Violência e história: o Lebenswelt da política
Violence and history: the Lebenswelt of politics

Ericson Sávio Falabretti*
*Doutor em Filosofia e Professor do curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. Contato: efalabretti@gmail.com
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A história tira ainda mais daqueles que tudo perderam, e dá ainda mais àqueles que tudo tomaram. Pois a prescrição, que tudo envolve, inocenta o injusto e indefere as vítimas. A história nunca confessa. (Merleau-Ponty)

 

Resumo
Esse texto retoma a crítica de MerleauPonty ao livro Zero e o Infinito, no qual o escritor Arthur Koestler denuncia a violência perpetrada pelo regime estalinista através da narrativa do julgamento do líder comunista Rubashov. Desse modo, analisando o debate que confronta a crítica de Merleau-Ponty à obra de Koestler e a retomada da interpretação trágica da história a partir do marxismo, sustentamos a presença ambígua do humanismo e do terror, da fatalidade e da universalidade como elementos estruturantes do lebenswelt da política.

Palavras chave:Comunismo. Terror. Violência. Tragédia. Humanismo.

 

Abstract
This text addresses Merleau-Ponty’s criticism of Darkness at Noon, romance in which the writer Arthur Koestler denounces the violence perpetrated by the Stalinist regime through the narrative of the communist leader Rubashov´s trial. Thus, analyzing the debate that confronts Merleau-Ponty’s critique of Koestler’s work and the resumption of the tragic history´s interpretation from Marxism, we assume that the ambiguous presence of humanism and terror, fatality and universality as structuring elements of lebenswelt of politics.

Keywords:Communism. Terror. Violence. Tragedy. Humanism

Introdução

Em sua primeira obra, A Estrutura do Comportamento, MerleauPonty já havia pensado o mundo humano como sendo, estruturalmente, inter-humano, anunciando, portanto, a sua vocação política tácita. A Fenomenologia da Percepção, obra publicada em 1945, aprofunda a ideia de que a nossa existência é, antes de tudo, co-existência ao conceber o mundo da vida como uma multiplicidade de experiências abertas e indefinidas e tecido por relações e implicações recíprocas, diferente da visão positivista construída pela ciência sobre o homem e o universo, concebidos como totalidades acabadas. Assim, nas duas primeiras obras de Merleau-Ponty, vemos emergir um pensamento sobre a dimensão pré-reflexiva da política, anterior a todas as lutas, pactos e convenções mediados pelo mundo da cultura. Todavia, o que significa isso? Estaria a política, a exemplo da linguagem, da própria percepção e do corpo, também assentada em um mundo invisível de relações sedimentadas? Poderíamos, nesse caso, como ocorreu com a percepção, o corpo e a linguagem, falar em um lebenswelt da política? Se for assim, como podemos descrever esse mundo tácito da vida política? No profundo prefácio da Fenomenologia da Percepção, reencontramos a afirmação do método e da certeza de que podemos aceder a esse pretenso lebenswelt da política. Para tanto precisamos seguir a mesma incursão intencional ao sensível que marcou o trabalho de descrição da percepção:

Deve-se compreender a história a partir da ideologia, ou a partir da política, ou a partir da religião, ou então a partir da economia? Deve-se compreender uma doutrina por seu conteúdo manifesto ou pela psicologia do autor e pelos acontecimentos de sua vida? Deve-se compreender de todas as maneiras ao mesmo tempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos os aspectos a mesma estrutura de ser. Todas essas visões são verdadeiras, sob a condição de que não as isolemos, de que caminhemos até o fundo da história e encontremos o núcleo único de significação existencial que se explicita em cada perspectiva. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.21).

Desse modo, para um labor político autenticamente fenomenológico seria imperioso, como no exame do comportamento, da percepção e da linguagem, considerar todas as visões e falar a partir de todas as perspectivas; buscar, conforme a expressão merleau-pontiana sobre o corpo: “o entrecruzamento de todas as avenidas”. Seria também necessário reencontrar a política a partir das nossas vivências, das experiências dadas no campo das relações humanas situadas em diferentes contextos e abordagens teóricas.

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Merleau-Ponty se dedicou intensamente ao universo da política, desde a primeira edição da revista Tempos Modernos1 em outubro de 1945 até sua morte em 1961. Além do mais, grande parte das coleções e ensaios que o autor publicou durante a sua vida, como podemos ler em Sens et nons-sens e Signos, são reflexões e escritos dedicados à política, sobretudo aos temas do seu tempo, tais como o plano Marshal; a guerra fria; a guerra da Coréia; as lutas revolucionárias na Indochina, de Madagascar, da Argélia e da Tunísia; o escândalo dos campos de concentração soviético, o processo de desestalinização e outros temas emergentes do pós-guerra. Ao lado dessas análises de ocasião, Merleau-Ponty também nunca deixou de pensar a política a partir de grandes teóricos como Maquiavel, Hegel, Weber, Sartre e, sobretudo, Marx. Além do mais, entre esses escritos dispersos, ou a partir deles, o autor também publicou dois volumes dedicados inteiramente à filosofia política: Humanismo e Terror e as Aventuras da Dialética. Sempre escrevendo a partir da esquerda, a produção política de Merleau-Ponty desloca-se, muda continuamente, muito em função das revelações da história, das novas filosofias e, ainda, dos acontecimentos sociais e revolucionários do seu tempo. Gradualmente, ele se movimenta da adesão e apologia de um marxismo muito próprio, mantendo uma distância crítica do liberalismo e do comunismo soviético, à rejeição da política revolucionária a favor de uma política assentada na defesa dos direitos humanos.

Todavia, assumir a política no domínio da vida, em sua raiz fenomenológica, não garante jamais a experiência e a tranquilidade de um labor filosófico livre de tensões e reviravoltas. Pois ao nos voltarmos à reflexão política sempre corremos o risco de elaborar um pensamento de ocasião sujeito aos efeitos da proximidade, ao fetiche do encantamento teórico e/ou da rejeição prévia; portanto, um pensamento marcado por uma visão circunstancial e sectária. Além do mais, a política jamais poderá ser explicada por uma tese dogmática, por uma única teoria fechada. Como Merleau-Ponty já concluíra sobre o comportamento na sua primeira obra, é preciso saber reencontrar e descrever a política como um fenômeno aberto e indeterminado. “Como uma onda”, nas palavras de Lefort (1978, p. 45), “a política nos prende e nos joga fora,” a cada passo em direção à margem segura somos relançados ao mar aberto pela força do movimento incontrolável do refluxo de uma nova onda que já estava previamente preparada. Por isso mesmo, a pretensão de alcançar o sentido primordial (selvagem), “o núcleo único de significação” da política é um trabalho interminável que nos coloca na condição de Sísifo, pois quando acreditamos estar diante do noumenon da política somos, inevitavelmente, arrastados por acontecimentos inevitáveis e inesperados, como se estivéssemos vivendo uma autêntica tragédia. Desse modo, como não poderia deixar de ser, pensar a política mesma, fazer um “tour” fenomenológico pela experiência das relações inter-humanas, é remontar e descrever uma situação ambígua, contaminada, do começo ao fim, por contingências e necessidades, pelo visível e pelo invisível.

Entretanto, nesse itinerário, nessa analítica inesgotável do mundo da política, podemos dizer que Merleau-Ponty considerou todas as “visões como verdadeiras”, e foi capaz de encontrar um “núcleo de significação existencial presente em cada perspectiva”, como ele havia estabelecido no prefácio da Fenomenologia da Percepção? Nos diferentes textos políticos2 de Merleau-Ponty, a história parece formar esse núcleo ambíguo e significativo da política. Exemplo maior dessa relação aberta está na análise do escandaloso Humanismo e Terror, quando consideramos que a obra parece à primeira vista conceder aos processos de Moscou e à brutal violência revolucionária soviética a desculpa de um drama de responsabilidade histórica. Quando nos voltamos à política, podemos reencontrar, entre tantos outros caracteres, pelo menos três grandes núcleos tácitos, pré-contratuais, que operam em conjunto nesse mundo de relações e implicações recíprocas e abertas: a violência e a história. Podemos dizer que a história explica a violência e que a violência determina o futuro da política e da história. Entretanto, para além dessa hermenêutica tautológica, a verdadeira questão que nos interessa, nesse momento, é saber: em que sentido a história explica e justifica a violência política? Mais especificamente, em que medida a obra de Merleau-Ponty, a sua leitura do marxismo e dos expurgos estalinistas concede à história a reponsabilidade pela violência? Eis as questões que queremos explorar nesta breve análise.

A análise do tema da violência tem um depositário evidente na galeria de produções merleau-pontianas: o controverso Humanismo e Terror: ensaio sobre a questão Comunista. Dividido em duas partes, uma secção que reflete não apenas a dualidade do seu título, mas remonta a ambiguidade das revoluções, da violência e da história, essa obra – com os seus deslocamentos internos do terror ao humanismo – comporta uma crítica literária-filosófica3 , uma analítica historiográfica da violência e a denúncia da ilusão do mito revolucionário e do ardil da liberdade constitucionalista presentes no ideário das democracias ocidentais. Motivado pelo amplo sucesso do excelente livro Zero e o infinito, publicado em 1945, no qual o escritor Arthur Koestler põe ao lado da violência visível a sua dimensão profundamente invisível durante o regime estalinista de 1937 e 1938, Merleau-Ponty repensa o lugar comum da crítica estabelecida ao comunismo, como, também, a dimensão histórica da violência inerente aos diferentes regimes políticos. O livro, escrito por Koestler entre 1938 e 1940, coloca em cena para o grande público não apenas a violência desmedida dos processos de Moscou, mas narra o conflito interno entre a adesão e a desilusão com os destinos da revolução comunista, vivido por um militante revolucionário assaltado pelas incertezas sobre os destinos da revolução e as suas próprias escolhas. É preciso, escreve Merleau-Ponty (1968, p. 38), “compreender este livro célebre e mal conhecido”, pois ele colocou um problema do nosso tempo: a relação entre violência e história, a difícil relação entre o nosso interior e o exterior. O personagem Rubashov, revolucionário histórico de primeira hora, líder do Partido, vive o tormento da dúvida4 de ter sucumbido ao próprio eu em detrimento do poder avassalador da grande consciência unificadora do partido. Preso e acusado de trair a revolução, ele permanece absorto entre o sentimento de ter sido absolutamente fiel à revolução e a força da acusação oficial de ser um conspirador. Desse modo, o verdadeiro drama de Rubashov não é medo da morte, ou mesmo a experiência da solidão e da violência na prisão, mas a dúvida íntima e corrosiva, a angústia de ser obrigado a declarar-se inocente ou culpado. Não há saída para o dilema de Rubashov, capitulado pela infalibilidade do partido; ele será sempre culpado, pois na lógica da consciência revolucionária, negar as acusações pronunciadas pelo partido seria uma nova traição; admiti-las, por outro lado, mesmo que esteja convencido de que nunca tenha agido contra a revolução e o partido, é tão somente confessar contra a própria consciência e a história de vida, um crime sem perdão. Assim, Rubashov escreve no seu diário: “Pensei e agi como devia (...); se estava certo, não tenho do que me arrepender; se errei, vou pagar.” (KOESTLER, 2013, p. 270). Antes de tudo, para entender a crítica de Merleau-Ponty ao romance de Koestler é preciso levar em consideração a visão do marxismo que sustenta a narrativa de O Zero e o Infinito. Koestler imputa a Rubashov e, por extensão, ao marxismo, os limites do maniqueísmo, não oferece alternativas entre interior e exterior em uma análise do regime comunista, opõe à moral cristã do livre arbítrio uma teoria do comportamento marxista fundada na tese do reflexo condicionado, reduz a história marxista a uma concepção monológica que, operando a partir de um fluxo linear, sacrificaria todos os meios, todas as subjetividades, vidas e valores para o cumprir um fim maior. Na leitura de Koestler, a consciência revolucionária seria tão somente a expressão de uma síntese de todas as consciências individuais, zeitgeist de todos os “Eus”. É justamente a recusa a fazer parte desse movimento radical de absolutização de todas as subjetividades, a ruptura com exigência radical à alma de abandonar a si mesma e a própria consciência em direção a um eu exterior que parece não mais fazer sentido a Rubashov: “... pouco a pouco, trava conhecimento com a subjetividade que se desprende dos acontecimento e os julga.” (KOESTLER, 2013, p. 39).

Que a crise de Rubashov seja legítima, que o confronto entre o subjetivo e o objetivo presente na vida de todos os revolucionários e homens seja um crime aos olhos do partido, que o estalinismo tenha suprimido a vida interior em favor de um grande Eu não há dúvida alguma, e esses fatos estão bem dispostos na narrativa do livro de Koestler (2013, p. 98):

– Olha Rubashov... Há uma coisa que eu gostaria de deixar bem claro. Você vem repetidamente dizendo “vocês”, querendo se referir ao Estado e ao Partido em oposição ao “Eu”, isto é Nicolas Salmanovich Rubashov. Para efeitos externos, são necessários, evidentemente, um julgamento e a justificativa legal. Para nós o que eu acabo de dizer deve bastar.

Uma obra que apresenta a severidade e o perspectivismo sectário presentes nos julgamentos políticos dirigidos contra a palavra, contra o pensamento e a liberdade. Koestler apresenta o caso geral, o modus operandi de uma justiça manipulada e serva de um autoritarismo que reencontramos em todos os regimes, mesmo nas democracias constitucionalistas como a do Brasil. Essa pretensa justiça seletiva escolhe os inimigos pela diferença, opera como violência desmedida e amplificada a todas as regiões do ser, atinge o corpo e a alma, coloca em suspeição a memória, suspende até mesmo a certeza mais profunda, aquela primeira verdade do cartesianismo, a indubitabilidade da experiência do próprio pensamento.

Todavia, o que o romance ganha na crítica aos fatos do regime soviético através da profunda descrição do drama existencial de Rubashov, ele perde, ou se perde, na crítica ao marxismo arrolado como cúmplice dos crimes do estalinismo. Para Merleau-Ponty o drama de Rubashov, sobretudo o modo como ele é apresentado ao leitor, não faz dele um marxista, pelo menos na perspectiva do marxismo merleau-pontiano, ou mesmo serve de retrato do drama existencial do homem em geral. Além disso, não se trata de negar os excessos do estalinismo, mas de mostrar que a obra de Koestler não confronta a violência comunista à liberal, não coloca em questão o entrecruzamento entre a necessidade e a contingência e, sobretudo, não problematiza o terror e a violência inerentes à história e ao mundo da vida. Assim, a interpretação do texto de Koestler, uma peça acusatória de uma violência inegável e visível advinda dos expurgos estalinistas, permanece na superfície sem dar conta da dura realidade da política: o caráter trágico, impuro e universalizado da violência nesse mundo de coexistências. A reflexão dialética nos indica que os processos de Moscou estão marcados por uma violência que, ao mesmo tempo, é particular e universal sendo, justamente, a cegueira desse entrecruzamento a razão do limite da crítica de Koestler. Ademais, os leitores de Koestler, comprometidos com a rejeição prévia do comunismo, ignoram duas evidências: que a violência está em toda parte e que ela nunca, em nenhuma ocasião, é bela ou justificável, conforme podemos ler em Humanismo e Terror:

Toda crítica do comunismo ou da U.R.S.S. que se serve de fatos isolados, sem os situar no seu contexto e em relação aos problemas da U.R.S.S; toda apologia dos regimes democráticos que passa em silêncio sob a sua intervenção violenta no restante do mundo, ou a lança, por um jogo de escrita em uma conta especial, toda política, numa palavra, que não procura compreender as sociedades rivais na sua totalidade, não pode servir senão para mascarar o problema do capitalismo, e visana realidade a própria existência da U.R.S.S. devendo ser considerada com um ato de guerra.” (MERLEAUPONTY, 1968, p. 176)

Como próprio título do livro sugere, humanismo e terror não são dois termos contraditórios e excludentes, que não se misturariam como a água e óleo. Ao contrário, são historicamente tautócronos, pois alguma violência como momento trágico da realização do mundo humano, de acordo com a interpretação histórica-humanista do marxismo defendida por Merleau-Ponty, é inevitável. Todavia, retomando a nossa questão inicial, a violência dos julgamentos de Moscou seria, unicamente, de responsabilidade histórica? Se os acusados e sentenciados em Moscou, a exemplo de Rubashov, não são traidores, os processos revelariam uma responsabilidade que transcende a dualidade do objetivo e do subjetivo, da vontade e do dever? O peso da responsabilidade pela violência desmedida deveria recair sobre as circunstâncias históricas, sobre a revolução ou sobre o partido comunista soviético? Ou, ainda, seria a violência dos expurgos mais um capítulo, um mero dano colateral inevitável do processo de consolidação da revolução proletária? Para Merleau-Ponty a teoria da história marxista pode nos ajudar a responder estas questões.

Todo tempo, toda época têm a sua filosofia e os seus teóricos de ocasião. Pensadores que nos provocam a pensar e discutir porque enxergam o que está além dos fatos e reencontram aquilo que sustenta a superfície do visível, pois como espécies de Tirésias são capazes de apontar, apoiados em uma filosofia da história ou em uma determinada ciência do comportamento humano, uma ordem que se apresenta como o verdadeiro logos, o sentido intrínseco das coisas: do mundo social, econômico e político. Num primeiro momento, Merleau-Ponty lê a obra de Marx nessa perspectiva. Tratado desde o início como um clássico, o marxismo não está apenas comprometido com os destinos da revolução proletária e com a crítica ao liberalismo. Aprofundando o marxismo da sua própria filosofia, Merleau-Ponty combate uma interpretação reducionista e atomista do materialismo marxista, sustentando a ideia de que toda experiência humana, a partir de Marx, tem uma relação fundamental com a natureza e com os objetos culturais: “Marx, ao falar dos objetos humanos, quer dizer que essa significação é aderente ao objeto tal como ele se apresenta na nossa experiência” (MERLEAU-PONTY, 1996, p.159). Desse modo, Merleau-Ponty se apropria dos textos de Marx não como um objeto, mas, sobretudo, como um médium, um corpus teórico, uma parte única, de uma nova filosofia que renovou a nossa compreensão da totalidade da existência. E diante dessa visão profunda do marxismo que a crítica do livro de Kostler, a exemplo de outras narrativas, parece não se sustentar. A obra de Marx permitirá a Merleau-Ponty endereçar para o campo da política e da existência humana argumentos semelhantes àqueles que levaram à rejeição da visão atomista sobre o comportamento e o corpo, presentes nas suas duas primeiras obras: “Cada um tem o direito de adotar a filosofia de seu gosto como, por exemplo, o cientificismo e o mecanicismo que há muito tempo têm tido lugar nos círculos radicais socialistas. Mas é preciso saber e dizer que esse gênero de ideologia nada tem em comum com o marxismo.” (MERLEAU-PONTY, 1996, p.153). Combatendo o pseudo-marxismo presente na obra de Koestler, Merleau-Ponty sustenta, em uma interpretação muito próxima à tese da percepção, que o autêntico marxismo redescobre a relação mais primordial, isto é, reconhece o verdadeiro sistema de coexistência humana sem submeter o tecido social às leis da física clássica, como fez Augusto Comte. “Marx combate dois frontes. De um lado, ele é contra todas as formas do pensamento mecanicista. De outro lado, ele combate o idealismo.” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 156). Contra o idealismo, Marx introduziu a dimensão constitutiva da realidade do homem como ser social e histórico. Já contra o mecanicismo e o positivismo, defendeu a ideia de que o homem existe, e que esta existência (que é antes de tudo co-existência) é irredutível aos efeitos de uma causalidade mecânica e econômica. Para Marx, diz Merleau-Ponty, a dimensão intersubjetiva do homem constitui o veículo da história e o motor da dialética:

O homem engajado em um certo modo de apropriação da natureza onde se desenha o modo de suas relações com o outro, a intersubjetividade humana concreta, a comunidade sucessiva e simultânea de existências em via de se realizar em um tipo de propriedade que elas subsistem e que elas transformam, cada uma criada por outro e o criando. (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 157).

Portanto, a filosofia marxista, a exemplo da própria fenomenologia, não sacrifica o subjetivo ao objetivo, não reduz a consciência à matéria e não julga a história pela acumulação de fatos isolados. O marxismo, nesse caso, não está limitado ao jogo de polaridades que anima o livro de Koestler: o puro subjetivismo cristão confrontado com um mecanicismo de matriz pavloviana. Desse modo, poderíamos colocar Marx na galeria dos fenomenólogos que descreveram o logos e o sentindo imanente da política. Pois Marx, conforme Merleau-Ponty em Sens et non- -sens (1996, p.160) teria fundado uma fenomenologia do mundo cultural que Hegel havia apenas esboçado”. Para Merleau-Ponty, nesse marxismo autêntico, a matéria e a consciência estão estruturalmente inseridas num sistema de coexistência que torna possível uma compreensão aberta do homem, sem reduzi-lo, em absoluto, à natureza ou à consciência. A partir dessa primeira leitura de Marx, Merleau-Ponty aprofunda a ideia de que o mundo das relações econômicas e sociais – o lebenswelt da política – está situado no domínio da ambiguidade primordial, pois incorpora a um fundo natural e inumano uma existência social e histórica. Portanto, Merleau-Ponty reencontra em Marx5 a tese geral da Estrutura do Comportamento e da Fenomenologia da Percepção sobre o homem, um ser sensível em co-existência que se apropria do seu ser universal enquanto um ser total e inter-humano. Todavia, como seria a relação entre história e violência pensada a partir desse marxismo muito próprio de Merleau-Ponty? Como o marxismo poderia explicar essepretenso caráter inerente da violência à história? Em que medida, como dissemos anteriormente, uma teoria da história marxista poderia a alcançar a “justa medida” da responsabilidade quando pensamos nos expurgos estalinistas ou na violência que Koestler narra em sua obra? MerleauPonty, em diversos textos, entende o marxismo como uma ontologia que nos permite alcançar a sedimentação invisível que envolve o homem, o mundo e a história. Assim, desde os primeiros textos até Humanismo e Terror, contra uma concepção materialista e econômica da história, apoiado em uma perspectiva heurística da obra de Marx, Merleau-Ponty sustenta o caráter não unívoco e não determinista da história, mas ambíguo, pois nela operaria, ao mesmo tempo, a lógica da necessidade e da contingência, já que “nada é absolutamente fortuito, mas também nada é absolutamente necessário”, diz Merleau-Ponty. Influenciado pelas leituras de Lukács e Kojève, pelo reconhecimento da inscrição do logos das relações humanas na descoberta das leis da história e do funcionamento social, Merleau-Ponty agregou à versão oficial e científica do marxismo, fundada nos últimos escritos de Marx, uma racionalidade aberta e humanista. A divisão de classes, tema central do marxismo, está assentada na tecnologia e na posse dos meios que nos permite dominar e explorar a natureza e os homens para dar vazão à satisfação (produção) das necessidades materiais humanas. Entretanto, como podemos ler em Marxisme et philosophie, texto publicado em Sens et non-sens, a teoria marxista da história é uma teoria da existência social na medida em que ela estabelece um conjunto de forças e de ações (lutas) que direcionam o modo como os homens organizam as suas relações com a natureza e com os seus semelhantes. Além do mais, o marxismo nos permite entender que não há uma dialética única, não há um sentido hiperbólico e unívoco da história, como estabelecerá Hegel. Portanto, Merleau-Ponty opera na passagem da dialética hegeliana – de uma história universal, como recapitulação ou reconciliação global de um sentido último – para a concepção marxista que incorpora a lógica da adversidade no curso do tempo. A história, desse modo, é repensada em situação, no contato concreto com o ser. Nós somos destinados ao mundo como somos à história e, lendo Marx, é preciso colocar em suspeição a ideia de uma história universal, de uma dialética única6 . Porém, como podemos ler em Marxisme et philosophie, Merleau-Ponty reconhece a necessidade de uma lógica histórica como antídoto de uma ininteligibilidade radical, sem, contudo, anular a contingência, pois em um mundo de necessidade absoluta os fenômenos e os acontecimentos simplesmente desapareceriam e o presente se dissolveria no curso das leis e dos eventos históricos. Entretanto, será que essa ambiguidade que acolhe a necessidade e a contingência, a natureza e a cultura, o corpo e o espírito como partes indissociáveis de uma figura sobre um fundo pode ser dilatada para a leitura sobre a violência e o marxismo, presente no controverso texto Humanismo e Terror? Ademais, o valor heurístico da obra de Marx resiste aos terrores da revolução comunista e ao marxismo de ocasião que confronta Merleau-Ponty a partir da análise de Koestler? Ainda, seria a falta de compreensão dessa ambiguidade histórica a razão da condenação da revolução proletária a partir dos expurgos estalinistas? Conforme Merleau-Ponty, no âmbito do mundo da vida política nós não temos escolha entre pureza e violência, mas entre diferentes tipos de violência e lutas; assim, é fundamental distinguir as formas e os motivos da violência que se apresentam na história, porque nem todas as formas têm o mesmo significado e a mesma razão. Desse modo, estabelece Merleau-Ponty (1968, p.9) na apresentação de Humanismo e Terror: “A pureza dos princípios não somente tolera, como ainda necessita de violências.” Além do mais, é preciso desafiar o pensamento e a obviedade das teses e levar os argumentos e teorias aos seus limites extremos, confrontá-los com o desafio da ambiguidade: “Um regime liberal pode ser realmente opressivo. Um regime que assume a sua violência poderia conter um humanismo verdadeiro.” (MERLEAU-PONTY,1968, p. 10). O texto merleau-pontiano, apoiado em um marxismo muito próprio, quer nos fazer ver além do óbvio e colocar em cena todas as manifestações da violência que atravessam a nossa vida, da violência normalizada, destinada a manter a ordem e paralisar o tempo, à violência como reação ou momento de mudança: “...a questão no momento não é saber se aceita-se ou se recusa-se a violência, mas se a violência com a qual se pactua é progressiva...” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 37). No âmbito do liberalismo temos a violência estabelecida como sistema de produção, nascida e legitimada pelo contrato social, dado ao monopólio do estado. Uma violência perene, oficializada e referendada nos tribunais, instrumento da desigualdade e da manutenção da ordem pública, da garantia de liberdade simbólica e da propriedade. Pois o estado liberal através do seus aparatos de poder e do seus símbolos “santifica os meios clássicos de repressão policial e militar” ... (MERLEAU-PONTY, 1968, p.16). A violência do regime liberal, portanto, é uma prática normalizada a despeito de todos os seus excessos e crimes. Por outro lado, temos a violência revolucionária, como a proletária, médium de um processo histórico, expressão e meio de um fim: “A tarefa essencial do marxismo será pois procurar uma violência que se ultrapasse no sentido do futuro humano”. (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 13). Desse modo, é preciso reconhecer aqueles períodos aparentemente sem violência, quando a política se limita a administrar um regime de direitos e privilégios estabelecidos que encobrem conflitos e diferenças latentes, um regime no qual a violência e a morte, ainda que operadas sistematicamente pelas mãos do Estado e do capital, são atribuídas ao conjunto das relações inter- -humanas. A partir de Humanismo e Terror, podemos falar de pelo menos de três momentos ou formas de violência: da proletária, que estaria no campo da reação, da luta pela não dominação, como escreveu Maquiavel no capítulo IX do Príncipe; da violência do partido comunista denunciada por Koestler e, finalmente, daquela inaudita no texto de Koestler, a violência do Estado liberal, expressão máxima da má-fé. Portanto, Merleau-Ponty encaminha uma interpretação histórico-política da violência e dos processos de Moscou. Assim, escreve Merleau-Ponty (1968, p. 12), a questão não é se o comunismo respeita a moral liberal, mas se a violência que pratica é revolucionária e é “capaz de criar, entre os homens, relações humanas.” A violência revolucionária, podemos dizer, também produz morte e o terror, mas seria, por outro lado, uma luta pela liberdade e pela igualdade. Ademais, ela é apenas um médium, sempre provisória, o seu sentido está no compromisso com um mundo, com um futuro que dispensaria a própria violência como instrumento operatório de manutenção do status quo. Dessa forma, a violência proletária, semelhante ao que aconteceu no período jacobino da revolução francesa, seria uma resposta a um regime de produção, o liberalismo, que normalizou uma violência cotidiana, persistente e dirigida. Ainda que a violência proletária, espécie de contra-violência, pudesse ultrapassar a violência oficializada em direção a um futuro sem violência, é preciso colocar em questão o sentido e papel da violência comunista denunciada por Koestler. Assim, a violência revolucionária, pensada a partir do marxismo, pode ser confundida ou entendida como parte dos processos de Moscou? Parece que não. Os objetivos e causas da revolução proletária, e isso era inegável, mesmo para Merleau-Ponty, foram consumidos e esquecidos pela máquina repressiva do partido soviético. Em um texto de 1950, publicado em Signos, ao recordar os 10 milhões de presos em campos de concentração e a extrema desigualdade de renda e poder que separava os trabalhadores dos burocratas do Partido Comunista, Merleau-Ponty (1991, p. 299) coloca em dúvida as “razões que ainda temos para falar em socialismo na URSS”. A violência, nesse caso, é anti-revolucionária e anti-proletária. Está claro, portanto, que a violência stalinista denunciada por Koestler já na opera mais pelas mãos dos proletários, já não é um médium provisório. A violência dos expurgos não é instrumento ou, ainda, voz ou razão revolucionária. A violência como terror, o grande malefício da história, atinge liberais e stalinistas, está no domínio da política, do jogo de forças e disputas e, o mais importante, é um obstáculo, uma verdadeira intervenção contrarrevolucionária, uma reação contra os processos libertários e as lutas sociais. A leitura de Koestler não deixa claro o caráter ambíguo da violência, a sua universalidade e a sua fatalidade, não coloca em suspeição a ligação entre a revolução proletária de 1971 e os processos de Moscou. Assim, estabelece Merleau-Ponty, diferentemente de Koestler, devemos conduzir as nossas análises sobre a violência comunista em geral e, mais precisamente, sobre os processos de Moscou. Todavia, como explicar essa violência? Como entender que a revolução proletária tenha produzido o extermínio em massa, os campos de concentração e aquela violência alargada que atinge o corpo e alma, que abala a própria experiência do pensamento, de que falávamos anteriormente?

A violência política do partido comunista, assim como a forma vascularizada, persistente e oficializada da violência articulada pelos regimes liberais, são manifestações – enredos – de uma tragédia que impõe um mundo o qual não deveríamos sequer admitir, quanto mais vivê- -lo. A questão central, o que permanece, não é a circunstancial violência presente nos processos de Moscou, mas a centralidade da violência no curso da história e das relações humanas, que podemos compreender a partir do marxismo, mas que falta ao livro de Koestler. O julgamento de Rubashov oferece um testemunho surpreendente dessa busca por um sentido não ambíguo e quase indecifrável presente no dilema da autocrítica contraditória que impõe culpa e inocência. Na história do julgamento, na crítica à obra de Koestler, o discurso oscila entre a responsabilização da vítima, que como homem público e revolucionário não pode se dispensar de ser julgado pelos seus atos, até o imperativo do aparelho revolucionário destinado a realizar, mesmo contra todas as convenções éticas e humanitárias, um fim maior, passando, finalmente, pela conversão dos revolucionários em stalinistas. Chegamos, portanto, ao ponto central da argumentação de Merleau-Ponty. Em Humanismo e do Terror, o autor contra o aparente maniqueísmo de Koestler, contra os ataques unilaterais ao comunismo e à revolução, contra a cegueira da violência instituída no coração das democracias liberais, retoma o tema da ambiguidade histórica, nesse caso, como tragédia. Não há inocentes, sejam os juízes ou condenados. O modelo da tragédia é grego, daquilo que Merleau-Ponty chama dos acasos fundamentais: “É o pesadelo de uma responsabilidade involuntária em si que já sustentava o mito de Édipo: Édipo não quis esposar a sua mãe nem matar o seu pai, mas ele o fez, e o fato vale como crime.” (p.26, 1968). Se a história é uma tragédia, à maneira de Sófocles, é porque, ao mesmo tempo, dá origem a violência e à piedade, ao humanismo e ao terror, a necessidade e à fatalidade, isto é, às experiências que refletem a ambiguidade do seu próprio devir. Em Humanismo e Terror, a história e a política são inevitavelmente devotadas ao trágico e à experiência da angústia, essas manifestações da finitude humana que reencontramos na dúvida de Abrão, no desamparo e náusea de Roquentin e, ainda, no dilema de Rubashov: confessar-se inocente ou culpado. Uma ordem de prisão fundada em um pretenso exercício de pensamento livre, o isolamento quase absoluto na cela, a certeza prévia da condenação diante da experiência de interrogatórios dirigidos tão somente para sustentar uma culpa já estabelecida, culminaram em um julgamento encenado para sacramentar a diferença de opinião como um crime de morte. Assim, em dezembro de 1949, em um breve texto intitulado Marxismo e superstição, em uma conclusão diferente daquela estabelecida em Humanismo e Terror , Merleau-Ponty (1991, p. 296) escreveu sobre o dilema da autocrítica e da autoincriminação por pensar às avessas do status quo: “Em 1937, Bukharin, reconsiderando a sua atitude... declarava-se criminoso por ter feito oposição, mas recusava-se a confessar-se espião ou sabotador.”

A opção pelo marxismo, sobretudo em Humanismo e Terror, não foi apenas filosófica mas, sobretudo, política. Além do mais, toda filosofia é, em algum grau, eminentemente política, como Merleau-Ponty indica ao examinar o divórcio entre marxismo e filosofia no prefácio de Signos. Merleau-Ponty, assim como Sartre, não aceita a isenção como uma posição política ontologicamente7 possível. Ao contrário, se praticamos ou defendemos a isenção, sempre o fazemos com má-fé. Como já estava no texto de 1945, o marxismo era uma posição de pós-guerra, uma concessão necessária diante da conjuntura, pois do outro lado estava o liberalismo capitalista avançando violentamente sobre o mundo. Em Humanismo e Terror, um texto que joga com essa tensão, que aposta tudo na polarização, comunismo ante liberalismo, a violência dissimulada ante à revolucionária, a liberdade como princípio (constitucionalista) ante a liberdade como ação, o marxismo autêntico diante do pseudo- -marxismo, sustenta a partir desse jogo de polaridades a lógica e a tragédia como núcleo explicativo dos processos de Moscou. A história, assim como a política, na medida que impõe um problema determina uma resposta, uma solução própria que nem sempre está em acordo com as nossas crenças, com a nossa moral ou a nossa filosofia, como podemos ler em Humanismo e Terror:

A reponsabilidade histórica ultrapassa as categorias do pensamento liberal; intenção e ato, circunstâncias e vontade, objetivo e subjetivo, imputa à vontade às circunstâncias; ela substitui assim o indivíduo, tal qual ele se sentia ser; por um papel ou fantasma, dentro qual ele não se reconhece, mas, no qual ele se deve reconhecer, visto que é o que ele foi para as suas vítimas e que as suas vítimas hoje tem razão.” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 67-68)

A tragédia é a experiência hiperbólica da ambiguidade histórica, na medida em que agrega à consciência superior da autonomia da vontade e da responsabilidade, a certeza lancinante de que os motivos, as razões mais profundas das nossas escolhas, nascem fora de nós, estão no mundo. A história, como um acaso necessário, tem uma direção prévia, uma ordem, que interdita a liberdade absoluta sem, contudo, dispensar o homem das suas reponsabilidades. Os processos de Moscou, portanto, seriam consequência de um “descarrilamento” trágico da história, são manifestações desses acasos necessários da dialética.

No entanto, é preciso lembrar que Humanismo e Terror inclui uma segunda parte, dedicada à perspectiva humanista, e vai além da tese da tragédia como logos da história. Na passagem transitória que fica entre as duas partes do livro, estamos no espaço aberto entre o humanismo e o terror. É preciso considerar que assumir a história como tragédia, admitir que nos encontramos quase que na mesma condição do fatalismo edipiano, sujeito aos acasos necessários, não significa assumir a história como junção de “fatos justapostos – em decisões e aventuras individuais, ideias, interesses, instituições – mas que ela é no instante e na sucessão uma totalidade, em movimento, em direção a um estado privilegiado que da sentido ao todo”. (MERLEAU-PONTY, 1968, p.154).

Conclusão

As revelações sobre os campos de concentração fizeram Merleau-Ponty rever sua posição sobre o marxismo e a política revolucionária, culminando nas Aventuras da Dialética de 1955. Nesse texto, Merleau-Ponty mobiliza contra o marxismo e sua filosofia da história as conclusões de Max Weber sobre o papel estruturante operado na história e nas relações inter-humanas pelas condições materiais, pelas estruturas políticas e pelas formas da religião. Assim, em 1955, o proletariado, ressignificado diante de todas as existências e entes históricos, perdia o protagonismo ainda presente em Humanismo e Terror, deixando de se apresentar como o universal em ato, como a classe destinada a realizar, no jogo concreto da história, o sentido último da dialética marxista. Merleau-Ponty, nessa perspectiva, aprofunda ainda mais o sentido ambíguo e trágico da história, ao conceber que todo o conhecimento do nosso mundo é um momento, uma síntese inacabada do nosso estar e viver na história. “A história é um objeto estranho: um objeto que somos nós mesmos; e, nossa vida insubstituível, nossa liberdade selvagem já está prefigurada, comprometida, arriscada em outras liberdades hoje passadas.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4). Como o tempo, a história não é uma soma de acontecimentos e instantes, mas um ambiente ao qual temos acesso ocupando uma situação, pois também vibra em direção a um passado e a um futuro. A história, desse modo, como a própria natureza, os objetos culturais e o corpo, também é sedimentação e espontaneidade. Para assumir a história e, por extensão, a política como tragédia é necessário reconhecer, como Rousseau já tinha feito dois séculos antes, que a história e a política impõem a violência na mesma proporção em que sangram e inviabilizam a nossa liberdade. “Que aprendemos em Fedra e no Édipo, senão que o homem não é livre e que o céu pune dos crimes que os faz cometer?” (ROUSSEAU, 1995, p.52). A tragédia também está em Zero e o Infinito, na crise existencial de Rubashov, na condição do homem que se sente traído pela história e pelos acontecimentos que ele mesmo ajudou a forjar, e que não reencontra no mundo, entre as pessoas, o homem que ele sente ser interiormente. Traído pelo exterior, sucumbido ao “inferno dos outros”, esse mesmo homem interior, contudo, não pode deixar de projetar-se no mundo. Assim, a questão central, o que permanece, não é a critica de Koestler ou a problemática apologia circunstancial dos processos de Moscou realizada por MerleauPonty, mas a relação estrutural – como uma figura sobre um fundo – que articula terror e humanismo, fatalismo e universalismo, interioridade e exterioridade no curso das relações humanas, uma versão trágica da história e do ser que alcançamos no entrecruzamento da crítica literária e da análise filosófica:

A história é terror e humanismo porque, apesar do fatos, da violência, ela nos incita que devemos sempre seguir em frente, não em linha reta, sempre fácil de rastrear, mas nos levantando a cada momento em uma situaçãogeral que muda, como um viajante que progride em uma paisagem instável e modificado por seus próprios passos, onde o que era um obstáculo pode se tornar uma passagem e onde o caminho certo pode se tornar um desvio. (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 100).

No entanto, seguir em frente também se trata de carregar a certeza de que não há estados, revoluções, sistemas penais ou pessoas fora da história e, por contrapartida, de que não há história sem violência, sem terror e humanismo, eis o que encontramos por inteiro na análise de Merleau-Ponty e que falta a Koestler. Não há justificativas e desculpas para a violência stalinista, como também não deveria haver indulgência para o silêncio complacente diante da violência perpetrada difusamente pelos aparatos de poder que sustentam as democracias liberais. Assim, todo humanismo, todo terror e violência se impõem, ambiguamente, como acaso necessário e como liberdade. Esta relação trágico-dialético dá forma ao lebenswelt da política e constitui a atualidade do “núcleo de significação” do livro Humanismo e Terror.

Finalmente, resta-nos perguntar, setenta anos depois do texto de Merleau-Ponty, pensando no Brasil de 2020, com qual estilo de violência estamos compactuando? Qual seria a nossa “boa forma” de violência? Como articulamos violência, acaso necessário e liberdade? Certamente, recorrendo à violência ordinária do estado liberal, denunciada por Marx e Merleau-Ponty. Uma violência oficializada e normalizada, que sustenta a desigualdade e, por isso mesmo, prefere a propriedade à vida, que concede tudo à fé cega diante dos direitos humanos e, cotidianamente, prende, tortura e mata pobres, negros, índios e minorias sob a tutela da nossa consciência liberal, eis a tragédia que vivemos e que até mesmo aos olhos de Tirésias seria abominável, ainda que fosse um castigo dos deuses.

Referências

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D’ALLONES, Myriam Revault. Merleau-Ponty: La Chair du politique. Paris : Éditions Michalon, 2001.

CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. Humanismo e terror segundo Merleau-Ponty: em que medida é possível tolerar a violência? Sæculum, n. 19, p. 183-194, 2008.

CAPALBO, Creuza. Maurice Merleau-Ponty e o conceito de política. Revista Estudos Filosóficos, n. 13, p. 55-62, 2014.

KRADER, Lawrence. Evolução, Revolução e Estado: Marx e o Pensamento Etnológico. in HOBSBAWN, Eric (Org.). História do Marxismo. O marxismo no tempo de Marx. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 263-300.

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MENDONÇA, Cristina Diniz. Marxismo e filosofia: algumas considerações sobre os textos políticos merleau-pontyanos do pós-guerra. Trans/Form/ Ação, v. 9/10, p. 21-39, 1986/87.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Lettre à D’Alembert. Oeuvres Complètes (t. V). Paris: Éditions Gallimard, Pléiade, 1995.

Notas

[1]Depois de deixar a revista Tempos Modernos em 1953, Merleau-Ponty continuou a escrever sobre política, em revistas como L’Express, um semanário dedicado à esquerda não comunista.

[2]A bibliografia crítica sobre a presença das reflexões políticas no interior da obra de Merleau-Ponty é extensa e não caberia aqui querer fixar todos esses textos. Além dos incontornáveis Sur une Colonne Absente de Claude Lefort e Experiência do Pensamento de Marilena Chaui, destaco alguns livros e artigos que discutem as questões aqui tratadas e que, em algum momento, foram importantes para a minha reflexão. Em português, como uma leitura introdutória e consistente dessa relação entre Marx e Merleau-Ponty, violência e história, vale a pena consultar os textos de Cristina Diniz Mendonça (Marxismo e filosofia: algumas considerações sobre os textos políticos merleau-pontyanos do pós-guerra) e de Iraquitan de Oliveira Caminha (Humanismo e terror segundo Merleau-Ponty: em que medida é possível tolerar a violência?). Não poderia deixar de citar as precursoras reflexões e produções de Creuza Capalbo, tais como: Maurice Merleau-Ponty e o conceito de política. Para a escrita desse trabalho foram, também, consultados os textos de John Borg (Le marxisme dans la philosophie socio-politique de Merleau-Ponty) que toca em questões importantes tratadas apenas introdutoriamente em minha análise, como a teoria da história em As aventuras da Dialética, e o belo trabalho Myriam Revault d’Allones: Merleau-Ponty: La Chair du politique, análise que explora uma teoria da história em Merleau-Ponty a partir do exame dos deslocamentos teóricos suscitados pelos debates com uma certa tradição crítica do marxismo e com Sartre.

[3]Em 1947 Merleau-Ponty publicou Humanismo e Terror; procurou com esse texto responder ao crescente sentimento anticomunista na França, alimentado, em parte, pelo relato dos julgamentos de Moscou realizado pelo romance de Arthur Koestler, Zero e o Infinito. Inspirado no julgamento de Nikolai Bukhárin, importante líder soviético que Koestler conheceu em Moscou, Zero e o Infinito apresenta a narrativa literária do drama interno de Nikolai Salmanovitch Rubashov, um velho bolchevique que se tornou vítima dos expurgos do regime soviético.

[4]A situação de Bukharin, o líder revolucionário soviético que inspirou Koestler a construir Rubashov, foi descrita por Merleau-Ponty em um ensaio publicado em Signos: “Bukharin, reconsiderando a sua atitude dos anos passados na perspectiva da situação mundial, declarava-se criminoso por ter feito oposição, mas recusa-se a confessar-se espião ou sabotador.” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 296).

[5]A bibliografia sobre a presença da obra de Marx em Merleau-Ponty é extensa. Em português, como uma leitura introdutória dessa relação vale a pena consultar o texto de MENDONÇA, Cristina Diniz. Marxismo e filosofia: algumas considerações sobre os textos políticos merleau-pontyanos do pós-guerra. In: Trans/Form/Ação, São Paulo, 9/10: 21-39, 1986/87.

[6]Essa interpretação de Merleau-Ponty está em consonância com o belo ensaio de Krader intitulado Evolução, Revolução e Estado: Marx e o pensamento etnológico. Ao confrontar a teoria da história marxista com as teses de Vico, Kant, Feuerbach, Hegel, Darwin e outros, Krader chama atenção para o fato de que a teoria da história marxista está assentada na relação entre o homem e a natureza mediante a categoria do trabalho, assim como no conjunto das relações sociais e políticas do gênero humano. Assim, o curso da história é uma sucessão ao mesmo tempo contínua e descontínua, no qual os fatores de estabilidade e de mudança entram em contradição recíproca. (KRADER, 1983, p.288).

[7]Sartre e Merleau-Ponty sentiram na pele a impossibilidade política e ética de não tomar partido em uma mundo polarizado. Como lembra a professora Creuza Capalbo, em 1948, os dois amigos “fundaram um novo partido socialista intitulado “Reunião Democrática Revolucionária”, que tinha a intenção de não se identificar com o comunismo e nem com o anticomunismo. Mas este partido teve pouco êxito, não frutificou e logo se acabou.” Conf: CAPALBO, Creuza. Maurice Merleau-Ponty e o conceito de política. Revista Estudos Filosóficos no 13/2014 (http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos) DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG, Pág. 55 - 62