo com a sua teoria clássica, era ter o direito de vida e de morte como um de seus atributos fundamentais. Ao propalar isso, significa que o soberano tem o direito de matar. Nas palavras de Foucault, tratava-se de uma prerrogativa “absoluta, dramática, sombria”, que consistia em “poder fazer morrer” e ao mesmo tempo deixar viver. “O direito de matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um direito de espada” (Foucault, 2002: 287).
Em relação ao poder, o súdito não é, de pleno direito, nem vivo nem morto. Ele é, do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e é simplesmente por causa do soberano que o súdito tem direito, eventualmente, de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana.
Essa premissa se transforma em um truísmo para análise de países latino-americanos e caribenhos.
Antes de avançarmos, acreditamos que a crítica profunda ao Estado realizada pela literatura e sobretudo pelas lutas históricas anarquistas deve contribuir sobremaneira para a perspectiva decolonial, livrando-a talvez do seu último bastião da modernidade/colonialidade: a defesa do Estado, que pelo seu DNA é assassino.
As análises decoloniais partem do princípio de que a construção da Modernidade com a conquista das Américas, realizada pelos europeus a partir de 1492, inaugurou um novo modo organizador da economia política, atravessado pelo racismo. Um tipo de racismo próprio e singular caracterizado pela cor da pele e sobre a dúvida a respeito da humanidade das outras etnias, chamadas por raças. Portanto, o colonialismo que destruiu culturas, subordinou, explorou e massacrou povos inteiros remanescentes, fundou a colonialidade do poder (Quijano, 2005; Grosfoguel,2018; Maldonado-Torres, 2018). Esse conceito busca se diferenciar de colonialismo justamente para marcar a persistência dos princípios organizadores da sociedade pautados pelo racismo ainda nos dias atuais, mesmo depois da suposta independência dos novos Estados nas Américas e na África. Com o avanço dos estudos sobre o sistema- -mundo nas Américas, percebeu-se que essa colonialidade do poder vinha acompanhada de outras formas como colonialidade do saber, do ser e da natureza (Grosfoguel, 2012). A luta contra essas colonialidades chama-se decolonial. Grosfoguel (2018, p. 114) chamou de giro decolonial o processo de busca pela emancipação dos primados eurocêntricos justificadores da Modernidade/Colonialidade. Esse giro decolonial significa desintoxicar-se dos primados eurocêntricos, racistas, patriarcais, heteronormativos impostos pelos governantes europeus aos outros povos.
AS IDEIAS QUE SE FORJAM NAS LUTAS SOCIAIS
Nas duas últimas décadas, percebemos um crescimento de pesquisas com base tanto na filosofia política anarquista quanto na perspectiva decolonial, potencializando produções que nunca deixaram de existir, mas que foram marginalizadas durante muito tempo. Simultaneamente, florescem associações políticas e sociais com viés libertário e decolonial no mundo inteiro, em especial na América Latina.
Um dos aspectos fundamentais a se destacar é que as proposituras anarquistas não ficam apenas no campo da teoria. Aliás, elas saíram do campo da prática para o papel e não o contrário como diversas outras. Destarte, antes de apresentarmos suas teses, faz-se necessário entendermos de quais lutas elas saíram e foram postas em prática. Nesse sentido, Ricardo Flores Magón, no contexto da Revolução mexicana de 1910, disse o seguinte: “a maioria do povo mexicano não precisa aprender o que é o socialismo libertário, pois ele já o pratica há muitos séculos.” Ele estava se referindo às organizações indígenas antes da chegada dos europeus. Além delas, a Revolução do Haiti, em 1793; a comuna de Paris, em 1871; o sindicalismo revolucionário e a propaganda pelo fato, no final do século XIX e início do XX; a Revolução Mexicana de 1910-17, a Revolução Espanhola de 1936-39, a experiência da Ucrânia com os Makhnovistas e Kronstadt no seio da Revolução Russa, em 1917; todas tiveram grande influência das ideias anarquistas, quando não impulsionadas fortemente por ela.
Nas últimas décadas, as principais lutas contra o capitalismo e o autoritarismo dos Estados tiveram, pelo menos, alguma participação anarquista. Assim aconteceu na França tanto em maio de 1968, quanto nas rebeliões dos últimos anos, a partir de 2005. Na Grécia, desde o final de 2011; no México, no estado de Oaxaca em 2014/15; bem como nos grandes movimentos denominados de Ação Global dos Povos, entre 1998 e 2001, em Seattle, Washington, Praga, Londres e Gênova.
Na América Latina, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em Chiapas, no México, em 1994, se transformou no exemplo de luta anti-institucional com fortes traços anarquistas e decoloniais. O movimento dos piqueteros, na Argentina, em 2001, o Caracazo na Venezuela, em 1989; a Revolta dos Pinguins no Chile, em 2012; foram exemplos importantes com traços libertários. Diversas organizações anarquistas compuseram lutas importantes, entre 2012-2014, em países como México, Chile, Colômbia, Equador, Argentina, Uruguai. Podemos incluir nesta lista os movimentos de occupy que rodaram o planeta, no início da década de 2010, e a chamada primavera árabe, na passagem de 2012 para 2013, em países como Turquia, Síria, Egito. O confederalismo democrático do povo curdo constitui-se em forma emblemática de autogoverno popular
No Brasil, particularmente, o surgimento e/ou desenvolvimento de diversos coletivos de estudo e de ação, através da educação por meio de vestibulares para negros e carentes e também por meio de ocupações urbanas, formando uma verdadeira escola interpretativa e de ação direta, resultou em forte reflexo na Revolta dos Governados de 2013 (De Moraes, 2018). Atualmente, os anarquistas estiveram juntos nas lutas antirracistas e antifascistas nos EUA e no Brasil.
Esses e outros exemplos ratificam a necessidade de perscrutar suas teses que animam movimentos dos mais diversos no mundo inteiro e que podem colaborar para as lutas decoloniais.
Se um dos papeis centrais dos filósofos constitui-se na criação de conceitos para ajudar a entender a realidade, aceitemos os conselhos de Deleuze & Guattari (2010) e apresentaremos algumas categorias típicas do pensamento anarquista criadas para explicar e criticar a realidade Moderna, capitalista e estadolátrica.
Mas o que é o anarquismo. Quais são as suas ideias? Como podem colaborar para luta decolonial?
PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA ANARQUISTA
Anarquia é um vocábulo formado por duas palavras gregas: an – que significa não, e arkhé, que significa autoridade. Neste sentido, anarquia expressa negação de toda e qualquer tipo de autoridade quer seja religiosa, militar, estatal, econômica, social. Por extensão, no sentido político, negação de todo governo, negação do Estado; no sentido econômico, negação de toda hierarquia no local de trabalho, de todo patrão, de todo chefe.
O primeiro aspecto a se destacar é que a filosofia anarquista privilegia o lócus da liberdade que só pode se concretizar se aplicada em conjunto com a igualdade. Trata-se de uma perspectiva, portanto, essencialmente, antiautoritária. Por isso, os anarquistas também são conhecidos como libertários. Sob o pensamento anarquista, não é concebível qualquer justificativa de escravidão, subjugação, preconceito, exploração de qualquer forma. Nesse sentido, pode contribuir e muito para as lutas antirracistas contemporâneas.
Diferente do marxismo, que tem os escritos de Karl Marx como guia supremo, o anarquismo não tem um teórico ou guia que encarne uma autoridade científica. Alguns concebem que as ideias libertárias começaram com as ações de Jesus Cristo por defender o repartir do pão e o amor ao próximo. Outros afirmam que a perspectiva libertária só pode ser pensada a partir de P. Proudhon no século XIX, na defesa do mutualismo. Outros ainda defendem o início do anarquismo somente com M. Bakunin e o coletivismo. Não obstante, de maneira sistemática, fato é que diferentes militantes contribuíram para as linhas gerais do pensamento anarquista, como por exemplo, P. Kropotkin e E. Malatesta na defesa do anarco-comunismo. Além destes, diversos outros teóricos e militantes conhecidos e anônimos deram suas vidas em nome da mais ampla liberdade. A teoria anarquista, portanto, não é uma ciência acabada, ela está sempre em construção e depende profundamente do contexto na qual é aplicada, todavia, duas questões compõem a sua marca indelével: a defesa da plena igualdade (econômica, social e política) e da liberdade.
Outro foco central da análise anarquista é o estudo do papel exercido por contestadores do sistema, sobretudo se seus objetivos estiverem ligados a ideia de destruição das instituições que sustentam as desigualdade e hierarquias sociais. Assim, é importante resgatar o papel exercido pelos movimentos sociais autônomos, pelos revolucionários, pelas revoltas contra os opressores, por igualdade, liberdade e sobrevivência. O resgate da memória dos movimentos e/ou dos lutadores do povo que deve servir pedagogicamente como contraponto à história dos reis, das cortes, dos governantes, dos senhores e dos ricos e poderosos realizada pela historiografia oficial, constitui-se como dever epistemológico do anarquista. Mas não só. É necessário também destruir a episteme que sustenta o sistema de autoridades e hierarquias no plano das ideias. Neste aspecto se assemelha bastante com a categoria de colonialidade do saber. Vejamos. Escreveu Bakunin (2006: 109), em 1868:
A Associação dos Irmãos Internacionais quer a revolução universal, social, filosófica, econômica e política ao mesmo tempo, para que da ordem atual das coisas, fundada sobre a propriedade, a dominação e o princípio da autoridade, quer religiosa, quer metafísica e burguesamente doutrinária, quer até mesmo jacobinamente revolucionária, não sobre em toda a Europa, num primeiro momento, e depois no resto do mundo, pedra sobre pedra (Bakunin, 2006: p. 109)
Nas palavras de Bakunin, percebemos a pregação de uma destruição total das instituições que sustentam o sistema de hierarquias e desigualdade. Embora ele tenha dito que começará na Europa, defende que deve se espraiar para os demais continentes. Percebamos subsumida uma revolução do saber contra as doutrinas religiosas, metafísicas e burguesas em geral que justificam o sistema moderno/decolonial. Ele amplia a sua crítica e a esclarece, fortalecendo-a na continuidade do texto.
Ao grito de paz aos trabalhadores, liberdade a todo os oprimidos e morte aos dominadores, exploradores e tutores de qualquer espécie, queremos destruir todos os Estados e todas a igrejas, com todas as suas instituições e suas leis religiosas, políticas, jurídicas, financeiras, policiais, universitárias, econômicas e sociais para que todos esses milhões de pobres seres humanos enganados, escravizados, atormentados, explorados, libertos de todos os diretores e benfeitores oficiais e oficiosos, associações e indivíduos, respirem enfim em completa liberdade (Bakunin, 2006: p. 109).
Nas passagens acima está a mais completa crítica aos princípios da Modernidade/Colonialidade/Capitalismo. Ele cita inclusive a necessidade da libertação dos escravizados. Também menciona a obrigação de se levar a revolução para além da Europa. Se entendermos que os anarquistas sofriam ampla perseguição e um racismo interno europeu, tal como ocorrera com as bruxas e hereges, podemos dizer sem medo de errar que se trata de um projeto antirracista no interior da própria Europa, em última instância, podemos dizer que se trata de um projeto decolonial, por estar em contrário a todos os princípios da modernidade/ colonialidade, embora seja criado no interior do núcleo irradiador do eurocentrismo.
Ademais, uma perspectiva anarquista só pode se justificar se tiver como foco a emancipação do trabalhador, perscrutando como andas a sua liberdade, que só é compatível com o fim da alienação, isto é, quando o desenvolvimento científico e tecnológico estiver a serviço do bem-estar de todos (Kropotkin), quando não existir mais governantes e governados. Enfim, cabem as últimas ressalvas. A defesa da plena liberdade consubstancia-se em um projeto que é necessariamente incompatível com o capitalismo, o feudalismo, o escravismo. É incompatível com a plutocracia representativa, com efeito, com a dicotomia entre governantes e governados, com a repressão e o controle exercido pelos governantes econômicos, políticos, jurídicos, socioculturais e penais sobre os trabalhadores, por consequência, é incompatível com o Estado. A plena liberdade é incompatível com o racismo, a discriminação, o machismo e a sociedade patriarcal, com o projeto da modernidade, com o capitalismo e a colonialidade. Por fim, a plena liberdade só será possível na medida em que existir a autogestão em todos os sentidos da vida e for realizada pela ação dos próprios interessados. Trata-se de um projeto amplamente antirracista na sua essência, pois a categoria mais importante para um escravizado é a liberdade. Nenhuma filosofia produziu reflexão teórica e a defendeu sem elucubrações como o anarquismo. Esse é um dos seus aspectos fundamentais que pode colaborar para toda e qualquer luta antirracista.
Realizadas as apresentações gerais, aprofundaremos para o debate em torno de um conceito central que a filosofia de libertação anarquista pode contribuir para a perspectiva decolonial, a saber: Estadolatria.
DA ESTADOLATRIA
A filosofia política anarquista é intrinsecamente antiestatal, anticapitalista, antidiscriminatória e defende a máxima da ajuda mútua, caracterizada pela solidariedade e pelo livre entendimento das pessoas, sem a necessidade de uma instituição que contenha supostamente seus sentidos utilitaristas e violentos, que os fariam matar uns aos outros. Além do mais, é a única que acredita verdadeiramente na capacidade popular de se autogovernar. Segundo Rudolf de Jong (2008), o sucesso da teoria anarquista está diretamente atrelado a perspectiva de não fazer distinção entre centro e periferia, entre vanguardas e massas. A partir do Brasil, podemos acrescentar: entre colonizadores e colonizados.
Desta forma, nega e desqualifica o enfoque liberal, baseado na forma de tratar os governados como ignorantes e incapazes, na suposta prevalência da concorrência em detrimento da ajuda mútua, no individualismo, na ideia de representação dos melhores, em última instância, no apotegma hobbesiano, de “guerra de todos contra todos”, segundo o qual o “homem é o lobo do homem”. Ao mesmo tempo, combate o darwinismo social, fundamentado na perspectiva da competição predatória.5
De acordo com o pensamento anarquista, existem dois prolegômenos em disputa ao longo da história da humanidade: o da liberdade e o da coerção. O primeiro é amplamente defendido pelos libertários, que podem fazê-lo sem entrar em contradição com suas teses.
Em contrapartida, o princípio da coerção é representado pelos defensores do Estado, das hierarquias, do respeito às autoridades, do capitalismo, que significa o governo de uns sobre outros, em uma palavra: a ordem. Vejamos a passagem a seguir que exemplifica bem a questão:
Contra todas essas perspectivas, os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o princípio da liberdade. Todas as outras gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma de açoite. Se eles gritam: abaixo a corda de cânhamo da forca, é para substitui-la pelo cordão de seda, aplicado no dorso. Sem açoite, sem coerção, de um modo ou de outro, sem o açoite do salário ou da fome, sem aquele do juiz ou do policial, sem aquele da punição sob uma forma ou outra, eles não podem conceber a sociedade. Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, fome e salário nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se há progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é conquistado contra esses instrumentos, e não por eles (Kropotkin, 2007, p. 36).
Na citação acima estão algumas críticas clássicas da filosofia anarquista às outras perspectivas, que veem o capitalismo como progresso, como, também, todos os elementos autoritários, sustentadores de hierarquias, discriminações e desigualdades. Decerto, elas não recriminam a existência de punição, polícia e juiz, presentes tanto nas plutocracias ocidentais quanto nos ‘socialismos’ autoritários.
Esses approaches estão imbuídos da alucinação da Estadolatria, idolatria do Estado, enquanto instituição necessária e imprescindível para a sociedade. Ao longo da história, moderna e contemporânea, todos os politólogos e filósofos, desde Maquiavel, passando por Hobbes, Locke, Montesquieu, Hegel, Rawls, Nozick até Marx, de diferentes maneiras, justificaram a existência do Estado, como instituição fundamental para a organização da sociedade, da sua defesa, ou mesmo, para acabar com as classes sociais, no caso do último. Em outras palavras, o Estado pode assumir diferentes acepções: Absolutista (Hobbes, Filmer, Grotius); Estado mínimo (Locke; Nozick); Estado criado a partir de uma posição original (Rawls); Estado social-democrata (Polanyi); Estado socialista (Marx); sem embargo, uma marca caracteriza todas em um único eixo comum. Trata-se da constituição e presença da polícia ou de alguma força de repressão com vistas a garantir a ordem. Nesse sentido, ao fim e ao cabo, o princípio hobbesiano, segundo o qual os homens se matariam sem a presença do Estado, permeia todas as proposições estatais. É a mais fiel concordância na incapacidade humana para o livre entendimento autônomo entre os indivíduos, isto é, na impossibilidade da ajuda mútua, no acordo independente entre os seres humanos e na relação sem uma instituição que os faça obedecer e que os transforme em corpos dóceis (Foucault). Em toda e qualquer formação supracitada, o Estado é imprescindível para atingir os diferentes objetivos das diversas escolas supracitadas. Aceitar essa prerrogativa é advogar que as pessoas são incapazes: 1) de entrar em entendimento entre si; 2) de pensar, propor e estabelecer políticas coletivas com vistas ao bem comum; 3) de viver em harmonia sem se matarem, se não tiver um Estado para controlá-los. Atrelado a esse ponto de vista, a defesa inconteste do Estado significa entender que as pessoas precisam ser governadas pela sua incapacidade intelectual. É supor também que aquele que governará tem idoneidade de defender os interesses dos governados seja porque é mais inteligente, um técnico (princípio da aristocracia que embasa o pensamento liberal), seja porque faz parte de uma vanguarda composta também pelos melhores (pensamento marxista) que também está baseado no princípio aristocrático.
Em ambos, a hierarquia social e o princípio da autoridade estão postos como alienáveis. Queremos dizer que toda e qualquer justificativa do Estado e de governo de uns sobre os outros ampara-se em uma razão racista. Trata-se da mesma razão que busca legitimar-se ao dizer que negros e indígenas são sub-humanos, são incapazes, inferiores, não possuem alma e que precisam, portanto, ser guiados, controlados, punidos, cristianizados, açoitados, presos, assassinados, governados.
Os amantes do Estado, quando não pregam veementemente a necessidade de coerção estatal para melhor garantir a vida em sociedade, ou mesmo implantar a igualdade, preconizam, em última instância, seus dotes de razão, seja para defesa, supostamente, de toda sociedade, seja para garantir os interesses de uma classe social e/ou da supremacia branca, da colonialidade do poder, do saber e do ser. Em todos esses casos, a liberdade é sacrificada em nome da autoridade, do eurocentrismo, do racismo, da Estadolatria.
Em suma, o núcleo duro de todo Estado é a polícia ou alguma força de repressão equivalente. Esse modelo moderno/colonial criado na Europa foi exportado, escravizou outras etnias pelo mundo, e criou a ideia de raça e seu mal inerente: o racismo. O Estado, portanto, foi o principal instrumento do colonialismo e continua com papel preponderante, transformando-se em ativo hegemônico da modernidade/colonialidade do poder.
É necessária outra ressalva. Nossa concepção de Estadolatria é absolutamente diferente da utilizada por alguns teóricos do pensamento plutocrático neoliberal. Eles defendem o Estado mínimo, composto prioritariamente e quase que exclusivamente pelo Judiciário e as polícias, para garantir a propriedade, o lucro e a vida dos proprietários. As demais questões como saúde e educação seriam compradas no mercado. Essa concepção é estadolátrica e, portanto, também, racista. Suas proposições não apontam para o fim do Estado, mas, apenas, para um direcionamento de suas funções, com vistas a garantir, exclusivamente, o pleno funcionamento da economia capitalista. No interior dessa perspectiva, não existe qualquer preocupação com o bem-estar dos governados. Não lhes são previstos direitos, nem quaisquer outras garantias que visem minimamente seu bem-estar, autonomia, sobrevivência, na sociedade da propriedade privada para poucos, onde tudo é transformado em mercadoria, dinheiro e lucro.
Por outro lado, obviamente, há exceções interpretativas com relação a conceber o Estado como representante da razão (Hegel), fiador da vida (Hobbes), da propriedade privada (Locke) ou como instrumento para se chegar ao comunismo (Marx). Essas exceções são encontradas em duas frentes: 1) nas histórias produzidas nas Américas e na África, através da história oral desses povos.6 Parte da literatura decolonial (Grosfoguel, 2018; Maldonado-Torres, 2018) tem buscado resgatar as interpretações de mundo produzidas pelas populações de fora da Europa discriminadas por racismo; 2) na filosofia anarquista produzida marginalmente no interior da Europa. É importante lembrar que anarquistas, bruxas e hereges sofreram de amplo racismo no interior do continente europeu por não seguirem os princípios modernos/capitalistas/cristãos/patriarcais brancos impostos sobre as diferentes comunidades. Por isso, foram jogados à fogueira, às prisões, aos cadafalsos e às covas dos cemitérios, mesmo sendo brancos.
Nos nossos termos, a categoria estadolatria funciona como uma camisa de força, que obsta reflexões teóricas para além da conformação social coercitiva, centralizadora, racista, patriarcal, heteronormativa, cisgênera, eurocêntrica, judaico-cristã-cêntrica, capitalista, colonialista e de superação da dicotomia entre governantes e governados. O oposto à Estadolatria é, portanto, o autogoverno, ou autogestão, independência de povos e suas culturas em todos os sentidos da vida, autonomia e liberdade. Se o Estado foi o principal instrumento do colonialismo e do racismo estrutural existente, sua razão indubitavelmente é racista, por consequência a estadolatria realizada amplamente por autores europeus significa a concordância com ela. Assim, criticar o princípio do Estado, portanto, constitui-se como critica antirracista por essência. É essa crítica à estadolatria que o anarquismo pode contribuir para o pensamento decolonial.
Colaborando para as teses supracitadas, tanto o pensamento anarquista quanto o decolonial, referenciado na ancestralidade de povos indígenas e africanos, podem estabelecer a crítica ao Estado, enquanto instituição de coerção, de controle, de autoridade, que atenta contra a liberdade dos governados, opondo-se, frontalmente, à tradição da estadolatria, sem entrar em contradição com seus princípios.
CONCLUSÃO
A proposição de autogoverno estabelece um grande diferencial entre anarquismo e aquilo que unifica marxismo e liberalismo. Para os libertários, os governados são dotados de saber e são capazes de autogovernar-se. Para os liberais e socialistas governamentais, eles devem ser guiados/conduzidos/governados. Essa direção precisa ser realizada pela intelligentsia do partido ou do governo (técnicos e burocratas). A população deve ser educada a gostar, para os marxistas, da igualdade, e, para os liberais, das leis do mercado. Em síntese, os não proprietários continuarão governados, sob argumentação de que isso será para o seu próprio bem. Essa alegação foi amplamente defendida por Thomas Hobbes, no século XVII, ao justificar o Estado e o governo para, dissimuladamente, garantir a vida dos governados, que tinham que abrir mão de sua liberdade. Essa perspectiva tem sido reforçada de diferentes maneiras por diversos teóricos até hoje. Esse é um dos aforismas fundamentais que justificam os governos, plenamente combatido pelos anarquistas.
Em resumo, julgamos que os conceitos Estadolatria, autogoverno e ação direta, muito utilizados pelo pensamento anarquista, podem perfeitamente colaborar para acurar a crítica decolonial e ajudar na libertação de negros, indígenas, explorados e discriminados em geral.
Em síntese, o método anarquista baseia-se na ideia de que a ação direta dos governados constitui-se enquanto motor da história, ou seja, é o movimento popular autônomo tomando as ruas, fazendo greves, organizando-se coletivamente, autogerindo-se, que pode fazer as mudanças substantivas para melhoria da qualidade de vida, como um verdadeiro processo de auto-instituição decolonial. Nesse sentido, o nosso diferencial é estabelecer uma teoria das ruas e não uma teoria para as ruas. Assim estaremos seguindo os exemplos de Bakunin (2008) e Kropotkin (2005)7, quando teorizaram sobre a Comuna de Paris.
Uma teoria das ruas deve estar comprometida com os sinais emitidos por elas, problematizando-os, tentando decifrá-los. Diferente de outras perspectivas que almejam tutelar os governados, dizendo-lhes o que deveriam ter feito ou devem fazer; nós queremos entender os seus sinais, que também são os nossos, pois somos parte desse povo que sofre a colonialiade. A primeira perspectiva parte de um plano pré-estabelecido; a nossa, ao contrário, deve aprender junto e construir coletivamente o novo mundo. Para nós, os maiores exemplos de revolução social, ação direta e auto-instituição social no país, portanto decoloniais, foram realizados pelos diversos quilombos, que ao construírem seu mundo, o realizaram em completa dissonância dos valores estatistas e capitalistas europeus.
Antes de continuar, cabe mais uma ressalva metodológica, que está centralmente guiando essa pesquisa: uma pessoa livre não obedece a ordens! Se ela é obrigada a obedecer (sem possibilidade de debate, participação ou deliberação, em uma palavra, isegoria) durante todo o tempo ou parte de seu tempo de vida, ela não passa de uma escrava. Um ser livre não deve ser obrigado a obedecer à exploração ou opressão por qualquer forma de violência, mas atende a pedidos e/ou desempenhará suas responsabilidades sociais que considerar justas. Esse talvez seja o núcleo central do pensamento libertário.
Esperamos ter apresentado como a filosofia política anarquista pode contribuir para o pensamento decolonial na luta antirracista, mas também na construção de um novo mundo cuja tão sonhada liberdade para todos se concretize.
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Notas
[1]Tanto Thomas Hobbes, quanto Georg Hegel, são expoentes do pensamento político que concebem o Estado como uma instituição absolutamente essencial para a melhor organização da sociedade.
[2]A melhor crítica da neutralidade axiológica é de Mészáros (2008). Ver também Lowy (1985).
[3]Chomsky (2017) mostra que o termo foi criado com o “Manifesto dos Intelectuais”, em 1898, para criticar uma ação arbitrária e injusta do governo francês. Portanto, o conceito de intelectual tem uma origem crítica às posturas oficiais.
[4]Se não assumimos isso, significaria dizer que todos os brancos são ricos e isso não é verdade.
[5]Darwinismo social foi uma tentativa de se aplicar a teoria desenvolvida por Charles Darwin para o desenvolvimento das espécies no suposto desenvolvimento humano. Descreve o uso dos conceitos de luta pela existência e sobrevivência daqueles que seriam os mais aptos, para justificar as desigualdades sociais. Esse conceito motivou as ideias de eugenia e racismo.
[6]Em que pese suas bibliotecas terem sido absolutamente destruídas pelos colonizadores.
[7]Ver Kropotkin (2005), especialmente o capítulo destinado à análise de “A Comuna de Paris”.