A evolução da oração judaica: linguagem, filosofia e teologia
Evolution in Jewish Prayer: language, philosophy and theology

Ruben Gerardo Sternschein*
*Mestrado em Filosofia Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Mestrado em letras hebraicas pelo Hebrew Union college, PHD em Literatura e Cultura Judaica pela USP, Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Filosofia Islâmica, Judaica e Oriental da UNIFESP. Contato: ruben@cip.org.br
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Resumo
O material litúrgico judaico é fonte de estudos acadêmicos filológico-semióticos, literários, filosóficos, teológicos, históricos, antropológicos, bíblicos e talmúdicos. O presente artigo transita por esses territórios numa possível integração entre eles, principalmente dos aspectos literário e teológico com foco nos seguintes temas: 1) as rezas bíblicas anteriores ao culto estabelecido e seu caráter individual, criador, subversivo e generoso. Rezas que pedem a libertação dos adversários da punição recebida na disputa com o próprio orador e rezas que pedem para os rivais o que o próprio orador almeja para si. 2) A entrega dos sacrifícios em contraposição com a demanda das rezas e outras diferenças entre sacríficos e orações como a sublimação da oralidade e a violência da oferenda ou a semelhança de entregar o que não se possui a quem não precisa (Deus possui e\ou é tudo e não precisa de nada). 3) Os desafios e as oportunidades da oração fixa e padronizada em contraposição ao culto espontâneo e individual bem como o impacto dos antropomorfismos litúrgicos: a reza do próprio Deus e as atualizações teológicas expressadas pelos talmudistas na literatura litúrgica a partir das tragédias históricas. 4) Significações psicológicas e teológicas medievais e contemporâneas do ato de rezar incluindo sistemas à beira do ateísmo.

Palavras chave:Filosofia judaica, teologia judaica contemporânea, literatura religiosa, Pensamento talmúdico

 

Abstract
Jewish liturgical material provides a basis for academic philological-semiotic, literary, philosophical, theological, historical, anthropological, biblical and Talmudic studies. The present article takes o journey through these fields illuminating the literary and theological aspects focusing on the following: 1) Individual, creative, subversive and generous biblical prayers which have preceded the established rabbinical cult. Prayers that urges the release of opponents from the punishment received in the dispute with the worshiper and prayers that ask for rivals what the worshiper yearns for himself. 2) The delivery of sacrifices in opposition to the demand for prayers and other differences and similarities such as the sublimation of orality and the violence of the offering or the psychological dynamics of giving what one does not own to whom do not need (God as the owner of everything that has no needs). 3) The challenges and opportunities of fixed and standardized worship as opposed to spontaneous and individual worship and liturgical anthropomorphisms: the prayer of God himself and the theological updates expressed in liturgical literature based on historical tragedies according to the Talmudic debate. 4) Medieval and contemporary psychological and theological meanings of the act of praying including systems on the verge of atheism.

Keywords:Jewish philosophy and theology, religious literature, talmudic thought

Introdução

A oração é uma atitude, uma postura, uma ação, bem mais e antes do que um pedido ou uma afirmação. “Reza-nos!” (Celan, 1959) pedia o poeta austríaco Paul Celan algum tempo antes de se suicidar após ter sobrevivido à shoa. “Reza Tu a nós, se com tua capacidade divina ainda consegues acreditar no humano, pois eu não consigo mais”, interpreto eu sua possível intenção. (Outra opção interpretativa seria: “sejamos os humanos Tua reza”). A oração seria acima de tudo uma busca, uma direção, uma intenção e até uma reclamação irónica como surge do contexto literal do poema Tenebrae de Celan. A oração pode se basear numa fé resolvida ou não, e pode se dirigir a alguma forma divina ou de qualquer índole, ou não, como veremos1.

Em hebraico, o verbo rezar é um verbo reflexivo, rezar-se, como se se tratasse de um movimento completamente introspectivo. Como se quem rezasse, pedisse de si próprio de algum modo, buscasse reorganizar a dinâmica mais recôndita de seu ser e de seu olhar para tudo, de seu sentir e conceber. Como veremos, até Deus reza, segundo os autores das preces judaicas. Reza a si próprio. Sobre como se conduzir conosco.

A oração não se trata necessariamente de um monólogo interior, de autoafirmação e justificação, que exclui qualquer outro ser ou dimensão. Mas tampouco de uma lista de pedidos a um velho milagroso de barba branca que pune, perdoa e realiza o que nós poderíamos executar. Trata-se de um modo diferente de consciência de tudo que acontece e é na pessoa que reza e no seu entorno. Físico, histórico, mental, emocional e espiritual. É estar fora e dentro de si ao mesmo tempo. Fora - na maior transcendência, dentro - na maior intimidade.

O presente artigo não pretende expor sistematicamente a liturgia judaica nem seus múltiplos significados. Serão apontados desafios, problemas e oportunidades das rezas intercalando considerações históricas, literárias, psicológicas, filosóficas e teológicas.

Em primeiro lugar, apresentaremos as rezas esporádicas anteriores à institucionalização da oração como culto fixo, tal como aparecem espalhadas na bíblia. Veremos o universo teológico, social, existencial e estilístico que expressam.

Em seguida, veremos os processos de passagem da era dos sacrifícios à era das rezas faladas, assinalando as diferenças e semelhanças entre ambos os cultos tanto na sua forma quanto nos seus valores, suas oportunidades e suas limitações.

A terceira seção refletirá sobre a tensão entre um culto fixo, tradicional e padronizado e um culto espontâneo e individual, com especial ênfase nos desafios linguísticos. O problema e o efeito do antropomorfismo, isto é, a atribuição de qualquer característica própria do humano ao divino. Apontaremos as rezas atribuídas ao próprio Deus.

A quarta e última seção abordará a estrutura básica das rezas atuais e a função e o objetivo da oração segundo visões talmúdicas, psicológicas e do pensamento judaico contemporâneo seja ele racionalista ou místico. Incluiremos visões à beira de certo ateísmo.

Pré-história da Oração: As Rezas na bíblia

A mais antiga e primária fonte de qualquer judaísmo, a bíblia, detalha várias rezas apesar de deixar claro que o culto só consistiria em oferendas de animais, vegetais e farinhas.

Não nos referimos apenas a quaisquer conversas com a ins tância divina ou a votos interiores condicionados por uma supos ta ação de Deus que são, é claro, extremamente frequente na narrativa bíblica. Referimonos a cenas que incluem literalmente o verbo להתפלל ,utilizado até os nossos dias para indicar o ato de rezar, ou formas mais antigas e caracterís ticas do hebraico bíblico que referem à oração. Em outras palavras, embora não exis ta na época bíblica um culto de rezas sis temático, aparecem várias formas linguís ticas de indicar preces2 e várias cenas de rezas detalhadas nos textos. O próprio Deus é caracterizado em função de sua disposição a ouvir ou não as rezas3 , manda rezar4 e não rezar5 e o local de encontro com Ele aparece como “minha casa de oração”6

Assim, Abrahão reza para que Abimeleque tenha um filho7 , Isaac reza junto a sua esposa Rebecca pelo mesmo objetivo8 , e Ana, mãe do profeta Samuel, o faz por si própria ante a surpresa e incompreensão do sacerdote da época, Elí, que parece só entender de oferendas9 . Jacó pede salvação na véspera do reencontro com o irmão10. Moisés pede cura para Miriam, que ficou doente aparentemente em resposta punitiva a ter divulgado um mexerico sobre ele11. O profeta Jonas pede reconciliação consigo mesmo (teshuvá)12. Jó pede pela vida de seus amigos punidos por responder a sua trágica dor com teologias rígidas e superficiais baseadas na premissa “não há sofrimento sem culpa”13. Observe-se que várias das súplicas pressupõem a generosidade do espírito de quem reza, ao ponto de pedir para outros por algo que ele mesmo não tem e após ter sido vítimas dos destinatários de sua prece.

Não apenas pedidos se contam entre as rezas expressas da bíblia. Também bênçãos, que, embora não especifiquem sempre os verbos acima mencionados, seu conteúdo e forma expressam inequivocamente a linguagem e poesia típicas da prece. Isaac (Gênesis 27:27-29, 39- 40) e Jacó (Gênesis 49:1-28) abençoam seus filhos, antes de morrer, e Moisés, as doze tribos (Deuteronômio 33:1-29). Balaão é contratado para amaldiçoar o povo de Israel e acaba abençoando-o com palavras que o próprio Deus coloca na sua boca (Números 23:5-10, 16-24; 24:1-9, 14-24). Os sacerdotes são orientados para abençoar o povo por meio de três frases14 muito frequentes nos ritos atuais. Moisés reclama a Deus pela intenção de aplicar um castigo coletivo aos participantes da revolta de Coré e o ato é descrito como “queda sobre o rosto” (תליפנ םייפא (que é outra das formas mais extáticas de reza15 cuja linguística e prática atravessam todas as épocas, até nossos dias. Daniel reza por arrependimento e perdão, por proteção e salvação e também para expressar gratidão e experimentar revelação16. Finalmente, vários dos capítulos do livro de Salmos são apresentados como rezas, com a palavra tefilá17, e várias frases expressam os diferentes tipos clássicos de reza: benção (Salmos 16:7, 132:15), maldição (Salmos 109:17-18), pedido (Salmos 27:4,8), louvor18, arrependimento (Salmos 130:4), encontrar o rosto divino (Salmos 130:4), ajoelhamento (Salmos 5:8, 108:2).

Em síntese, a bíblia registra múltiplas cenas definidas como rezas, inclui diversos verbos e radicais relacionados à oração, alude a Deus como quem escuta ou deveria escutar as preces e identifica a dinâmica do relacionamento com a divindade como vinculada a ouvir ou não as preces. Os conteúdos das rezas variam de pedidos de fertilidade, proteção e salvação até bençãos e maldições. Destacam-se situações nas quais quem reza pede para outras pessoas o que ele mesmo carece, inclusive pede cura e sucesso para destinatários cuja necessidade nada mais é que produto da punição recebida por agredir o próprio orador. Em outras palavras, a oração aparece algumas vezes como um ato de nobreza e altruísmo supremos no qual quem reza se sobrepõe a uma crise pedindo o bem de seu próprio adversário, inclusive a salvação da punição divina que pretendia defender o orador agredido pelo destinatário da reza. Por fim existem rezas que pedem poder rezar, que seja factível a reza.

Rezas x sacrifícios: diferenças, semelhanças, influências

A bíblia registra um culto claro de sacrifícios. Tanto em forma de ações esporádicas, pontuais, espontâneas e/ou individuais, como em forma de rituais regulamentados detalhadamente para ocasiões públicas específicas. Exemplos dos primeiros são os casos de Caim e Abel (Gênesis 3:3-4), Noé (Gênesis 8:20), Moisés (Êxodo 24: 4-6), os filhos de Aarão (Levítico 10:1-2), Gideão (Juízes 6: 24-26), Elcaná (I Samuel1:3-4,24), entre outros. Exemplos dos segundos encontram-se em tudo o que se determina nos livros de Levítico19 e Números20, especialmente sobre o culto para festas, sábados e princípios de mês, além de regras para expiações, compensações e pedidos individuais. Fontes mais tardias sustentam que existia um sacrifício diário realizado pelas manhãs, denominado tamid, e outro às tardes chamado minchá. Esses teriam dado a origem às rezas da manhã e da tarde praticadas até nossos dias. A oração das tardes inclusive conservou o nome.

Diferente das rezas, os sacrifícios não se caracterizavam por palavras ditas, muitas vezes inexistentes ou, ao menos, não detalhadas, e incluíam a entrega de animais, vegetais e farinhas. Os sacrifícios regulamentados seguiam um protocolo intermediado pelos sacerdotes.

Embora incluam uma violência inaceitável para os valores contemporâneos, os sacrifícios também se constituíam acima de tudo como atos de generosidade e entrega, diferente das rezas faladas ou cantadas, que geralmente expressam pedidos e louvor. Os sacrifícios eram, essencialmente, oferendas, doações. O culto consistia em dar algo de si em todas as ocasiões, seja para pedir, para celebrar, para marcar uma data, para suplicar perdão, para expiar uma culpa, para expressar gratidão pelo bem-estar ou por qualquer conquista. Os detalhes das oferendas enfatizam justamente a qualidade da doação tanto em respeito ao que é oferecido quanto à forma como é oferecido.

Assim, o registro das primeiras duas oferendas, sacrificadas por Caim e Abel, e detalhadas em sucintas linhas na bíblia, enfatiza no ethos judaico post-bíblico a diferença de qualidades materiais e atitudinais. A leitura tradicional judaica sublinha que Caim trouxe algo do que havia dado a terra, enquanto Abel trouxe o melhor de seu gado, e que Abel se entregou a si próprio através de sua oferenda21. De igual modo, a regulamentação dos sacrifícios que começa dizendo: “Quando uma pessoa de vocês sacrificar…” (Levítico 1:2) é capturada pela interpretação clássica judaica como querendo dizer que deve se sacrificar algo de vocês mesmos além dos objetos entregues22. Ou seja, a validade do sacrifício dependeria do nível de envolvimento pessoal do sacrificador, do que ele estaria oferecendo e sacrificando de si, por meio do ato.

Psicologia e Filosofia dos sacrifícios

Moshe Halberthal, no livro On Sacrifice, aponta que os vocábulos usados para nomear os sacrifícios já indicam a ênfase na entrega e os desafios nela implicados. Qualquer ato de doação poderia ser efetuado de formas diversas. Pode ser entregue “em mãos”, isto é depositado dentro das mãos do receptor, pode ser aproximado de modo que o receptor tenha que fazer um movimento em direção à entrega, e pode ser apenas deixado em algum local para que o receptor decida quando e se se dirigirá a este para receber. Cada forma do ato determinaria uma relação e uma dinâmica diferente entre os poderes das partes, isto é doador e receptor. As três formas aparecem na semântica dos sacrifícios. Mataná, presente, vem do verbo dar (latet), entregar, colocar na mão. Sem possibilidade de qualquer dúvida sobre a recepção da entrega. Quase como se fosse um ato unilateral do doador que garante a recepção sem opções alternativas. Korban, a palavra mais usada para se referir a sacrifícios e oferendas, desde o hebraico bíblico até o hebraico contemporâneo, vem do radical krv, que se usa para falar de proximidade, parentescos, e até entranhas. Os verbos formados por esse radical são aproximar, aproximar-se e sacrificar (lekarev, lehitkarev, lehakriv). Por fim, minchá, outra das palavras mais usadas na bíblia para os sacrifícios, viria, segundo Halberthal, do verbo lehaniach cujo significado é deixar, soltar, abandonar. Na mataná o poder do doador é maior, na mincha prevalece o poder do receptor e no korban estariam equilibrados com uma certa proatividade maior na atitude do doador que ao mesmo tempo o deixaria mais vulnerável diante da possibilidade de o receptor não corresponder (HALBERTAL, 2015, p. 9-10).

Halbertal sugere que a renúncia à aceitação de um presente, poderia ser uma das maiores frustrações que poderiam gerar sentimentos de ofensa e humilhação e ações violentas. O caso de Caim. A dádiva seria uma mostra do valor de quem a dá. A recepção, um reconhecimento. A rejeição, um desprezo humilhante. Um ato que diz não aceitar o valor do doador e não somente da doação. O objeto seria uma ferramenta, um traje, um envelope. Um meio de expressão do valor pessoal do doador. Rechaçar o presente ou ignorá-lo seria uma rejeição da pessoa que o deu ou de seu valor (HALBERTAL, 2015, p. 10-18).

O contexto da doação apresenta um desafio. Toda doação pressupõe um doador que possui e um receptor que poderia usufruir o que lhe é dado. Seja por carência, necessidade ou gosto. Assim sendo, é inevitável a pergunta: que teologia poderia sustentar a ideia de uma divindade que poderia usufruir um bem que o humano lhe outorgaria? Teologias pagãs poderiam sustentar esse esquema. Suas deidades não eram perfeitas nem totais. Nenhuma era única. Apenas deuses de alguma força, com alguma característica. Deus da chuva, deus da fertilidade. Tinham algumas virtudes e algumas fraquezas, tinham desejos, anseios, paixões, vontades e necessidades. Precisavam lutar por elas. Disputavam com outras deidades e com os homens também. Nesse cenário, um humano poderia outorgar um presente a uma deidade. Porém o monoteísmo bíblico sustenta uma única divindade, abstrata, onipotente e eterna. Anterior e posterior a tudo, dona de tudo e ao mesmo tempo desprovida de qualquer necessidade por ser perfeita. Qual seria o sentido de dar algo a essa divindade? Mais ainda: Como o humano, finito por definição e, portanto, possuidor apenas momentâneo de qualquer bem, poderia dar algo ao Deus que criou tudo, que fica – afinal – com tudo por sempre e que de qualquer modo não precisa de nada?

O culto seria um jogo. Talvez como a vida. Uma oportunidade de possuir algo por um tempo apenas para experimentar a situação de exercer a responsabilidade de administrar e decidir o destino do que se nos apresenta como possessão. Exercitar o apego, o esforço, a conquista, o desapego, a generosidade e a responsabilidade por quem não consegue conquistar. O ritual das oferendas seria uma oportunidade de doar o único que realmente possuiríamos, isto é, a vontade de doar. A disposição a desapegar do desejado e conquistado em favor de algum outro. O culto baseado nas oferendas, em última instância, encena a situação que permite exercitar a disposição a dar23.

Existe mais um desafio na dinâmica das oferendas ou sacrifícios. O fato de sacrificar um outro no nosso lugar. Halbertal assinala a violência implícita na mera suposição de possuir algo ou alguém de tal forma e com tanto poder como para ter a capacidade de dispor de seu sacrifício. A entrega, a generosidade, o suposto altruísmo desvirtua-se totalmente quando depositados num outro ser desprovido da capacidade de decidir se quer ou não quer se sacrificar pela causa do sacrificador (HALBERTAL, 2015, p.22-62). Assim, a narrativa do “quase sacrifício” de Isaac nas mãos de Abrahão seu pai (Gênesis, 22), acaba na sua anulação e registra múltiplas críticas na literatura post-bíblica de todos os tempos. O sacrifício da filha de Jefté nas mãos de seu pai, é ainda mais criticado precisamente pela violenta arrogância e a desumanização objetivadora implícitas na mera promessa do líder: “se Deus me der a vitória o primeiro que sair a meu encontro na volta da batalha o oferecerei em sacrifício de gratidão”(Juízes 11: 30-31).

As boas ações, o jejum, o arrependimento e principalmente a oração se constituíram como substitutos mais aceitáveis do que a entrega de qualquer oferenda. Por eles estarem isentos de qualquer violência e por incluírem um esforço real e um envolvimento pessoal do protagonista e de mais ninguém.

Os autores das rezas fixas estabeleceram esta conexão entre os sacrifícios e as orações como base para a determinação da nova forma de culto que substituiria para sempre as oferendas por palavras.

“‘Completaremos os bois com nossos lábios’ (Oseias 14:3) Disse R. Abbahu: como TE iremos compensar pelos bois que oferecíamos (quando existia o templo)? Nossos lábios completarão através das rezas que te ofereceremos” (PESIKTA DE RAV KAHANA, Shuva 24)24

“Disse Rabi Iehoshua: Se os lábios de uma pessoa produzirem frutos significa que suas preces foram aceitas. Por quê? por que está escrito: ‘ele cria o fruto dos lábios, paz paz para o próximo e para o distante’ (Isaias 57:18-19)” (TALMUD JEROSOLOMITANO, tratado Berachot, capítulo 5, halacha 5)

Embora existam no presente linhas minoritárias dentro de judaísmo que acreditem que o culto de sacrifícios retornaria algum dia dependendo apenas da reconstrução do Templo, a tendência dos autores da substituição não nos deixa dúvidas: as rezas são uma clara e bem-vinda evolução a respeito dos sacrifícios. Vieram para ficar

“A oração fixa não é considerada prece” (MISHNA, Berachot 4:4): O indivíduo e o coletivo, a tradição e as necessidades pessoais cambiantes

O estabelecimento de um culto padronizado permitiu lidar com a destruição do Templo de Jerusalém e o exílio às diversas diásporas cuidando do tecido social: a tradição criaria comunidade. Ao tempo que se legitimou o uso da palavra como substituição da oferenda reforçou-se o vínculo nacional. Todos os judeus do mundo poderiam rezar ao mesmo tempo as mesmas palavras. Celebrariam dos mesmos modos as mesmas ocasiões. Por gerações. Em outras palavras: a criação de um culto verbal e padronizado resolveu várias questões: a violência implícita nas oferendas, a substituição de vítimas alheias pelas palavras dos próprios oradores e a manutenção da união do povo apesar das distâncias de tempo e espaço. Não somente ao mesmo tempo ficaram conectados judeus das mais diversas regiões. Após algumas gerações bisnetos receberam o shabat e as festas exatamente do mesmo modo que o fizeram seus bisavôs. Ao entoar uma prece superaram-se as distâncias geográficas e históricas, isto é: o tempo que separa os oradores do presente, de seus predecessores e descendentes, e o espaço que os separa de seus contemporâneos de outras comunidades.

Todavia, um culto padronizado, com regras que incluem textos específicos, horários determinados e mínimos de quórum, apresenta um desafio para a expressão da individualidade. Cada pessoa experimenta vivências únicas, pelas quais passa de modos únicos, em momentos particulares. Onde, como e quando o indivíduo poderia se reunir com suas buscas, seus medos, suas reflexões e seus anseios pessoais, que mudam segundo sua própria vida única, se o culto seria somente o padronizado? Como poderia o indivíduo se identificar honestamente com um texto que deveria ser dito com precisão e de modo uniforme e somente nas ocasiões estabelecidas? Se por exemplo devesse dizer um texto alegre estando triste ou um texto de afirmação da fé estando revoltado, como poderia ser honesto e verdadeiro com o texto e com si próprio? Quando e como poderia expressar uma nova reflexão sobre o shabat se sempre deveria dizer apenas o texto pré-estabelecido? Quando e como poderia manifestar um desejo pessoal, momentâneo, para si ou para um ser querido? De que forma poderia dar espaço a seus próprios insights existenciais? Como poderia manter ou renovar todo dia, toda semana, todo mês e todo ano sua motivação diante dos mesmos textos? E se não conseguisse, qual seria o sentido da reza?

Rezas particulares

Os autores das orações padronizadas estabeleceram as regras, os textos e os horários, mas também praticaram cultos personalizados. O tratado de Berachot do Talmud babilônico registra tanto as rezas padronizadas quanto as rezas individuais dos mesmos autores

Quando o Rabino Elazar terminava sua prece dizia25: ‘seja Sua vontade instaurar entre nós amor e fraternidade paz e amizade e que se multipliquem os estudantes e que nosso fim seja exitoso, com propósito e esperança...’´[...]
Quando o Rabino Hyia terminava sua prece dizia: ‘Seja Sua Vontade que Sua Torá seja nossa arte, e que nosso coração não empobreça e nossos olhos não escureçam’[...] Quando o Rabino Yehuda terminava sua prece dizia: ‘Seja Sua Vontade nos salvar de arrogantes e da arrogância, de más pessoas e de más doenças, de maus amigos e de maus impulsos…’[...]
O rabino Safra quando terminava sua prece dizia: ‘seja sua vontade instalar a paz nas alturas e na terra, entre os estudiosos da Torá que a estudam pela causa e os que não…’ [...]
O rabino Sheshet quando terminava um jejum após sua reza dizia: ‘Soberano do Universo, quando estava em pé o Templo uma pessoa pecava e sacrificava uma oferenda principalmente de sua gordura e seu sangue e assim se expiava e agora sentei-me em jejum e diminuiu minha gordura e meu sangue, seja Sua Vontade que minha gordura e meu sangue diminuídas representem minha oferenda no altar’ […]
O rabino Iochanan quando terminava de ler o livro de Jó dizia: ‘O final do humano é morrer e o do animal é ser sacrificado pois todos afinal morrem. Feliz quem se criou na Torá e sua ocupação é a Torá e traz satisfação a seu Criador e cresce com um bom nome e se despede do mundo com bom nome ‘[….]
Rabi Meir costumava dizer: determine em todo seu coração e em toda sua alma que estudará e conhecerá Meus caminhos e se afincará nas portas de minha Torá, guarde minha Torá em seu coração e que frente a seus olhos se encontre Meu temor reverente, cuide sua língua de todo pecado e purifique e afaste a si próprio de qualquer culpa e transgressão e Eu estarei contigo em todo lugar’ [...]
Os sábios de Iavne costumavam dizer: e sou criatura e também meu próximo, eu sirvo na cidade e ele no campo…. não podemos dizer que um faz mais ou menos, somos todos um o importante é fazer nossa parte dirigindo o coração ao Céu’ [...]
Abayei costumava dizer: sempre a pessoa deve[...] estender sua paz e sua paz com seus irmãos, e com seus parentes e próximos e inclusive com o mais estranho no mercado, para que seja amado no alto e agradável no baixo e seja aceito entre todas as criaturas’.
Rava costumava dizer: O objetivo final da sabedoria é a constante transformação aprimoradora (teshuvá) e as boas ações…’ (TALMUD BABILÔNICO, tratado Berachot, p. 16b-17a)

Inovações x fixações na tradição e no indivíduo

Aparentemente existiam momentos fixos para preces particulares e além deles as pessoas, ou ao menos, os próprios sábios padronizadores do culto, davam e pegavam espaços para a expressão individual.

Eles mesmos estabeleceram o princípio de que a oração não deve se tornar uma rotina fixa demais:

“Disse o Rabino Eliezer: ‘Quem fixar sua reza - esta não será considerada como prece’” (Mishna, tratado Brachot, capítulo 4, mishna 4).

Esta frase chave pronunciada há perto dos dois mil anos foi interpretada uma e outra vez pelas mais destacadas e influentes personalidades. Todos coincidiram na necessidade de renovar e personalizar na oração a fim de garantir autenticidade e relevância. Alguns falaram em inovações nos textos. Outros se concentraram na intenção e interpretação do orador como alvos da renovação constante.

Desse modo cristalizou-se uma suposta tensão denominada posteriormente com um trocadilho hebraico Keva (fixação) x Kavana (intenção). A oração fixa colocaria em risco a intenção autêntica e a relevância das palavras que garantiria a oração espontânea e/ou individualizada. Em outras palavras, o culto padronizado garantiu a identificação que ultrapassa as barreiras de tempo e espaço a expensas da relevância, da autenticidade e do cuidado com o indivíduo. A oração individual, por sua parte, garante a intenção autêntica e perde a conexão do povo.

O fato de que os mesmos autores da fixação incluíssem rezas individuais seria a legitimação do conflito e de sua solução. Isto é: a necessidade de sustentar ambos os cultos. O culto geral, regulamentado com textos e horários padronizados e os espaços para as expressões cúlticas individuais.

Todavia, surgem quatro perguntas nesta análise cristalizada entre keva e kavana:

1) Toda reza individual garante inovação?
2) Toda inovação traz intenção autêntica e relevância personalizada?
3) O que se espera que aconteça no indivíduo durante os longos serviços padronizados se se assume que lá não haverá intenção verdadeira?
4) Toda reza recorrente e padronizada impede uma verdadeira intenção, particular ou geral?

A intuição, a experiência e a observação mostram que a resposta às primeiras duas perguntas é negativa. Muitas vezes indivíduos rezam suas orações mais pessoais e íntimas repetindo toda noite ou toda manhã um mesmo texto por eles inventado. Essas orações repetidas não necessariamente ficam desprovidas de intenção ou emoção autêntica. Existem rezas novas que não chamam a emoção às vezes justamente por certa alienação criada pela novidade. O rito conhecido às vezes gera habilidades e liberdades dentro dele. As pessoas desenvolvem interpretações e emoções específicas para partes do rito, sejam estas palavras ou músicas. Colocam sua individualidade na forma de dizer, cantar, associar, interpretar ou sentir os trechos conhecidos. Alguns analistas até dirão que é precisamente o treino repetido que permite adquirir a proficiência necessária para se apropriar pessoalmente do rito e torná-lo uma verdadeira prece pessoal e íntima. Como um atleta ou artista que só quando treinou o suficiente uma técnica a torna própria para usá-la de seu jeito único no momento certo.

Com estas reflexões estamos prontos para responder negativamente à última pergunta e enfrentar o desafio da terceira: os serviços padronizados, mesmo que longos, poderiam convocar a renovação constante do envolvimento individual através da própria interpretação, o próprio modo de praticá-lo.

Todavia, também nas interpretações e associações individualizadas do rito geral poderia ocorrer o automatismo. Em outras palavras: a interpretação personalizada tampouco é garantia de emoção renovada, de relevância e de autenticidade. Pessoas poderiam rezar repetindo não somente as mesmas palavras, mas também as mesmas intenções cristalizadas e por tanto, às vezes, adormecidas ou adormecedoras. A fixação como a renovação não garante e não exclui nada. A chave encontra- -se sempre no orador. A reza será sempre uma ferramenta, um veículo. Nunca a viagem em si, nem a conexão em si.

Talvez por isso Celan disse “reza-nos”, na minha leitura, não só reza a nós e sim “reza nós”, como se fossemos nós mesmos a reza, além de qualquer texto. Também um mestre chassídico sugeriu que o próprio ato de rezar é a conexão e a reza, além de qualquer texto. Não se trata de um diálogo, de um dizer específico, que se diz ou se pede e se espera uma resposta específica. Trata-se de uma conexão, de um ser no diálogo em si. Voltaremos a isto mais tarde na última seção.

A linguagem e a experiência desafiam a autenticidade teológica da oração

Entretanto, ferramentas podem ser mais ou menos adequadas para facilitar, incentivar ou inibir. Nesse sentido podem ser chave de reflexão e educação teológica e ética. Os textos, mesmo sendo ferramentas e meios, podem servir de inspiração do essencial. Por essa razão, o conteúdo e formato das rezas foram e são objeto de discussões fascinantes. Através delas vislumbram-se desafios teológicos, filosóficos, éticos e educativos.

Como o caso de aquele que foi conduzir a reza diante do rabino Hanina e disse ‘Deus grande herói e terrível (e acrescentou) gigantesco, forte e valente’ e o Rabino Hanina esperou a concluir a reza e disse-lhe: ‘já terminou finalmente de elogiar seu mestre?! Esses (três) únicos (atributos) que nós dizemos (grande, herói e terrível), se Moisés não tivesse escrito eles na Torá26, e os membros da Grande Assembleia não os tivessem incorporado às rezas (Neemias 9:32), nós tampouco os diríamos, e você disse tudo isso?! É como se alguém tivesse milhares de milhões de moedas de ouro e alguém o elogiasse por ter mil moedas de prata, não seria uma forma de desprezá-lo? (TALMUD BABILÔNICO, tratado Meguila, p. 25a)27

Nada é possível de ser dito sobre Deus sem cair nas limitações humanas de percepção, de linguagem e de antropomorfismo. Ou seja, o humano está condenado a ver tudo através de seus recursos únicos e limitados. Sempre relativos. Sempre pessoais. Seu pensamento, seus sentidos, e sua experiência sempre o condicionam. Por tanto estará condenado à imprecisão e talvez ao fracasso ao tentar descrever o que ele próprio define a priori como não-humano.

Maimônides, no seu Código de Leis, repetiu em forma sucinta a prescrição talmúdica acima mencionada (MAIMÔNIDES, Mishne Torá, leis sobre oração e sacerdócio 9:7), mas foi no monumental Guia dos Perplexos que desenvolveu a teoria dos atributos negativos. Nada pode ser atribuído a Deus sem cair no antropomorfismo, mas por outro lado não pode ser negada a existência de qualquer qualidade nele, ao menos não as positivas. Assim, Moisés ben Maimon sugere que a forma de descrever Deus é através de duas negações: negar atributos negativos e/ou negar a ausência de qualidades positivas. Ou seja, devemos dizer que Deus não é ignorante ou que ele não carece de conhecimento28. Maimônides sustentava que assim como a reza evoluiu dos sacrifícios para as palavras, ainda evoluiria mais até alcançar o objetivo de ser somente pensamento e silêncio. Podemos encontrar esta ideia muito antes em um dos salmos mais antigos que afirma: “a ti o silêncio é um louvor” (Salmos 65:2)29.

Yossef Albo, uns séculos mais tarde, resumiu a problemática com a sucinta e abrangente máxima: “se O conhecesse, O seria” (ALBO, Sefer Haikarim 2:30)30. Em outras palavras, se pudesse conhecer a essência divina, se pudesse saber descrever Deus, seria eu mesmo o divino, eu seria Deus. O conhecimento tem a ver acima de tudo com identidade. De algum modo, somente conhecemos a nós mesmos, e através de nós relacionamo-nos com tudo. Portanto, o que formos definir como totalmente outro, não poderá ser conhecido, nem dito, talvez nem possibilitasse relacionamento algum.

A reza ficará para Albo, aparentemente, como uma busca constante, sem Deus ou quem sabe como uma denúncia da impossibilidade do alcance religioso.

Ainda no Talmud, a procura pelas palavras certas continuou discutindo a validade dos três atributos divinos do Deuteronômio, em outro contexto. Lá são expostas mais uma vez as buscas teológicas existenciais, a essência do possível contato com o divino, o impacto dele na dimensão humana e as transformações provocadas por essa jornada:

Disse Rabi Yehoshua Ben Levi: por que se chamaram eles ‘os membros da Grande Assembleia’? Por que ‘devolveram a coroa a sua dona’, (pois) Moisés tinha dito ‘Deus Grande, Herói e Terrível’ (Deuteronômio 10:17), e veio Jeremias e disse “legiões arrasam seu Santuário - onde está seu ser Terrível?!” e (por tanto) não disse terrível (ao se referir a Deus)31. Veio Daniel e reclamou “povos subjugam seus filhos - onde está sua grandeza?!” (e por tanto) não disse “Grande”32, vieram os membros da Grande Assembleia e disseram: “ Pelo contrário! esse é Seu heroísmo: que sabe controlar seu impulso, e tem paciência inclusive com os transgressores e malvados” , e isso é parte de seu ser terrível, porque se não fosse (pela ameaça/advertência de) seu ser terrível nenhuma nação poderia existir entre as outras”. E então como é possível que os mestres (Jeremias e Daniel) fizeram essas mudanças (de uma expressão do próprio Moisés!)?! Porque sabiam que Deus é verdade e não mentiram para ele” (TALMUD BABILÕNICO, Tratado Yoma, p. 69b)

Nenhum atributo seria atribuído a Deus nas rezas humanas, como já dito acima, a não ser os que foram mencionados na Torá, que, embora seja atribuída a Moisés, é tida como divina. Em outras palavras, não por Moisés ser o maior mestre e sim pela Torá ser divina é que os atributos da Torá são ditos. Como se estivéssemos repetindo o que o próprio Deus disse de si.

Todavia, na própria bíblia aparecem parágrafos nos quais não sobram atributos, se não que faltam! Deus se atribui na Torá três características, às quais – como já explicamos – não acrescentaríamos atributos para não diminuir da essência divina o que não formos dizer, mas de repente são descobertas na bíblia passagens que diminuem deliberadamente dos atributos divinos já estabelecidos! Subtraem um ou outro dos atributos com os quais Deus se descreveu nas mãos de Moisés!

Os sábios enfrentam o desafio. Assinalando todas as nuances teológicas, históricas e existenciais nele implícitas. Assumindo todos os riscos psicológicos e educacionais de verdadeiros líderes de gerações. Eles não somente leem os textos ousados. Eles os expressam como um diálogo vivo com a consciência psicológica, religiosa e política dos supostos autores. Eles dizem abertamente que apesar de que Moisés, supostamente por mandato divino estabeleceu esses três atributos, vieram grandes líderes, enviados pelo mesmo Deus, e tiraram alguns dos atributos. Usaram sua experiência divina e humana, teológica e histórica, religiosa e política para denunciar Deus e diminuir Sua autodescrição. Tudo em função do acontecido. A divindade não pode ser um ideal alheio ao mundo e à história. A reza não pode se abstrair da vida. As palavras não podem ignorar as verdadeiras emoções produto das verdadeiras experiências de dor e decepção. Portanto, eles não se limitam a uma análise de um texto. Eles trazem o autor ao cenário de suas vidas. Com sua sensibilidade e emoção. Dizem os sábios então que, com absoluta legitimidade para a ousadia, “veio Jeremias” que presenciou a destruição de Jerusalém, a morte cruel do povo e o exílio do remanente, e se negou a dizer que Deus é terrível. Como se dissesse: “se Deus realmente fosse suficientemente terrível, isto é, forte e corajoso na sua administração da justiça e da compaixão, teria evitado semelhante massacre. Agora que não fez, que eu presenciei essa tragédia, não direi mais a palavra ‘terrível’. Tirá-la-ei de sua descrição de atributos. Depois dessa experiência meu Deus não pode mais se chamar ‘terrível’. O que me acontece, repercute na minha reza e na minha fé, na minha teologia, na minha religiosidade. Inclusive na estabelecida como padrão”.

O mesmo aconteceu, segundo os sábios, com Daniel e por isso no livro de Daniel também falta um atributo na descrição de Deus.

Não é questão textual, literária ou de estilo. Não é problema de cópias e escribas ou versões. Trata-se de um conflito teológico criado pela experiência de vida e pela seriedade do ato de rezar, dos líderes espirituais das respectivas épocas. Trata-se dos mensageiros e representantes de Deus que estabelecem um Deus diferente para uma época diferente a fim de sustentar a verdade da reza e de qualquer ato religioso. Entretanto, esses líderes são sucedidos por outros em outra época e também reconstroem a teologia através das rezas. Mas antes deverão reconstruir o coração do povo massacrado. Eles propõem outra leitura. Dos atributos. Não da tragédia. Porém através dessa nova leitura dos atributos, conseguirão talvez reinterpretar a história e restabelecer a teologia. Não será a mesma. Serão as mesmas palavras, mas sentidas de outro modo. Sem a ingenuidade de quem ainda não passou tragédias. Mesma reza, mesmas palavras, mas uma nova interpretação de tudo. De Deus, da história, e por tanto da reza que expressa a ambos. “Terrível” e “grande” não serão mais indicações de força física que desfaz as ações humanas. Serão a expressão da contensão divina que permite a liberdade humana com todas suas virtudes e defeitos e ainda assim coloca algum limite invisível para garantir sua existência.

E o que faz Deus enquanto diferentes representantes mudam sua descrição? Como é que aceita as diminuições sem, pelo menos, indicar as interpretações que surgirão gerações depois e que lhe permitiriam manter sua imagem inteira? Os sábios respondem: acima de tudo Deus quer a autenticidade de cada pessoa a cada momento. A oração como conexão com o divino prioriza a verdade do orador acima de qualquer palavra, tradição, rito, lei ou norma. Acima de qualquer teologia e de qualquer religião. Por isso as preces, inclusive as fixas, registraram mudanças.

Deus Reza?

Outros atributos divinos aparecem na bíblia e se tornaram reza e polêmica teológica. Referimo-nos ao momento famoso da revelação divina a Moisés:

“E passou Deus pela sua frente e disse: Adonai Adonai Deus compassivo e Misericordioso, lento em iras e repleto de bondade e verdade, guarda a compaixão por milhares releva o pecado e a transgressão e a iniquidade…” (Êxodo 34:6-7).

Os talmudistas (TALMUD BABILÔNICO, tratado Rosh Hashana, p.17b) se atrevem a perguntar primeiro de tudo: quem é que está descrevendo? Embora a resposta deveria ser óbvia, pois uma vez que a descrição fala em terceira pessoa de Deus, Moisés seria quem fala, os sábios decidem que é o próprio Deus quem está se autodescrevendo. Isto se apoiaria no contexto da descrição alguns versículos acima, no qual Moisés pede conhecer a divindade, “E disse Moisés [...] mostra-me Teus caminhos e te conhecerei” (Êxodo 33:13), “...mostra-me tua glória e honra…” (Êxodo 33:18). Para eles Deus respondeu ao pedido de Moisés se revelando não só fisicamente – ao passar do lado de Moisés – mas também ao se atribuir suas características3333. Diante desta aparição divina, os Rabinos estabeleceram dois princípios teológico-litúrgicos surpreendentes.

O primeiro é que os treze atributos se relacionam com uma característica que não é natural à divindade: a compaixão, o perdão. Na dimensão divina como tudo é perfeito, tudo é justiça e mérito. Não há erro. Não há perdão. Diante da existência humana Deus muda e adquire uma característica que não é essencial a si para poder se relacionar com o humano. Talvez para ensinar que assim devem fazer os humanos ao se relacionarem uns com outros. Descobrir as características alheias e o potencial próprio de desenvolvê-las.

O segundo é que se trata de uma reza de Deus. Deus mostra como devemos rezar a Ele. Por isso fala em terceira pessoa, para exemplificar o que nós deveríamos fazer ao nos dirigirmos a Ele (TALMUD BABILÔNICO, tratado Rosh Hashana, p.17b)34. Entretanto esta segunda afirmação traz alguns desafios: primeiro, o fato de que Deus reza, ainda antes que nós o façamos; segundo, que reza a si próprio, ou seja, que se devêssemos imitá-lo talvez deveríamos rezar a nós mesmos, não a Deus; e terceiro, que Deus reza seus atributos não naturais, os que não são óbvios, os adquiridos, os mais difíceis de sustentar e desenvolver, ou seja, a reza seria uma introspecção, uma reflexão do ser sobre si próprio, focada no que não lhe é natural, no potencial que estaria sempre em xeque, a reza seria uma forma de manutenção daquilo que adquirimos com esforço de transformação.

Em outra passagem talmúdica, Deus reza exatamente isso: pede a si próprio que sua compaixão vença sua retidão, que sua bondade se sobrepunha a sua justiça e que assim consiga tratar os humanos através da misericórdia e não através do rigor (TALMUD BABILÔNICO, tratado Berachot, p. 7ª).

Estrutura e conteúdo das principais rezas. Algumas visões alternativas sobre os objetivos e efeitos das rezas.

Após estabelecidas, as rezas foram atribuídas, pelos próprios autores, a outras personalidades bíblicas. Na lenda rabínica, o serviço da manhã teria sido compilado pelo patriarca Abrahão, o da tarde pelo patriarca Isaac e o da noite pelo patriarca Jacó. Uma análise das justificativas textuais destas atribuições revela sua verdadeira intenção: sugerir sentidos para a oração, razões e significados para o ato de rezar.

Abrahão estabeleceu o shacharit (reza da manhã) pois está escrito: ‘e madrugou (levantou-se) Abrahão na manhã em direção ao local no qual se parou frente a Deus’ (Gênesis 19:27), e se parar (levantar) nada mais é do que orar…. 35. Isaac estabeleceu mincha (a reza da tarde) pois está escrito: ‘e saiu Isaac a conversar no campo no entardecer’ (Gênesis 24:63) e conversar (sozinho) nada mais é do que rezar36. Jacó estabeleceu a reza da noite pois está escrito: e bateu (deu de cara) Jacó no local (Deus)37 pois o sol se pós’ (Gênesis 28:11), e bater nada mais é do que rezar38 (TALMUD BABILÔNICO, tratado Berachot, p. 26b)

Rezar é se levantar, se erguer, se posicionar diante de uma causa, se colocar com dignidade. Rezar é estabelecer uma conversa introspectiva. Rezar é sacudir, chacoalhar, talvez não aceitar

A reza judaica estabelecida acontece em três momentos fixos do dia: de manhã, à tarde e à noite. Os horários estão pré-fixados na legislação rabínica (halacha) desenvolvida em diferentes textos e épocas. O início e o fim do intervalo para o shacharit (oração da manhã) e para minchá (oração da tarde) se apoiam nas horas de sol e variam segundo as estações. Assim também o começo da oração da noite, se bem que o final depende de outras considerações como a meia noite, o fim da noite ou um ritual sacerdotal da época do Templo. Os três serviços começam com salmos, incluem no meio a amidá ou Grande Oração e se fecham com o Alenu (prece de gratidão e união) e o kadish dos enlutados. Congregações diversas costumam acrescentar hinos ou canções de abertura e finalização. No caso da reza da manhã e da noite, após a abertura, inclui-se o Shema Israel que é a declaração monoteísta composta por três parágrafos do Pentateuco precedidos por duas bênçãos e sucedidos por uma bênção de manhã e duas à noite.

A primeira bênção se refere à criação do mundo com especial ênfase na harmonia e o equilíbrio dos ritmos da natureza representados nos contrastes entre a luz e a escuridão. Como se o primeiro passo preparatório para a declaração de uma suposta unidade cósmica fosse observar a harmonia possível entre contrastes como o dia e a noite. Unidade sem uniformidade. Unidade que é harmonia entre diferentes. Harmonia dialógica, pois surge de uma criação de diferentes através da palavra: “Bendito sejas Adonai nosso Deus rei do universo que com seu verbo anoitece... a luz se recolhe para a escuridão e a escuridão para a luz…” (SIDUR, 2009, p.73).

A segunda das bênçãos se refere à revelação e entrega da sabedoria através da Torá como ato de amor. Como se entregar conhecimento e saber fosse acima de tudo um ato de amor ou se amar fosse uma forma de conhecer e vice-versa. Na bíblia, a relação sexual usa o verbo conhecer ou saber: “e conheceu Adão a Eva” (Gênesis 4:1).

A terceira bênção da unidade do shema evoca a libertação da escravidão no Egito, talvez como se a fé monoteísta incluísse uma expressão de liberdade das arbitrariedades da teologia pagã.

A quarta e última bênção, incluída apenas no serviço noturno retorna ao tema do equilíbrio entre os ritmos da noite e da manhã, a luz e a escuridão com uma ênfase especial no pedido de paz e proteção para a primeira, e de vitalidade e vigor para a última.

Os parágrafos bíblicos do shema incluem a proclamação da unidade divina, o mandamento de amor ao divino (como se as emoções fossem voluntárias) e de cuidado, cumprimento, fixação e transmissão dos seus conteúdos e dos seus valores. As comunidades liberais em Israel introduziram mais um parágrafo, alternativo ao segundo, que enfatiza o livre arbítrio e o mandamento de escolher viver.

A amida inclui 19 bênçãos nos dias de semana. Segue uma relação de conteúdos e possíveis intuitos:

1) patriarcas (nas versões liberais também matriarcas) e memórias,
2) a possibilidade de eternizar após a morte,
3) a capacidade de santificação e consagração de tudo,
4) conhecimento, entendimento e sabedoria,
5) o arrependimento e a volta renovada aos caminhos divinos,
6) o perdão,
7) a luta pela redenção e realização,
8) curas,
9) sustento e outras prosperidades,
10) reunião e libertação judaica na terra de Israel,
11) instauração de uma justiça sensível,
12) erradicação do mal,
13) dignidade da retidão,
14) construção constante de Jerusalém e o que ela representa,
15) realização plena,
16) saber ouvir e ser ouvido,
17) sentido e aceitação da espiritualidade,
18) gratidão pela vida e pelo ser, o bem contido no desafio de que tudo louve o divino com seu mero existir,
19) votos pela paz, a bondade, a compaixão, a vida e a virtude.

As preces incluem pedidos, agradecimentos, louvores, reflexões e confissões ou arrependimentos. Na nomenclatura judaica, elas se dividem, em termos gerais, em três tipos de conteúdo: hodaia (louvor e gratidão), bacasha (pedido) e vidui (confissão, arrependimento, reflexão, introspecção, autoavaliação).

A psicologia da religião39 identifica funções terapêuticas em cada um destes três tipos de reza.

As bacashót, (pedidos) revelam e organizam os verdadeiros desejos e necessidades. A vida adulta costuma ceder e inibir desejos e aspirações. Pelo tamanho, pela distância, pela dificuldade ou pela ousadia que eles implicam. Por essa razão, segundo revela a experiência psicoterapêutica, quando enfrentados com o desafio de expressar desejos, não sabemos mais o que realmente pedir além de tempo, dinheiro ou felicidade. Pedidos todos que, na sua amplidão, escondem termos esquecido o que realmente queremos e valorizamos. As bacashót dão ou mantém os focos do essencial, do realmente desejado ou desejável brindando-lhes seriedade e constância, por elas serem uma prática diária diante da divindade. Em retrospectiva, elas mostram que o verdadeiramente desejado não se encontra tão longe e acabam pautando uma vida que tente alcançá-lo.

As hodaiót ou hodaót (agradecimentos e louvores) mostram o que já se tem ou foi alcançado. Permitem valorizar o que somos. Brindam humildade e ao mesmo tempo amor próprio. Humildade por reconhecer o mérito alheio (seja de Deus ou de qualquer próximo) e o amor próprio, por reconhecer a dignidade do que temos e do que somos.

O vidúi (confissão) é o aspecto mais introspectivo das rezas. A conversa reflexiva que busca elucidar a diferença entre aquilo que de nós depende e, portanto, convoca nossa responsabilidade, e aquilo que chama nossa capacidade de aceitação e humildade ao mostrar o que não depende de nós. Nossos limites. Ensina a conviver e lidar com frustrações e alteridades ao tempo que descortina a identidade, as forças e as oportunidades.

Em última análise, também os pedidos mostram forças e fraquezas, responsabilidades e limitações e também as gratidões. Ambos os tipos de rezas mostram nosso valor e nosso limite. Os três tipos de rezas se mesclam constantemente em todas as orações e suas funções estão disponíveis na maioria dos textos. É a própria disposição e interpretação que dará mais voz a uma função do que a outra a cada momento.

Visões alternativas contemporâneas da oração: Kaplan, Heschel, Green

Na teologia judaica contemporânea destacamos três visões: A de Mordecai Kaplan40, a de Abraham Joshua Heschel41 e a de Arthur Green42.

Segundo Kaplan, Deus é a forma ideal de nossos valores. Todas as pessoas possuem um Deus. Mesmo aquelas que se definem ateias ou agnósticas sustentam um conceito do divino em cuja existência acreditam ou não. O Deus de cada um, segundo Kaplan, diz muito a respeito da pessoa. O mais importante não é o que Deus pensa das pessoas e sim o que a pessoa pensa de Deus. As identidades de Deus costumam se identificar com amor, perdão, esperança, exigência, compaixão, apoio, conselho, sabedoria. Na teologia Kaplaniana, o mais importante de Deus é sua função na constituição de um indivíduo, de uma comunidade, de uma cultura ou de uma sociedade. O atribuído a Deus refletirá os valores e as aspirações dos que atribuem. Acreditem nele, o venerem ou o contestem. Quem não acreditar em Deus por ver dor, injustiça, morte ou doença, em última instância, atribui a Deus o dever da justiça, da compaixão, do perdão e do amor, tanto quanto quem acredita nele. Só que para o primeiro não cabe sua existência diante da evidência do mal e para o segundo, Deus se vincula com o contraponto de todo mal.

Povos sanguinários acreditaram que serviam deuses sanguinários e guerreiros. As cruzadas, a Inquisição, o Jihad são exemplos de ações cruéis em nome de deuses cruéis, motivadas por crenças atribuídas a divindades cruéis. Existem estudos que apontam à teologia Hitlerista do mesmo modo. Segundo estes estudos, Hitler teria sustentado a necessidade de limpar o cristianismo da compaixão do deus judaico, pois a compaixão seria um símbolo de fraqueza que devia ser substituído pelo rigor e a força necessárias para desenvolver a crueldade do perfil nazista desejado43

Para Mordecai Kaplan, uma vez que Deus não é um ser em si e sim apenas a forma ideal de nossos próprios valores, a função da oração é colocar o orador diante da diferença entre sua ideia perfeita de seus valores e ideais e sua realização atual. Durante a reza, o indivíduo compara a sabedoria adquirida e a sabedoria ideal, o amor sentido e o conceito de amor ideal que sustenta, a justiça praticada e a ideia de justiça total na qual acredita. Assim, diante dessas tensões poderá refletir, aspirar a mais e encaminhar a vida nessa direção.

Kaplan acreditava na força da comunidade e no caráter civilizatório do judaísmo como um todo do qual podemos inferir que a reza cumpria também uma função congregadora, educativa e formadora.

“Quando marchava junto a Martin Luther King sentia que minhas pernas rezavam” é talvez a frase mais famosa de A.J. Heschel. Talvez também a que mais e melhor captura sua atividade, sua contribuição e sua ênfase. Para Heschel agir no mundo e servir a Deus eram uma mesma e única razão de ser e viver. Na luta pelos direitos humanos rezava. Na reza, era movido pelos direitos humanos. Agir em prol da justiça era como rezar, pois a reza e todo contato com o divino devia despertar o compromisso com o humano e o mundo. O divino seria uma dimensão que desafiaria o mundano e o humano constantemente a fim de atingir a santidade ou sua melhoria maior.

Essa dimensão, para Heschel, diferente de Kaplan, era sim uma existência, uma entidade, uma presença. Se sentir diante de Deus é o grande desafio que faz toda diferença e chama a realizá-la. O cotidiano se torna sagrado quando rezado a Deus. Ou seja, ao invés de ver no mundano uma alienação do divino, Heschel inverte os termos. Tudo pode se tornar sagrado quando a perspectiva divina é incorporada.

A reza é uma postura, um modo de ver, de ser e de agir no mundo. “Na reza como na poesia aspiramos às palavras, não para usá-las como símbolos das coisas, mas para ver as coisas à luz das palavras” (Heschel,1954, cap. 2, edição Kindle). É olhar com olhos divinos, sentir com coração divino. Incorporar o divino ou acolhê-lo para compreender, buscar e agir. “A reza é uma visão interior... o reflexo das intenções divinas na alma humana... rezar é sonhar ligado a Deus, visualizar Suas sagradas visões” (HESCHEL,1954, cap 1, edição Kindle).

A interação entre o divino e humano acontece para Heschel na reza através do relacionamento de ambos com o mundo, com seu sentido, com seu valor e com seu aperfeiçoamento. “Louvar é sentir a preocupação de Deus com o mundo. Pedir é permitir que Ele sinta a nossa” (HESCHEL,1954, cap 1, edição kindle). Ou seja, o divino não se concebe como fazedor de milagres mundanos ou intervenções pontuais na história. É a dimensão que permite se sair do imediato, pessoal e egocêntrico e abraçar sentidos maiores. Não louvamos Deus porque temos saúde ou ganhamos dinheiro, nem pedimos esse tipo de sucessos. O louvor, como o pedido, conectam com a transcendência de tudo. Porém desde a maior intimidade pessoal.

começamos com uma preocupação pessoal e vivemos para sentir o supremo. A circunstância do indivíduo é um contraponto de um tema maior. Na Oração nos aproximamos para ouvir o tema eterno e para identificar nosso lugar nele... Nós não nos afastamos do mundo quando rezamos simplesmente o observamos de outra perspectiva... (HESCHEL,1954, cap 1, edição kindle)

A intimidade que providencia a religiosidade hescheliana é a única resposta total à solidão existencial do indivíduo. Só Deus pode perceber a unicidade de cada ser. Portanto, a reza é a única companhia capaz de acompanhar tudo e abraçar todo o indivíduo:

Estamos sós ainda com nossos amigos... Qualquer abundância de empatia será sempre insuficiente para nossa necessidade de simpatia... Só Deus pode ver o fundo de nossas intenções... A reza é intimidade segura, é se revelar a Deus... É convidar Deus a participar de nossas vidas. (HESCHEL,1954, cap 1, edição Kindle)

Segundo Heschel, a reza não se trata de um diálogo. É uma oportunidade de incorporar o divino como perspectiva e parâmetro e se expor a Ele. Essa exposição transforma completamente a existência humana, a percepção, a reflexão, a sensação e a ação.

É incorreto descrever a reza em analogia com a conversa humana. Nós não nos comunicamos com Deus, só nos tornamos comunicáveis a Ele... O propósito da reza é ser trazido a sua atenção. Ser ouvidos, ser compreendidos. Não é conhecer Deus, mas ser conhecidos por ele (HESCHEL,1954, cap. 1, edição Kindle).

O mais importante da reza para Heschel não é a palavra dita, e sim a reação que dizê-la provoca em quem a diz. A reza como toda a religiosidade para Heschel é uma resposta. Mais tarde Heschel irá mais longe e dirá que Deus busca o humano44, como se o divino estivesse presente e falasse constantemente, e o humano ficasse com a opção de se abrir a ouvir e responder ou não. Acreditamos que existe aqui uma tensão entre a linha de se fazer visíveis a Deus (1954) e a linha de Deus em busca do homem (1955): “Nossa aproximação ao divino não é uma intromissão é uma resposta... O verdadeiro conteúdo da oração não é a palavra prescrita que repetimos, e sim a resposta a ela, o autoexame do coração” (HESCHEL,1954, cap. 1, edição Kindle).

Para Heschel a reza também é uma fonte de conhecimento e sabedoria:

Em suma, por meio da reza, a pessoa adquire e exercita uma perspectiva maior, capaz de se libertar do ego e olhar através da alteridade, da sociedade, da humanidade e do divino, e sentir o grande Mistério que abrange tudo. Essa consciência de mistério é para Heschel uma dádiva: “A reza é nossa humilde resposta à inconcebível surpresa de viver. É tudo quanto podemos oferecer em troca pelo mistério pelo qual vivemos” (HESCHEL,1954, cap. 1, edição Kindle).

Discípulo de Heschel, Arthur Green mergulha no desafio de explicar a divindade bem além do mestre. Se Heschel se concentra no impacto da relação com o divino sem dizer mais nada sobre o divino em si, Green, como Kaplan, desenvolve uma teologia que fala do que é Deus e o que não é Deus em linguagem clara e direta.

Diferente de Heschel e em acordo com Kaplan, Green sustenta que Deus não é uma entidade. Deus não é alguém e a reza então não é uma conversa da qual do outro lado alguém atende e escuta. E diferente de Kaplan, para Green, Deus não é uma ideia, nem um conjunto de valores.

Fiel à tradição mística da Kabalah e do Chassidismo, Green acredita que Deus não é algo separado do mundo ou da pessoa. Tudo, absolutamente tudo, é apenas um só. Deus é o ser em si. A própria existência. Poderíamos dizer, sem sua aprovação, que Green praticamente se aproxima de uma teologia ateia. Não há entidade nem ser separado.

Entretanto não se trata de Panteísmo. O Deus de Green não é o próprio mundo ou a natureza, é bem mais do que isso. É o mistério infinito que vive e vibra em tudo o que existe. É o ser que é dentro de tudo. A transcendência é imanente, o infinito não se vê apenas olhando para o céu e as estrelas, mas também ao olhar para dentro de uma flor ou de uma pessoa. Tudo é parte do grande Um, do único ser e tudo tem dentro uma infinitude divina.

Qual o sentido da reza então? A quem e para que rezar? Qual seria a contribuição ou o impacto da oração? Trata-se de uma introspecção, de rezar-se? Qual o lugar da comunidade, do rito estabelecido e das palavras específicas da liturgia?

Para Arthur Green, a religiosidade é uma consciência, uma forma de ver o mundo e a humanidade. Se percebermos santidade no pôr-do-sol ou na sabedoria escondida e revelada num parto de animais e quisermos vivenciá-la, a oração nos providência essa experiência. Se acreditarmos num Ser que vive no nosso sermos nós mesmos, se sentirmos divindade em cada relacionamento profundo e íntimo, a reza poderá nos proporcionar um marco de expressão. Ou seja, a reza é acima de tudo e antes de mais nada, uma experiência, um cenário, um contexto para expressar e viver a escolha de ter atribuído a tudo algo divino infinito, misterioso e sagrado. Nesse sentido, a literalidade das palavras é menos relevante. A chave no modo de Green de acessar toda narrativa, todo personagem, toda conversa com Deus é a tradução. Para ele tudo é uma forma de linguagem, uma ferramenta. Não apenas as palavras em si, mas seus significados também. Chamar Deus de Céu, de Local, de Pai, de Rei, Presença, de Providência, assim como simplesmente se dirigir a ele é mais uma metáfora, uma roupa, um envelope. Olhar para o céu ou para uma flor ou para o chão, como fechar os olhos, usar uma liturgia ou um som ou o silêncio ou a respiração, um evento, uma festa religiosa, uma comunidade ou a solidão, uma sinagoga, uma igreja, uma mesquita ou a floresta são todas ferramentas iguais. Para algumas pessoas, por sua educação e treinamento, umas ferramentas servirão mais do que outras em uns momentos ou outros

Mas nada disso é a reza em si. A reza é a experiência, a vivência de quem recorre a qualquer um desses recursos. Não os recursos. A chave da reza encontra-se na experiência, na postura, na atitude, na intenção interior. Elas podem começar numa percepção diferente, ou numa vontade de querer perceber santidade na realidade do ser. A reza será a expressão e a vivência dessa sacralidade atribuída, encontrada ou buscada em tudo.

Considerações Finais

A pesar de que o culto judaico foi estabelecido na literatura rabínica, entre os séculos I-VI D.E.C., a bíblia apresenta muitas rezas incluindo a palavra tefila ou seu radical, que alude ao ato de rezar até os nossos dias. Essas preces se caracterizam pelo seu caráter criativo, individual e espontâneo. Salienta-se seu aspecto generoso segundo o qual os autores das rezas bíblicas são capazes de pedir misericórdia para salvar seus próprios rivais e até rogam para que Deus outorgue a seus oponentes o que eles mesmos anseiam para si. Por vezes as rezas bíblicas incluem um tom subversivo, exigindo e reclamando da divindade, por exemplo nos salmos, tom esse que se desenvolve na liturgia rabínica estabelecida e nos debates teológicos do talmud. Nesta fonte compilada no século V, Deus aparece rezando para conseguir ajustar sua “personalidade” às necessidades históricas e à essência humana imperfeita. Se na natureza divina tudo é perfeição, lei, retidão, mérito e rigor, o encontro com a imperfeição humana exige criar a compaixão, a paciência, a bondade, o amor e o perdão. Na literatura rabínica, Deus pede a si próprio e aos humanos, para conseguir que a sua bondade se sobreponha a sua justiça. Do outro lado os oradores expressam suas transformações teológicas produzidas pelas experiencias históricas, por meio de suas preces, sejam elas pessoais ou reações às liturgias padronizadas. O talmud apresenta teorias segundo as quais personagens bíblicas mudaram os padrões teológicos na linguagem de suas preces em função de tragédias vividas.

A passagem dos sacrifícios para as preces trouxe a sublimação da violência envolvida na oferenda, e embora atenuou o paradoxo de entregar o que não se possui a quem tudo tem e nada precisa, mas não o eliminou. A literalidade das rezas continua supondo que informam a um Deus onisciente das necessidades, gratidões e perdões do orador e esperam receber respostas. As preces verbais perderam para o culto das oferendas a capacidade e a possibilidade de doar algo de si.

O culto padronizado e fixo aparentemente coloca em risco a intenção individual e dinâmica do orador enquanto a oração espontânea o isola de qualquer comunidade e de qualquer tradição. Todavia, mostramos como a reza padronizada poderia gerar intenções dinâmicas e atender a necessidades individuais assim como a reza espontânea e individual poderia cair na fixação e na alienação.

Os três momentos de oração padronizada respondem a uma mesma estrutura que contém material bíblico (salmos principalmente, mas também os trechos da proclamação da unicidade divina (shema) e principalmente rabínico, incluindo pedidos, louvores-gratidões e reflexões introspectivas ou confissões. Se bem que a literatura rabínica assinala a reza como um mandamento e até debate a importância ou não da intenção do orador, ela deixa claro em diversas passagens sua contribuição psico-epistemológica: rezar é estar atento, se antecipar e preparar, se recolher em introspecção, refletir e inclusive enfrentar o divino. Já a psicologia cognitiva encontra nos pedidos como nas gratidões as orações o trabalho do individuo com seus desejos, suas conquistas e suas frustrações. Nas rezas de introspecção a psicologia cognitiva da religião encontra o trabalho do indivíduo com sua responsabilidade e com sua dependência de circunstâncias, pessoas e outros fatores alheios. Em outras palavras, a reza permite ao individuo endereçar a questão de qual é sua parte diante de cada cenário que vive, e o que deve aceitar que não depende dele.

Pensadores contemporâneos sugeriram teologias alternativas às convencionais. Segundo Arthur Green, Deus não seria alguém e sim a existência mesma de tudo, só que incluindo infinitos mistérios escondidos em cada ser. Para Mordechai Kaplan, Deus é a forma ideal dos valores do crente e a reza seria uma forma de avaliar a diferença entre a forma ideal de seus valores e aquela que consegue atingir na sua ação cotidiana. Rezar exorta o orador a diminuir essa diferença. Para Green, a reza seria uma postura, uma atitude escolhida (e talvez não resolvida) de assombro, gratidão e consagração. Esta tese se baseia de alguma forma na teologia de seu mestre, Abraham J. Heschel, que sustenta que a chave da reza não se encontra nas palavras ditas nem nas repostas obtidas e sim no efeito que elas e o ato de rezar produzem na consciência do orador. Para Heschel, além da gratidão como devolução pelo presente do assombro, a reza é um treinamento para agir no mundo assumindo responsabilidades sociais e civis. A reza como resposta a Deus e ao mundo. Quando Heschel reza olha para o mundo e entende o que lhe cabe fazer. Quando Heschel age no mundo sente que está rezando. A reza como ação, a ação como reza.

Referências


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WATTS, Fraser & WILLIAMS, Mark, The Psychology of Religious Knowing, Cambridge University press, 1988

Notas

[1]Avi Sagui publicou um trabalho cujo foco são parágrafos da poesia e literatura israelense dos começos do estado de Israel, de autores que rezam sem Deus, após a perda de Deus ou, como ele o denomina, após “a morte de Deus”. Sagui, 2011.

[2]A própria palavra usada hoje em dia, tefilá, aparece vinte vezes na bíblia, e além dela a súplica, o pedido, o grito ou clamor. חנן,נאק,זעק,עתר,פלל são alguns dos radicais mais frequentes.

[3]Em Salmos 65:3 Deus é denominado com o nome “Escutador de rezas” e em numerosas partes da bíblia aparece o pedido de que Deus ouça as orações, como rezando em prol das rezas. Rezar para que seja possível rezar (ver, por exemplo, Crónicas 6:19,29, Samuel II 7:27, I Reis 8:28,38, Daniel 9:17-19, Salmos 17:1, 86:1).

[4]“E agora retorne a mulher daquele homem pois profeta é, e que reze por ti para que vivas…” (Gênesis 20:7). (Todas as fontes usadas e citadas neste artigo são traduções próprias dos originais em hebraico, aramaico ou inglês). “E agora tomem sete bois e sete cervos e dirijam-se a meu servo Jó, e elevem uma oferenda por vocês e meu servo Jó haverá de rezar por vocês…” (Jó 42:8). Note-se que em ambos os casos quem reza o faz por outros e acaba se beneficiando pessoalmente também sem pedir para si. No caso de Jó, interagem as oferendas com a reza

[5]“E tu não rezes por este povo e não eleves música e reza nem te dirijas a mim em oração pois não ouvirei” (Jeremias 7:16)

[6]“E os trarei a meu monte sagrado e os alegrarei na minha casa de Oração...pois minha morada será chamada casa de oração para todos os povos “(Isaías 56:7).

[7]“E rezou Abrahão a Deus e curou Deus a Abimeleque, a sua esposa a suas servas e deram a luz” (Gênesis 20:17).

[8]“E rezou Isaac na presença de sua esposa pois era estéril…” (Gênesis 25:21)

[9]Ê estava triste e rezou a Deus e chorou. E quando estendia sua reza frente a Deus, Elí vigiava sua boca e Chana falava para si, somente seus lábios se moviam mas sua voz não se ouvia pelo qual Elí pensou que estava bêbada e lhe disse “até quando continuarás a embriagar- te?, retira o vinho de ti” e ela respondeu: “não me senhor, mulher séria sou e vinho não bebi, senão que derramei meu coração diante de Deus” ( I Samuel 1:10-15).

[10]Gênesis 32:9-12. Embora neste caso não é usada nenhuma das raízes linguísticas mencionadas e sim somente o verbo dizer, enxergamos a cena como reza pois não se trata de uma conversa nem de um voto frente a Deus. Jacó pede expressa e unilateralmente e Deus não responde diretamente no mesmo ato.

[11]“E clamou Moisés a Deus dizendo: ’Deus por favor cura-a’” (Números 12:13). Esta fórmula é considerada a prece mais básica e curta e repetida até nossos dias diante de doenças.

[12]“E rezou Jonas a Deus das entranhas da baleia... clamei na angústia... do fundo do abismo e fui ouvido... quando minha alma me envolveu lembrei Deus e minha prece chegou a ti…” (Jonas 2:2-10).

[13]“... e Jó meu servo rezará por vocês pois acolherei seu rosto para não castigar vocês pois não falastes corretamente como Jó falou...e acolheu Deus o rosto de Jó (aceitou sua prece em forma de perdão) . E Deus retornou a Jó de tudo seu cativeiro ao rezar por seu(s) próximo(s) e acrescentou a ele em dobro tudo que possuía” (Jó 45:8-10).

[14]“Fala aos filhos de Aarão e dize-lhes: ‘assim abençoarão aos filhos de Israel, diz a eles: ‘Deus te abençoe e te proteja, Deus ilumine Seu rosto a ti e te agracie, Deus eleve Seu rosto a ti e te conceda a paz’ ‘. E fixarão Meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os abençoarei” (Números 6:23-27).

[15]“E caíram sobre seus rostos e disseram: ‘Deus dos espíritos de toda carne, acaso um homem pecará e Sua ira se derramará sobre toda a comunidade?!” (Números 16:22).

[16]“E dei meu rosto diante de Deus para pedir reza (tefilá) e súplicas com jejum e cinzas. E orei a Adonai meu Deus e me confessei e disse : rogo Adonai ….pecamos...não ouvimos seus servos os profetas...sua é a retidão e a compaixão….e agora escute nosso Deus a oração ( tefilá) de seu servo...e ilumine seu rosto seu santuário desolado...Deus escute, deus perdoe, Deus faça,....e enquanto rezo, Gabriel, que visualizei no começo voando , me toca...e me diz: Daniel agora saí para te dar compreensão e conhecimento; no início de tuas súplicas saiu a Palavra...compreenda-a e interprete a visão…” (Daniel 9:3-23).

[17]Ver, por exemplo, Salmos 17:1, 86:1, 90:1, 102:1, 142:1.

[18]Ver, por exemplo, Salmos 137:1-2 (hodu), 148 :1-5,7,13. 150: 1-5 (Halelu, haleluhu)

[19]Ambos os livros contam com inúmeros detalhes do culto de sacrifícios. Em Levítico, ver, por exemplo, capítulos 1-7 e 22-23 que detalham os sacrifícios particulares e os públicos, em ocasiões espontâneas e situações prefixadas.

[20]Ver, por exemplo, capítulo 6 oferendas após um período de ascetismo e outros votos, capítulo 7 o detalhe das oferendas por tribos na inauguração do santuário. Capítulo 19, o ritual de purificação, capítulos 28-29 o detalhe das oferendas para cada festa.

[21]“e foi no fim dos dias que Caim trouxe dos frutos da terra uma oferenda para Deus, e Abel trouxe também ele do melhor\ primogênito de seu gado” (Gênesis 3:3-4). A leitura tradicional interpreta as diferenças entre ambas oferendas como sendo quatro: 1) Caim trouxe somente no fim dos dias, enquanto Abel reconhece desde o começo a soberania divina sobretudo e entrega o primogênito, o primeiro que recebe. 2) Caim traz algo da terra, Abel traz o melhor. 3) Caim traz da terra e Abel traz de si. 4) Abel se entrega a si próprio na oferenda, subentendendo que só assim ela faz sentido para um Deus que tem tudo e nada precisa.

[22]Ver, por exemplo, o Rabino Itzchak Arama no seu famoso comentário bíblico:” o principal do sacrifício é o que a pessoa entrega de si, e por isso está escrito (Levítico. 1:2) ‘uma pessoa que sacrificará de VOCÊS uma oferenda para Deus’ e não escreveu ‘uma pessoa dentre vocês que sacrifique uma oferenda para Deus’, e a pesar de que as oferendas são de animais ….a intenção é que se sacrifiquem (entreguem) a si próprios” (ARAMA, 1522, cap.57:1). Conferir também o que diz Arama, (1522, cap. 58) sobre “o fogo dos sacrifícios que devia inspirar e refletir o calor e o fervor dos corações e das vozes de quem reza”.

[23]O rabino Alsheik (1508-1593, Safed) no seu comentário Torat Moshe 25:2 é talvez o primeiro que sugere esta linha interpretativa ao explicar o fato de que Deus solicita que seja colhida sua doação. Ou seja: ainda que pertence a Deus e por isso é colhida e não entregue ou doada, Deus mesmo pede o ato de “arrecadação” para permitir atitudes generosas.

[24]Conferir também Shir Hashirim Rabbah 4:9 onde aparecem mais exemplos linguísticos da aceitação da fala como substituição da oferenda antes de concluir com as palavras do R. Abbahu.

[25]A tradução literal da expressão aramaica é: ‘quando terminou sua prece disse’, mas assume-se que não necessariamente estas rezas particulares foram pronunciadas excepcionalmente uma vez.

[26]Deuteronômio 10:17 “Porque vosso Deus é Deus de deuses, o deus Grande Herói e Terrível…”

[27]Existe outra versão no tratado Berachot 33b. Tradução própria. Explicações entre parênteses do tradutor.

[28]Maimônides desenvolve sua teoria sobre os atributos divinos no Guia dos Perplexos 1:51-60. Nossa ênfase encontra-se principalmente nos capítulos 51-52, 57, 58 e 60.

[29]Outra forma da mesma ideia, conferir em Salmos 62:2

[30]Albo atribui a sentença a O Sábio ou O Mestre que poderia se referir a algum rabino da época tanaíta (séculos 1-3), ou amoraíta (séculos 3-6) ou ao próprio Maimônides.

[31]Em Jeremias 32:18 a alusão a Deus é: “Deus Grande”, sem a palavra “terrível”

[32]Em Daniel 9:4 a referência a Deus diz apenas “Deus terrível”, sem a palavra “Grande”

[33]Essas treze características divinas foram incorporadas nos momentos mais solenes das festas, quando a Arca se abre para retirar os Rolos da Torá, e toda vez que a comunidade se levanta nos serviços de Selichot (perdões; confissões) especialmente em Iom Kipur.

[34]Esta ideia se apoia tecnicamente na palavra passou que na linguagem rabínica se associa com a função de quem conduz a reza pública. Passar diante do púlpito significa conduzir a reza comunitária. Também provavelmente se apoie no Êxodo 33:19 segundo o qual o próprio Deus chama a Deus e fala dele: “E disse (Deus) passarei todo meu bem diante de tua face e clamarei em/o nome de Deus frente a ti e me compadecerei…”

[35]A continuação da passagem justifica este raciocínio com outra associação linguística: ‘por que está escrito levantou-se pinchas e orou” (Salmos 106:3)

[36]A associação de rezar com conversar se apoia na continuação da passagem, no versículo que diz: ‘a reza do pobre ao se cobrir, frente a Deus derramará sua conversa’ (Salmos 102:1).

[37]No hebraico rabínico a palavra makom significa local, lugar e também Deus.

[38]A associação de rezar com bater ou encontrar ou chacoalhar se apoia no versículo:” e agora não reze por esse povo… e não bata em mim” (Jeremias 7:16).

[39]A bibliografia desta disciplina é vasta. Aqui nos baseamos no clássico JAMES W., The Varieties of Religious Experience, 1902 e em WATTS, F. & WILLIAMS, M., The Psychology of Religious Knowing, 1988.

[40] Para um estudo sobre a teologia de Kaplan e sua visão geral do judaísmo, consultar Judaism as a Civilization (1934), The Meaning of God in Modern Jewish Religion (1937), The Religion of Ethical Nationhood (1970).

[41]Da vasta publicação de Heschel, dedicada principalmente à teologia e sua implicação ética destacamos neste contexto: God in Search of Man (1955), Man is not Alone (1951) e especialmente Man’s Quest for God: Studies in Prayer and Symbolism (1954).

[42]A obra de Arthur Green se concentra em estudos de chassidismo, kabalah e teologia. Para o nosso enfoque aqui veja especialmente Radical Judaism (2010) e Seek My Face (2003).

[43]Muitos estudos sustentam esta tese. Conferir, por exemplo, HESCHEL, S., The Aryan Jesus: Christian Theologians and the Bible in the Nazi Germany, Princeton University Press, 2008. Também STEIGMAN-GALL, R., The Holy Reich, Cambridge University press, 2003.

[44]Parafraseando o título de seu livro de 1955