Luciene Lima Gonçalves *
Rita Maria Gomes**
*Doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (2021-). Mestrado em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP (2020). Contato: lucienelima324@gmail.com
**Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Professora na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Contato: rita.gomes@unicap.br
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Neste artigo aborda-se o livro de Jonas, pelo método narrativo, utilizando o processo mimético de Paul Ricoeur, a partir da tríplicemimesis: prefiguração, configuração e refiguração. O objetivo deste artigo é realçar a importância desse tipo de abordagem para a iluminação de um caráter próprio do texto de Jonas que fica obscurecido na maior parte das reflexões elaboradas sobre esse livro: o da literatura de manifesto.Para isso, analisa- -se o texto de Jonas considerando seus quatro capítulos, que correspondem a quadros narrativos, principalmente por meio da refiguração, ou seja, pelo olhar do leitor. Com isso, conclui-se que esse método favorece a compreensão do livro tanto em sua condição de literatura quanto desua teologia.
Palavras-chave: Mimesis.Paul Ricoeur. Jonas. Israel. Leitor.
In this article the book of Jonas is approached, by the narrative method, using the mimetic process of Paul Ricoeur, from the triple mimesis: prefiguration, configuration and refiguration. The purpose of this article is to highlight the importance of this type of approach for illuminating a specific character of Jonas’ text that is obscured in most of the reflections elaborated on this book: that of manifesto literature. For this, Jonas’s text is analyzed considering its four chapters, which correspond to narrative frames, mainly through refiguration, that is, through the reader’s eyes. Thus, it is concluded that this method favors the understanding of the book both in its condition of literature and its theology
Keywords: : Mimesis. Paul Ricoeur. Jonas. Israel. Reader.
A Bíblia é a narrativa da história do povo de Israel com seu Deus. São várias histórias, tecidas e entretecidas com experiências de alegria, tristeza, lutas, derrotas, sofrimentos, tendo como personagens principais: Deus e o povo de Israel. O Antigo Testamento é formado por essa diversidade de narrativas que foram compiladas ao longo do tempo.
No Cristianismo, desde os primeiros séculos, houve uma preocupação com a interpretação dos textos sagrados. Os Padres da Igreja foram os principais mestres dessa arte interpretativa dos textos bíblicos para os cristãos em um novo ambiente. Esse traço hermenêutico, característico do texto bíblico, e da fé cristã, justifica uma abordagem pelo método do teórico Paul Ricoeur.
O livro de Jonas é um bom exemplo dessa interpretação e reinterpretação da história do povo de Israel. Muitos autores caracterizam Jonas como um antiprofeta. Para chegar a essa afirmação, eles se baseiam no vasto conhecimento da escritura bíblica e no papel dos profetas na compreensão da fé do povo de Israel. A composição narrativa de Jonas foi possível porque se inseriu na dinâmica escriturística da tradição bíblica, na qual as histórias são narradas para uma maior apreensão de uma mensagem.
O que se pretende, aqui, é acompanhar a compreensão desse relato a partir da construção narrativa do teórico Paul Ricoeur através do processo mimético. Esse processo parte da mimesis I, prefiguração, na qual os elementos que compõem o mundo para o leitor estarão presentes na construção do mundo da narrativa. Passa pela mimesis II, configuração, na qual se tem o tecer da intriga, a reunião de personagens, acontecimentos num todo lógico. E chega a mimesis III, a refiguração, na qual se dá o encontro do mundo do texto com o mundo do leitor e as implicações desse encontro/embate. A leitura é a mediação desse duelo, do qual ambos, leitor e texto, não sairão ilesos. É a leitura que permite o confronto entre o leitor, com sua visão de mundo, e o mundo apresentado pela narrativa. O leitor deverá fazer esse percurso na busca pela compreensão de si pela mediação do texto através da narrativa.O leitor de Jonas é conduzido pelo processo mimético de Ricoeur nessa abordagem narrativa, numa tentativa de maior entendimento desse livro e de si, visando uma nova leitura da realidade ao seu redor, seus conceitos e sua fé.
Para a compreensão narrativa de Ricoeur, apresenta-se primeiro um arrazoado do processo mimético ou da tríplice mimesis. Na sequência, discorre-se sobre o tecer da intriga, sobre como se deu todo esse desenvolvimento no interior da narrativa de Jonas.
A compreensão narrativa de Ricoeur passa pelo entendimento do processo mimético. Porém, antes mesmo de falar do processo mimético, é necessário esclarecer o que o autor entende por mimesis. Ricoeur interpreta a mimesis como uma representação ou imitação criativa do real realizada pela imaginação, não é uma simples imitação do real. Isso se dá por meio de um processo mimético dividido em três momentos ou tríplice mimesis interpretado da Poética de Aristóteles: mimesis I, mimesis II e III (RICOEUR, 1994, p. 59). Para Ricoeur, a literatura seria incompreensível se não apresentasse o que já existe na ação humana (RICOEUR, 1994, p. 101). Por isso, é essencial acompanhar esse processo mimético.
Na mimesis I, tem-se a representação ou imitação da ação, é a pré- -compreensão do que acontece no agir humano, com sua simbólica, sua temporalidade, aquilo que é comum ao autor e ao leitor (RICOEUR, 1994, p. 101). O autor sustenta sua composição narrativa na compreensão prática do leitor. Sua percepção de mundo funda-se em uma pré- -compreensão comum a ambos. Ela possibilita ao autor construir uma narrativa.
Já a mimesis II se refere à configuração da narrativa ou tessitura da intriga. Segundo Ricoeur, “é a operação em que se extrai de uma simples sucessão uma configuração” (1994, p.104). É o momento em que a ação se torna texto, em que se organiza a síntese do heterogêneo, os vários elementos são reunidos num todo lógico, levando em conta personagens, acontecimentos e o tempo.
A mimesis III é o momento da refiguração, é o ponto de encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor ou a apropriação, por parte do leitor, do mundo do texto. É o momento do impacto que a narrativa exerce sobre a visão que o leitor tem da vida, com seus valores e sua proposição de mundo. Isso se dá por meio da leitura.
Para Marguerat (2009, p.172), ao se empregar a tríplice mimesis de Ricoeur é importante que se façam algumas considerações. Primeira, para que a leitura seja uma experiência, é preciso que o texto (mimesis II) não coincida em todos os pontos com o mundo do leitor (mimesis III). Segunda, se os dois mundos coincidem, a leitura revelará uma semelhança e o leitor encontrará a si mesmo. Terceira, quanto maior a distância entre os dois mundos, maiores serão as interrogações.
Em razão disso, Ricoeur insiste na noção de alteridade como dimensão fundamental da relação entre leitor e texto. Esse aspecto é basilar quando se trata dos textos bíblicos em geral e, de forma particular, da narrativa de Jonas. A estranheza que essa narrativa causa no leitor é condição de possibilidade para a busca de sua significação (MARGUERAT, 2009, p.172).
Na mimesis I, tem-se a pré-compreensão, o mundo da ação prática que é comum ao autor e ao leitor. Qual é o mundo, com sua simbólica e com sua temporalidade, que é próprio ao autor e ao leitor do livro de Jonas? O mundo judaico, com sua história, com sua compreensão e experiência de Deus.
Para construir essa narrativa, o autor se baseou na experiência de fé entre o povo de Israel e seu Deus, o chamado dos profetas, seu envio a proclamar a palavra de Deus, sua relação com os povos estrangeiros, de modo especial, a Assíria, um grande império com o qual Israel manteve uma relação de subordinação.
A relação de Deus como povo de Israel se dá por meio de uma aliança que compromete a ambos a assumirem um laço que os diferencia. Deus é o Deus de Israel, e Israel passa a ser o povo de Deus. Essa pertença os une e os singulariza perante as demais nações. A relação entre Deus e Jonas representa esse laço entre Israel e Deus.
Toda a vida de Israel está marcada por essa aliança e atestam isso seus costumes e suas festas ao se referirem a essa relação única. E, baseando-se nessa relação, nesse horizonte de sentido, o autor constrói sua narrativa. A figura do profeta era conhecida e respeitada no mundo judaico. O fato de Deus convocar alguém e enviá-lo também era conhecido pelos leitores da narrativa.
A história de Israel é marcada pelo domínio de povos estrangeiros, entre eles, egípcios, assírios, babilônios, gregos e romanos. O sofrimento causado por essas nações estrangeiras era bem presente ao povo. A relação de Israel com estrangeiros sempre foi delicada, pois estava marcada profundamente em sua memória a diáspora e o exílio infringidos a Israel por povos estrangeiros (SCHÖKEL, 1980, p.1012).
Com a mimesis II, tem-se presente o momento da configuração, da construção da composição narrativa por meio do que Ricoeur chama tessitura da intriga. Ocorre quando todo esse conhecimento da vivência do mundo prático de Israel é reunido por meio de personagens e acontecimentos. Nessa disposição, o encadeamento dos fatos, torna-se plausível.
Narrar a história de um chamado profético e o envio em missão desse profeta, ordenado em meio às situações mais inusitadas, tudo isso orquestrado pela vontade divina, é a arte magnífica do autor da narrativa de Jonas. Ele torna plausível essa história por meio da disposição dos fatos. Tendo como horizonte de fundo as tradições de Israel foi possível compor, de modo verossímil, essa narrativa.
Na mimesis III se alcança o arco hermenêutico com a refiguração do real. Esse é o estágio em que ocorre o encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor, que se dá pela leitura. Ricoeur(1994, p. 87) afirma que o leitor é o operador por excelência que assume, por seu fazer, na ação de ler, o percurso da mimesis I à III através da mimesis II.
Como o leitor da narrativa de Jonas será capaz de, pelo modo como essa intriga foi tecida, confrontar o mundo de Jonas, o mundo do texto, com seu próprio mundo, com suas convicções religiosas, com sua fé, com seu sentimento de pertença a um povo e com suas implicações em relação aos estrangeiros? Essa questão terá mais chance de ser respondida quando for considerado o lugar do leitor na compreensão hermenêutica de Ricoeur.
O texto narrativo é o resultado da atividade criativa que configura a experiência da ação humana. A noção de intriga passa pela organização que dá consistência ao texto, possibilitando uma distinção entre o que se conta, como essas ações foram construídas, e como serão interpretadas na narrativa (CARNEIRO, 2009, p. 108). A intriga tem a pretensão de mediatizar a organização textual e discursiva do texto literário.
Para Ricoeur, o termo intriga não é suficiente, ele prefere afirmar a tessitura da intriga ou o tecer da intriga, pois se trata de uma construção, de um processo que se estabelece entre a mimesis I e a mimesis III. A própria intriga tem um caráter processual (RICOEUR, 2006, p. 118). Nesse processo, o tecer da intriga extrai sua inteligibilidade da mediação que se caracteriza por conduzir a pré-compreensão ou prefiguração até a refiguração através do poder da configuração. A composição da intriga se enraíza na pré-compreensão do mundo e da ação, ou seja, de suas estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e de seu caráter temporal (RICOEUR, 1994, p. 84-86).
Como afirmado anteriormente, o tecer da intriga é a forma como a disposição dos fatos e o encadeamento das ações são organizados a partir do conhecimento prévio do mundo da ação do autor e do leitor. O tecer da intriga, além da função de mediação, tem também a função de integrar o que se conhece, a pré-compreensão e a pós-compreensão com seus traços tensionais.
O tecer da intriga medeia acontecimentos ou incidentes individuais, transforma incidentes em uma história, extrai de uma simples sucessão de fatos, uma configuração. O que se denomina síntese do heterogêneo é a unidade retirada de uma diversidade de acontecimentos, de uma totalidade temporal (RICOEUR, 1994, p. 104).
Ricoeur afirma que o tecer da intriga reúne traços heterogêneos, tais como: as circunstâncias, os atores, as interações, as intenções, os meios e os resultados acidentais. O tecer da intriga oferece a esses elementos o estatuto ambíguo de um todo concordante-discordante (RICOEUR, 2006, p. 119), como a história de um profeta desobediente, sua fuga da presença de Deus, o fato de se esconder em um navio em meio a estrangeiros, considerados pagãos pelo povo de Israel. Também um adorador de IHWH que não apela para o seu deus em meio a uma tempestade e, quando descoberto, pede para que seja atirado ao mar. Todas essas peripécias já aparecem no primeiro capítulo!
No segundo capítulo, o profeta Jonas é engolido por um peixe e, depois de orar, é vomitado. Depois disso, finalmente, vai a Nínive anunciar a sua destruição. Com o arrependimento do povo, ocorre também o arrependimento de Deus, que volta atrás e desiste de destruir a cidade. Essa história termina com o desgosto de Jonas frente ao desenrolar dos acontecimentos.
O autor bíblico reuniu personagens fortes: Deus e o profeta Jonas; figurantes conhecidos pelo povo: marinheiros estrangeiros, um peixe gigante, ou um grande animal marinho. Acrescentou algo do imaginário popular, a repulsa de Israel pelos estrangeiros em decorrência de violências e abusos sofridos pelo povo. Tanto a crueldade dos assírios quanto a misericórdia de Deus eram bastante conhecidas dos israelitas. O tema da misericórdia de Deus aparece através de toda a Escritura. É dessa diversidade de acontecimentos históricos, de personagens e do mundo simbólico da tradição de Israel que o tecer da intriga, na narrativa de Jonas, é construído e com uma boa dose de ironia e de humor.
Para Ricoeur há outro ponto muito importante que ele nomeia “estatuto epistemológico da inteligibilidade” e que se apresenta pelo ato configuracional do tecer da intriga. Ricoeur afirma que ele possui afinidades com a sabedoria prática. O tipo de conhecimento que é apreendido por meio da narrativa, ou seja, da história contada, está relacionado com a sabedoria prática, com a busca humana pelo bem, pela felicidade que advém de uma vivência ética. A narrativa apresenta histórias que conduzem seus leitores a um aprendizado no nível prático da existência concreta (RICOEUR, 2006, p.120).
O tecer da intriga, na narrativa de Jonas, revela esse processo de construção que se dá por intermédio da síntese do heterogêneo: personagens, ações, incidentes, os meios e o tempo. Todo esse entrelaçar de fatos é regido pela maestria do autor que organizou de modo admirável essa belíssima obra-prima da literatura bíblica.
Ricoeur aponta ainda outro aspecto importante que, segundo ele, necessita ser tematizado: o da relação entre tempo e narrativa. A dinâmica do tecer da intriga é a chave desse problema, a mediação entre tempo e narrativa se dá por meio do processo mimético. E pensa que “seguimos [...] o destino de um tempo prefigurado em um tempo refigurado, pela mediação de um tempo configurado” (RICOEUR, 1994, p. 87).
Isso significa que toda história narrada ocorre num tempo. A intriga serve de mediação à temporalidade própria da composição narrativa, que mistura duas temporalidades, de uma parte, a sucessão pura dos fatos, as peripécias da história; de outra parte, o aspecto integrativo, o cume, realizado pela configuração da história. Isso se relaciona com o duplo aspecto do tempo humano, ele é o que passa e o que permanece. Desse modo, a temporalidade na narrativa é a mediação entre o tempo como passagem e o tempo como duração (RICOEUR, 2006, p. 119).
Todo o trabalho de construção da intriga realizado pelo autor como mediação entre a mimesis I (prefiguração) e a mimesis III (refiguração) necessita de um ator essencial nessa empreitada: o leitor. A tarefa do leitor é imprescindível na narrativa. Esse encargo será realizado por meio da leitura, é ela a mediadora necessária para a refiguração (RICOEUR, 1997, p. 273).
A leitura exige o confronto entre o mundo do texto, fictício, e o mundo do leitor, real. O destino final do texto se dá nesse encontro entre o texto e o leitor, o texto não pertence mais ao autor e nem ao seu leitor original. Esse percurso “para fora” ocorre pelo ato da leitura. Por isso, Ricoeur afirma que o texto se torna órfão de pai e se transforma em filho adotivo da comunidade dos leitores que o acolhem (RICOEUR, 1989, p. 403). No entanto, esse encontro não se realiza de maneira pacífica, há uma tensão constante entre a solidez do texto e a infinidade de possibilidades de leituras. Essa relação é um jogo dialético que exige do texto e do leitor um encontro que transformará a ambos.
Há um grande investimento do leitor no ato de leitura, ele emprega toda a sua experiência de vida passando por diferentes sentidos da leitura: leitura-prazer, leitura-descoberta, leitura-emoção, leitura-instrutiva. O mesmo texto pode despertar diferentes ações, emoções e encontros em diferentes leitores. O texto, assim como o leitor, não sai ileso desse embate (MARGUERAT, 2009, p. 169).
Na dinâmica entre texto e leitor, a leitura faz parte do texto, ela está inscrita nele. Através dela, o texto adquire um novo sentido, já não é o que está escrito, mas o que revela a estrutura por meio da interpretação. Por intermédio da leitura, o leitor é o mediador último entre a configuração e a refiguração (RICOEUR, 1997, p. 285).
A leitura é um jogo a dois. Esse jogo realizado entre leitor e texto exige um pacto de leitura. O ato de leitura ocorre quando o leitor se apoia sobre o que afirma o texto e também sobre o que ele faz pensar. Ler é, então, um movimento constante em que se ensaiam hipóteses que a narrativa confirma ou discorda. É a memória que vai acumulando os dados que no processo da leitura da narrativa será usado e recomposto. O trabalho da memória é indispensável na leitura (MARGUERAT, 2009, p. 160).
Ricoeur discorre sobre uma operação analítica que exige do leitor atenção com relação aos sinais emitidos pelo texto, que orientam o leitor em sua decifração, processo que se dá pela explicação do texto. O confronto entre o mundo do texto e o leitor com seu próprio mundo leva a uma apreciação sobre o valor desse mundo. O significado da obra depende também desse julgamento. O texto coloca o leitor frente a uma tomada de decisão sobre a proposta de mundo que lhe é oferecida. Essa tarefa de aceitação ou rejeição cabe unicamente ao leitor, ninguém poderá assumir esse papel (MARGUERAT, 2009, p. 109-110).
O que se chama aqui projeto hermenêutico de Ricoeur refere-se à descoberta de si ou encontro de si mediante o texto visando uma ação. Ricoeur busca a compreensão de si através da compreensão diante do texto. Esse encontro se dá pela leitura. A leitura não está dirigida unicamente a uma interpretação do texto, ela deve levar o leitor a se apropriar do texto para depois se desapropriar e, então, reapropiar-se de um modo inovador de uma proposta de mundo dada pelo texto.
A leitura é o caminho percorrido pelo leitor orientado pelo texto para que haja um confronto entre o seu mundo e o mundo do texto. Por intermédio desse confronto, o leitor pode interpretar-se por meio da interpretação feita do texto. A questão central da hermenêutica é a busca de sentido de um texto. No entanto, a trajetória de interpretação de um texto só chega a seu termo quando o texto encontra o mundo do leitor.
Aqui se observa que a leitura entra em uma dinâmica que envolve o leitor de maneira existencial. A leitura tomará o leitor pela mão e o fará percorrer caminhos nunca antes percorridos. Quando Ricoeur fala em arco hermenêutico ou círculo hermenêutico, ele visa todo o processo mimético que parte de uma pré-compreensão do mundo, passa pela configuração e atinge uma refiguração, ou seja, parte do mundo conhecido do autor e do leitor até que esse leitor encontre um novo modo de ser em um novo mundo.
Para Ricoeur, isso acontece quando há o entrecruzamento pelo ato de leitura, quando o intérprete atualiza as diversas figuras de si projetadas pelo texto. Tem-se, então, uma apropriação autêntica que “exige do leitor um descentramento de sua subjetividade finita a fim de que possa receber do texto uma compreensão mais ampla de si” (RICOEUR, 2006, p. 54).
Isso implica que o leitor consinta em se desapropriar de si mesmo para que possa encontrar novas possibilidades de ser no mundo através do texto. Os textos podem conduzir o leitor a um novo encontro consigo ancorado pelos textos, obrigando-os a uma tomada de decisão perante a vida.
Para se pensar sobre o leitor do livro de Jonas é necessário primeiro se perguntar de qual leitor se está falando: o leitor do tempo em que o livro foi escrito ou do leitor atual? O primeiro a esclarecer é que não se está pensando nos leitores reais hodiernos. Segundo, é necessário distinguir entre leitor real e leitor implícito. Em todo caso, o leitor do livro de Jonas deve ser situado na tradição histórica de Israel. O livro não fornece informações claras sobre a data de sua composição, menos ainda sobre seus leitores. É necessário, então, tentar reconstruir a imagem do leitor implícito, ou seja, o leitor que o autor tinha em mente ao escrever essa narrativa. Há consenso entre os estudiosos de Jonas que sua composição se deu entre o séc. IV e o séc. II a. C. O livro teria surgido como uma reação ao nacionalismo exacerbado de Esdras e Neemias. O limite é posto no séc. II porque nesse período Jonas já aparece entre os doze profetas no Antigo Testamento (MCGOWAN, 1971, p. 753).
O texto fornece alguns elementos que podem contribuir com a reconstrução de seu ambiente de nascimento, o que pode favorecer a construção do retrato de seu leitor implícito. O contexto é o do pós-Exílio e Israel já mantinha contato com povos estrangeiros. A experiência com o império assírio, que tinha por capital a cidade de Nínive, já ficou para trás há algum tempo. Por isso, é possível cogitar a suposta conversão dos habitantes dessa cidade, famosos por sua crueldade (MORA, 1981, p. 26).
A relação de Israel com os estrangeiros sempre foi conflituosa, desde o Egito até o Império Romano. Porém, para a contextualização do livro de Jonas, consideramos a tensão entre Israel e os povos estrangeiros do espaço de tempo que vai do Egito ao Exílio babilônico. Na retrospectiva da relação de Israel com as nações estrangeiras com as quais ele teve contato, começa-se com o Egito. Era para lá que os israelitas sempre iam quando fugiam das secas, buscando trabalho e alimento. Lá, entretanto, encontrou exploração e escravidão.
Quando Israel e Judá se estabelecem como reinos independentes os conflitos com os povos estrangeiros continuam, mas agora são mesclados com disputas por territórios e alianças com outros povos. A relação de conflito permanece. Após a destruição dos reinos de Israel e de Judá, pela força dos impérios assírio e babilônico, os exilados que retornaram da Babilônia empreenderam a restauração das muralhas da cidade e a reconstrução do Templo. Essa atitude gerou um conflito entre os que estavam voltando e a população de Jerusalém, composta pelos remanescentes já misturados com alguns estrangeiros vindos do Reino do Norte que escaparam, quando da destruição, fugindo para Jerusalém no séc. VIII a. C (ABADIE, 1998, p. 23-24). O livro de Neemias fala dos samaritanos que não concordaram com a reconstrução das muralhas e do Templo (Ne 3,33–4,5).
Os deportados que retornaram tinham a pretensão de restabelecer a configuração religiosa anterior ao exílio, mesmo tendo convivido com estrangeiros, desenvolveram uma aversão a eles. E, quanto à proposta de reconstrução da cidade e da religião, parece que não integraram o povo chamado da terra. Eles assumiram uma postura de total fechamento em relação ao povo da terra e não respeitaram sua maneira nova de se relacionar com Deus, diferente dos moldes ritualísticos anteriores.
Essas duas posturas, no retorno dos exilados, podem ser úteis na tentativa de reconstruir a imagem do autor de Jonas. Fica claro que ele parece refletir as ideias do grupo dos remanescentes, que fizeram uma experiência diferente com os estrangeiros e com a religião de Israel. No livro de Jonas, não há referência a Jerusalém nem ao Templo, nem aos sacrifícios, nem aos sacerdotes, nada disso aparece nessa narrativa. Há referência aos profetas. A história é construída revelando a livre escolha de Deus por aqueles que contrariam as expectativas humanas (MORA, 1981, p. 27).
O autor pode, então, ter tecido essa narrativa pensando no grupo dos deportados. Seu leitor seria portador de todos os preconceitos contra estrangeiros e bastante apegado às tradições religiosas ligadas à Cidade Santa e ao Templo. Uma possível tarefa dessa narrativa é tentar desconstruir essa mentalidade xenófoba dos seus leitores ou quem sabe revelar um pouco mais da experiência profunda entre o ser humano e Deus para além das fronteiras de Israel (SCHÖKEL, 1980, p. 1008). A partir de agora, empreende-se a tarefa de acompanhar o leitor da narrativa de Jonas e observar como ele, processualmente, é conduzido pela tríplice mimesis proposta por Ricoeur.
É possível acompanhar o leitor de Jonas através dos quadros narrativos, observando como o narrador conduz o leitor nessa narrativa ágil e cheia de ironia teológica. Cada quadro corresponde, a um capítulo do livro de Jonas. No primeiro quadro, é apresentado ao leitor um profeta incumbido da difícil missão de anunciar à grande cidade de Nínive sua destruição. A profecia contra as nações estrangeiras era algo comum, no entanto, um profeta ser enviado a essas nações era um acontecimento inusitado. O chamado desse profeta desperta no leitor um sentimento de estranheza, mas ainda mais estranho é ver esse personagem fugindo de sua missão. O questionamento da missão por parte dos personagens que detêm um papel importante na história do povo de Deus é comum, mas, a fuga do cumprimento não havia sido vista antes.
A atenção do leitor é mantida nos vários estágios dessa fuga, apresentada em forma de descida até o ventre do peixe. A maneira como os estrangeiros são representados como piedosos, preocupados em não desagradar a Deus, oferecendo inclusive sacrifícios é também bastante inquietante. Para um judeu convicto de sua eleição, de sua fé, ver estrangeiros considerados pagãos de forma tão simpática parece bastante perturbador. O leitor não consegue perceber com clareza essa intenção do narrador, pois tudo é narrado de forma irônica. O leitor ainda não se vê na pele desse personagem tão contraditório.
No segundo quadro, a cena mais bizarra é a do profeta preso no ventre de um grande peixe. Aqui, o leitor se depara com a inveracidade dessa situação: um homem engolido por um animal marinho. O leitor pode prosseguir sua leitura tranquilamente pelo absurdo de toda essa narrativa. O toque de ironia continua quando Jonas, depois de orar a IHWH, é vomitado na terra. O leitor acompanha Jonas e aguarda como se sairá em sua missão.
No terceiro quadro, Jonas percorre Nínive em apenas um dia, proclamando sua destruição, e o inacreditável acontece: toda a população faz penitência e se converte de suas más ações. Outra grande ironia! Nações estrangeiras se arrependendo é certamente um acontecimento irreal, jamais poderia ocorrer. O mais espantoso ainda está por vir: IHWH também se arrepende e volta atrás de sua decisão de destruir a cidade. Nesse momento, o espanto e o riso devem tomar conta do leitor, porque é por demais absurdo que IHWH não cumpra sua palavra e revogue seus decretos em relação a uma nação pecadora, inimiga de Israel. O leitor pode ficar perplexo e não recordar sua própria história com IHWH, na qual, por várias vezes, Deus se arrependeu do castigo anunciado e mudou por compaixão ao povo, mesmo que esse povo não merecesse ou pedisse essa mudança.
No quarto e último quadro, o leitor se depara com Jonas aguardando o cumprimento da palavra de Deus. O riso pode brotar diante de um profeta tentando salvar sua reputação, esperando a destruição da cidade. Novamente, Deus vem até Jonas para uma conversa franca e aberta. O leitor já se impacienta com tamanha compreensão da parte de Deus em relação ao personagem, que se mostra ranzinza e irritadiço com toda essa situação de salvação de Nínive. O leitor supõe que, nessa conversa, Deus vai conseguir mudar a opinião de Jonas, abrir-lhe a mente, fazer com que ele tenha um pouco de compaixão por esse povo pecador como teve do arbusto.
Jonas segue resoluto em suas convicções religiosas e nem mesmo Deus consegue mudar seu pensamento. O leitor encerra a narrativa perplexo com tamanha teimosia. Como Jonas pode ser tão cabeça dura? Deus tenta persuadi-lo de várias formas, mas sem êxito. Os questionamentos lançados a Jonas permanecem sem resposta, são questões abertas endereçadas ao leitor. Se Jonas não responde porque não consegue, essas perguntas ficam esperando, do leitor, um posicionamento, uma resposta.
Pensar no leitor implícito do séc. IV a.C. e como ele reagiu diante dessa narrativa possibilita indagar sobre o que fazer agora, o que pensar e como entender essa história. Afinal, o que pensar de Jonas, mas quem é Jonas? Como confrontar esse mundo com o seu e como pensar em outro mundo depois de percorrer esse caminho com Jonas? São indagações que só podem ser respondidas pelo leitor, se ele se desapropriar de si pelo ato de leitura da narrativa, para após a leitura se reapropriar de um novo olhar de si e de suas convicções religiosas.
Ricoeur pensa a hermenêutica como a compreensão de si mediada pelos textos, visando um agir ético, sendo assim não uma simples interpretação de textos. Partindo dessa compreensão, analisar uma narrativa bíblica pelo processo mimético é muito pertinente. A leitura dos textos bíblicos pelos crentes supõe uma conformação à vontade divina expressa pelos textos, uma mudança de mentalidade, ou seja, uma conversão.
O livro de Jonas é bastante simbólico porque representa o protótipo do processo de conversão dos crentes em todos os tempos, a fuga da presença de Deus e a rejeição de sua presença perturbadora. Jonas tem muita dificuldade de entender os desígnios divinos, mais que isso, ele se aferra as suas próprias certezas, não aceitando a possibilidade de olhar o mundo com um olhar diferente do seu, não considera descartar sua visão de mundo.
Promover o encontro desse processo mimético de Ricoeur no livro de Jonas é uma tentativa de conduzir o leitor a fazer o seu caminho junto com esse personagem buscando novos horizontes. O final da narrativa é aberto, os questionamentos colocados por Deus não são respondidos por Jonas, eles devem reverberar no seu leitor, inquietá-lo, desinstalá-lo de sua mentalidade fechada, para abri-lo a uma nova compreensão de si, do mundo e do próprio Deus.
Nesse sentido, a leitura do livro de Jonas com o aporte do processo mimético de Ricoeur lança o desafio para todo leitor hodierno desse texto porque vivemos em um mundo conflituoso com os “estrangeiros ideológicos”. Em um mundo globalizado, virtualizado, o estrangeiro perde um pouco seu estatuto étnico e se configura como aquele que pensa diferente e que deve ser combatido. O leitor hodierno de Jonas é convidado a responder aos questionamentos divinos dirigidos a Jonas e repensar sua resistência ao diferente.
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