Cristianismo e revolução: uma leitura do romance Directa, de Nuno Bragança, à luz do conceito de evolução de Teilhard de Chardin  
The modern science and the tiredness of life: thoughts about the aim of science and Fernando Pessoa’ esthetic.  

Rízia Eduarda Andrade
*Mestranda em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Contato: riziaeduarda@gmail.com

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Resumo:

A ciência moderna tem oferecido muitas ferramentas de controle e manipulação da natureza e dos homens, mas a despeito dos discursos entusiastas ainda se nota negacionismos e irracionalidade no uso de instrumentos e produtos científicos. Por isso, é propício aos acadêmicos, sobretudo àqueles que trabalham com textos teológicos e/ ou discursos religiosos pensar sobre o desgaste hermenêutico que o modelo científico moderno tem apresentado, e até que ponto é possível recuperar o fôlego criativo da ciência através da revitalização do discurso filosófico e literário. O objetivo deste texto é ensaístico e procura analisar a ciência moderna dentro de questões filosóficas antigas que remontam inclusive as origens comuns entre teologia e filosofia. Para tanto parte-se de um pequeno texto escrito por Fernando Pessoa como forma de pôr em questão os sentimentos de inquietação que toda a vida moderna suscita dentro dos seres humanos, a estética de Pessoa guarda um tipo único de misticismo, algo que internaliza as mudanças da mentalidade moderna inaugurada pelas descobertas da ciência moderna e ao mesmo tempo mostra um certo mal-estar intelectual frente a uma realidade carregada dos fados e enfados da vida.  

Palavras chave: Fernando Pessoa; Ciência; Modernidade 

Abstract

The modern science has been offering many tools for control and manipulation of nature and man, but although of overjoyed speeches, there is still irrationality in the use of scientific instruments and products. For this reason, it is conducive for academics, especially those who work with theological texts and / or religious discourses, to think about the hermeneutic wear and tear that the modern scientific model has presented, and to what extent it is possible to recover the creative breath of science through the revitalization of discourse. philosophical and literary. The purpose of this text is a essay and seeks to analyze modern science within ancient philosophical issues that go back even to the common origins between theology and philosophy. To do so, it starts from a short text written by Fernando Pessoa as a way of calling into question the feelings of restlessness that all modern life raises within human beings, Pessoa’s aesthetics keeps a unique type of mysticism, something that internalizes the changes of the modern mentality inaugurated by the discoveries of modern science and at the same time shows a certain intellectual malaise in face of a reality charged with the fates and boredom of life.     

Keywords: Fernando Pessoa; Science; Modernity 


Introdução 

Por motivos variados e razões incompreensíveis tenho pensado muito acerca da finalidade e motivo principal pelo qual homens e mulheres ainda continuam a acreditar e a fazer ciência. Um dos maiores enigmas filosóficos destas primeiras gerações do século XXI é o grande nível de importância e dedicação firme empregada sobre os restos mortais de ciências de séculos anteriores; e isto se expressa sobretudo na crença de que a grande ‘ciência moderna’ e seus avanços tecnológicos são o fundamento para a validação do verdadeiro conhecimento do real ou de aproximações semânticas dele. 

A principal base e inspiração para este texto o seguinte escrito do poeta português Fernando Pessoa, que no Livro do Desassossego disse: 

Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura de suas próprias regras e leis; serve, sim, de por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que elas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceite senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente de dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida – essa nem é teoria científica, senão somente de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga. Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente da dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nos desperte, mas à isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber. (PESSOA, 2006, p. 359)

Este trecho me levou a elaborar a seguinte questão: como é possível que ainda exista tanto empenho por uma instituição tão impregnada de desilusões e fantasias quanto a ciência? A dita ciência moderna é de fato um dos maiores orgulhos do homem até agora, mas quem a conhece um pouco mais de perto fatalmente perceberá que está áurea de objetividade racional facilmente se degenera em uma erudição fútil que não acrescenta nem diminui em nada à vida dos que apaixonadamente amam o conhecimento. 

Sempre que alguém é incluído no panteão dos cientistas ou quando participa, mesmo que de modo periférico (como é o caso dos brasileiros) deste grande edifício cultural tem-se a impressão de que aquela pessoa chegou ao ápice de sua vida e que, portanto, pode se considerar um vencedor que brilha na humanidade por seus feitos nas novidades e descobertas científicas. Mas tudo isto pode (sem o medo do exagero) ser considerada a mais vã e supersticiosa ilusão que os cientistas têm inventado para si. No fundo, a ciência moderna e seus produtos são coisas extremamente cansativas e tem uma utilidade questionável se considerarmos os usos desumanos e até irracionais que se fez e ainda se faz deles. Não considerem este texto um manifesto ou uma crítica à razão prática disto ou daquilo, pois considero a vida moderna muito boa e em várias áreas somos devedores do pensamento racional aplicado que se conseguiu efetuar até agora. 

Portanto, antes que comecem as acusações de obscurantismos ou coisa semelhante, deixem-me dizer que a ciência é sim muito boa. E os seus maiores críticos são exatamente os que mais se beneficiam ou se beneficiaram dela, o que demonstra a irrazoabilidade das críticas nas quais têm prevalecido apenas um inconformismo psicológico que não desvenda claramente qual seria o problema em relação a nossa atual forma de fazer ciência. Por isso que não me incluo entre aqueles que fazem da crítica à ciência, à razão utilitária ou à modernidade o seu principal ofício de vida. Na verdade, penso que estes críticos são meros usuários de conceitos mortos, apenas pessoas desenganadas e desencantadas que acabaram se ‘enfeitiçando’ pela mentalidade sofística que sobrou do ocidente detonada do século XX. Contudo, há que se admitir um certo mal-estar em torno da atual forma de elaborar e consumir as ciências, e penso que a maior dificuldade repousa na incapacidade humana para conseguir conjugar na consciência individual todos estes conteúdos de modo a não afetar a capacidade criativa e espontânea do ser que vive. 

1. Filosofia e ciência

Quando filósofos, metafísicos ou cientistas conseguiram integrar muitos conteúdos empíricos e/ou teóricos quase sempre seus pensamentos e valores se degeneraram (não necessariamente por culpa deles). E esta degeneração se concretizou na criação de grandes sistemas explicativos e espécies de manuais hermenêuticos, que ao dar conta de conjugar muitas coisas científicas acabaram por sacrificar a própria integridade da consciência humanas como tal, e deve ser por isso que cresceu o prestígio de teorias voltados ao inconsciente. Mas a verdade é que a humanidade insiste em ser consciente e, até onde se sabe, é somente a partir da consciência clara e lúcida de si que consegue ter um senso minimamente tangível do real. A questão é que ao juntar recortes científicos em grandes teorias os homens tornaram as pessoas e as coisas meros objetos refratários, sem o peso de realidade que invariavelmente carregam. Mas não pretendo me estender muito nesta questão, afinal, tal situação já tem sido bem conhecida pelos estudiosos da pós-modernidade ou modernidade tardia. O objetivo principal aqui é somente propor uma reflexão sobre a degeneração intelectual que temos praticado com o nome de pesquisas e problemas científicos; e para desenvolver esta reflexão faz-se necessária uma breve retrospectiva de eventos e fenômenos históricos que tem condicionado nossa experiência em torno do conhecimento. 

O nascimento da ciência moderna se deu muito em função de mudanças radicais na compreensão que os homens do final da idade média tiveram em relação ao seu lugar no mundo e ao próprio funcionamento da realidade. Quando Descarte propôs no século XVII a aplicação do método matemático como maneira de orientar, fundamentar e legitimar a verdade científica, então começou-se o grande empreendimento humano em torno de construir conhecimentos válidos sem a tão conhecida rigidez dogmática da religiosidade cristã medieval. 

O pensamento científico foi sendo elaborado e ganhou destaque social e cultural quando os homens perceberam o potencial magnífico que a aplicação racional tinha para facilitar a vida e resolver, ao menos de modo imediato, certos problemas humanos antigos e persistentes. Viver uma vida fácil e com possibilidades de melhorias constantes gerou e ainda gera grandes expectativas em torno do valor das práticas e conhecimentos científicos. 

A vida em sociedade humana tem sido enormente influenciada e de certo modo melhorada pelos chamados avanços científicos. As leis se tornaram mais brandas e humanitárias, a economia se tornou mais fluida e controlável, as doenças passaram a ser melhor monitoradas e até previstas, as distâncias espaciais e o tempo passaram a ser relativamente mais curtos, de modo que sobra-se cada vez mais horas para consumir produtos da indústria cultural, que também cresceu e se desenvolveu mediante descobertas científicas na área da química, fisica e eletrônica. Há também a introdução dos discursos científicos no cotidiano das pessoas, por meio da presença constante dos “especialistas” dando sempre explicações razoáveis e plausíveis para os diversos problemas que atigem a vida social, orgânica e psicológica dos homens. 

Mas longe de ser uma panaceia, toda esta parafernália cultural tem criado um ambiente favorável a desintegração das experiências humanas mais básicas, e talvez este seja o efeito colateral por detrás de tanta razão aplicada. Com recursos e tempo sobrando, as inquietações do homem crescem em um rítmo que nem mesmo os mais avançados pequisadores conseguem explicar e remediar a contento. Cabe então perguntar-se por que a ciência que gerou tantos recursos e facilidades não conseguiu prever o cansaço causado dentro da sociedade na qual ela foi engendrada. E uma possível resposta a este questionamento seja a seguinte: quem produz a ciência e seus pretensos ‘avanços’ é a própria humanidade que no seu afã tem aplicado quase todos os recursos disponívieis para manter a engrenagem do mundo científico moderno sempre em funcionamento, mesmo quando isto lhe custa levar uma vida superficial e repetiva ao extremo. 

O problema maior está no fato de que já não importa mais o porquê fazemos ou deixamos de fazer algo, pois estamos todos (independente da classe ou origem étnica) sujeitos a um condicionamento cultural que nos impele a trabalhar pelo ‘bem da humanidade, da ciência, da sociedade’ ou de qualquer outra abstração utópica que substituiu o velho (e ainda presente) ideial do paraíso perdido. 

2. O lugar da ciência na vida moderna 

Por meio dos dizeres poéticos de Fernando Pessoa, é possivel especular sobre a grandiosidade da vida moderna nos seus sonhos megalomaníacos, mas tal fantasiar também tem causado um cansaço mudo nos seres humanos. Ver a vida nas primeiras décadas do século XXI nos leva fatalmente a conclusão de que os futuristas modernos estavam certos em suas entusiasmadas obras que falavam do avançar das máquinas entre os homens, e tão forte tem sido esta impregnação mecânica que se pode até pensar que a humanidade se tornou um mero fantoche de si mesma. É como se tivéssemos construído uma grande gaiola e nos esforçássemos apenas para aumentar a espessura das suas grades e usamos incansavelmente todos os recursos para tal finalidade. Nesta descrição das coisas a realidade em que vivemos poder parecer algo doentio, mas é bem provável que a atual condição civilizacional nem possa mais ser considerada doentia, pois as coisas já estão colocadas de tal forma que quase não se sente ou se reclama à dor da claustrofobia, portanto, uma doença que não produz mais o sintoma da dor é vista pelo doente como mais uma forma rotineira de se viver. A ciência, como qualquer outro empreendimento humano já está bem integrada e consolidada nos espaços burocráticos e das instituições modernas que automatizaram tudo em que tocaram, assim sendo, o automatismo da vida moderna também á impregnou os afazeres científicos e como toda repetição gera inevitavelmente o cansaço segue-se que a ciência cansa mais do que nos faz crer seus entusiastas cegos. 

Então para tentar fugir do cansaço da rotina resolvo me refugiar em reflexões mais idealistas, e tomando as coisas de um ponto filosófico, surge a pergunta: qual a real finalidade da ciência? Ela ainda tem finalidade? Ainda há algo por se descobrir, ou tudo que nos restou foram a repetição enfadonha e a imitação ridícula das glórias do passado? Realmente, é possível e até justo considerar os feitos científicos dos últimos três séculos como grandes atos heroicos dos homens, porém, o que mais enaltece a pessoa humana também tem sido o que mais a humilha. Parece uma contradição de termos, mas se trata apenas de uma dessas ironias cósmicas que acompanha a história dos homens, e é por causa desta e de outras ambiguidades que podemos rir apesar de tudo. 

Quem sabe se na análise destas ambiguidades possamos ir além do nosso próprio tempo histórico para pensar também em aspectos dramáticos da experiência humana como tal. E poderemos pensar neste drama e rir como fez o grande cineasta Stanley Kubrick que em seu filme Dr. Strangelove ou Como aprendi a parar de preocupar-me e amar a bomba (1964) nos deu um exemplo estético de como é possível amar os intentos megalomaníacos de alguns homens da sociedade científica pós-moderna sem necessariamente cair em suas ilusões. Naquele filme há uma série de linguagens justapostas, e ao mesmo tempo em que ele critica a forma geopolítica da guerra fria também nos mostra a impossibilidade prática daqueles ‘temores’ criados em torno da corrida armamentista. É cômico ver generais, embaixadores e presidentes de grandes potências mundiais amedrontados por máquinas de destruição em massa que estavam ‘aparentemente’ sob o controle deles; e no final vê-se como são ridículos aqueles homens que sabendo-se frágeis e mortais não medem esforços para mostrar sua soberba por meio de sistemas políticos fracassados. Sim, porque naquele filme vemos como a destruição do mundo por meio da bomba atômica (que era e ainda poder considerada uma preocupação real para muitos) não passa de um paradoxo filosófico fundamental, pois quem é o bobo ou ‘besta’ que vai arriscar o pandemônio de uma guerra nuclear global só para mostrar para um país ‘inimigo’ que seu estilo de vida é melhor? Somente alguém sem noção de realidade se ariscaria a tal coisa, obviamente que este tipo de gente existia e ainda pode existir, mas pela estupidez própria da ideia seria necessário subverter todo o sistema institucional de controles políticos, sociais e culturais para que tal pessoa viesse a se estabelecer no poder e ter condições de colocar o mundo em guerra nuclear, claro que tal hipótese não é totalmente impossível de ocorrer, depois de ter visto a ação de gente como Hitler não poderemos duvidar da capacidade autodestrutiva da humanidade, mas deixemos estas preocupações de lado e gozemos da piada cinematográfica de Kubrick. Acontece que mesmo se tal ‘liderança’ insana se estabelecesse, o fato é que poucos seriam os restos que sobraria para ele ‘governar’ isso se ele próprio sobrevivesse ao ‘apocalipse atômico’, de modo que tipos assim só servem mesmo como ocasiões de piadas como foi o Dr. Strangelove, o qual em última análise era apenas uma caricatura satírica da ânsia destruída de fundo nazista que impregna a mentalidade de alguns líderes mundiais. Portanto, paremos de nos preocupar com os ‘nazistas’ ou ‘fascistas’ modernos, pois o poder destrutivo de tipos como o deles é apenas aparente e só se sustenta por meio da covardia e burrice generalizada pela mentira e dissimulação. 

Agora voltando a falar da ciência, o filme de Kubrick também aborda de maneira periférica a questão paradoxal presente na noção de progresso que ainda impregna tanto os discursos e justificativas de pesquisas científicas. É como se de fato houvesse um ‘lugar’ ou uma ‘situação’ idílica a qual a ciência bem-produzida poderia ou poderá nos levar. Este valor de utilidade revela uma grande inversão semântica que se elaborou em nossos ‘tempos modernos’, houve uma substituição simbólica que fez da ciência e dos cientistas ‘os grandes pais ou guias do homem’. Até os religiosos para conseguir manter seu prestígio social tiveram que se tornar parte do sistema científico vigente. Notem por exemplo que os sacerdotes mais bem vistos no interior da alta sociedade moderna têm sido aqueles que, desprezando as experiências místicas e emocionais da religião, priorizam mais os elementos objetivos e o pragmatismo da moral aplicada, de tal modo que, os pastores e padres são apenas teólogos ou professores de moral com carisma popular que ‘trabalham’ junto a alguma comunidade religiosa oferecendo seus ‘serviços’ por um ordenado mensal e que procuram no mais das vezes contribuir para o progresso social e cultural local. 

É perceptível que o elemento heroico implícito na vida dos mártires ou a transcendência dos profetas e apóstolos se perdeu completamente e foi diluído em doutrinas escolhidas de acordo com a adequação social dos interesses culturais mais comuns. Tudo isto é tão complexo que nem vale muito a pena detalhar, basta dizer que o valor espiritual dos homens de hoje é completamente dependente das modas científicas que venha a surgir. 

3. Ciência moderna e utopias

É notável como o progresso e a ideia de que estamos caminhando em direção a um mundo melhor se deslocou da noção tradicional de triunfo do reino de Deus para a compreensão de que a aplicação da racionalidade humana seria suficiente para recriar no mundo terreno as condições do paraíso perdido, considero aqui a referência cristã por se a mais influente na consolidação das bases institucionais do Ocidente que fomentou e dominou o ‘mundo’ moderno. Tudo isto nos mostra também uma possível reinterpretação do dizer paulino, que em sua carta aos romanos falou que a fé cristã é racional (Rm. 12). No entanto, o que poucos enfatizam atualmente é a noção de inconformidade com este mundo que se segue naquele mesmo trecho. Este inconformismo não se trata de um abandono existencial ou um isolamento social, mas se refere a não se acostumar com a corruptibilidade e a fraqueza da vida as quais o homem ficou sujeito nos tempos históricos. 

Ao que tudo indica há um padrão na cultura e na história das religiões humanas em procurar restaurar via trabalhos e/ou rituais humanos aquele estado de perfeição paradisíaca evocada em quase todas as religiões tradicionais. Mas ainda assim, há em igual medida uma tendência destrutiva e decadente que acompanha feito sombra todos os grandes empreendimentos históricos dos homens, e esta é a tensão básica da vida humana na história. Segundo São Paulo, a corruptibidade humana e a morte tornam a criatura e a criação sujeitadas a uma condição de gemido e dor, ao ponto de ele comparar o atual estado das coisas criadas como uma mulher em trabalho de parto (Rm. 8:19-22). 

Esta visão dramática que São Paulo enfatiza em quase todas as suas cartas demonstra que, na percepção dele, o culto cristão enquanto tal precisaria ser racional, mas não segundo a racionalidade típica do mundo helênico de seu tempo para o qual a fé cristã era uma loucura, e sim conforme uma “transformação pela renovação do entendimento” (Rm. 12: 2). Esta transformação levaria ao conhecimento verdadeiro da vontade divina que, como falou Jesus Cristo, consiste em revelar a vida eterna para os homens (Jo. 12:50; Jo. 17:1-3). Assim, segundo este entendimento cristão primitivo seria a presença da corruptibilidade/mortalidade o fator decisivo para que a condição humana seja decadente e incompatível com a plenitude do reino de Deus. 

Durante o período que ficou conhecido como idade média ocorreu um grande afluxo de ideias filosóficas e religiosas que, grosso modo, procuravam reconciliar estas duas ideias cristãs aparentemente incompatíveis: a noção de eternidade e as demandas históricas de um mundo ainda sujeito a corrupção e a morte. Esta dicotomia se expressou com abundante eloquência na principal herança dos cristãos antigos para o cristianismo medieval que é a Cidade de Deus de Santo Agostinho. Naquela obra há uma preocupação em reafirmar a supremacia dos valores eternos, expresso na comunidade histórica cristã sobre os acontecimentos temporais e passageiros oriundos da deturpação que os homens fazem da vontade de Deus. Porém, em oposição a esta comunidade cristã metafísica sempre houve a presença da história dos homens ou aquilo que alguns podem considerar história profana da cidade dos homens. Segundo a tradição mais antiga do cristianismo esta dualidade presente nos aspectos históricos da igreja só poderia ser devidamente solucionada na revelação do juízo final. 

Mas, a despeito desta esperança escatológica cristã, o fato é que sempre houve ao longo da história dos povos em geral, e da cristandade ocidental em particular, uma tendência para unir forças em torno de uma causa maior e trans histórica que acabaram nas ideais políticas modernas levando o nome de utopias. Este estado utópico de ajuste social e de possível felicidade humana na terra passou a ser considerado não mais como um valor religioso direcionado pela vontade ativa de Deus junto aos homens, mas foi reinterpretado como uma missão humana de deixar para cada geração um tipo de melhoria que faça a vida em sociedade ser mais fácil e agradável aos homens. 

O pensamento de triunfo metafísico do reino de Deus foi reformulado pela filosofia moderna, e passou a ser considerado o mero direcionamento do espírito absoluto que, segundo Hegel, dialeticamente orientaria as ações históricas dos homens na terra. Mas, é importante destacar que esta ideia de progresso refeita pelos racionalismos modernos não está baseado na noção de eternidade individual (tal qual o cristianismo primitivo pregou), mas no aniquilamento da vontade e do valor dos indivíduos. Pois os indivíduos seriam meros ‘acidentes’ colocados a serviço do grande empreendimento abstrato da racionalidade impessoal que sintetizaria no tempo e espaço o significado dos homens individuais que tem apenas vidas curtas e passageiras. Ou seja, o progresso segundo a razão filosófica moderna perdeu seu contato com os ideais heroicos que impregnaram a história dos povos antigos, e que inclusive se expressou na era cristã por meio do heroísmo ‘invertido’ dos mártires da fé. 

4. As origens filosóficas da ciência moderna

Quando se pensa no espírito e na racionalidade que permeiam a cultura helênica do início do cristianismo, vê-se com nitidez duas tendências muito fortes que se impunham àqueles homens: a primeira dizia respeito a um aspecto mais moderado e que primava pela ordem e contenção dos instintos, presente nas obras homéricas ou em filósofos como Aristóteles. Porém, havia com alguma intensidade uma tendência oposta que se voltava aos aspectos passionais da vida humana expressando- -se principalmente no culto a divindades do êxtase espiritual como era caso de Dionísio e/ou Baco e que também teve seu correlato na filosofia platônica. 

Existia, porém, na Grécia antiga, muita coisa como a que podemos hoje entender por religião. Isso se relacionava não com os Olímpicos, mas com Dionísio, ou Baco, ao qual consideramos, muito naturalmente, como sendo o deus irrefutável do vinho e da embriaguez. A maneira pela qual surgiu, dessa adoração, um misticismo profundo, que influenciou grandemente a muitos filósofos, contribuindo mesmo para dar forma à teologia cristã, é notável, e deve ser compreendida por toda pessoa que deseje estudar o desenvolvimento do pensamento grego.” (RUSSELL, 1957, p.33)

Durante a redescoberta e o reaproveitamento das obras gregas no ocidente cristão, esta duplicidade do espírito e da cultura grega acabou fazendo o seu “eterno retorno”. De modo que, no período da renascença europeia (por volta do século XV) houve uma ênfase nos elementos passionais e estéticos da cultura clássica greco/romana, e apenas no momento do iluminismo e nas filosofias idealistas alemãs subsequentes é que ocorreu um esforço intelectual em reintegrar ao conhecimento o seu aspecto moral e ordenador do funcionamento social, baseando-se puramente na razão natural. Foi desta dualidade não conciliada que surgiu aquilo que podemos considerar a degeneração do próprio empreendimento científico moderno. Um grande autor que levantou este problema em sua filosofia foi o Nietzsche (1906), ele percebeu de um modo quase profético o desmoronamento daqueles intentos majestosos da civilização científica/moderna. 

Ou seja, mesmo se dizendo um anti cristão, o Nietzche (1906) acabou dando uma certa ‘ajudinha’ para a apologia cristã pós-moderna, pois ele conseguiu perceber de modo poético/dramático como aquele modelo sistematizador dos filósofos de sua época reduzia a potência humana ao extremo, transformando-a em mero objeto de uma razão impessoal/ trans histórica sem finalidade e/ou paixão tal como fizeram muitos dirigentes espirituais da igreja cristã no ocidente. O empreendimento da grande Ciência moderna estava fadado a repetir a história, reduzindo o ser humano real ao animal domesticado, dando -se a impressão que apenas mudou o nome do dono do gado (o que antes era a igreja nos seus representantes eclesiásticos, agora eram os filósofos e cientistas iluminados dos últimos séculos). De certa forma a constatação da morte de Deus não é um simples ato cético em relação a fé cristã, mas uma consideração altamente razoável acerca do significado metafísico que representa a crucificação do Cristo e a subsequente exaltação histórica do martírio e sofrimento como forma de redenção. Esta ideia, muito propagado entre nós, de que a morte do deus nietzschiano representa o anúncio da derrota final do cristianismo é um mero engano hermenêutico pois quem morreu foi o deus da metafísica, e sua morte se deu sobretudo porque seu poder não provinha de homens reais como aquele engendrado pelo cristianismo histórico, mas vinha sobretudo de certas ‘ilusões’ de conhecimentos ou teorias ‘absolutistas’. 

O próximo ponto que recairá esta análise está situado no problema fundamental das ciências modernas: os seus objetos e a adequação de seus métodos. O desenvolvimento do conhecimento humano sempre esteve associado aos valores religiosos, de tal modo que os grandes sábios desde a antiguidade eram parte ou mestres de algum tipo de religião ou rito específico. Durante o período de florescimento e desenvolvimento do pensamento filosófico clássico foi possível detectar uma preocupação para encontrar a verdade acerca do conhecimento sem necessariamente submeter-se ao relativismo do pensamento mítico tradicional. 

Considerava-se que a realidade sensível, por seu caráter efêmero, não era suficiente para garantir um conhecimento profundo e verdadeiro acerca dos seres existentes. Por isso, inicialmente era necessário estabelecer o fundamento primeiro no qual a realidade dos objetos sensíveis estava constituída, e isto só poderia ser acessível à razão humana. De tal modo que a diferença básica de nossa espécie passou a ser considerada a razão dialética ou a intelecção, que nos permitiria ter acesso ao objeto real em si e não ficar simplesmente na manifestação transitória que aparece e desaparece às percepções sensíveis de todos os animais. 

As elucidações oriundas das primeiras reflexões filosóficas poderiam conduzir a razão humana na direção da realidade verdadeira, que de acordo com a teoria platônica estaria guardada em um mundo apenas inteligível, daí a ênfase na razão como meio de libertação das ilusões típicas do conhecimento sensível que aparece no mito da Caverna. Depois de Platão há o trabalho de Aristóteles que ampliou os critérios lógicos para a compreensão da realidade, e sendo mais sistemático tornou-se o padrão tipológico para a ciência moderna posterior. Em Aristóteles já há uma grande descrição das principais ciências, estabelecendo seus respectivos objetos e inclusive indicando os modelos teorético e prático como as duas grandes divisões para a metodologia do conhecimento, também ele sistematizou os princípios gerais e norteadores da lógica, que são as famosas leis da identidade, da não contradição e do terceiro excluído. 

A particular transformação da sociedade helênica/romana naquilo que é chamado de cristandade ocidental permitiu que se preservassem de modo criterioso os produtos culturais gregos que melhor serviram e se adequaram aos valores sociais e espirituais cristãos. Com o nascimento do ocidente cristão tem-se uma gradual associação dos temas da filosofia com às questões de ordem teológica e/ou litúrgica o que ficou conhecida na história das ideias como época do escolasticismo. E apesar da prolixa e rica produção de conhecimento medieval, ocorreu um certo esvaziamento dos aspectos pragmáticos e instrumentais da razão, isto teve como consequência principal um maior aproveitamento dos elementos místicos/platônicos, principalmente o neoplatonismo cristianizado de Agostinho, com poucas referências ao aristotelismo. Somente a partir da grande obra de Tomás de Aquino houve uma reaproximação da lógica aristotélica, mas ainda assim conduzida a resolver questões de ordem teológica. 

O que marcou o fim da idade média foi o abandono do modelo escolástico e as grandes modificações sociais ocorridas no mundo cristão devido, principalmente, a divisão da cristandade ocidental por ocasião da reforma protestante. Estes e outros fatos históricos colaboraram para que ocorresse uma brusca emancipação da razão em relação aos elementos mais místicos e especulativos da fé cristã. Assim, as preocupações científicas modernas recaiam mais sobre como utilizar a razão para resolver os problemas imediatos da realidade dos homens do que aplicá- -la aos assuntos transcendentais oriundos das expectativas cristãs. Com isso, uma separação da fé e da razão foi sendo progressivamente produzida no interior dos círculos intelectuais europeus, certamente que esta separação nunca se deu de forma absoluta e total, pois as principais instituições de produção cultural e científica sempre preservaram em maior ou menor medida sua vinculação originária com a igreja cristã ocidental. 

Diante desta demanda de separação da fé, os homens modernos precisaram encontrar um meio eficaz para fundamentar as conclusões obtidas, e a legitimação se fez por intermédio do método científico, algo que alterou profundamente os homens do conhecimento. O método científico desencantou a realidade e acabou criando seu próprio encanto, especificamente aquele que vincula o real a verificabilidade dele. Para tanto, foi preciso recorrer a autoridade máxima da razão lógico dedutiva já tratada por filósofos clássicos como o Aristóteles, e assim o método matemático se tornou a grande inspiração para o modelo científico moderno. 

O grande filósofo dos séculos científicos, que é considerado por isso mesmo o pai intelectual da modernidade científica, foi o francês R. Descartes (1996), e ainda que seu modelo até hoje sofra com muitas críticas, é inegável que a aplicação deste método trouxe uma enorme facilitação para os modos de produção científica. Mas o racionalismo cartesiano não teria sido suficiente para conduzir a história dos avanços científicos se não fosse a introdução do modelo empirista que veio de autores britânicos como D. Hume, ele assim como outros pensadores foram fundamentais para garantir os resultados práticos que as ciências modernas obtiveram. 

A associação da racionalidade lógico/matemática com o modelo de experimentação e verificação empírica criou as condições para a aplicação em escala industrial dos conhecimentos produzidos pelos cientistas das universidades. Deste modo a universidade em geral e as associações científicas em particular foram se tornando parte da engrenagem da sociedade industrial, de modo que as principais invenções dos séculos XVIII, XIX e XX foram capitaneadas pela grande indústria e postas a serviço de todos os interesses econômicos e políticos destas épocas. Tal situação acabou criando um abismo entre as diversas disciplinas científicas e colapsou aquelas fronteiras entre o real imaginado pelos cientistas e a realidade vivida no cotidiano ordinário dos homens, pois as tecnologias e as descobertas científicas vêm recobrindo toda a realidade humana com sua funcionalidade e rapidez avassaladora. Tudo isso gerou o crescimento das especialidades e dos especialistas. O modelo de divisão do trabalho que foi largamente aplicado na economia moderna, aos poucos foi sendo implementado também no ambiente acadêmico. 

Os objetos científicos foram cada vez mais perdendo seu contato direto com a realidade vivencial dos homens da ciência e passou a ser tão somente um pequeno recorte da realidade, feito a partir das demandas industriais e da acelerada necessidade de novidades que a vida tecnológica passou a representar aos homens de todo o mundo. As ciências e seus objetos foram se vulgarizando ao ponto de se criar teorias científicas com a mesma rapidez que se produzia um sapato em uma linha de montagem. Mudava-se um ou outro aspecto superficial, mas de resto as ciências eram quase sempre repetições e por mais que seus objetos fossem diferentes, a metodologia era muito próxima. 

Conclusão

A técnica científica foi um meio pelo qual o homem moderno tornou possível fazer crescer seu domínio efetivo sobre o mundo, permitindo uma monumental capacidade de intervenção na realidade natural e social. Porém, neste lugar meramente instrumental, a ciência tornou-se um elemento dissociativo para a vida individual dos homens, e esta disrupção intelectual ajudou a criar vários problemas de ordem social, psicológica e política. Por isso mesmo que as fronteiras entre as disciplinas científicas tiveram de ficar bem definidas, garantindo que um determinado objeto fosse dissecado com o máximo de especificidade possível, evitando que uma disciplina científica invadisse o domínio da outra. Este fenômeno criou uma espécie de labirinto intelectual, pois na verdade o pensamento não pode ser algo tão repartido e fragmentário, sob pena de causar grandes dificuldades para o sujeito que pretende fazer de sua ciência algo que tenha sentido e valor real. 

O que ocorreu, principalmente a partir do período do pós segunda guerra mundial, foi que as grades curriculares acadêmicas se tornaram exatamente como o nome indica: um elemento de contenção e limitação para o conhecimento e pensamento humano. Daí começaram a surgir muitos e volumosos estudos onde as preocupações gerais estavam em torno de se definir ou redefinir o papel e as atribuições de cada domínio científico, como se isso tivesse alguma importância real. Ou seja, perdeu-se um tempo precioso em torno de definições enfadonhas e repetitivas que não geraram uma integração dos conhecimentos científicos no nível cultural maior. 

Parece que a queda da ciência moderna veio justamente no seu momento de maior produção e apogeu. Assim como ocorreu na escolástica medieval, muito do que se produziu no interior dos círculos acadêmicos foi tão tecnicista e inacessível ao grande público que, de modo geral, alguns pesquisadores se cansaram demais para no fim ter contribuído com pouca coisa. O que importa no final é exatamente aquilo que foi negligenciado, pois o mais instigante e excitante na ciência é a possibilidade que se tem de ampliar a capacidade de entendimento e reflexão humana. 

O homem não tem vocação para o automatismo, e ainda que nosso mundo moderno esteja impregnado de sistemas e processos automáticos, a capacidade reflexiva e imaginativa do ser humana sempre nos levará além. 

Conforme as ‘previsões’ (quase proféticas) de Hegel indicaram, o mundo de hoje parece estar mesmo posto a serviço de algum elemento impessoal e fantasmagórico que nos leva a trabalhar incansavelmente apenas em função de manter o estado das coisas futuras, coisas que têm um funcionamento dialeticamente infernal porque nunca se concluem de fato e está sempre numa perturbação de eterno retorno. A conquista da liberdade das vontades, desejos e valores individuais já não tem a menor importância dentro deste mundo no qual a validade da vida humana tem o mesmo peso de uma máquina funcional que opera segundo um programa pré-determinado. Chega-se a lamentável conclusão que a vida humana é só um completar de ciclo, cujo sucesso se alcança ao realizar uma tarefa com o mínimo de erros e paradas possíveis. 

Pode-se constatar que no atual momento da civilização ocorreu um deslocamento ou uma inversão do papel do homem em relação a ciência. O cientista é somente mais um operário do saber que, conforme sua especialidade permite, tem algum domínio meramente mecânico na ‘grande fábrica’ do conhecimento humano. Mas, olhando-se além das ilusões de domínio, o cientista e intelectual chega ao final de seus dias com os mesmos enfados do operário que cedeu sua força de trabalho pelo mera necessidade de manter sua vida vegetativa. Há luz no fim desse túnel? Certamente que há, mas para ver esta luz será preciso entender de mitos, especialmente o da Caverna. É irônico e engraçado perceber que só retornando para a Caverna poderemos sentir de novo o gosto renovador do conhecimento das coisas reais. E agora, que tal invertermos o Platão e brincarmos com aquilo que as luzes racionais nos mostraram ao longo destes séculos fora da Caverna? 

Depois destas longas explicações e sem medo de parecer pessimista quero evocar novamente as palavras de Fernando Pessoa, colocadas no início do texto. Ele demonstrou em sua prosa poética como o homem tem uma carreira próxima à dos animais, e ainda assim pode se diferenciar apenas e somente pela qualidade do sonhar ou pelos aspectos transcendentais da fé. A posse dos objetos de fé é o que de fato permitiria que o homem recuperasse seu vigor e interesse legítimo pela ciência e pelo viver. E, enquanto a ciência estiver ‘incorporada’ por este fantasma impessoal e grotesco de uma razão absoluta, sem paixão e sem vida será impossível uma real conformação da consciência individual com os conteúdos elaborados pelas várias gerações de cientistas. 

Portanto, pode-se concluir com algum fatalismo filosófico que o empreendimento científico é algo muito mais religioso do que gostaria de supor nossos mais recentes intelectuais, é preciso reconhecer o lugar de devoção que o conhecimento necessariamente carrega consigo. Sob o peso da ausência do Deus pessoal do monoteísmo judaico-cristão, os cientistas ocidentais modernos foram sutilmente direcionando sua devoção aos objetos estudados e as metodologias foram se degenerando em meros rituais de aproximação e iniciação para com estes objetos. Não seria um exagero tão grande considerar que a ciência, assim como a religião, foi capaz de produzir suas próprias idolatrias. Ainda que as imagens produzidas sejam diferentes, tanto os símbolos religiosos quanto os científicos têm sido colocados para a pessoa humana como entes de veneração e respeito paralisantes.

É possível prever que brevemente se supera a paralisia mortificante destas idolatrias criadas pelos cientificismos humanos. E belo dia acordaremos deste pesadelo das máquinas de conhecimento e perceberemos que nós sabemos o que sabemos. Saber que sabe é uma das melhores definições para o homem, algo que já está indicada no nome latino de nossa espécie: Homo sapiens sapiens. No fundo, o latim é mais conclusivo e verdadeiro que o grego antigo da socrática ignorância filosófica. Quando o Sócrates disse em algum momento “só sei que nada sei” ele deixou aos seus discípulos o maior de todos os enigmas para o conhecimento e para a ciência, e se bem compreendido este enigma tem poder de fertilizar qualquer mente humana, pois está implícito na frase a típica contradição lógica do nada. Ou seja, se você for tentar entender racionalmente o ‘pai’ da racionalidade ocidental possivelmente não conseguirá concordar com o peso da contradição sutil impregnada naquela célebre frase. Por outro lado, se olharmos para o mundo do conhecimento ao sabor dos apelos estéticos, então, não apenas compreenderemos a lógica socrática, mas participaremos ativamente do intento grandioso de ser filósofo. Afinal, filosofar não é nem nunca deveria ter sido uma mera profissão, quem fez do conhecimento objeto para ganhos ordinários, nunca compreenderá o sentido de pensar pelo amor da sabedoria, que é o significado mais sublime da palavra filosofia. 

A filosofia não é apenas a mãe e o fundamento das demais ciências, ela deve de ser a própria finalidade de todas elas. E a nobreza de fazer ciência repousa exatamente no sonho máximo de toda filosofia humana que é chegar a ter a pura liberdade de conhecer associada ao prazer de poder ser. A maior perda da ciência racionalista foi destruir o sabor extasiante da ignorância consciente. Ser consciente é o que há para o homem, isso lá é verdade, mas só quem chega a fundo na própria ignorância é que de fato pode sair de lá com alguma ciência na mente, e é isto o que poderíamos dentro de uma razão socrática clássica chamar de verdade. Pois, quem sabe do nada não apenas sabe de alguma coisa, mas sabe de muitas coisas, aliás, sabe de todas as coisas. Pois a verdade não é um mero conteúdo cognitivo feito para ou pela mente humana, ela é a própria liberdade da mente, e esta liberdade não reside em coisas sensivelmente ou intelectualmente acessíveis, nem se pode confundir com a razão e a sensibilidade em si, ser racional demais é tão desprezível e opressivo quando a passionalidade animalesca na qual tantos se degeneram. 

Portanto, vamos ouvir o antigo apelo de Sócrates e busquemos com zelo e paixão pela verdade impressa no saber sobre o nada. E não nos contentemos com o mero significado da palavra verdade, pois como encerrar em definições ou proposições aquilo que é a própria fonte da coisa existente. É por isso que pensar sempre poderá se confundir com devoção, pois retirar as coisas a partir do nada e conhecê-las em verdade é próprio da potência divina e está na essência de seu ser, quem consegue entender isso? Bom, só sei que a verdade é inconcebível até para as mentes mais brilhantes, não se pode ganhar nem perdê-la, só se pode no máximo parí-la (como já indicou nosso antigo filósofo). E, antes que alguém comece a achar alguma religiosidade misteriosa nestas palavras finais, deixem-me encerrar este texto com o poeta português que de fato tem sido toda uma verdadeira inspiração daqueles e destes tempos. Há metafísica bastante em não pensar em nada. 

O que penso eu do mundo? 
Sei lá o que penso do mundo! 
Se eu adoecesse pensaria nisso. 
Que ideia tenho eu das cousas? 
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? 
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma 
E sobre a criaçao do Mundo? 
Não sei. Para mim pensar é fechar os olhos 
E não pensar. 
É correr as cortinas 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas) 1914. (Fernando Pessoa, 2014, p.27) 

Referências

BÍBLIA, N. T. João e Romanos. In: A Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida. 4a ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. 

DESCARTES, René [1596-1650]. Discurso do método. Tradução: Maria Ermantina Galvão. - São Paulo: Martins Fontes, 1996. 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Vontade de Potência: ensaio de uma transmutação de todos os valores. (1906) In: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Nietzsche,%20Friedrich/Friedrich%20Nietzsche%20-%20 Vontade%20de%20Pot%C3%AAncia.pdf 

PESSOA, Fernando [1888-1935]. Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Org: Richard Zenith – 1a ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 

PESSOA, Fernando [1888-1935]. Antologia Poética. Org: Walmir Ayala; coordenação: André Seffrin. Ed. especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. 

RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Tradução de Brenno Silveira – São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.