Frederico da Cruz Vieira*
Ângela Cristina Salgueiro Marques**
*Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: frederico.vieira.souza@gmail.com
**Profa. Doutora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: angelasalgueiro@gmail.com
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Resumo:
O pensamento de Levinas poderia nos conduzir a uma leitura ética de textos literários? De que forma conceitos como os de Rosto, Testemunho, Substituição, podem nos guiar na aproximação da escrita autoral, de um outro que relata, narra? No presente artigo nos aproximamos dos rostos femininos de Scholastique Mukasonga para arriscarmos, a partir da perspectiva levinasiana, um exercício de leitura ética de alguns de seus textos: Baratas (2006); A mulher dos pés descalços (2008) e Nossa Senhora do Nilo (2012). As três obras podem ser compreendidas com um ciclo testemunhal da autora, abordando questões correlatas a Ruanda e ao genocídio tutsi de 1994. Abordamos também algumas especificidades: relativas ao feminino, seus rostos manifestos na escrita (ditos) e nas vozes por ela reveladas (dizer), travando um diálogo entre as palavras de Scholastique, de Levinas e dos comentadores desse; a respeito do atravessamento da morte e do luto nas obras como as de Mukasonga, que narram situações violentas, por vezes inomináveis, limítrofes entre o sofrimento e o horror; e finalmente, sobre o fazer face a tudo isso, o que é em grande medida propiciado pela escrita (im)possível, tão urgente quanto necessária aos tempos presentes.
Palavras chave: Rosto; Substituição; Escrita sobrevivente; Testemunho; Scholastique Mukasonga
Abstract
Could Levinas’ thought lead us to an ethical reading of literary texts? How can concepts such as Face, Testimony, Substitution, guide us in approaching authorial writing of another that reports, narrates? In this article, we approach the female faces of Scholastique Mukasonga to try, with the Levinasian perspective, an exercise of ethical reading about some his texts: Cockroaches (2006); The Barefoot Woman (2008) and Our Lady of the Nile (2012). The three works can be understood with a testimonial cycle by the author, addressing issues related to Rwanda and the 1994 Tutsi genocide. We also approach some specificities: about the female, their faces manifested in writing (the sayings) and in the voices revealed by her (the say), engaging in a dialogue between the words of Scholastique, Levinas and commentators of him; about the crossing of death and mourning in works such as those of Mukasonga, which narrate violent situations, sometimes unnameable, bordering on suffering and horror; and finally, on dealing with all of this, which is largely provided by the (im)possible writing, as urgent as necessary in the present times.
Keywords: Face; Replacement; Surviving writing; Testimony; Scholastique Mukasonga
Scholastique Mukasonga, escritora franco-ruandesa nascida em 1959, sobreviveu às perseguições e ao genocídio tutsi perpetrado pela maioria de hutus, em Ruanda, entre as décadas de 70 e 90. Imagens narrativas presentes em suas obras possibilitam elaborar o trauma causado por situações de extrema violência, intoreláveis, irrepresentáveis entre o sofrimento e o horror. Sua escrita egendra um processo de enfrentamento, de lidar com a dor, com a perda, com a angústia e com acontecimentos muitas vezes inenarráveis e irrepresentáveis. O que fazer com a dor? Esquecê-la? Ou escutar por meio dela a reverberação do apelo de vidas expostas ao padecimento? A reflexão a ser desenvolvida nos permite aproximar o lento trabalho de tematização e tratamento do trauma à escuta do rosto lévinasiano. O trabalho de escuta e acolhimento do rosto é um dos eixos que estrutura a obra de Scholastique Mukasonga, que nos convida a um exercício de leitura ética de alguns de seus textos.
Consideramos trechos do conjunto de três obras traduzidas para o português nos últimos anos, quais sejam: Baratas (2006); A mulher dos pés descalços (2008) e Nossa Senhora do Nilo (2012). Todos os livros, de algum modo, abordam questões correlatas a Ruanda e ao genocídio tutsi de 1994 1. Naquele ano, em apenas cem dias, cerca de 800 mil pessoas foram mortas no país por extremistas étnicos hutus.
Entre muitas estratégias de extermínio, os extremistas hutus tinham estações de rádio e jornais que transmitiam propaganda de ódio, exortando as pessoas a eliminar as inyenzis (baratas), o que significava matar os tutsis; os nomes das pessoas a serem mortas foram lidos na rádio. Uma das particularidades do genocídio ruandês é que foi cometido entre ruandeses e pelos ruandeses. Mesmo dentro de uma mesma família, os tutsis não eram mais chamados de seres humanos; eram como insetos a se erradicar. Até os dias de hoje desdobramentos da dessa guerra se fazem sentir na geopolítica da região.
A escritora Scholastique Mukasonga nasceu no sudoeste de Ruanda, em 1959, quando surgiram as primeiras estratégias de eliminação da etnia tutsi. Em 1960, sua família foi deportada, juntamente com muitos outros tutsis, para Nyamata, em Bugesera, região de mata do país, extremamente inóspita à época. Mukasonga conseguiu sobreviver apesar das repetidas perseguições e massacres. Enfrentando inúmeras dificuldades, a autora estudou no Lycée N-D de Citeaux em Kigali e depois cursou assistência social em Butare. Em 1973, estudantes tutsis foram expulsos de escolas e funcionários de seus postos, forçando a autora a se exilar no Burundi para escapar da morte. Completou seus estudos naquele país e depois passou a trabalhar para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Chegou à França em 1992; dois anos depois, 37 membros de sua família foram assassinados durante o genocídio dos tutsis.
Mukasonga levou dez anos para ter coragem de retornar a Ruanda, em 2004. Depois da estadia em sua terra natal, escreveu seu primeiro livro, uma autobiografia, Inyenzis ou Baratas, de 2006. A mulher dos pés descalços o sucedeu em 2008. Já o romance Nossa Senhora do Nilo ganhou o prêmio Ahmadou-Kourouma em Genebra; o prêmio Oceans France Ô e o prêmio Renaudot, em 2012. 2
As três obras podem ser compreendidas com um ciclo testemunhal da autora. No primeiro livro, Baratas, de caráter autobiográfico, encontram-se associadas memórias individuais e coletivas dos tutsis, em que habitam as catástrofes advindas do genocídio de um passado recente. A escrita da autora vai delineando um longo processo de aniquilamento das mulheres e familiares, conferindo rostos àquilo que não podemos, em princípio, fazer face a, encarar, ao horror.
Desde as pequenas humilhações cotidianas, passando pelo medo imposto pela política segregacionista da época, as palavras de Mukasonga relatam as condições padecidas pela população tutsi, vista pela maioria hutu como não humana; igualada ao lugar de animal a ser destruído. Em Baratas, a escritora sobrevive por meio das palavras que se equilibram precariamente entre a necessidade de se preservar os vestígios de um passado ruandês, hoje em ruínas; e a promessa implícita de se conservar a história familiar e dos terceiros, aqueles outros dos outros, comunidade da qual fizera parte e fora testemunha.
Já no romance A mulher de pés descalços, a escritora faz ouvir a voz da dor e da perda de sua mãe Stefania, cuja memória feminina é reverenciada. Na palavras de Mukasonga “optei por fazer um retrato de minha mãe para falar de todas as mães que foram confrontadas com o extermínio de seus filhos” 3. Em Nossa Senhora do Nilo, encontramos um romance cujas mulheres também surgem como protagonistas de suas histórias; meninas jovens, entre 17 e 18 anos, personagens inspiradas naquelas que compartilharam dolorosas experiências vividas pela autora no Liceu Nossa Senhora de Citeaux; que padeceram situações de discriminação e ódio cotidianos. Ainda nessa obra, quando os líderes do poder hutu tomam conta do Colégio, o universo fechado em que têm de viver as alunas torna-se o teatro de lutas políticas e de incitações ao crime racial. Os conflitos são um prelúdio ao massacre ruandês que aconteceria nos anos 90.
Gloriosa [aluna hutu do Liceu] declarou que não queria mais abrir a boca diante das inyenzis. A partir de então, as tutsis deveriam comer depois das verdadeiras ruandesas que cuidariam para deixar uma cota de comida que ainda era concedida às parasitas que estudavam ali. Todas as outras colegas de mesa seguiram seu exemplo. Gloriosa decretou também que ninguém mais deveria se dirigir às tutsi-inyenzi e que era preciso impedir que elas se comunicassem entre si. As verdadeiras militantes passariam a ficar de olho nelas e relatariam à Gloriosa todos os fatos e gestos que lhe parecessem suspeitos (MUKASONGA, 2017, p.241).
As dimensões ficcional e autobiográfica presentes nos romances de Mukasonga lançam o leitor a uma reflexão: como indivíduos como pais e mãe, colegas de escola, amigos de infância passam a colaborar, em curto espaço de tempo, com um massacre do outro?; passam a empunhar facões, lanças, ferramentas de trabalho como enxadas para matar crianças, mulheres e homens tutsis?
As obras escritas por essa mulher ruandesa sobrevivente, cujas memórias, afetos e dramas estão ligados a situações inomináveis, criam limiares entre o sofrimento, o horror e a esperança. Nas entrelinhas dos ditos femininos de Mukassonga seria possível perceber uma escuta hospitaleira e um dizer que faz face ao horror.
As dimensões ficcional e autobiográfica presentes nas obras de Mukasonga narram memórias, vidas, afetos e dramas ligados a situações inomináveis. Nas entrelinhas dos ditos femininos em suas obras é possível ouvir os clamores das vítimas cujos rostos nos escapam de imediato. Palavras e imagens que, de algum modo, tornam possível um dizer feminino que faz face ao horror. A nosso ver, as narrativas de Mukasonga abrem intervalos contemplativos em uma forma de narrar e organizar a história dos oprimidos que tende a reafirmar a “potência da interrupção” (Rancière, 2019, p.79). Tal potência reorganiza o tecido do qual é feito o comum, nos aproximando daqueles estrangeiros que padeceram em massacres, ofertando a chance de nos conectarmos e, assim, de responder aos outros que nomeiam, no aparecer de seus rostos, a injustiça do apagamento.
A conexão da escritura do trauma com a experiência estética se desenha a partir do momento em que Mukasonga aceita o desafio de produzir imagens literárias a partir de vestígios, não para mostrar outra face da guerra, mas para revelar o que a guerra fez às imagens, ao imaginário coletivo, transformando, pela arte, a destruição em uma questão de destituição, mas, ao mesmo tempo, em um intervalo pelo qual escapa, aparece e vibra o testemunho dos sobreviventes que, no lusco-fusco de sua evidência, “transformam a paisagem do sensível, modificando o território do pensável e do possível” (RANCIÈRE, 2019, p.86).
Um trauma causa uma interrupção brutal em nossa experiência do mundo e da vivência com os outros: nos lança para fora de nós mesmos e nos exige um esforço imenso de reordenação, de reorientação de nossos planos e possibilidades. Viver um trauma, ser afetado, levar uma grande rasteira ou ser golpeado em cheio nos destitui do pretenso poder que achamos ter sobre um roteiro imaginado que nos dá a impressão de contrôle sobre nossas vidas. Choques traumáticos geralmente são difíceis, quase impossíveis de serem nomeados, narrados, partilhados.
Contudo, é preciso narrar o trauma: encontrar palavras, imagens, sintaxes para gritá-lo e fazê-lo gritar para os outros. Como argumenta Márcio Selligman-Silva (2010), a sobrevivência daqueles que são marcados por um trauma depende fortemente de sua capacidade de dizê-lo, de traduzi-lo em imagens ou palavras, por mais árdua que essa tarefa possa parecer. Para esse autor, o trauma está ligado à emoção associada ao intolerável sofrimento. A memória machucada, traumática reflete a dor que atesta a realidade do acontecimento. O traumatismo, por sua vez, está associado à produção de uma memória coletiva de acontecimentos intoleráveis. Assim, o trauma, quando acessa a dor e a conecta a um coletivo, produz um o acontecimento potente, o traumatismo. E é o traumatismo que pode possibilitar recursos contra a vitimização ao tornar a vítima protagonista de seus discursos. A experiência do traumatismo depende de como instauramos passagens entre o vivido e o narrado de como preservamos temporalidades distintas no relato sem que uma prevaleça sobre a outra. Ser capaz de narrar a própria dor é não só uma dimensão essencial da autonomia dos sujeitos, mas também uma potente capacidade de transformar vulnerabilidade em resistência, de reconhecer na fraqueza a chance de uma novas conexões e articulações com a vida e com os outros.
Um milhão de vítimas perderam a vida e o nome. De que serve contar e recontar nossos mortos; das mil colinas de Ruanda, um milhão de sombras respondem à minha chamada. [...] Os assassinos quiseram apagar até suas lembranças, mas no caderno escolar que nunca me deixa, registro seus nomes, e não tenho pelos meus e por todos aqueles que pereceram em Nyamata, nada além deste túmulo de papel. (MUKASONGA, 2018, p.134 e 182).
De um lado, a elaboração do trauma via testemunho revela a dialética relação entre a impossibilidade de representar a dor e a busca incessante pela forma possível de representá-la. O que importa no testemunho é menos a precisão da narração dos fatos traumáticos e mais a revelação do quão difícil é compreendê-los, produzir sentido acerca deles e, de alguma forma, evitar que tornem a acontecer. Por isso, esmiuçar a complexidade do trauma via produção de um testemunho, de um relato que carrega a cicatriz subjetiva de quem recebeu um “choque”, um “golpe”, é uma atividade e um exercício que não deve ser só de um sujeito, mas de toda uma comunidade articulada. Desta forma, o trauma que evolve o sofrimento violento se transforma, com o testemunho, em um traumatismo experienciado coletivamente, fazendo emergir um Dizer que conecta através da dor.
Ser um sobrevivente, como nos mostra Skolastique Mukasonga, significa ser capaz de resgatar o que existiu de mais terrível no genocício dos tutsis, para apresentá-lo ao mundo. Essa elaboração não é rápida, muito pelo contrário: requer muitas vezes anos de introspecção, silêncio, dúvidas e temores. É preciso encontrar as palavras que aceitem a dor sem se romper, sem torná-la insignificante demais ou monstruosa demais, recusando qualquer tipo de aceitação resignada.
Eu não estava entre os meus quando foram cortados a facão. Como é que pude continuar vivendo nos dias da morte deles? Sobreviver! Na verdade, essa era a missão que nossos pais tinha confiado a mim e a André. Devíamos sobreviver, e no momento eu sabia o que significava essa dor. Era um peso enorme que recaía sobre os meus ombros, um peso muito real, que me impedia de subir a escadinha que levava à sala de aula, me fazia parar em frente à porta do apartamento, incapaz de abri-la e entrar. Tinha a meu cargo a memória de todos esses mortos.Eles me acompanhariam até a minha própria morte (MUKASONGA, 2018, p.132).
O sobrevivente instaura sua capacidade de agir sobre si e sobre os outros, permitindo que o trauma instaure uma memória coletiva, um gesto laboral conjunto de nomear, tratar e construir sentidos para algo a princípio inominável. Nesse gesto, a escritura é um potente meio para a concretização do trabalho sobre o trauma. Um testemunho, para além da coragem de dizer a verdade, nos desafia a criar imagens, metáforas, espectros, convocações, dizeres que interpelam o já dito e requerem uma interrupção brusca dos dispositivos e arranjos que perpetuam a violência. Um testemunho, nesse sentido, é uma performance que, em vez de reafirmar o esperado, desvia-se, desnaturaliza registros tidos como oficiais, verdades inquestionáveis, abre outras passagens de reconexão com os outros.
Uma questão política que se entrelaça com uma questão ética, que diz da responsabilidade do enunciador, daquele que testemunha, diante da dor do outro. O exercício da escritura implica relatar, descrever, apropriar-se de uma experiência por uma linguagem que nem sempre coincide com aquela do relato. Assim, o relato implica perda. O problema, então, não é a escrita em si, mas como manejá-la. Não é transpor o inenarrável para um texto, mas criá-lo mesmo no gesto da escrita.
A escritura não é só a transposição em palavras da experiência vivenciada quando ela chega ao fim. Ela está no coração do percurso do sobrevivente, persegue-o e constitui o seu trabalho parte por parte. Trata-se menos de dizer a verdade, muitas vezes e mais de construir um questionamento, de manter acesa a inquietação, a indignação que impulsiona para frente, que nutre um sobrevivente que duvida, caminha, reconta, revive, transforma. Escrever nos torna responsáveis: criar um mundo no qual vivemos e que possa ser habitado, mas que altere a norma que define os mecanismos de legibilidade, apreensão e reconhecimento do outro e de suas dores.
As mães tremiam de angústia ao trazer ao mundo um filho que se tornaria um inyenzi, que seria passível de humilhação, perseguição, de ser impunemente assassinado. Estávamos cansados e, às vezes, nos deixávamos entregar ao desejo de morrer. Sim, estávamos prontos para aceitar a morte, mas não aquela que nos foi dada. Éramos inyenzis, bastava pisar em nós como se fazia com baratas, de uma vez. Mas eles tinham prazer em nossa agonia. Ela era prolongada por suplícios insuportáveis, por prazer (MUKASONGA, 2018, p.133).
Em alguma medida a escritura sobrevivente de Mukasinga dialoga com os relatos de Emmanuel Lévinas, seja a de natureza filosófica ou literária4 . E ao aproximá-los, identificamos relevantes aspectos que nos auxiliam a melhor compreender como a condição humana, tão banalizada pelo horror, também pode sobrevir e sobreviver pelas palavras; responder a demanda ética dos rostos daqueles que foram violentamente eliminados, mas que permanecem a dizer por entre as palavras daquele que relata, escreve e sobrevive. Conforme Mukasonga (2017), em épocas diferentes, em contextos diferentes, mas, infelizmente o fundamento é o mesmo: “a recusa do outro, a diabolização do ser humano. Uma animalização para transformá-lo em algo, para exterminá-lo mais facilmente, sem remorso (...) É aí que existem semelhanças. É realmente uma ideologia de extermínio e erradicação.” Em suma, os genocídios tutsi, judeu, cigano, indígena, das vidas escravizadas, dos homossexuais, das minorias, e tantos outros, são dramas extremos e irmãos. Se pensarmos acerca da lógica de que cada estrangeiro é um inimigo (LEVI, 1988), a aproximação entre o nazismo da Segunda Guerra, seus campos de extermínio e o genocídio de Ruanda poderia nos oferecer pistas de como diante da impossibilidade de nomear o horror, os sobreviventes podem fazê-lo de outro modo.
Assim como Mukasonga, Levinas experimentou a face anônima do horror. O filósofo (2004) relata que, durante o período em que se encontrava prisioneiro no campo nazista para judeus da Guarda Francesa, não se tinha nada além de uma “quase-humanidade”, posto que os condenados sem julgamento sofriam, entre tantas torturas, a pena da denegação do rosto perpetrada pelos nazistas. A experiência influenciou sua obra, sobretudo ao conferir à Ética o lugar da Filosofia primeira; um pensar outramente a alteridade, ocupando-se da evasão de si em direção ao outro.
Um dos conceitos caros à filosofia de Levinas (2011) é o de testemunho que é, para ele, revelado na subjetividade que sofre a perseguição e o martírio que não permitem que esconda sua face. O testemunho ético levinasiano se dá como voz dirigida ao Infinito, palavra-conceito que acolhe a multiplicidade dos rostos singulares. Esse rosto-voz se apresenta e se ergue diante de nós fazendo coro a uma miríade de sofrimentos irmanados. Como afirma Walter Benjamin (1940), em sua segunda tese em Sobre o conceito de história, “não existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram?” (p. 223). Em De outro modo que ser, o tardio e sobrevivente Levinas (2011) também pensará o Dizer e o Dito, e os discursos neles e entre eles forjados; a noção de Linguagem a partir da proximidade sensível, destacada da sensibilidade subordinada ao entendimento e à intuição; a questão da vulnerabilidade como uma condição an-áquica dos seres, situando- -os a priori fora da representação. Assim, além do conceito de Rosto, há esses outros dois conceitos-chave para a compreensão dessa noção de testemunho. O Dito, pertencente à ordem do enunciado, da tematização, do que se faz forma e que se apresenta, não diz o Dizer. Esse é, por sua vez, da ordem do impossível, do incomunicável, daquilo que o Dito não pode, na forma e contexto, conter. O Dito trai o dizer, mas o Dizer não se trai no Dito, o atravessa. Um remete ao outro, todavia o Dizer não se esgota no Dito. Assim, ao mesmo tempo em que o Dito pertence à ontologia e ao conhecer, também significa pelo Dizer que lhe escapa, mas que nele imprime vestígio, rastro, passagem.
Lê-se além das entrelinhas o que se diz; isso significa dizer, redizer e (des)dizer o que é dito. O Dito é habitado por uma tensão que é capaz de subvertê-lo, interpondo ao tempo linear e redutível uma diacronia que nasce perante outrem, uma vez que o tempo, para Lévinas, é inaugurado no encontro com o outro. Daí advém que a escuta do Rosto prediz o dito, concede por substituição voz ao dizer que segue entrelaçado e entrelaçando-se ao dito, posto que a noção de testemunho está presente na subjetividade manifesta pelo que é absolutamente outro, em suas infinitas formas de vida.
Na produção estética, ficcional (ou não) do sobrevivente, por exemplo, o que se diz vai a abrir-se diante da impossibilidade do dizer tamanha dor; e nesses impossíveis rostos das vítimas, que já não podem se fazer ouvir, e que tampouco se fazerem capturar, é a palavra, a imagem, a forma expressiva que permite àquele que escreve, modela, pinta, tece, enfim, aqueles que falam revelam-se nos rostos que vem testemunhar e sobreviver, ainda que os seus ditos sejam reconhecidamente lacunares, um tanto precários perante o horror inominável. Há cenas de extrema crueldade nos relatos de Mukasonga, cenas que nos fazem pensar acerca de como “vidas enlutáveis” (BUTLER, 2004) são aquelas que devem ser preservadas, ao contrário daquelas que vão ser deixadas à morte, dividindo humanos e não humanos (aqueles que não têm direito ao luto, ao cuidado, à proteção):
[O padre Herménégilde, um dos responsáveis pelo Liceu Nôtre Dame de Citeaux, orienta militantes hutus da seguinte maneira:] “Vocês podem caçar as tutsis do liceu, mas não precisam sujar as mãos. Peguem algumas e lhes deem umas boas pauladas, isso vai bastar para acabar com o gosto pelo estudo. Elas perecerão nas montanhas, de frio, de fome, devoradas por cachorros abandonados e animais selvagens, e as que sobreviverem e conseguirem passar a fronteira, serão obrigadas a vender seus corpos, dos quais sentem tanto orgulho, pelo preço de um tomate no mercado. A vergonha é pior do que a morte. Vamos deixá-las ao julgamento de Deus” (MUKASONGA, 2017, p.253)
Ao comentar o pensamento de Levinas, Sebbah (2018) afirma que, graças às experiências de derrocada, hoje sabemos que a reconciliação com a vida que segue não pode ser escamoteada; o sentido vem cedo ou tarde, vem desde além, e a verdade do ser humano não pode escapar à lucidez de tal experiência destrutiva. Ainda de acordo com o autor, a sobrevivência, todavia, não se refere ao oposto desse sujeito cativo, nem da vida à morte; tampouco aquela sobrevida que se manifesta como gozo de quem, a despeito dos outros, será o último a morrer.
A ética do sobrevivente, em Levinas, não é piedosa: trata-se da morte do outro e do padecer perante ela. O outro vai agonizar, vai morrer e eu não posso salvá-lo; mas posso, no exercício do desinteressamento mais radical, sobreviver e dar testemunho de sua morte por meio do gesto, no qual me exponho refém de seu sofrimento, perante sua dor. Ética compassiva, mas impiedosa, posto que não posso “ajudar” o outro a (não) morrer, não há como se evitar o padecimento (SEBBAH, 2018).
Levinas assim recupera o sentido dessa palavra compaixão; amor como puro desinteressamento – revela-se aí um sujeito de outra forma que não uma crispação sobre si mesmo, mas de uma oferta violenta. Não há heroísmo pelo sacrifício; ao contrário, a compaixão levinasiana remete a uma substituição que difere e que rompe com a vida nua; nudez de outra ordem. Sebbah (2018) conclui que é pela condição de refém que pode acontecer no mundo a compaixão no sentido levinasiano. Mais uma vez: não se trata de se colocar no lugar do outro; na substituição, eu não me coloco, eu me exponho refém. Nós ficamos sujeitos a esse entre duas beiras extremas, a do cativo e a do sobrevivente, que se negociam nas grandes e pequenas lutas.
O gesto da escrita feminina de Mukasonga percorre essa difícil via de mão dupla, na qual as condições de cativa e de vítima sobrevivente se embrenham visceralmente ao útero materno de Stefania, sua mãe que fora morta durante o genocídio ruandês, juntamente com outros familiares da autora. Em A mulher dos pés descalços, por exemplo, Mukasonga relata que ao voltar de um dia duro de trabalho do campo, sua mãe pedia às filhas: “quando vocês me virem morta, cubram o meu corpo com um pano. Ninguém deve ver o corpo de uma mãe”. O pedido de sua mãe tornou-se impossível, uma vez que, das cinco filhas, a autora foi a única que sobreviveu, pois já vivia na França em 1994. Refém na tarefa irrealizável de acolher e envolver o corpo de outrem – uma mulher de quem o próprio corpo se originou – mas que agonizou à distância, que morreu e que não se pôde salvar.
Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-lo. Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado por facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se com a carne dela. Os pobres restos de minha mãe se perderam na pestilência da vala comum do genocídio, e talvez hoje, mas isso não saberia dizer, eles sejam, na confusão de um ossuário, apenas osso sobre osso e crânio sobre crânio. (MUKASONGA, 2017, p. 6)
As palavras de uma escrita sobrevivente teriam permitiriam como se uma reparação para a despedida irrealizada; cumprir em certa medida, mas não na medida certa, o dever que todo ser humano deve e pode: viver o luto de outrem. Segundo Butler (2004),o luto pode ser tomado como luta: resistir contra a violência, a barbárie e o esquecimento por meio da construção precária de uma memória ética, de uma experimentação coletiva da dor. Ao mesmo tempo, o luto não é uma situação solitária, privatizada, mas fornece um senso de comunidade política de uma ordem complexa, traz à tona os vínculos relacionais que possuem implicações para teorizarmos a dependência fundamental e a responsabilidade ética.
O rito fúnebre não foi cumprido para Stefania. A mortalha, palavra que se encarna no corpo presente, o qual hospeda a maternidade e que vela filialmente pelo eloquente silêncio da vítima fatal, silêncio a ser escutado. Assim, o (im)possível gesto de cobrir o corpo, faz fazer os ditos do luto, corpo que escreve. E a autora sobrevivente também dá passagem, no entrelaçar dos fios dessa mortalha, aos dizeres tutsis de seus antepassados, dos terceiros, das vítimas do genocídio ruandês. Se em Baratas esse testemunho ganha contornos de relato encarnado, narrado pelos olhos da autora; em A mulher dos pés descalços o redizer da vida de sua mãe recupera um avizinhamento dessa outra mulher. Nas palavras de Mukasonga, revela-se o corajoso Rosto sobrevivente de Stefania, aquele que nos hospeda e que hospeda tantas mulheres diante do inominável, prosseguindo em sua coragem, sabedoria ancestral e força guardiã de muitas vidas.
Stefania, Marie-Thérèse, audenciana, Theodosia, Anasthasia, Speciosa, Leôncia, Pétronille, Priscilla e varias outras eran as Mães boas, as Mães amorosas, as que alimentavam, protegiam, aconselhavam, consolavam, as guardiãs da vida, que foram mortas por assassinos que quiseram, com isso, erradicar a própria origem da vida. (MUKASONGA, 2017, p.136).
A Stefania de Mukasonga corporifica como linguagem o testemunho do porvir dessas mulheres ruandeses em que o feminino faz morada, profetiza e, na condição messiânica benjaminiana, “salva” em grande medida a vida da comunidade.
A escrita feminina e do feminino em Mukasonga parece-nos inscrever aquém e além do testemunho, o acolhimento em substituição das infinitas vozes das mulheres emudecidas de seu tempo; e, mais amplamente, escrever como se dizer das alteridades que as palavras são capazes de albergar, incluindo-se aí dor e morte. Dizer que torna possível a dignidade de uma outra (sobre)vida. Sob esse aspecto, é possível construir uma aproximação entre essa escrita-abrigo e o feminino-acolhimento em Lévinas.
O feminino é pensado por Levinas a partir da proximidade e da substituição na relação hospitaleira com o outro, o que fundamentaria o que se entende como a responsabilidade ética, a qual emerge inclusive nos contextos em que a hospitalidade está fortemente ameaçada. Assim, a proximidade não se confunde somente com uma vizinhança espacial, mas como responsabilidade que nos antecede, como outrem. O feminino levinasiano ganha forma como gesto ético de sair de si, ou seja, representa a ação de um sujeito que sai da segurança em de sua morada e inicia, no encontro com a alteridade radical, uma expatriação de si mesmo; um tipo de expulsão que o conduz do Dito ao Dizer. Feminino não como a mulher empírica - embora não possa absolutamente apartado-lo dela. Trata-se, em suma, do gesto de acolhimento e de hospitalidade que atinge uma radicalidade essencial profunda e “meta-empírica que leva em conta a diferença sexual numa ética emancipada da ontologia” (LEVINAS, 1995, p. 60).
O pensador afirma, em Totalidade e Infinito (1980, p.140), que a “ausência empírica do ser humano de sexo feminino em uma morada em nada altera a dimensão de feminidade que nela permanece aberta, como o próprio acolhimento da morada”. O feminino, nessa perspectiva, se associa ao processo de avizinhamento e proximidade do outro, de acolhimento de sua demanda e de construção de uma responsabilidade ética que desenha não só uma possibilidade de relação com outrem, mas de individuação de si. Nesse espaço do já familiar, da morada e da habitação, localiza-se a figura da mulher que é mãe, que cuida, acolhe, abraça e provê a segurança emocional e física. A mulher, aqui apresentada como condição da interioridade da casa e da habitação, é também associada à mãe, àquela que, em gesto de renúncia e despossessão, oferece sua atenção ao outro, obliterando-se no silêncio.
Segundo Menezes (2008), “o encontro com o feminino provoca um desfalecimento do eu heróico e viril que busca incessantemente se impor diante do mundo e dos outros, para desse modo se manter o mesmo” (p.32). Diz-se pois, da ruptura do isolamento do eu para, em uma relação erótica com o outro, tornar possível a emergência da vulnerabilidade que desestabiliza, desorganiza e abre espaços de contato hospitaleiro. É nesse movimento que um sujeito, mulher ou não, pode ter a chance de ser fecundo, de sair de sua solidão para, no encontro com o outro, não voltar a ser si mesmo e nem se confundir com a alteridade que o expulsa de si.
No livro Difícil Libertad: ensayos sobre el judaismo, Levinas afirma que “presença discreta das mães, esposas e filhas em seus passos silenciosos nas profundezas e densidade do real, desenhando a própria dimensão da interioridade e tornando o mundo habitável” (p.55). É controversa essa reiteração do silenciamento das mulheres no âmbito do lar. Ainda que, segundo Chalier (1992, p. 167) a presença da mulher nos escritos de Levinas, quando se faz silenciosa, seja um exemplo prático da astúcia feminina na arte literária da Bíblia – na qual a expressividade da mulher é alcançada com a economia das palavras, que ensinaria mais do que a profusão de ações das personagens masculinas – é impossível não considerar as assimetrias e desigualdades despertadas por uma tal definição (VENÂNCIO, 2017; DENIS, 1985). Rodrigues (2011), em uma leitura derridiana da noção de feminino, salienta sua proximidade com o acolhimento e a hospitalidade ao estrangeiro que “invade” (não sem alguma dose de violência) sua morada, oferecendo-lhe lugar de pouso e passagem, permitindo-lhe que fale, que demande algo e que, sobretudo, inaugure um tempo sempre aberto ao devir, ao instante em iminência. Sob esse aspecto, a chegada e a proximidade do estrangeiro nos colocam em contato com a força que o feminino tem de, segundo Derrida (2000, 2004, 2005), produzir instantes em instância, instantes em que algo inaudito e furtivo está prestes a ocorrer e a atualizar nosso espanto diante da existência. “Para que o sujeito possa sempre renascer no instante mesmo do presente, e desse modo continuar a existir, é necessário que a continuidade dos instantes se coloque como novidade, como surpresa” (MENEZES, 2008, p.19). Mas essa exposição ao outro requer, como menciona Derrida (2004, 2005), uma hospitalidade incondicional, antes de qualquer julgamento ou classificação.
Mas como ser fecundo, acolher, dar consolo ao inimigo? Ao nazista ou o hutu que carrega consigo o ódio e que planeja estuprar e matar? O gesto da escrita feminina de Mukasonga percorre essa difícil via de mão dupla em que, as condições de cativa e de vítima sobrevivente se embrenham visceralmente ao útero materno de Stefania, sua mãe que fora morta durante o genocídio ruandês, juntamente com outros familiares da autora. Em A mulher dos pés descalços nos deparamos com essa personagem, cuja expressão do rosto está profundamente conectado com essa perspectiva do feminino que apresentamos a partir de Levinas e seus comentadores. Ela representa o feminino como o convite para, no contato, na proximidade, no acolhimento, sentir segurança para sair de si e ir além. Ela, em sua maternagem, se constitui no dia a dia como “contexto seguro” de florescimento da abertura ao outro e aos outros de outrem. Um feminino violado, mas que (re)surge no contato com o texto que o faz (re)viver; feminino cujo sofrimento pode se traduzir no cuidar, na manutenção do fio da vida ordinária, de tudo o que permite à vida manter sua trama e de encontrar um ritmo viável, habitável. Feminino sem heroísmos, todavia como se sustentação e resistência para a vida na vulnerabilidade humana, atento à dor e ao desastre.
Poderíamos dizer que as imagens criadas pela literatura de Mukasonga reintroduzem em um dado “mundo comum” as pessoas que estão à margem e que são sobreviventes de múltiplas perdas e violências. A escritura e a literatura não fazem isso sob uma forma de “imposição” do ficcional sobre o real, mas ficcionalizando e fabulando “o que estava indexado sob o registro do único real possível, apresentando a esse real ordinário e já consensual uma desieraquização e uma possibilidade outra de aparecer” (RANCIÈRE, 2019, p.55). Os ardis de Stefania para escapar ao “único real possível” são fartamente revividos nos episódios narrados por Mukasonga:
Minha mãe tem somente uma ideia na cabeça, o mesmo projeto para todos os dias, uma única razão de viver: salvar os filhos. Para isso, ela elaborava estratégias, experimentava táticas. Seria preciso fugir, se esconder. É certo que o melhor seria fugir e se esconder no matagal espesso, cheio de espinhos, que ficava na nossa plantação. Mas, para isso, era preciso ter tempo. Mamãe espreitava os barulhos sem parar. Desde o dia em que queimaram nossa casa em Magi, em que ela ouviu o rumor de ódio, como o zumbido de um enxame monstruoso vindo em nossa direção, ela desenvolveu um sexto sentido, o da presa sempre alerta, da mãe que queria garantir nossa sobrevivência. [...] Todos os dias ela dava um jeito de trapacear o destino implacável a que, por sermos tutsis, estávamos condenados. Seus filhos continuavam vivos, estavam ali ao seu lado (MUKASONGA, 2017, p.12 e 20)
Stefania expressa em si e na relação com as demais personagens as tensões que acompanham o trabalho de permanência e continuidade do e no mundo, permitindo uma (in)certa reparação dos traumas e dramas vividos nos lugares de desterro, em que as alteridades se esgarçam, fraturam até se romperem no paroxismo da violência. Nas palavras de Mukasonga, revela-se o corajoso Rosto sobrevivente de Stefania, aquele que nos hospeda diante do inominável e que prossegue nessa coragem. A Stefania de Mukasonga corporifica como linguagem o testemunho do porvir dessas mulheres ruandeses em que o feminino faz morada, profetiza (BENJAMIN, 1984) e “salva” em grande medida a vida da comunidade. Não somente nas experiências extremas, mas também no trabalho cotidiano de urdimento de vínculos entre vizinhos, relações nas quais as desconfianças vão dando lugar a uma vida em comum, tecida de maneira paciente (e alegremente) pela mãe de Scholastique.
A esse respeito, nas últimas páginas da obra, a Mukasonga nos lembra que o estupro também foi uma das armas utilizadas no genocídio, salientando que quase todos os estupradores eram soropositivos e transmitiram o vírus do HIV às mulheres tutsis:
Nem toda a água de Rwakibirizi e de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado para “lavar” as vítimas da vergonha pelas perversidades que sofreram. Nem toda a água seria suficiente para limpar os nomes que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da morte e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi nelas, nelas próprias e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das Mães-coragem (MUKASONGA, 2017, p.153-4)
O feminino rompe o isolamento do eu para, em uma relação erótica com o outro, tornar possível a emergência da vulnerabilidade que desestabiliza, desorganiza e abre espaços de contato hospitaleiro. Carla Rodrigues (2008) enfatiza que é nesse movimento que, segundo a autora, um sujeito pode ter a chance de ser fecundo, de sair de sua solidão para, no encontro com o outro, não voltar a ser si mesmo e nem se confundir com a alteridade que o expulsa de si. O feminino desenharia, portanto, a dissimetria absoluta em relação ao outro, uma interdição do registo do próprio, da propriedade, do poder e da autonomia que constrangem o acolhimento ao estrangeiro (RIBEIRO, 2015; DUBOST, 2006).
Já em Nossa Senhora do Nilo as questões típicas da adolescência feminina são narradas por meio dos rostos de jovens moralmente oprimidas no contexto do Liceu, especialmente as da etnia tutsi. O arquétipo de Eva e a condição inferiorizada da mulher na sociedade ruandesa são aludidos no momento em que a menarca de uma das alunas internas, Modesta, a surpreende em público, durante uma aula. Além do constrangimento naturalmente vivido pela personagem, as palavras de Mukasonga textualizam a marca do sofrimento que perpassa um acontecimento tão próprio do universo feminino. Em lugar da celebração à inauguração da fecundidade e à potência do conceber, do gerar, do gestar, Modesta é reduzida a uma insignificante condição de pecadora, calcada na religiosidade preconceituosa de então:
A iniciação. O medo. A vergonha. Para Modesta, aconteceu em aula. Durante o curso de inglês. Ela sentiu um líquido quente escorrer pela perna e, ao levantar, as colegas da fileira de trás viram uma grande mancha vermelha se espalhar pelo seu vestido e um filete de sangue escorrer pela perna e pingar no cimento. (...) “Chegou a hora, Modesta”, disse a irmã Gerda, “eu não esperava que acontecesse tão cedo. Agora você se tornou uma mocinha. Você vai ver como é sofrido: foi Deus que quis assim por causa do pecado de Eva, porta do diabo, a mãe de todas nós. As mulheres são feitas pra sofrer. Modesta é um nome bonito para uma mulher, para uma cristã, e todos os meses, a partir de agora, esse sangue fará você se lembrar de que é apenas uma mulher, e se você se achar bonita demais, lá estará ele para lembrá-la do que você é: apenas uma mulher. (MUKASONGA, 2017, p. 94-5)
Nessa passagem, Mukasonga aborda a vulnerabilidade inescapável do corpo que surpreende, extravasa, expele e expressa. A marca do feminino que “desce” é atravessada pela pelas palavras de irmã Gerda que reduz e comprime a carne de Modesta, que deve ser higienizada, marcas apagadas, motivos de vergonha. Mas se Modesta fala por meio de sua carne, ao mesmo tempo vive assujeitada pelas “regras” opressoras de um eros interditado; regras como termo que duplamente nomeante: ora martírio mensal, dor disciplinar do fluxo de um corpo feminino que diz; ora conduta obediente, aquela esperada de uma aluna interna do Liceu que deve seguir normas ditadas por irmãs religiosas.
Modestas ou Gerdas, ambos rostos de um trauma maior que oblitera a fecundidade e precariza o lugar do novo que vem em substituição messiânica ao temor.
Sobre isso, a noção levinasiana de substituição faz um interessante contraponto à experiência de Modesta; em Levinas a substituição não se associada ao “tomar o lugar do outro”, mas refere-se ao modo como a passividade e vulnerabilidade de nosso corpo diante da “proximidade do próximo” que se apresenta diante de nós permitem um contato sensível (eros) um encontro no qual “o eu suspende sua persistência em ser si- -mesmo em seu assujeitamento ao outro” (LÉVINAS, 1995, p.144).
Mukasonga, no silêncio de Modesta, expõe o palavreio violador de irmã Gerda; o feminino, em não-proximidade, não hospeda, expulsa, desterra. Lugar de inferioridade e sofrimento para ambas personagens.
No caso de Baratas, por sua vez, a proximidade característica do feminino está ameaçada nas dimensões territorial e de manutenção ou desfazimento de comunidades que, aterrorizadas pelo perigo de morte, não conseguem mais zelar pela responsabilidade moral diante do apelo de tantos, pois não há tempo para a elaboração de uma resposta. Resposta que chegaria anos depois, como a mortalha para Stefania, como as narrativas testemunhais, as canções e orações de luto que se seguem ao massacre.
Eles nos tinham visto chegar. Sabiam bem quem éramos, as inyenzis de Nyamata. Tínhamos dissimulado bem os nossos cabelos, diminuindo o volume: estavam esperando por nós. Não tínhamos mais coragem de prosseguir, mas era preciso atravessar a ponte. Os militares já se divertiam ao nos ver chegar como que recuando. Gritavam: “As inyenzis, baixem as cabeças, não mostrem o rosto para nós, nem o nariz, não queremos ver isso, principalmente não olhem no nosso rosto, aproximem-se, mas baixem a cabeça, lembrem-se que são inyenzis”. Estendíamos os documentos para eles, e tinha início a sessão de humilhação. De acordo com o humor, ou a fantasia deles, nos cuspiam no rosto, atingiam-nos com a bota ou a coronha. Levavam-nos à margem no Nyabarongo e nos obrigavam a debruçar sobre a água, cheia de lama avermelhada de sangue: “Olhem bem”, gritavam, “é lá que vocês vão terminar, todas as baratas, as inyenzis, é lá que vamos jogar vocês.” (2018, p.96)
Na passagem acima, Scholastique relata o momento vivido por três ou quatro meninas tutsis que juntas, ao retornarem para a casa no período de férias do Liceu, tinham de enfrentar as humilhações perpetradas pelos militares que vigiavam a ponte que dava acesso à região em que suas famílias moravam. Para além da banalidade da violência manifesta no relato autobiográfico, merecem atenção alguns detalhes que nos contam de um feminino sem respostas e das vidas dessas mulheres subjugadas, de nenhum valor.
O primeiro liga-se aos cabelos “dissimulados” que as jovens tentam conter muito provavelmente para limitar possíveis violências físicas. O segundo, a denegação do rosto – cabelos presos, cabeças baixas, interdição do face a face – lembram a condição subalterna das jovens perante homens hutus, mais velhos e armados. O face a face (im)possível traçado pela autora endereça-se à lama, vala comum final para a qual os corpos dessas mulheres seriam, cedo ou tarde, remetidos.
Nessas passagens, a narrativa de Scholastique nos revela de algum modo que o “Dizer feminino é o dizer do que não tem fala e, de certa forma, representa o silêncio de todos aqueles que não tiveram possibilidade de falar.” (MENEZES, 2008, p.14). Seus livros privilegiam a fala do outro, porque em seu silêncio elabora uma escritura do feminino, uma “linguagem do inaudível, linguagem do inaudito, linguagem do não-dito.” (idem). O rosto da autora dá testemunho infinito aos rostos de mulheres, como se o feminino de sua escrita-acolhimento gestasse abrigo, mas também luto àqueles que não tiveram nome, registro, lugar de pouso e descanso.
A escrita (im)possível de Mukasonga, sobrevivente revela-se como comunicação que faz das palavras (ditos) albergue para as vozes (dizeres) das vítimas silenciadas no extermínio, sobretudo das mulheres. Um escrever que se avizinha em desinteressamento de si-para-outrem como se testemunho próximo da alteridade alcançada pelo Terceiro; comunicação do palavrear sensível que inaugura o tempo da relação face a face entre os ditos que dela derivam e que, finalmente, gesta uterinamente a exposição, a excuta do que está aquém e além do que se mostra no visível, na palavra dita, escrita, mas que se in(e)screve rumo ao terceiro. As obras de Scholastique Mukasonga nos revelam não apenas sua “pequena vida”, mas também a delicada tarefa de construção dessa linguagem-mortalha que não só cobre docemente, com palavras desconhecidas, o corpo da mãe amada, mas também que assume a escritura como abrigo e espera a tantos outros tustis expostos às violências do mundo. Linha a linha, o texto tece o (im)possível manto que, a seu modo, devolve outramente um rosto ao corpo anônimo, da vida nua, matável, não passível de luto de sua mãe. E de tantas outras e infinitas mães e filhas que também, na glória ao Infinito, carregam nos ditos femininos que atravessam an-aquicamente a escritura.
E quem testemunha não narra apenas: oferece a si mesmo, ofertando sua vida, seu corpo, seu momento presente em prol do trabalho sobre o trauma, do afastamento do silêncio que tende a empurrar esse corpo para o silêncio e a sombra do intolerável.
Ao desenvolver o conceito de imagem intolerável, Rancière (2012) afirma que a elaboração do testemunho resulta de uma batalha travada com a dimensão da impossibilidade de representação do trauma. Como traduzir um trauma em palavras, em imagens? A partir desse olhar, um testemunho seria menos o relato dos acontecimentos traumáticos e mais as maneiras de evidenciar as dificuldades de produzir esse relato, uma vez que os acontecimentos resistem à apreensão e os espectadores também resistem à sua compreensão. A necessidade das imagens apesar de tudo, para retomar o título do livro de Didi-Huberman (2003) sobre as imagens fotográficas feitas por judeus que resistiram ao Holocausto, é salientada por Rancière ao considerar que “quando a voz cessa, é a imagem do rosto sofrido que passa a ser a evidência visível daquilo que os olhos da testemunha viram, a imagem visível do horror do extermínio” (2012, p.91).
Para Rancière, o intolerável da imagem relaciona-se à montagem de um dispositivo de visibilidade capaz de localizar e de enquadrar a vítima dentro de uma dimensão do visível e do sensível que lhe confere esta ou aquela possibilidade de ser apreendida, esta ou aquela legibilidade e inteligibilidade. No caso dos trabalhos das duas artistas aqui analisados, é como se elas redefinissem a ordem do sensível habitual na qual costumam emergir os corpos devastados pelos horrores da guerra e nos apresentassem um exercício de fabulação que contraria o encadeamento de causas e efeitos, a previsibilidade, a relação entre o que estaria previsto e o que de fato acontece, criando uma fábula experimental e dissensual, ou uma rêverie desdobrada pela cena polêmica e seus arranjos destabilizantes. O trabalho da testemunha é fazer reviver, por meio de minuciosa descrição, os objetos, os recantos de lugares habitados, os detalhes de utensílios e gestos, os rastros dos sujeitos, seus fragmentos e vestígios. “O que é indispensável numa testemunha é que ela seja capaz de inscrever, de traçar, de repetir, de reter, de fazer esses atos de síntese, que são os da escrita” (DERRIDA, 2015, p.25). Trata-se, portanto, de uma tentativa de interromper o processo da morte, de preservar na escrita o instante do sofrimento atroz que não pode ser generalizado, mas também não pode e não deve ser menosprezado.
Ao comentar o livro O instante de minha morte, de Blanchot, Derrida tematiza os desafios de tomar a linguagem para narrar a morte a partir de uma cena intraduzível. Afirma ainda como traduzir e testemunhar são ferramentas semânticas imprescindíveis para produzir uma linguagem de luto. Derrida menciona os dois sentidos possíveis para a palavra “demeure” para explicar como a escritura do testemunho pode se configurar como morada e como tempo que se estende (mettre en demeure como ser à espera).
Sob esse aspecto, o testemunho tecido na escritura literária nos coloca em contato com a força que o feminino tem de, segundo Derrida (2000, 2004, 2005), produzir instantes em instância, instantes em que algo inaudito e furtivo está prestes a ocorrer e a atualizar nosso espanto diante da existência.
Esses instantes de espera nos permitem abrir outra temporalidade para escutar e contemplar o rosto.Talvez o sentido mais amplo de rosto e da responsabilidade que me concerne – a mim, que o outro evoca em sua exposição – possa também ser acolhido em uma outra humanidade, apesar de todo horror, da exposição da vida nua do extermínio dos povos subjugados.
O testemunho elaborado por Mukasonga cria um tecido sensível novo, no qual vidas de outras mulheres tomam parte e aparecem registradas em uma história comum, exercendo o trabalho direto no próprio gesto de contar uma história que também é delas. As vozes femininas presentes nos livros de Mukasonga afirmam, assim, sua igual capacidade de narrar e de deslocar os enunciados hegemônicos, contrariando uma hierarquia e afirmando cenas ficcionais e polêmicas que remontam o real consensuado construindo momentos nos quais a indecisão para julgar suplanta a certeza das verdades controladas.
Em lugar de discursos de causalidade, de silenciamento ou de apagamento das sutilezas e texturas das experiências das mulheres, é importante encontrar os relatos que permitem uma aproximação, um avizinhamento mais demorado entre quem ouve e vê e a alteridade presente na imagem e na escritura. Escrituras hospitaleiras despertam no espectador novos modos de percepção do texto, dos corpos e das múltplas espacialidades e temporalidades a partir das quais figuram e se erguem os rostos que nos interpelam. Acreditamos que os relatos criados por Mukasonga podem oferecer a chance de percebermos os intervalos necessários a uma despossessão que nos distingue e conecta com a alteridade radical dos rostos que conosco fabulam um comum possível, justamente porque poroso às vulnerabilidades e experiências que, ao mesmo tempo nos individuam e nos avizinham.
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[1] O genocídio de Ruanda, também conhecido como genocídio tutsi, foi um massacre em massa de pessoas dos grupos étnicos tutsi, twa e de hutus moderados em Ruanda, que ocorreu entre 7 de abril e 15 de julho de 1994 durante a Guerra Civil de Ruanda. Cerca de 85% dos ruandeses eram hutus, mas uma minoria tutsi dominou por muito tempo o país. Em 1959, os hutus derrubaram a monarquia tutsi e dezenas de milhares de tutsis fugiram para países vizinhos, incluindo a Uganda. Uma parte dos exilados formou um grupo rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz foi estabelecido em 1993. Contudo, em 6 de abril de 1994, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda e do Burundi, ambos hutus, foi derrubado. Extremistas hutus culparam a RPF e imediatamente começaram uma campanha bem-organizada de assassinato. À época, ONU e outros países da comunidade internacional não intercederam para cessar o genocídio. A RPF, apoiada pelo exército de Uganda, gradualmente conquistou mais território, até 4 de julho daquele ano, quando as suas forças marcharam para a capital, Kigali. Cerca de dois milhões de hutus - civis e alguns dos envolvidos no genocídio - fugiram em seguida pela fronteira com a República Democrática do Congo, na época chamado Zaire, temendo ataques de vingança. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140407_ruanda_genocidio_ms . Acesso em 29/1/20, às 21h2.
[2] Uma adaptação cinematográfica está em andamento para este romance. Além dessas três obras, Mukasonga escreveu várias outras, de ficção e não-ficção. Disponível em: http://www.scholastiquemukasonga.net/. Acesso em 29/1/20, às 20h25.
[3] Entrevista concedida à organização da Festa Literária de Paraty (Flip) em 2017, realizada entre 26 e 30 de julho daquele ano. O evento homenageou o escritor negro brasileiro Lima Barreto (1881-1922), autor do romance O triste fim de Policarpo Quaresma, e foi marcada forte presença de mulheres e negros. Temas como racismo, feminismo e ativismo social foram abordados em palestras e debates. Scolastique Mukassonga participou de uma mesa “Em nome da mãe”, com Noemi Jaffe. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=KW9Gw5g_TV. Acesso em 15/2/20, às 21h8.
[4] Referimo-nos a Carnets de captivité suivi de Écrits sur la captivité et Notes philosophiques diverses, publicado na França em 2009, escritos por Levinas entre 1940 e 1945. São testemunhos de um autor que desejava fazer uma obra não apenas filosófica, mas inovadora. Páginas de uma literatura sóbria que descreve a vida dos prisioneiros, despojados de tudo; palavras que evocam a dignidade daquele que sobrevive a um meio de existência dura e fria, dada à morte. Os escritos inéditos de Levinas ainda não contam com tradução para o português.