O Desejo de Ver: Hilda Hilst e a redenção pelo grotesco
The Desire to See: Hilda Hilst and redemption by the grotesque

Fernando de Mendonça*
*Doutor em Teoria da Literatura (UFPE) e Professor Adjunto na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde atua no Departamento Letras LIBRAS (DELI) e no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL). Contato: nandodijesus@gmail.com
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Resumo
A partir de uma perspectiva teopoética, este artigo traça relações entre duas obras da escritora Hilda Hilst, a peça teatral O Rato no Muro (1967) e a novela Com os Meus Olhos de Cão (1986), localizando a compreensão do divino apresentada nestas narrativas sob a premissa de manifestações ligadas ao grotesco. Com a base inicial em teorias de Kayser (2003) e Bakhtin (1979), a respeito deste conceito estético, esta reflexão aprofunda sua análise por meio da fenomenologia da religião de Rudolph Otto (2007) e a categoria do Mysterium Tremendum. Por meio da experiência literária, Hilda Hilst oferta uma profunda compreensão do numinoso, na maneira como este se revela à humanidade, despertando o sentimento de criatura e ampliando a percepção com um desejo de ver além do que a realidade imediata permite. São interpretações que visam enriquecer os estudos teopoéticos na literatura brasileira, assim como a fortuna crítica em torno da obra de Hilda Hilst.

Palavras chave:: Literatura e Religião. Teopoética. Grotesco. Hilda Hilst.

 

Abstract
From a theological perspective, this article traces relations between two works by the writer Hilda Hilst in the play O Rato no Muro (1967) and the novel Com os Meus Olhos de Cão (1986), locating the understanding of the divine presented in these narratives under the premise of manifestations linked to the grotesque. With the initial basis in theories of Kayser (2003) and Bakhtin (1979), regarding this aesthetic concept, this reflection deepens its analysis through the phenomenology of religion by Rudolph Otto (2007) and the category of Mysterium Tremendum. Through literary experience, Hilda Hilst offers a deep understanding of the numinous, in the way it reveals itself to humanity, awakening the feeling of a creature and expanding perception with a desire to see beyond what immediate reality allows. These are interpretations that aim to enrich the theopoetics studies in Brazilian literature, as well as the critical fortune surrounding the work of Hilda Hilst.

Keywords:Literature and Religion. Theopoetics. Grotesque. Hilda Hilst.

Introdução

Qualquer aproximação ao legado literário de Hilda Hilst (1930- 2004) permite identificar, de imediato, que o imaginário bíblico é referência basilar para muito do que a autora trabalha, sejam quais forem os gêneros literários praticados. Nesse sentido, nossa leitura de suas obras caminha de mãos dadas com a compreensão de Northrop Frye (2004), que diz só ter conseguido se debruçar sobre a literatura inglesa depois de refletir a poética da Bíblia, reconhecendo que as influências do livro sagrado não estagnaram na literatura ocidental do séc. XVIII, onde seus traços eram mais evidentes, mas alcançaram a contemporaneidade através de uma nova maneira de compreender e refletir tais inspirações.

Relevantes contribuições críticas oriundas ao âmbito acadêmico, já demonstram diretamente um interesse pela abordagem teopoética junto ao legado da escritora paulista, a exemplo do trabalho de Gabriel Albuquerque, Deus, Amor, Morte e as Atitudes Líricas na Poesia de Hilda Hilst (2012), fruto de seu doutorado, em que recupera a multifacetada abordagem conferida pela trajetória poética de Hilda ao imaginário divino; e o livro O Fluxo Metanarrativo de Hilda Hilst em ‘Fluxo-floema’ (2010), publicado por Juarez Guimarães Dias, a respeito da vertiginosa técnica aplicada pela escritora nos desdobramentos de sua prosa poética, uma das vias de acesso a Deus.

O apoio de valiosos ensaios críticos também merece lembrança, como aqueles reunidos por Alcir Pécora1 em Por que Ler Hilda Hilst (2010) e a compilação feita pelo Instituto Moreira Salles, sobre a autora, num de seus volumes dos Cadernos de Literatura Brasileira (1999). Em todas estas fontes, a referência ao divino é uma constante que se identifica frequentemente, seja na obra da escritora, seja naqueles que a leram. Como explica o organizador das reedições de Hilda, seus “textos se constroem com base no emprego de matrizes canônicas de diferentes gêneros da tradição, como, por exemplo, os cantares bíblicos [...]” (PÉCORA, 2010, p. 11). Não é por acaso que a primeira referência apontada aí seja a da Bíblia, pela influência trazida sobre o imaginário da escritora e todo o projeto escritural que compreende a sua carreira literária.

Em Hilda Hilst, o imaginário bíblico nos chama atenção por agenciar os efeitos de suas narrativas (psicológicos, linguísticos e filosóficos). A leitura de sua obra, pelo viés da Teopoética que investiga a presença do imaginário bíblico na literatura2 , revela-se fundamental, pois valoriza e amplia-se através de diálogos com as mais diversas leituras, já que não requer uma filiação com qualquer teologia aplicada ou verdade apriorística. A autora atravessa alguns estágios comuns em sua ‘descoberta de Deus’. A mediação do Grotesco, a solidão que confina suas personagens dentro de espaços misteriosos, o processo de identificação com figuras do imaginário cristão a partir da ruptura que sofrem pela linguagem, são todos problemas que se apresentam em paralelo, responsáveis por uma transformação temporal e espacial que se revela ao nível da consciência narradora. Quando Hilst violenta suas personas com o mais profundo pavor, na verdade, está violando a capacidade lógica e a decorrente escritura delas oriunda. Violações do logos. Do sentido já não pretendido ou almejado, dos significados evitados em palavras que, num movimento ascendente, independem de uma compreensão que lhes seja externa. Motivações que orientam a narrativa como se ‘testando’ a capacidade da escrita em abarcar o Deus, ou pelo menos, estabelecer um contato que ultrapasse a via unilateral da fé. Talvez por isso, escritura que também termine desiludida, desamparada.

Com base no conceito do Tremendum (tremor/temor), desenvolvido no início do séc. XX pelo teólogo e fenomenólogo alemão Rudolph Otto (2007) para compreender o sentimento que define uma primeira aproximação de Deus, causadora de uma caracterização positiva do terror, observaremos de que forma o ‘sentimento de criatura’ é desperto pelas experiências literárias de Hilda Hilst, especialmente através do que ela trabalha a partir do conceito estético do grotesco, em duas narrativas específicas. Retomando uma parte de sua obra dramatúrgica, com a peça teatral O Rato no Muro, assim como a posterior novela Com os Meus Olhos de Cão, buscaremos um entendimento do tema divino à luz do enfoque grotesco estabelecido pela autora. A consciência das narrativas e de seus personagens dialoga com algum aspecto grotesco para que determinada noção ou sensação de Deus seja percebida dentro de suas linguagens. São emoções que convergem ao repertório vocabular de Otto, em sua identificação dos efeitos que o Tremendum causa naquele que percebe a Deus: inquietação misteriosa, arrepios sagrados, receio que afeta os ossos e faz tremer os joelhos, assombro inibidor, sentimento de nulidade, entre outros.

O Rato no Muro

Peça de 19673 , de espírito alegorizante e político, típica ao período histórico e ao contexto da ditadura brasileira (o que não deixa de ser uma marca de toda a produção teatral de Hilda Hilst), esta obra concentra sua narrativa dentro da capela de um convento, o que já sinaliza um potencial interesse pelo questionamento divino — ou pela autoridade outorgada sobre pessoas que se submetem a uma sagrada vocação. O Rato no Muro se desenvolve a partir do diálogo entre nove freiras e sua Superiora, todas aprisionadas dentro de um ambiente fechado e cercado por um alto muro. Obedecendo a um ritual diário, elas se reúnem para relatar à Superiora, suas culpas e pecados acumulados. As nove irmãs são identificadas apenas pelas nove primeiras letras do alfabeto, de A até I, e somente uma delas não se sente impelida a confessar qualquer pecado, demonstrando um veemente deslocamento dentro do grupo e um singular desejo de enxergar além do muro. Curiosamente, esta em destaque é a Irmã H (de Hilda?), única a romper com a rotina dos rituais para instalar um incômodo de ordem metafísica, com imprevistas perguntas e afirmações que ecoam na psicologia das demais personagens e no olhar espectador de quem lê/assiste à peça.

Depois de quebrar o estranhamento confessional, ao declarar: “Hoje não tenho queixa de mim.” (HILST, 2008, p. 107); a Irmã H prossegue, por todo o texto, revelando sua inadequação ao meio, como percebemos: “E nós temos algum sentido? [...] Haverá alguém além de nós? Alguém?” (p. 111); “Não vê que eu sofro? Que desejo tanto ir além do que me prende?” (p. 123). Uma voz marcada pela dúvida existencial, focada em desgastar os limites do espaço concernentes à encenação. Até que, no meio do tumulto, as mulheres enxergam um rato sobre o muro e se espantam, inclusive, pela recente morte de um gato, dentro do convento. A balbúrdia é incontrolável. A excitação cresce somente por imaginarem que o rato pode ver o outro lado da parede, que ele pode escapar dali, alcançar o mundo.

Irmã G: E se o rato chegasse até lá, na manhã ou no escuro, não poderia libertar-se?
Irmã A: De qualquer forma, não seria sempre um rato?
Irmã G: Seria um rato sobre um muro. Olhando para o alto, pode ver o mais fundo.
Irmã C: E olhando para baixo.
Irmã G: Você quer dizer para dentro de si mesmo?
Irmã C: Assim como eu tenho feito sempre.
Irmã G: Pode ver sangue. Mas no alto, saberá resistir. (HILST, 2008, p. 132-133).

Elas se perguntam sobre a capacidade do animal, como se o invejassem, sem importar-se com sua irracionalidade e sujeira, por saber que ele não pode ser controlado pela ordem regente e que nem a Superiora tem domínio sobre ele. Percebem que existe uma identificação entre o humano e o rato, que há uma mesma ânsia libertária e que, por mais que tracem comparações, não poderão mudar sua atual condição de vida.

Irmã G: Se a senhora quiser ver um rato branco, procure na limpeza. Homens do mesmo tom descobrem as suas vísceras com tais delicadezas, que é preciso parar para espiar tanta pesquisa e sutileza.
Irmã B: Então é o rato que ajuda o homem a ser mais homem?
Irmã C: Ou menos realeza. (HILST, 2008, p. 132).

Até que, numa cena clímax, a Irmã H tenta conter as investidas da Superiora de reprimir nas colegas o desejo pelo que há do outro lado do muro:

Irmã H: Parem! Parem! Vocês não veem que ela está tentando nos deixar sem resposta? Que quando ela fala na culpa nós pensamos no tempo? E que diante dela nós nos comportamos como um brinquedo de corda? Que estamos fartos de ficar diante da morte e da renúncia?
Irmã G: Olhe o rato.
SUPERIORA (para a Irmã H. Severa): O rato é você. (tom crescente, procurando tensão) Que deseja subir e ver.
Irmã D: No entanto, no entanto.
SUPERIORA: Ainda que tu subisses...
Irmã D: Aquela pedra lisa...
SUPERIORA: E assistisses...
Irmã D: Ao mais fundo, ao mais alegre.
SUPERIORA: O mais triste...
Irmã D: Ainda que tocasses...
SUPERIORA: Aquela pedra rara...
Irmã D: E deixasses o vestígio...
SUPERIORA: De uma mancha...
Irmã D: Escura ou clara...
SUPERIORA e Irmã D: Ainda... ainda.
SUPERIORA: Não seria suficiente.
Irmã D: Para o teu desejo de ser mais. (HILST, 2008, p. 139-140).

Fica bastante clara a intenção de Hilda em trabalhar o distanciamento entre o rato e a Irmã H, anulando-o completamente através da acusação da Superiora (o rato é você). Tal processo de espelhamento com um animal tipicamente associado ao grotesco é o que permite uma imediata associação a este conceito, tão caro ao domínio estético. É inegável que a impressão de repulsa se confirma, inclusive, pelas imagens evocadas na discussão sobre o animal; as freiras falam de sangue, de vísceras, que são descritas com gestualidade horrorizada (na indicação dirigida às atrizes que porventura as interpretem), e, por mais que especulem um grau mínimo de identidade entre o rato e o humano, ou entre o rato e a Irmã H, não deixam de perpetuar desdobramentos do grotesco, em sua relação com o espaço cênico e seus próprios corpos. Como salienta Alcir Pécora, em nota introdutória ao volume do Teatro Completo de Hilst, é possível verificarmos que em toda extensão da peça O Rato no Muro, “a nota deslocada está basicamente na imagem baixa e repugnante do ‘rato’ para caracterizar o único ser que podia enxergar além dos limites do confinamento usual dos processos edificantes da educação social e cívica.” (PÉCORA, 2008, p. 10).

Se considerarmos as indicações de cenário, inicialmente registradas pela autora, onde se recomenda a posição imaginária do muro e que ele não seja enxergado sobre o palco, concluiremos que o próprio rato não deve ser visto durante uma encenação da peça. Isso confere ao animal uma dimensão marcadamente vinculada à linguagem, pois somente por ela vem a ganhar forma e influenciar o desenvolvimento dramático do enredo. É, inclusive, este tratamento específico do imaginário, o responsável por liberar o texto de Hilda dos limites de seu contexto criativo. Longe de negar o valor histórico na relação da peça com a situação política do Brasil, acreditamos que a narrativa de O Rato no Muro ultrapassa os domínios de sua forma em sintonia com um universo maior da obra hilstiana. A provocação de sua linguagem, no sentido da reflexão que opera sobre o que pode e o que não pode ser visto por olhos humanos, articula-se com toda uma projeção característica ao projeto de Hilda Hilst, sempre incomodada pela invisibilidade, pelo que não pode ser percebido dos homens, do mundo e de Deus. Em seu anseio de ‘dizer o indizível’, Hilda aprofunda a particular compreensão de uma ‘literatura do impossível’.

Poderiam ser lembradas aqui incontáveis direções entre os demais trabalhos da autora, já que praticamente toda sua obra dedica-se a uma reflexão do abjeto e mesmo abominável, inclusive dentro do que discute a respeito de Deus e do sagrado. É valiosa a constatação feita, em troca de correspondências, pelo amigo Virgílio Ferreira, escritor português que muito admirava o trabalho de Hilda; sobre ela, suas palavras observam que “te leem evidentemente depois de terem refletido que o homem também é homem no intestino grosso. [... tens a] preocupação de trazeres Deus até as fezes do homem, de envolveres o mais baixo na sublimação pelo mais alto.” (apud VASCONCELOS, 1977, p. 21). Em O Rato no Muro, processa-se um desvelamento do olhar, pela visão do rato, que alcança desde a mais funda interioridade do Sujeito a mais alta revelação de Deus.

Se num primeiro momento associamos o ‘sentimento de criatura’ como consequência deste estranho contato, agora nos espantamos ao perceber que, em Hilst, a própria compreensão do divino atravessa o ‘ponto de vista do rato’. Ora, em sua peça é o rato quem tudo vê, quem tudo pode contra a ordem estabelecida, quem se posiciona acima do nível do chão, da terra, e alcança uma perspectiva plena de toda a situação mundana. Rato, ainda, que não se materializa como recurso de teatro, mas que domina a cena através da imaginação e das sugestões trazidas pelo verbo. A tentação de concluir que Deus está no rato (ou que, consequentemente, Ele é o rato e, por decorrência, Ele é a Irmã H) nos é potencial, porque em outros de seus textos, Hilda pontua uma explícita fusão entre o divino e os animais, especialmente aqueles pertencentes às categorias mais baixas, como os apontados por Wolfgang Kaiser (2003) em sua teoria do grotesco.

Antes de prosseguirmos em outras conexões do Deus hilstiano, nos parece importante retomar com mais atenção algumas das considerações de Kaiser a respeito da transformação provocada pelo grotesco, profundamente relacionada ao que identificamos nas personagens de Hilst, transformadas pelo rato. O teórico alemão define:

O grotesco é uma estrutura. Poderíamos designar a sua natureza com uma expressão, que já se nos insinuou com bastante frequência: o grotesco é o mundo alheado (tornado estranho). [...] Para pertencer a ele, é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente, estranho e sinistro. Foi pois o nosso mundo que se transformou. O repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco. [...] O horror nos assalta, e com tanta força, porque é precisamente o nosso mundo cuja segurança se nos mostra como aparência. Concomitantemente, sentimos que não nos seria possível viver neste mundo transformado. No caso do grotesco não se trata de medo da morte, porém de angústia de viver. Faz parte da estrutura do grotesco que as categorias de nossa orientação no mundo falhem. (KAISER, 2003, p. 159, grifo do autor).

A despeito de toda a evolução que o grotesco enfrentou no correr da História da Arte, encontrando variações de uso e aplicação desde a Antiguidade, algo que sempre se manteve inalterado na apreensão de seus efeitos foi esta capacidade de provocar uma ordenação suspensa da realidade junto àqueles aos quais se manifesta. Todas as incidências do grotesco sobre a mente humana se configuram como deslocamentos de uma realidade prévia, desvios da expectativa racional. Seja pelo riso, pelo assombro, ou pela torção do Belo, eis uma categoria fundada na desorientação física do mundo e da maneira como este é percebido pelos sentidos. Daí sua relação com uma perspectiva moderna da estética, conscientemente incompleta e, por isso, sofrida, angustiada. Por mais que o grotesco aponte um domínio de totalidade, pois ele depende de um parâmetro oposto para se efetuar, há sempre um rompimento da subjetividade e da linguagem que o representa, no tratamento dado pelas artes.

Na obra de Hilst, não se trata apenas de eventos instáveis, de divagações conceituais sobre o caos e a crise da consciência; nela, o grotesco pode ser observado enquanto estrutura formal, enquanto modo de produção que deforma as ideias e temas abraçados, assim como suas textualidades. E, no sentido que nos importa, o grotesco também atua como agente de transformação das impressões que esta escritora guarda em sua constante evocação do divino. No exemplo de O Rato no Muro, constatamos um paradoxo de atração-repulsa, movido exatamente pela condição abissal das experiências vividas entre as personagens e o grotesco animal. Notamos um avanço no discurso grotesco, proporcionado pelo escopo mais abrangente das associações que a trajetória literária de Hilst reproduz a respeito de um Deus que não apenas se manifesta pelo grotesco, mas que é, em si mesmo, grotesco.

Com os Meus Olhos de Cão

Como somente o exemplo de O Rato no Muro não nos parece suficiente para iluminar esta identificação, também retomamos uma importante novela da escritora, publicada em 1986, e que foi imediatamente posterior ao lançamento de A Obscena Senhora D, um de seus livros mais célebres. Com os Meus Olhos de Cão 4 , narra os anseios de um matemático, chamado Amós Kéres, na travessia de sua busca existencial. Trata-se de uma jornada marcada pela dúvida, de sua profissão, seu casamento, das escolhas que o tornaram quem é. Após uma experiência epifânica, vivida no topo de uma colina, o professor tem sua linearidade rompida, seu raciocínio virado pelo avesso. Dois caminhos se revelam como possíveis respostas para a angústia, ambos pautados por um abandono completo de sua rotina e costumes: ir viver num bordel, ou junto com os bichos, no quintal.

Indo além das proposições de sua faceta teatral, Hilda Hilst acentua, no corpo em prosa de sua linguagem, a superfície do estranhamento grotesco que já apontamos. As intensidades vividas por Amós Kéres, a todo o momento, convergentes ao incômodo de Deus, ganham valor com a entrada em cena da porca hilde (mais uma vez o jogo com o nome próprio da autora), bicho que também fez parte do universo decaído de A Obscena Senhora D. Aqui, a porca confirma ser um elemento nuclear para a relação potente entre o humano e o divino. Se todo o texto já era marcado por uma profunda experimentação de linguagem, após o surgimento da porca, constatamos uma verticalização no interesse do rompimento narrativo. Nada pode ser mais significativo do que um fragmento deste vigoroso exercício:

Deus é mulher? Como tenho sugado o peito que não vejo. Continuo sozinho, leproso. A porca é Deus. Estirada também. Sonhando. hilde e seus olhinhos cor de alcachofra. Lista de costado e inocente. Alcachofra também tem tudo a ver com Deus. Esqueçam. Modelos de interpretação. O logos é isto: dor velhice-descaso dos mais vivos, mortos logo mais. [...] Mas dizem que o Alto é o nada e é preciso olhar os pés. E o cu também. Com um espelho. Estou olhando. Impossível esquecer grotesco e condição. Ai, eu quero a cara Daquele que vive dentro de Amós, o Imortal, o Luzir-Iridescente, O percebedor-Percebido. Vou dizer com precisão o que é o meu não compreender. Do significado majestoso. De cores. Dilatado. (HILST, 2006, p. 49, grifo nosso).

Fluxo que emerge como uma inquirição onírica ao realismo divino,este momento do texto é dos que mais fundo toca na associação antes feita entre o rato e Deus. Convertido em porca, o rato de Hilda agora se impõe como figura profética, imagem que antecipa a revelação da porca, visitante de vários livros da autora. Sem ninguém que agora a silencie, a voz narradora libera os seus questionamentos a um nível próximo do inconsciente, do incompreensível, exacerbando a linguagem e expandindo-a a fronteiras que beiram ultrapassar a racionalidade. Amós abre mão de enormes parágrafos e compilações de versos para compartilhar as incertezas que o dominam, sem ignorar a presença concreta do grotesco e o contato com ele travado, desprovido de planejamento. O desfecho do texto, encerrado em tom de enigma, não alivia o desconforto causado pelo verbo:

Grotesco me esparramo. Há sangue respingando as
paredes do círculo. Uma avalanche de cubos recobre
meus tecidos de carne. Estou vazio de bens. Pleno de
absurdo.
Levanta-me, Luminoso,
Até a opulência do teu ombro.
Com meus olhos de cão paro diante do mar. [...] Sinto
meu corpo de cão. [...] Há um latido na minha garganta,
um urro manso.
[...] Amós Kéres, 48 anos, matemático, não foi visto em
lugar algum. No caramanchão, a cadela olhava os ares,
farejando. A mãe encontrou a frase no papel: Deus?
uma Superfície de Gelo Ancorada no Riso. (HILST,
2006, p. 65-66, grifo nosso).

Chega a ser desconcertante a estagnação que acompanha a leitura destas últimas palavras. O súbito desaparecimento de Amós, longe de esclarecer os rumos de sua decisão, termina por intensificar o sentimento de nulidade que deriva da epifania. Vale ressaltar que esta identificação entre o Deus e a porca, assim como entre o homem e o cão, são variáveis diretamente nascidas de uma compreensão própria ao conceito desenvolvido por Kaiser. Fundir realidades corpóreas diversas, manipular os instintos e animalizar o racional são características típicas ao realismo-grotesco alemão.

Seja na Irmã H, seja em Amós Kéres, estamos diante de confrontos humanos aterradores, não apaziguados em sua condição existencial. São personagens que desdobram a realidade, insatisfeitas com a desarmonia de seus corpos e mentes, com o elo rompido entre criatura e criador. Nesse sentido, um diálogo junto às teorias de Bakhtin, agora se revela potencialmente iluminador, por conta do grau alcançado na relação homem x Deus, mais aprofundada. Uma leitura atravessada pela carnavalização, em meio a todo espanto e horror sofrido pelos personagens destas narrativas, encontra um terreno fértil de exploração aliada às perspectivas de Bakhtin, em seus estudos de Rabelais e Dostoievski. Hilda Hilst sempre deixou claro que sua via de acesso ao Deus não poderia ser outra além da heresia, da negação e desconstrução da fé5 . O tratamento de seu texto, ao diluir as distâncias entre o carnal e o espiritual, esfacela as dimensões dos abismos existenciais de seus personagens, pelo diverso cuidado que aplica nas configurações de sua linguagem. A partir de uma perspectiva bakhtiniana nuclear ao grotesco, esta reflexão prossegue: “O princípio essencial do realismo grotesco é a degradação, isto é, o rebaixamento de tudo que se concentra no alto, no plano espiritual, ideal, abstrato; passando ao material, para a esfera da terra e do corpo [...]” (BAKHTIN, 1979, p. 19).

O teórico avalia em outro momento de seu estudo que pensar o grotesco é pensar as partes mais esquecidas do corpo, sejam aquelas ligadas ao baixo ventre, sejam as que não vemos, por estarem dentro da carne. Como se o princípio da vida estivesse na baixeza, ele define um campo positivo de regeneração a partir de valores primeiramente destrutivos e, também, estabelece uma compreensão ambivalente do que pode/deve ou não ser enxergado por olhos humanos, questionando os ditames da percepção e da experiência vivida. São posições que aproximam os recortes trazidos nas obras de Hilst que aqui selecionamos, culminando um interesse pelo que podem os olhos, sejam os do rato, sejam os do cão, ambos fundidos na figura humana, em sua inclinação ao temor divino.

O Tremendum

Há um terror místico que assola as personagens aqui lembradas, apavoradas diante do estranhamento vivido contra seus corpos, no diálogo polifônico que perpetuam com vozes que podem ser associadas à sua fragmentária identidade, sua esfacelada consciência. Aniquilado o ordenamento racional dos caracteres de Hilst, acompanhamos, a partir daí, sua distorcida jornada em proximidade ao Deus, agora manifesto, ainda que mantido enquanto alteridade. São estas as experiências que nos conduzem ao primeiro dos estágios categorizado na estrutura teológica de Rudolf Otto, sob a forma do Mysterium Tremendum. Por isso, convém que nos debrucemos sob uma explanação mais criteriosa desta teoria.

Quando Otto publicou O Sagrado, no início do séc. XX, prosseguiu um enfrentamento que defendia desde suas primeiras reflexões. Na contracorrente de perspectivas regidas pela Teologia Liberal, iniciada no séc. XVIII, ele não se rendia ao que demonstrava ser um pensamento alemão dominante de seu tempo histórico. Questionou a inacessibilidade kantiana da esfera religiosa pela razão pura e o itinerário filosófico que, por fundamento, negava o fato religioso para o homem moderno (Schleiermacher); tudo isso, através de uma rígida e provocadora conceituação que reconfigurou o Sagrado – não exatamente sob uma proposição teológica, mas na direção de uma fenomenologia da religião –, trazendo-o de volta aos anseios humanos e tornando-o uma potência da Modernidade que agora se desenvolvia em um novo século6.

A dialética que desenvolve entre o racional e o irracional, como vertentes valorativas do numinoso, aprofunda uma compreensão de Deus que transcende o distanciamento cavado pelos liberais. Para Otto, o irracional não é o que se opõe à razão, mas o que vai além dela, daí ser possível identificar a faceta irracional de Deus como um domínio acessível pela ‘experiência pré-lógica’, atravessada pela religiosidade. Esta aproximação do homem em direção a Deus pode se dar tanto pelo aspecto fascinante da divindade (mysterium fascinans) como pelo que há de repelente (tremendum) na dimensão espiritual que alcança a carne e a percepção humana. É neste último sentido que nos apropriamos da aplicação feita por Hilda Hilst a partir do grotesco.

Mapeamos no imaginário da autora, alguns eventos que irrompem um ‘sentimento de criatura’ por parte de suas personagens: “o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura.” (OTTO, 2007, p. 41). Os animais grotescos das narrativas hilstianas, primeiramente sedimentaram o caminho para tal conscientização de linguagem, trabalhada por Otto como um conceito (Kreaturgefühl) que relê o ‘sentimento de dependência’ originado em Schleiermacher, mas o ultrapassa por definir a experiência com o numinoso não enquanto, unicamente, uma consciência de si, brotada no Eu; ao contrário, pois agora advinda do que está fora do sujeito, no mundo, a ser reconhecido por seus sentidos. Experiência pautada pelo sentimento, fenômeno que se equilibra entre o que não pode ser totalmente racionalizado, mas que se prova de maneira concreta, irrefutável. “Não se trata, pois, de mera emoção, de uma ‘agitação’ do coração ou de um contrair-se do pensamento, mas sobretudo de um ato que assume um valor cognitivo e revela a sua natureza de correlação com o objeto experimentado.” (RAZZOTTI, 2002, p. 156).

Como ressalta este comentador de Otto, na abordagem fenomenológica do Mysterium Tremendum, a percepção do objeto numinoso é mais evidente e relevante do que o seu próprio conteúdo — objeto que aqui associamos ao rato, ao cão e à porca de Hilst. Não há caminho alternativo para a aproximação de Deus, não se trata de um contato meramente intelectual. Ou se enfrenta o tremor da assoladora percepção de um Deus que é absoluto, ou se permanece no lugar comum da experiência mundana. Para Otto, o sentimento criatural não pode ser vivido em simultaneidade com qualquer outro sentimento do espírito humano; ele exige inteireza de corpo e mente para operar a indução e identificação do Sagrado. É um sentimento de aterrorização que se encontra desde as religiões mais primitivas até aquelas mais evoluídas, sendo que, nestas últimas, mais próximas de nosso tempo histórico, ele “continua sendo um arrepio místico, desencadeando como efeito colateral, na autopercepção, o sentimento de criatura, a sensação da própria nulidade, de submergir diante do formidável e arrepiante, objetivamente experimentado no ‘receio’.” (OTTO, 2007, p. 49).

É interessante observar a descrição deste autor para os efeitos causados nos seres que experimentam este temor místico, afetados psíquica e fisicamente, com frêmitos e arrepios, como nos mostram suas palavras:

Essa sensação pode ser uma suave maré a invadir nosso ânimo, num estado de espírito a pairar em profunda devoção meditativa. Pode passar para um estado d’alma a fluir continuamente, em duradouro frêmito, até se desvanecer, deixando a alma novamente no profano. Mas também pode eclodir do fundo da alma em surtos e convulsões. Pode induzir estranhas excitações, inebriamento, delírio, êxtase. Tem suas formas selvagens e demoníacas. Pode decair para horror e estremecimento como que diante de uma assombração. Tem suas manifestações e estágios preliminares selvagens e bárbaros. Assim como também tem sua evolução para o refinado, purificado e transfigurado. Pode vir a ser o estremecimento e emudecimento da criatura a se humilhar perante — bem, perante o quê? Perante o que está contido no inefável mistério acima de toda criatura. (OTTO, 2007, p. 44-45).

Como o próprio autor assume, trata-se de uma definição incerta e incompleta da experiência a que denomina Mysterium Tremendum; uma conceituação negativa para o que identifica enquanto caracterização positiva do medo ou do temor/terror. São descrições de um espírito e corpo que nos parecem muito próximas do que sofreram as protagonistas da literatura que analisamos, a despeito do nível de esgotamento verificado em cada uma, já que, como esclarece Otto, é uma experiência de vários estágios a se percorrer. Sua leitura desta positiva e avessa face de Deus abrange todo o domínio da religiosidade e de uma revelação que também pode se efetuar no cotidiano diário, envolvido pela surpresa e, consequentemente, ampliado no assombro original. Ele se importa em situar, metodicamente, o caráter sobrenatural emergente do que se percebe pelos sentidos naturais, ressaltando que o medo proveniente deste sentimento não é o mesmo do que se conhece por ‘medo comum’. Otto esclarece:

Não é do temor natural nem de um suposto e generalizado ‘medo do mundo’ (Weltangst) que a religião nasceu. Isso porque o assombro (das Grauen) não é medo comum, natural, mas já é a primeira excitação e pressentimento do misterioso, ainda que inicialmente na forma bruta do ‘inquietantemente misterioso’ (Unheimliches), uma primeira valoração segundo uma categoria fora dos âmbitos naturais costumeiros e que não desemboca no natural. (OTTO, 2007, p. 47).

A partir disso, a percepção fenomenológica da experiência religiosa se volta para um tipo muito particular de medo identificado em algumas passagens bíblicas, medo proveniente de uma manifestação divina que é recebida como assombrosa e aterrorizante, pelos escritos antigos. O Emât Jahveh, ou o Terror de Deus, incide sobre o ser humano com uma força paralisante, que transcende a causa psíquica e afeta a própria carnalidade do ser; ele tem uma conotação próxima do fantasmagórico, do espectral, e pode ser lido como uma face mais profunda do deîma panikón grego, um horror pelo que há de sinistro, de quase demoníaco na superfície do mundo. Retomando alguns fragmentos dos livros bíblicos de Moisés e Jó7 , Otto define sua categoria de Tremendum sem deixar de ressaltar o caráter positivo deste estremecimento, como um receio e inibição humanos que só se experimentam ante o que há de mais digno e nobre em Deus; “trata-se de um terror impregnado de um assombro que nenhuma criatura, nem a mais ameaçadora e poderosa, pode incutir.” (OTTO, 2007, p. 46).

Eis um terror que nos leva de volta aos bichos grotescos de Hilda Hilst. Entre ratos, cães e porcas, as personas retratadas em seus textos enfrentam notáveis experiências catalisadoras do sentimento tremendum, ampliando o escopo de significados metafísicos por elas levantados e justificando um tremor da própria linguagem, dentro das provocações gramaticais típicas à escritora. Com O Rato no Muro e Com os Meus Olhos de Cão, acompanhamos um processo completo de identificação literária ao que propõe a estrutura fenomenológica de Rudolf Otto, pois nestas obras a experiência do Sagrado é tensionada através da manifestação grotesca. Retomando a exposição já apresentada de Wolfgang Kaiser (2003), identificam-se no imaginário destes livros de Hilda Hilst, algumas das principais reações causadas pelo grotesco, consonantes ao que acompanha o sentimento religioso do Tremendum: efeitos de desfamiliarização, surpresa, alheamento e angústia.

Eis o tipo de horror que se localiza em praticamente qualquer personagem que busquemos em Hilst, pelo desbravamento de palavras que não se rendem ao que é esperado, lógico ou previamente evidenciado na carreira da autora. E como estamos, também, na companhia da Senhora D, podemos encontrar nela, mui facilmente, anseios específicos a respeito das palavras: “sabe, às vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?” (HILST, 2008, p. 50). Cristalizar o instante é o que incentiva a protagonista de Hilst, ela própria cristalizada numa vida sob a escada, a não desistir da busca por alguma compreensão que justifique sua atual condição de existir. Para esclarecer melhor a angústia da personagem e o decorrente contato com o numinoso provocado por esta insatisfação interior, cabe retomarmos um pouco do enredo que move A Obscena Senhora D: viúva, esta senhora sexagenária decide abandonar toda a rotina para viver no vão da escadaria principal de sua casa, dialogando com vozes e visões do absurdo, como a imaginação de um Menino-Porco; neste pequeno espaço, ela revive suas memórias mais intensas, do que gozou com o marido, do que seu corpo experimentou, das incertezas que sempre teve com relação a Deus, para assim decidir- -se pelo abandono das coisas comuns que regem o cotidiano (roupas, acessórios, relações sociais) e finalmente ser visitada por uma grande porca que reorganiza o sentido de sua vida.

Trata-se de uma escrita que exorciza todo o terror causado por sua condição de vida, pelas grotescas aparições que a cercam e pela culminante visita da porca, ao final do livro. Como já refletimos a presença deste mesmo bicho no trabalho exatamente posterior de Hilda (Com os Meus Olhos de Cão), é interessante observar a forma em que a manifestação da porca se comprova enquanto experiência catalisadora da percepção de Deus. Se na Senhora D o animal surge apenas no desfecho do texto, acentuando a irresolução narrativa da escrita hilstiana, nos Olhos de Cão a presença do bicho acompanha quase toda a trajetória de Amós Kéres, de maneira menos impactante, mas constante, como se fosse um ponto observador das ações que o protagonista faz ou deixa de fazer. Assim como verificou, a respeito do rato na peça teatral, Alcir Pécora comenta no relançamento desta novela o caráter peculiar de Hilda ante a exploração do grotesco e das condições mais baixas da humanidade: “No gênero baixo apenas resistem os indícios deixados por Deus num mundo de padrões de felicidade no qual nunca está.” (PÉCORA in HILST, 2006, p. 10). São a estes padrões que a Senhora D rejeita, como se pudesse, assim, chegar mais perto de Deus ou do sentido da vida. E como não poderia ser diferente, o abandono dos padrões sociais é diretamente refletido no esvaziamento dos padrões linguísticos.

CONCLUSÃO

Alguns desdobramentos nunca deixam de espelhar uma relação com aquilo que identificamos enquanto o Tremendum das personagens literárias em Hilda Hilst. A questão da linguagem, central aos seus escritos, aprofunda sua dimensão de ruptura por também encontrar um rompimento no cotidiano de suas personagens. Ao se enxergarem nos ratos, nos porcos, enfim, nos bichos invasores de seus habitats, estes passam a questionar o que há de substancial em suas vidas e, consequentemente, nas palavras que usam para se comunicar. A Senhora D vive este exato incômodo diante da porca, que passa a chamar de ‘Senhora P’, quando chega a sua casa, toda ferida e maltratada (aí um grotesco que já emerge sob nova consciência, afetado por condições externas ao próprio elemento animal que escolhe para se manifestar): “E me vem que só posso entender a senhora P, sendo-a. Me vem também, Senhor, que de um certo modo, não sei como, me vem que muito desejas ser Hillé, um atormentado ser humano. E SENTIR.” (HILST, 2008, p. 88).

Percebemos aí uma voz de Senhora D, em contraste ao que iluminamos em O Rato no Muro e Com os Meus Olhos de Cão, que já não se intimida em dirigir-se diretamente ao Deus. É natural que, comovidas e transformadas pela primeira aproximação do numinoso, estas personagens utilizem o temor como impulso para um contato mais completo com o que lhes é superior. Etapa em que o próprio grotesco se reorganiza para revelar-se como nova realidade, devidamente adaptada e agora passível de convivência, sem maiores sofrimentos. Isto, porque o sofrimento da experiência também se desloca, como vemos na definição do Mysterium Tremendum: “Esse sentimento específico precisamos tentar sugerir pela descrição de sentimentos afins correspondentes ou contrastantes, bem como mediante expressões simbólicas.” (OTTO, 2007, p. 44).

É pelo contraste de sentimentos contíguos que podemos observar a evolução do numinoso nas narrativas de Hilda Hilst que aqui evocamos. Estamos diante de representações ficcionais que problematizam todo um estatuto de relação humana com o sagrado, dentro de um domínio não restrito a tempo ou espaço exteriores ao texto, haja vista a aplicação universal amplamente reconhecida das inquietações nutridas por Hilda em sua carreira. Estas obras, na provocação que fazem do terror surgido de Deus, em outras palavras, do terror de ‘ser criatura’, atualizam uma perspectiva do Sagrado através do tratamento literário, abrigando um estranhamento que não fica restrito ao que se desdobra nos eventos narrados, mas que atinge a configuração primeira da escritura literária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Gabriel Arcanjo dos Santos. Deus, amor, morte e as atitudes líricas na poesia de Hilda Hilst. Manaus: Valer, 2012.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1979.

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.

CADERNOS de literatura brasileira: Hilda Hilst. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n.8, out. 1999.

DIAS, Juarez Guimarães. O fluxo metanarrativo de Hilda Hilst em Fluxo-floema. São Paulo: Annablume, 2010.

FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo, 2004.

HILST, Hilda. A Obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2008.

HILST, Hilda. Com os meus olhos de cão. 2. ed. São Paulo: Globo, 2006

HILST, Hilda. Teatro completo. São Paulo: Globo, 2008.

KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. O sagrado na poesia e na religião. In: FERRAZ, Salma (org.) Pólen do divino: textos de teologia e literatura. Blumenau: Edifurb; Florianópolis: Fapesc, 2011. p. 33-48.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Petrópolis: Vozes, 2007.

PÉCORA, Alcir (org.) Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010.

PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. In: HILST, Hilda. Teatro completo. São Paulo: Globo, 2008. p. 7-19.

RAZZOTTI, Bernardo. Rudolf Otto (1869-1973): a universalidade do religioso. In: PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (orgs.) Deus na filosofia do século XX. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 147-159.

VASCONCELOS, Ana Lúcia. Hilda Hilst: a poesia arrumada no caos. Folha de São Paulo. 19 set. 1977, p.21.

Notas

[1]Organizador das Obras Reunidas de Hilda Hilst, pela Editora Globo, responsável por reeditar toda a carreira literária da escritora, numa das recuperações mais impressionantes já vistas no mercado editorial brasileiro. Cada um dos 20 livros compilados dispõe de Bibliografias selecionadas sobre Hilda Hilst e Notas Introdutórias escritas por Pécora

[2]Pelo menos dois eixos de investigação identificados pelo professor Antonio Magalhães (2011), autor referencial aos estudos teopoéticos no Brasil, são considerados para o viés desta reflexão: o que investiga aspectos religiosos/bíblicos nas obras literárias, assim como o que aborda a presença teológica na matriz literária por meio de teorias da intertextualidade.

[3]Utilizaremos como fonte, para as citações, o volume do Teatro Completo (2008, p. 99-141), compilação que extinguiu o caráter inédito das oito peças teatrais escritas por Hilda Hilst; já que, desde sua criação, entre 1967 e 1968, apenas uma (O Verdugo) havia sido publicada.

[4] Esta novela sempre foi publicada em volumes com outros textos, por Hilda Hilst, talvez por sua brevidade, talvez pela relação direta com outros de seus trabalhos. Alcir Pécora, ao organizar as Obras Reunidas, decidiu isolar a obra numa publicação única, ressaltando-a como chave de leitura que se opõe ao caráter ‘separador de águas’ outrora definido entre os períodos ‘sérios-pornográficos’ da escritora.

[5]Quando entrevistada por Jorge Coli, Hilda declarou: “A minha literatura fala basicamente desse inefável, o tempo todo. Mesmo na pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus.” (Cadernos de Literatura Brasileira, 1999, p. 30).

[6]“Sagrado, em Otto, é usado em contraposição a profano. É sinônimo de divino e especifica a sua transcendência apreensível apenas à luz da realidade experimental e, por isso, é um conhecimento negativo do que se acha além do limite da criatura. A perturbação toma conta do espírito humano diante da profundidade do divino; donde a manifestação do divino como o misterioso.” (RAZZOTTI, 2002, p. 150).

[7]“Mandarei à tua frente um Terror de Deus, transtornando todos os povos aonde entrares.” Êxodo 23:27; “Tire ele a sua vara de cima de mim, e não me amedronte o seu Terror [...] Alivia a tua mão de sobre mim, e não me espante o teu Terror.” Jó 9:34 e 13:21.