A superaventura sapiencial: Breves relações de Shazam! Com o discurso de sabedoria da bíblia hebraica  
The sapiential superadventure: Brief relations between Shazam! And the wisdom discourse in the Hebrew bible 

Allan Macedo de Novaes *
Felipe Silva Carmo**
Thaís Camargos e Silva*** 
*Professor da Faculdade de Teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Contato: 
allanmnovaes@gmail.com
**Mestre em Estudos Judaicos pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: flps.carmo@gmail.com
***Bacharel em Publicidade e Propaganda pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Contato: camargosthaiss@gmail.com
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Resumo:

A relação das histórias em quadrinhos (HQ’s) com a religião, atualmente, representa uma abordagem de intenso interesse acadêmico. Desde o reconhecimento de que a chamada cultura de massa, expressa pelas HQ’s, pode comunicar conhecimentos religiosos, diversas narrativas receberam atenção da academia. A superaventura, isto é, a narrativa de embate entre super-heróis e super-vilões, também é alvo de investigações acadêmicas, e possui potencial teológico para expressar-se como discurso religioso. Uma das superaventuras passíveis de análise é a do super-herói Shazam, cujos poderes são provenientes de figuras divinas; uma delas, Salomão, é reconhecidamente judaico-cristã, e na Bíblia Hebraica costuma ser associada à sabedoria. Com isso em mente, o objeto deste trabalho é explorar brevemente as relações que o discurso sapiencial bíblico possui com a narrativa em quadrinhos da série de 12 volumes “Os desafios de Shazam. Para tanto, foi aplicada a leitura metodológica da análise do discurso, tomando como base algumas das principais características que regem os enunciados de sabedoria da Bíblia Hebraica. No fim, a série demonstrou a possibilidade de ser lida como uma “superaventura sapiencial”, justamente por apresentar elementos contextuais, linguísticos e comunicacionais comuns ao gênero sapiencial da Bíblia Hebraica.  

Palavras chave: Sabedoria; Shazam; Bíblia Hebraica; História em quadrinhos 

Abstract:

The relationship between comics and religion is an approach of intense academic interest. Since the acknowledgment that the mass culture expressed in comics can communicate religious knowledge, many narratives were focused on by the academy. The superadventure, i.e., the narratives on superheroes fighting super villains, is also academically investigated, and shows theological potential to be expressed as a religious discourse. Among the superadventures that could be analyzed is the one about the superhero Shazam, whose powers come from divine figures; one of them, Solomon, is acknowledgedly Judeo-Christian, who is usually related to wisdom in the Hebrew Bible. Bearing this in mind, this work aims at briefly exploring the links between the biblical wisdom discourse and the 12-volume comics series “The Challenges of Shazam!”. For this end, the discourse analysis method was employed, starting with some of the main traits of the Hebrew Bible wisdom literature. In the end, the series shows the possibility of being read as a “wisdom superadventure”, precisely for its presentation of contextual, linguistic e communicational elements also present in the Hebrew Bible wisdom genre.  

Keywords: Wisdom; Shazam; Hebrew Bible; Comic Books 

Introdução 

As Histórias em Quadrinhos (HQ’s) têm como finalidade contar histórias por meio de uma narrativa condensada em textos e imagens sequenciais. Por ser um gênero popular entre crianças e adolescentes, às HQ’s foi relegado o rótulo de “subgênero”, e sua utilidade chegou a ser associada a uma parcela da população de baixo nível cultural e capacidade intelectual limitada (RAMA; VERGUEIRO, 2006). Contudo, recentemente, não faltam estudos que demonstram a complexidade técnica da elaboração de narrativas que envolvem a ordenação de imagem e texto; além disso, também não faltam considerações acerca da profundidade e relevância do seu conteúdo cultural, que transcendem o nível do entretenimento e exprimem alta qualidade literária (VIEIRA, 2007; RAHDE, 1996; EISNER, 2013). 

As HQ’s são reconhecidas como forma de linguagem e expressão artística e, enquanto tais, por meio de suas narrativas, representam características da vida social, do mundo simbólico-cultural e do universo de valores de determinada sociedade. E, por conseguinte, “nesse exercício de criar, narrar e realizar uma leitura do mundo, as histórias em quadrinhos apresentam a religião; afinal a religião é parte indelével da cultura” (REBLIN, 2014, p. 164). Não raro, nesse sentido, estudos são realizados com o intuito de compreender as relações entre o fenômeno religioso e as histórias em quadrinhos, dos quais podemos sublinhar os trabalhos de Reblin (2012), que exploram o potencial teológico evidente na superaventura. Em seus termos, “a superaventura é uma narrativa mítica que conta uma história de salvação protagonizada por um herói, que é ritualisticamente rememorada e atualizada aos novos contextos” (REBLIN, 2012, p. 22). A partir dessa definição, assim como os deuses e os heróis clássicos, os super-heróis também atuam como projeções do potencial e da grandeza humana, personificando ideais e valores (religiosos ou não) de uma determinada sociedade. 

Dentre as superaventuras em quadrinhos que demonstram potencial teológico está Shazam – também conhecido como o “antigo Capitão Marvel” 1 . Shazam é o alter ego de Billy Batson, um jovem comum que trabalha como repórter de rádio até um dia ser levado por um estranho a um labirinto subterrâneo, onde encontra o Mago Shazam, que o outorga poderes e o designa à preservação da justiça no Universo. Ele recebe habilidades de seres lendários: a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, o vigor de Atlas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio (que compõem o acrônimo S.H.A.Z.A.M.). Para a transformação, acionada por meio de um relâmpago místico, basta que Billy Batson repita o nome do mago: Shazam! 

Neste artigo, o potencial teológico do personagem será analisado a partir de sua relação com a “sabedoria de Salomão”, um personagem religioso elementar da cultura judaico-cristã e essencial para o desenvolvimento das narrativas históricas da Bíblia Hebraica (ou o “Antigo Testamento” cristão). Salomão é retratado como um antigo rei sábio, cujas palavras de sabedoria, segundo a tradição, compõem os livros sapienciais: Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. Na narrativa bíblica, o elemento sapiencial (oriundo de “sabedoria”) é determinante para o desenvolvimento do personagem – tanto para ascensão quanto para queda. Por isso, os autores deste trabalho levantam a hipótese de que a sabedoria, como temática, pode ocorrer de maneira análoga na superaventura de Shazam, que utiliza da figura salomônica para compor uma das habilidades do personagem. 

Para que a leitura comparativa seja realizada, o método utilizado neste artigo será o de análise de discurso, conforme a elaboração de pesquisas acadêmicas na área de comunicação (AUSTIN, 1990; MANHÃES, 2011, p. 305-315; RODRIGUES, 1995). A análise do discurso pressupõe que a linguagem é um instrumento de comunicação que está em atividade (“em curso”, de discurso) no cotidiano; e que a significação é construída no interior da fala de um sujeito. No entanto, entende-se que o emissor estará cativo a uma linguagem, a um código, utilizado para expressar seu entendimento do mundo. Toda análise de discurso, na prática, é uma atividade que “desmonta” a fala para entender seu código linguístico e extrair dela seus possíveis significados. Como gênero discursivo, a “sabedoria” é expressa como linguagem em diversificados contextos culturais, e, assim, é capaz de repetir enunciados e fraseologias semelhantes por compor uma prática discursiva comum, principalmente quando relacionada às linguagens religiosas (CARMO, 2018a; 2018b). 

No âmbito da “conversa”, a análise de discurso incorpora elementos linguísticos e afirma alguns pressupostos, ou seja, as relações de sentido consagradas por determinados grupos sociais; e apresenta elementos implícitos – também consagrados por esses grupos -, que viabilizam a interação dos interlocutores. Esses elementos compõem um “cenário conversacional”. Assim, para um discurso ser analisado, devem ser identificados os seus indicadores discursivos, isto é, os elementos que são capazes de conferir a ele significado comunicacional. Eles podem ser resumidos basicamente nos que se seguem: (1) a pessoa: aquela que se apropriou da linguagem para construir o discurso. Essa pessoa, o locutor, o “eu”, se diferenciará do “tu” e do “eles” enquanto fala; (2) o tempo e o espaço: são, literalmente, os elementos que posicionam o discurso geográfica e temporalmente; e (3) a ação: isto é, uma ação simbólica e social representada em proposições linguísticas, enunciativas e estruturas lógicas universais que fazem sentido a qualquer situação (ato locutório). Ela pode ser identificada em elementos que transcendem a locução (ato ilocutório) e pelos vários elementos linguísticos que carrega (como o ato de afirmar, perguntar, informar, corrigir etc.), além de ser da mesma maneira representada nos papéis sociais (atos de “performance”). 

A fim de que esse objetivo seja cumprido, em um primeiro momento, (1) este artigo discutirá, no âmbito do diálogo entre teologia e comunicação, a possibilidade de falar a respeito de uma “superaventura sapiencial”; isto é, sobre o contexto teórico que possibilita a relação entre as HQ’s, a religião e a sabedoria nas narrativas de super-heróis. Em seguida, (2) como parâmetro metodológico, o artigo irá elaborar breves considerações sobre o gênero literário sapiencial na Bíblia Hebraica, a fim de apontar alguns elementos básicos para a composição de um “enunciado de sabedoria”. Por último, (3) as características discursivas sapienciais serão identificadas na série de 12 volumes “Os desafios de Shazam!”, originalmente publicada entre 2006 e 2008, a fim de entender como a religião é expressa na superaventura em análise por meio do elemento sapiencial. 

1. Prolegômenos para uma “superaventura sapiencial”    

Conforme mencionado na introdução deste trabalho, as HQ’s representam uma forma de linguagem, expressão artística e bem cultural. Por meio das narrativas que compõem o seu conteúdo, elas expressam características da vida social e do mundo simbólico-cultural e universo de valores de um grupo ou sociedade específicos (VIANA, 2005; REBLIN, 2010; 2013). Por isso, elas não configuram mero entretenimento: as HQ’s trazem narrativas que podem revelar o entendimento do mundo e da vida cotidiana, assim como o que se crê, espera, teme e anseia; podem revelar os valores, os temores e as projeções que um ser humano faz sobre si mesmo, suas crenças particulares e seu próprio universo. Há nelas alto grau de representatividade, e é por meio de signos e significados que a história se torna possível de ser lida, compreendida e reproduzida. 

Por conseguinte, é natural relacionar o universo das HQ’s com o da religião; não limitado a dogmas, mas entendido como valores e conjuntos de significação oriundos de crenças populares no subterrâneo da imagem e do texto: “o cenário, o enredo, os diálogos, as ações, os símbolos e os valores que se imiscuem nestes e a interatividade entre todos” (REBLIN, 2010, p. 13). Em outras palavras, “elementos religiosos remetem a valores, concepções de mundo e expressões de sentido que são caros à vida humana e que necessitam ser periodicamente reafirmados [...] com o intuito de manter uma ‘coesão social’” (REBLIN, 2014, p. 165). Essa relação entre HQ’s e religião, basicamente, se configura de formas distintas, que organizam o fenômeno religioso implícita ou explicitamente em níveis variados. 2 

Em termos especificamente teológicos, as HQ’s representam o que Rubem Alves chama de “Teologia do Cotidiano” (REBLIN, 2011; ALVES, 2006). Essa teologia não é elaborada na academia, mas é produção oriunda das experiências de pessoas comuns, no convívio diário; representa um conjunto de argumentações sobre ser, viver, crer, agir, suportar a dor, encarar a morte, e tudo o que está intrinsecamente relacionado à experiência cotidiana: “mutável, ambígua, funcionalista, subjetiva, maniqueísta, pragmática [...] ela reflete a interatividade, a busca por sentido e a dinâmica da vida social” (REBLIN, 2011, p. 64). A teologia do cotidiano é comumente evidenciada nas relações sociais, na arte e nos meios de comunicação; e é nesse sentido que as HQ’s podem ser lidas como uma espécie de “tratados teológicos”, ainda que rudimentares. 

Tanto as características religiosas quanto teológicas das HQ’s, por exemplo, podem ser encontradas no universo da “superaventura”, em que super-heróis e super-vilões se envolvem em batalhas místicas e sobre-humanas (REBLIN, 2012). Durante muito tempo, as histórias dos super-heróis foram entendidas como uma derivação do gênero da ficção científica, mas ao longo dos anos as narrativas assumiram particularidades, fazendo com que os estudiosos passassem a considerá-las como um gênero próprio. 

Na verdade, desde os primórdios são recontadas histórias sobre homens e mulheres capazes de feitos extraordinários, sendo o “herói” um arquétipo que não raro encarna os ideais do indivíduo e da sociedade (CAMPBELL 1990; JUNG, 2011). Grosso modo, heróis e deuses são figuras recorrentes em mitologias e, portanto, emergem do imaginário histórico-religioso, ou até mesmo alegórico, das sociedades das quais fazem parte. Na atualidade, os personagens de ficção que mais se aproximam dos arquétipos mitológicos antigos são os super-heróis, que surgem no século XX em decorrência das HQ’s (PAIVA, 2017; OLIVEIRA, 2017; KNOWLES, 2008). Assim como os deuses e heróis clássicos, os super-heróis são projeções do potencial e da grandeza humana, personificando ideais e valores anelados pela sociedade: 

Sua proximidade com os mitos antigos tanto em termos de estrutura narrativa, ao contar uma narrativa fantástica recheada de “deuses” e seus grandes feitos, ao ser uma história exemplar, quanto na representação da jornada do herói reforçam a ideia de que as histórias dos super-heróis são mais que histórias; elas são também — em termos narrativos — um jeito particular de se contar histórias (REBLIN, 2012, p. 95).

Histórias heroicas eram, assim, recontadas por sumérios, egípcios, gregos e incontáveis outros povos. Esse tipo de narrativa heroica (ou “monomito”) também se encontra em livros sagrados, como a Bíblia e o Alcorão, que apresentam uma lista extensa de personagens dessa categoria. Na Bíblia Hebraica, por exemplo, podem ser enumerados, entre homens e mulheres, Rute, Ester, Davi, Sansão, Daniel, Moisés, Gideão etc., todos inseridos em estruturas narrativas de diferentes níveis de complexidade, criatividade e emoção (BELLIS, 2007; KAMRADA, 2019; RABIN, 2020). Há, inclusive, quem possa eleger Davi como o ideal de heroísmo na Bíblia Hebraica, por agregar a si os ideais de masculinidade comuns à época: força, inteligência e beleza (CLINES, 1995, p. 212- 241). Além disso, não faltam comparações entre as narrativas de origem de Moisés e as do Super-Homem (PUMPHREY, 2019; LUND, 2016), evidenciando que, mesmo no âmago da superaventura, existe influência literária da Bíblia Hebraica sobre os heróis sagrados. 

Dentre as diferentes características dos heróis bíblicos, para o benefício deste artigo, cabe identificar e sublinhar uma peculiaridade temática que, vez ou outra, é inserida nos monomitos hebraicos: a sabedoria. Em outras palavras, em algumas estruturas narrativas heroicas da Bíblia Hebraica, o elemento “sapiencial” (oriundo de sabedoria) ocorre como virtude em torno da qual se estruturam os pormenores da narrativa. Há pelo menos três exemplos clássicos: (1) José (Gn 37–46), que é levado cativo ao Egito, mas supera as adversidades por meio do “espírito de sabedoria” conferido dos céus, elevando-o ao cargo mais alto da nação; (2) Salomão (1Rs 3:3–11:41), sucessor de Davi, que conquista fama e habilidade de governar por conta da sabedoria que lhe é outorgada pela divindade; e (3) Daniel (1–2), que foi cativo em Babilônia, local em que conquistou notoriedade e exerceu funções no alto escalão governamental por conta da sabedoria que conquistou pela misericórdia divina. 

A similaridade das narrativas supracitadas está na “virtude sapiencial”, habilidade medular para a evolução da narrativa, seja para o benefício ou para a decadência do herói. Essa peculiaridade já foi identificada por alguns estudiosos da Bíblia Hebraica desde o século passado (VON RAD, 1965; TALMON, 1963), e é elencada aqui como uma narrativa heroica de temática peculiar. Essa percepção será necessária para que o trabalho realize uma leitura comparativa entre os elementos do gênero sapiencial da Bíblia Hebraica e o universo de Shazam como evidência, em quadrinhos, de uma “superaventura sapiencial”.  

2. Elementos discursivos da sabedoria na Bíblia Hebraica  

Em contraste com a literatura grega e latina, a Bíblia Hebraica foi lida, durante muitos séculos, como a única fonte da verdade; e entendida como texto inspirado por Deus para orientação de seus leitores. Isso facultou o surgimento de uma abordagem unidirecional do texto, lido como manual dogmático, ocasionando o desinteresse literário acadêmico pela Bíblia Hebraica (FERREIRA, 2006; LIMA, 2014; MENDONÇA, 2010). No entanto, atualmente, entende-se que não deve existir rivalidade entre o caráter literário das Escrituras e sua visão como texto sagrado. A Bíblia Hebraica não tem o seu valor minimizado quando lida como um repertório de histórias; e sua teologia não entra em descrédito quando se interroga sobre o modo como as histórias são contadas. Na verdade, de acordo com Ferreira (2006, p. 3), “todo conteúdo dogmático que se proponha encontrar na Bíblia deve surgir como consequência da análise de suas formas e características literárias.” Em outras palavras, 

ler a Bíblia como literatura não deve causar desconforto a adeptos da concepção religiosa [...] e nada exige das muitas pessoas que, por suas próprias razões, têm uma visão cética ou não-comprometida da Bíblia. Quaisquer que sejam as nossas crenças religiosas, a Bíblia é o legado comum de todos nós, e deveríamos ser capazes de estudá-la, até certo ponto, sem entrar em controvérsia religiosa. [...] O importante é saber o que se faz, explicitar a nossa escolha e segui-la de modo consistente (GABEL; WHELLER, 2003, p. 17).

Por conseguinte, de uma perspectiva literária, a Bíblia Hebraica é composta por diversos gêneros discursivos, como a narrativa, a poesia, a profecia, o apocalipse etc.; cada um com peculiaridades de leitura e interpretação. Entre os diversos gêneros discursivos identificados na Bíblia Hebraica, há o gênero sapiencial (CARMO, 2018, p. 16-42). A princípio, o fenômeno sapiencial mais amplo, como literatura, provavelmente teve origem na Mesopotâmia e no Egito (LÍNDEZ, 2014; SILVA; LÓ, 2012; CERESKO, 2004). Especificamente, a literatura sapiencial na Bíblia Hebraica designa três livros do cânon protestante (Jó, Provérbios e Eclesiastes) e outros dois no cânone católico (Eclesiástico e Sabedoria de Salomão). Grosso modo, entende-se que a distinção entre o que pode ou não ser classificado como “sabedoria” ou “sapiencial” dependerá de dois elementos básicos: forma e conteúdo (LÍNDEZ, 2014; MURPHY, 1990; BROWN, 1996; PERDUE, 1994). Nos termos clássicos de Crenshaw (1981, p. 18): “Quando há um casamento entre forma e conteúdo, existe literatura sapiencial.” 

De fato, essa categorização do gênero sapiencial em forma e conteúdo, embora promovida entre os estudiosos, não pode ser encarada de maneira rígida; não há dúvidas de que o discurso sapiencial apresente suas peculiaridades, porém, suas idiossincrasias são flexíveis e adaptáveis a outros gêneros (CARMO, 2018, p. 108-124). Por isso, quando existe a necessidade de compreender o gênero sapiencial, tradicionalmente, os estudiosos costumam elencar alguns elementos discursivos, dos quais iremos enfatizar quatro para cumprir com os propósitos sugeridos neste artigo: (1) a cosmovisão sapiencial; (2) a linguagem sapiencial; (3) a relação entre instrutor e pupilo; e (4) a personificação da sabedoria. Ainda assim, a evidência ou ausência desses elementos não é dogmática para a leitura de um texto de sabedoria. Da mesma forma, eles não precisam ocorrer de maneira invariável, e costumam ser elaborados de forma flexibilizada 

Sobre a cosmovisão sapiencial, por exemplo, entende-se que o discurso de sabedoria deverá pressupor um funcionamento mecânico e impessoal da realidade, movida por fenômenos de causa e efeito. Essa visão de mundo só pode ser entendida por meio da experiência e da observação; ela é o palco para que os sábios possam distinguir entre comportamentos certos e errados, justamente por elencar as suas consequências, positivas ou negativas (VON RAD, 1972; EMERTON, 1979; SILVA; LÓ, 2012). Em outras palavras, os sábios se empenhavam em discernir as ordens e inter-relações ocultas que conferiam unidade, sentido, significado e propósito no mundo e nos eventos. A força propulsora responsável pela ordem e pelo propósito pertencem a YHWH, o único que pode entregar aos seres humanos a sabedoria necessária para interpretar e reagir aos eventos cotidianos. 

A submissão a essa lei assegura resultados positivos na vida, tais como saúde, riqueza, paz etc.; adverso a isso, a desobediência ocasiona resultados negativos e desastrosos, tais como doença, pobreza, tribulações etc. (KOCH, 1983; GRUENTHANER, 1942). A percepção de “mundo ordenado”, regido pela sabedoria, é particularmente observado em Provérbios 8:22-31, em que a sabedoria admite ter participado da criação ao lado de YHWH, sendo responsável, com ele, por estabelecer equilíbrio ao mundo. Disto, entende-se que a realidade é orientada por uma ordem cósmica pré-estabelecida; a felicidade e a prosperidade do ser humano são alcançadas apenas se a ordem das coisas é respeitada. Nesse sentido, a ordem cósmica e social é submetida a um padrão moral que se encarrega do resultado. Nas palavras de Ceresko (2004, p. 25), “uma vez discernida a ordem, os que são sábios podem comportar-se de acordo com ela, organizando sua vida e tomando decisões de maneiras mais adequadas à consecução do bem-estar do sucesso.” 

A sabedoria também se expressa por meio da linguagem sapiencial, que estará relacionada às estruturas de enunciação comuns a esse gênero. Em termos básicos, ela é expressa como doutrina ou ensinamento. Assim, normalmente ocorre em fraseologias proverbiais, máximas, ditados, sentenças e outras recomendações morais. Essa peculiaridade do discurso sapiencial o caracteriza, grosso modo, como discurso “didático”, e, por isso, com frequência inserido em contextos educativos (CRENSHAW, 1985; MURPHY, 1988; CLIFFORD, 1998). A linguagem sapiencial, por querer facilitar o aprendizado, não se utiliza de discursos complexos e abstratos, mas de exemplos pragmáticos envolvidos em uma estética frasal criativa: a sabedoria se imortaliza “não em pedra ou em madeira, mas em ditados fáceis e breves que o povo sabe apreciar e conservar” (LÍNDEZ, 2004, p. 32). 

No discurso sapiencial bíblico, a forma literária mais característica é o mashal (ou o “provérbio”), que inicialmente se aplicava aos ditos populares breves e incisivos, formados por uma frase única, fundamentados na experiência de vida dos povos (CERESKO, 2004; LÍNDEZ, 2014; SILVA; LÓ, 2012). A Bíblia Hebraica preserva alguns desses ditos sapienciais populares: em Ezequiel, por exemplo, encontramos: “Jerusalém, os outros usarão este provérbio a respeito de você: ‘Tal mãe, tal filha’” (Ez 16:44). Em Êxodo 21:24-25, lemos: “olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, machucadura por machucadura.” Em 1 Samuel 24:13[14], há também outro ditado popular hebreu, expresso em termos simples e objetivos: “dos perversos procede a perversidade.” De outra forma, os sábios também podem ampliar o mashal para englobar aforismos, enigmas, poemas numéricos, parábolas, sátiras, discursos comparativos e fábulas (CERESKO, 2004; LÍNDEZ, 2014; SILVA; LÓ, 2012). Em síntese, a linguagem apresentada no discurso sapiencial tem sempre a finalidade máxima de transmitir um ensinamento. 

Além da cosmovisão e da linguagem, o discurso sapiencial também é caracterizado por uma lógica de interação comunicacional, a saber, o diálogo entre o instrutor e o seu pupilo. São inúmeras as passagens em que os sábios instrutores, por meio da figura paterna, expõem a sabedoria como um bem ou um valor em si mesmo, fruto maduro de longa experiência pessoal ou coletiva (PEBERTON, 2008; MATTHEWS; BENJAMIN, 2006; ARAÚJO, 2000; LÍNDEZ, 2014). Essa sabedoria é transformada em doutrina que deve ser recebida como um bem comum, e transmitida às gerações futuras, a começar pelos jovens: “Filho, aprenda o que eu lhe ensino e nunca esqueça o que mando você fazer. Escute os sábios e procure entender o que eles ensinam” (Pv 2:1); “Filho, não esqueça os meus ensinamentos; lembre sempre dos meus conselhos. Os meus ensinamentos lhe darão uma vida longa e cheia de sucesso” (Pv 3:1-2). Não se nasce com a sensatez ou com a prudência, típicas da sabedoria, é necessário aprendê-las com os mais antigos e experientes. 

Disto, implica-se que o processo de ensino-aprendizagem sapiencial não era automático, mas algo que pressupunha esforço pessoal. Esses ensinamentos eram transmitidos por meio da instrução, que poderia ser realizada no palácio real, em que os príncipes e nobres recebiam ensinamentos dos sábios; na aldeia, em que o escriba ensina ao seu discípulo; ou mesmo em casa, quando os pais transmitem aos filhos a sabedoria de seus antepassados. Embora seja realizada em ambientes distintos, todos eles pressupõem o ensino; e a metáfora manifestada nas expressões “pai e filho” indicam apenas a posição hierárquica do mestre e do aprendiz, o experiente e o leigo. 

Um último elemento característico do discurso sapiencial, especialmente no que diz respeito à Bíblia Hebraica, é a personificação da sabedoria. No universo da literatura existe um recurso de linguagem denominado “personificação”, que consiste em atribuir características ou ações humanas a objetos inanimados, a conceitos ou a seres irracionais. Esse recurso é comumente utilizado nas fábulas, e pode ser evidenciado na Bíblia Hebraica (Sl 77:16; Is 55:12). O discurso sapiencial, por exemplo, insiste nesse recurso quando a personagem principal, a própria sabedoria, é personificada em uma mulher (Pv 1:20-33; 8:1-21; 9:1-12; LOPES, 2007; CERESKO, 2004). Um fenômeno literário semelhante é recorrente no antigo Egito, que atribui a sabedoria à antiga figura egípcia de Ma’at, personificação da “justiça” e da “ordem” no mundo (CERESKO, 2004, p. 52; SILVA; LÓ, 2012); a noção de Ma’at era representada por uma deusa com uma pluma na cabeça, simbolizando a leveza e a fragilidade da ordem cósmica. 

Essa representação é especialmente percebida em Provérbios. A figura da mulher, por exemplo, aparece personificada como conselheira no decorrer do livro (Pv 1:20-33; 9:1-12). Aliás, o próprio desfecho da obra alcança o ápice de sua instrução apresentando duas figuras femininas distintas: (1) a primeira representada como “mãe do rei Lemuel” (Pv 31:1-9), e (2) a segunda descrita como um ideal feminino, “mulher virtuosa”, que, por suposição, é apresentada ao jovem aprendiz como exemplo prático de virtude e sabedoria (Pv 31:10-31). Não obstante às descrições anteriores, ainda em Provérbios, a figura da mulher é performance de duas personagens que conduzem o aprendiz à vitória ou à decadência (Pv 7; 9). Essas figuras femininas se confrontam no livro: por um lado a “sabedoria” convida o jovem à vida sensata, conduzida pela disciplina e pela honestidade; por outro lado, a “mulher adúltera” ou “mulher loucura”, tenta conduzir o aprendiz à vida desregrada, movida pela perversão, pela violência e pela luxúria (LOPES, 2007, p. 50-107). Em todo caso, a utilização da figura feminina em Provérbios parece ocorrer como argumento de alto grau persuasivo. 

Assim, embora não sejam elementos determinantes ou exaustivos para o reconhecimento do discurso sapiencial, as características elencadas neste momento são, tradicionalmente, associadas a esse discurso, principalmente na Bíblia Hebraica. A sabedoria atua num palco de causa e efeito, dentro de uma cosmovisão ordenada por YHWH, composta por uma mecânica específica e um propósito bem definido. Ela se expressa, em termos fraseológicos, por meio de provérbios, máximas, ditados entre outras construções comuns ao ambiente educativo. Nesse ambiente, poderiam interagir diversos personagens, mas a lógica de comunicação ocorria entre duas funções principais: o mestre e o aprendiz. Por fim, não raro no discurso sapiencial a sabedoria é personificada na figura feminina, um artificio literário útil para a comunicação dramática do conhecimento sapiencial. 

3. O discurso sapiencial bíblico em “Os desafios de Shazam!” 

A série utilizada como objeto de análise deste artigo, “Os desafios de Shazam!” (em inglês “The Trials of Shazam!”), foi escrita por Judd Winick e ilustrada por Howard Porter (para as primeiras oito edições), e por Mario Cascioli para o restante, somando o total de 12 volumes. Publicada entre 2006 e 2008, ela emerge de um contexto narrativo mais amplo, e se apropria de elementos mais antigos para a elaboração de uma nova aventura. Na série, por exemplo, Billy Batson, o Shazam tradicional, não atua como protagonista da história, mas Freddy Freeman, que já foi apresentado como “Capitão Marvel Jr.” na Whiz Comics #25, em 1941. No entanto, em “Os desafios de Shazam!”, Freddy irá performar de maneira inovadora as funções primordiais do Shazam, tomando assim o título de “campeão” no lugar de Billy Batson. Dessa forma, a narrativa segue elementos de um enredo já anteriormente introduzido em Infinite Crisis (2005), Day of Vengeance (2005) e Brave New World (2006) pela DC Comics. 

Figura 1 - Capa do primeiro volume de “Os desafios de Shazam!” 

É evidente, mesmo em uma leitura superficial da série, que ela pretende redefinir alguns conceitos antigos relacionados a Shazam e, principalmente, enfatizar ainda mais a sua identidade mágica e mística. Além disso, tanto a arte quanto a nova abordagem parecem “atualizar” o antigo Capitão Marvel a uma nova audiência pretendida pela DC. Na história, o poder da magia que confere equilíbrio à realidade é desestabilizado; a morte do antigo mago exige que uma nova hierarquia seja estabelecida para a administração de uma nova era. Nesse contexto, Billy Batson toma o lugar do mago e escolhe para si um “novo campeão” para carregar o nome de Shazam, Freddy Freeman. No decorrer das 12 edições, Freddy deve se provar digno dos poderes de Shazam e, para tanto, se submete a provas aplicadas pelos deuses detentores das habilidades almejadas (Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio). 

A série “Os desafios de Shazam!” foi particularmente selecionada para esta análise por estar recontando a narrativa de origem do herói, mas agora com o foco em um novo personagem. Embora a Whiz Comics #2 de 1939-1940 introduza Billy Batson como Shazam e, assim, desenvolva os elementos contextuais e simbólicos que regem a superaventura, “Os desafios de Shazam!” retomam tais elementos de maneira mais profícua, abrangente e explicativa com o foco em um novo protagonista: Freddy Freeman. Essa peculiaridade facilita uma análise acadêmica mais criteriosa devido à riqueza de conteúdo e profundidade de discussão possibilitados pela narrativa. 

O primeiro elemento de cunho sapiencial na série é a cosmovisão. É comum nos textos sapienciais o pressuposto de uma realidade mecânica que, por recorrência de fatores positivos ou negativos, pode ser desequilibrada. Para os sábios, a ação sapiencial corrobora com a ordem universal e, por consequência, contribui para a restauração da vida. Na série analisada, vemos Shazam reconhecendo a mesma necessidade de introdução à narrativa como um todo. Na verdade, é justamente o desequilíbrio universal, ocasionado por forças malignas, que constrói um prólogo para a aventura do super-herói. A resolução desse problema é o objetivo final da história e, por conseguinte, o seu desfecho. 

Na trama de “Os desafios de Shazam!”, a morte do antigo mago desestabilizou a ordem mundana, e o poder da magia carece de um novo guardião. Esse evento ocasionou resultados catastróficos com a libertação das forças sombrias e alteração de papeis: o primeiro eleito como Shazam, Billy Batson, agora toma o lugar do antigo mago; de forma análoga, o novo mago (Billy Batson) escolhe para si um pupilo, Freddy Christopher Freeman, que atuará como o novo Shazam. 

Figura 2 - Shazam (Billy) se responsabiliza pela ordem no mundo 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 1, p. 20. 

Figura 3 – O novo mago (Billy) explica a Freddy (novo Shazam) a situação caótica do planeta 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 1, p. 13. 

O problema central da narrativa, o desequilíbrio da realidade, é retomado constantemente no decorrer da aventura – ver, por exemplo, v. 1, p. 16, 20; v. 2, p. 9, 13. Ele é finalmente resolvido no desfecho da história, em que Freddy demonstra-se digno para atuar como o novo Shazam e, assim, reequilibrar a magia que rege o mundo. O cenário de “desequilíbrio mágico” que confunde a ordem mundana, na série, pode ser interpretado como “cenário conversacional”: isto é, um conjunto de pressupostos necessários, e prévios, para a elaboração de um discurso específico, neste caso, o de sabedoria. A superaventura sapiencial em “Os desafios de Shazam” não depende apenas da aparição de uma força inimiga, mas também de um outro problema, de cunho estrutural, que ameaça a integridade e a ordem no mundo. 

Outro elemento discursivo característico do gênero literário sapiencial bíblico é a relação entre o instrutor e o pupilo no processo educativo. Depois de reconhecer que a ordem do mundo precisa ser restabelecida, ambos os personagens (Billy e Freddy) concordam que existe a necessidade de uma nova estrutura na hierarquia do mundo mágico. Como já mencionado, a nova hierarquia é composta pelo novo mago (Billy Batson) e o novo Shazam (Freddy Freeman). Contudo, ela não ocorre de maneira automática: para que a ordem universal seja reestabelecida, o novo Shazam precisa comprovar a sua dignidade e conquistar a simpatia dos deuses que lhe outorgam super-poderes (Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio). Para que a sua missão seja bem-sucedida, Freddy necessita da sabedoria e da instrução de Billy, que possui experiência como antigo Shazam e, em suas próprias palavras, “[teve] que crescer” (v. 2, p. 15). A partir da relação de discipulado entre Billy e Freddy inaugura- -se o processo de aprendizado sapiencial, estruturado na interação de mestre e aluno, experiente e leigo. 

Figura 4 - Billy se apresenta como novo mago 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 2, p. 15. 

Figura 5 – Billy concede a Freddy os poderes de Shazam 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 2, p. 17. 

Figura 6 - Billy explica as condições para receber os poderes de Shazam 

 Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 2, p. 16. 

Nos quadros acima, o antigo Capitão Marvel afirma: “Esses dons não lhe serão dados. Eles devem ser ganhos.” O ganho da sabedoria indica um processo de ensino meritocrático, muito comum ao discurso sapiencial, exigindo do pupilo esforços intensos no processo de ensino- -aprendizagem. Para que ele alcance o conhecimento e poder pleno concedido pelos deuses, é necessário participar e ser aprovado em um conjunto de testes pré-estabelecidos. 

Naturalmente, essa dinâmica para a comunicação do conhecimento pode ser associada à relação de instrutor e pupilo encontrada nos escritos sapienciais. Para os povos do Antigo Oriente Médio (AOM), a imagem do sábio ou instrutor estava vinculada à de uma pessoa mais velha, que comprova possuir experiência de vida – Billy, por exemplo, chega a ser ilustrado com cabelos longos e brancos (Jó 32:6-9). No entanto, a figura do instrutor em “Os desafios de Shazam!” também pode ser atribuída a outros personagens que instruem Freddy em sua jornada. Os próprios deuses ao longo dos desafios assumem esse papel. Entre muitos outros, contudo, a figura que permanece mais próxima do protagonista e é capaz de oferecer instruções mais imediatas é Zareb Babak, designado para ser o “guia” de Freddy. 

Figura 7 - Freddy chega ao encontro do seu novo guia 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 2, p. 18. 

Figura 8 - Primeira conversa entre Freddy e Zareb 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 2, p. 19. 

O fato de possuir muitos mestres ou instrutores não é negativo ao discurso sapiencial bíblico. Pelo contrário: há, inclusive, a máxima proverbial bíblica que ensina: “na multidão de conselhos, há segurança” (Pv 11:14; 5:13). Em todo caso, o discurso sapiencial torna-se ainda mais esclarecedor quando identificada a interação de ambas as funções: o(s) mestre(s) e o discípulo. Na lógica discursiva, elas funcionam dentro da estrutura comunicacional eu-tu, em que o locutor (o sábio) é o responsável pela apropriação do discurso. No gênero literário sapiencial é natural que os enunciados sejam elaborados dentro de uma lógica comunicacional semelhante, com a especificação de que haverá sempre quem ensina e quem aprende. 

Outra característica oriunda do discurso sapiencial bíblico – e inclusive a maioria dos discursos sapienciais, em geral – é a enunciação em si, o modelo fraseológico comum ao gênero da sabedoria e do conselho: a linguagem sapiencial. Ela é entendida como doutrina, ensinamento ou conjunto de recomendações transmitidas por meio de provérbios, conselhos, sentenças, ditados, máximas, enigmas etc. – todos elaborados de maneira pungente, criativa e objetiva. Esse detalhe discursivo é, de fato, o mais característico do enunciado sapiencial e ocorre com expressiva frequência em “Os desafios de Shazam” (v. 2, p. 18-19, 22; v. 4, p. 15; v. 5, p. 14, 22, 7; v. 6, p. 2). Na série, é possível identificar inúmeras situações em que conselhos específicos são dirigidos a Freddy na intenção de capacitá-lo a cumprir com sua missão, e receber os poderes de Shazam. 

Figura 9 - Primeira lição de Zareb a Freddy 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 2, p. 22. 

Figura 10 - Pronunciação de um “provérbio” 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 5, p. 22. 

Figura 11 - Pronunciação de “conselhos” 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 4, p. 15. 

Como mencionado na fundamentação teórica deste artigo, no discurso sapiencial bíblico, a fraseologia característica da sabedoria é o mashal, que poderá ser compreendido como um guarda-chuva para diversificadas formas literárias que compõem o discurso sapiencial: o provérbio, o enigma, a parábola etc. Todos eles são utilizados com finalidade estritamente didática, e normalmente comunicados de um mestre a seu discípulo. Por isso, conforme demonstrado nos exemplos acima, na maioria das ocasiões em que Freddy confronta um desafio para conquistar os poderes de Shazam, também se depara com um “deus-instrutor” que não economiza conselhos criativos e úteis para a conquista de seus objetivos heroicos. O mashal, nesse sentido, cumpre o que, no discurso, se caracteriza como a ação simbólica social expressa por meio de proposições linguísticas e enunciativas específicas: o ato locutório ou, talvez, a própria performance característica do discurso sapiencial. 

O último elemento característico do discurso sapiencial bíblico em “Os desafios de Shazam” é a personificação da sabedoria. Conforme demonstrado no tópico anterior, o livro de Provérbios se utilizada da “sabedoria”, como conceito, de forma personificada (Pv 1:20-33; 8:1-21; 9:1- 12). A personificação é útil como ferramenta discursiva para persuasão no livro. A relação da sabedoria com o feminino, aliás, não se restringe a esse artifício retórico: do início ao fim, o leitor de Provérbios é confrontado com figuras femininas; de um lado, a figura que leva à perdição, e do outro a que conduz à vida (Pv 7; 9). Em todo caso, de uma forma ou de outra, o feminino é incorporado em Provérbios com frequência para seduzir o leitor à sabedoria ou à estultice. 

No terceiro capítulo da série analisada, Freddy precisa se encontrar com Salomão, o representante da sabedoria, para assumir o lugar do antigo Capitão Marvel e se tornar oficialmente Shazam. No entanto, Salomão, o ícone da sabedoria bíblica, é ilustrado na série como uma mulher, denominada “Zalmman”, que em ídiche – uma língua indo-européia adotada pelos judeus – é traduzido como “Salomão”. A preferência por uma mulher para “encarnar” a sabedoria, na série, segue a tradição retórica sapiencial no que diz respeito à personificação de seu conceito. 

Em Provérbios, independentemente de sua função, a figura da mulher é indispensável para a iniciação do personagem às virtudes sapienciais, e o mesmo ocorre em “Os desafios de Shazam”. 

Figura 12 - Apresentação de “Zalmman” como Salomão 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 3, p. 22. 

Figura 13 - Freddy e Zareb discutem o aspecto feminino de Salomão 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 3, p. 23. 

Nesse contexto, é perceptível a relação entre o discurso sapiencial da Bíblia Hebraica e “Os desafios de Shazam!” expressa na personificação da sabedoria como uma mulher. Na história analisada, não só os conceitos relativos à sabedoria são associados à imagem feminina, mas o próprio Salomão. Como constatado anteriormente, na Bíblia Hebraica, a sabedoria é associada à imagem feminina que se manifesta em primeira pessoa, alertando e aconselhando seus ouvintes. A mesma função é atribuída à personagem Zalmman, que atua como representação de Salomão na narrativa e, por conseguinte, como a própria personificação da sabedoria no contexto bíblico. 

Cabe ainda observar que no decorrer da narrativa, Freddy Freeman não tem como objetivo único vencer os desafios estipulados pelos deuses: ele também possui uma rival, “Sabrina” (ou “Sabina”, em inglês). Essa personagem é eleita pelo Conselho de Merlin para competir contra Freddy pelos poderes de Shazam, que, conforme mencionado, estão à disposição daquele que se provar digno de recebê-los. Nesse caso, a figura feminina em “Os desafios de Shazam!”, curiosamente, não apenas ocorre no nível da instrução e da personificação da sabedoria. Análoga à Bíblia Hebraica, particularmente em Provérbios, a figura da mulher é apresentada como rival do aprendiz, e como empecilho para a aquisição de todas as virtudes vinculadas à sabedoria e, em geral, à vida plena, em consonância com a ordem universal. 

Figura 14 - Apresentação da vilã Sabrina, que lutará pelos poderes de Shazam 

Fonte: Os desafios de Shazam!, 2006, v. 3, p. 11. 

É possível que cada elemento discursivo considerado nesta análise, caso aprofundado, possa render ainda mais resultados e paralelos discursivos entre “Os desafios de Shazam!” e o gênero literário sapiencial na Bíblia Hebraica. Em todo caso, as intersecções estabelecidas neste artigo corroboram à noção suficiente de que o discurso sapiencial encontra espaço nas superaventuras de Shazam; e, a exemplo da série analisada, pode ser expresso de pelo menos quatro formas diferentes. 

Considerações Finais   

Atualmente, os estudos direcionados às HQ’s também englobam o fenômeno religioso, justamente por ser uma particularidade de qualquer sociedade. Em outras palavras, se e possível falar da cultura por meio da análise de HQ’s, também é inevitável explorar seus elementos religiosos. Dentre os gêneros que possibilitam a intersecção entre teologia e quadrinhos, por exemplo, está a “superaventura”, comumente representada por embates superpoderosos entre heróis e vilões nas HQ’s. Este trabalho tomou como objeto de pesquisa a série “Os desafios de Shazam!”, com o objetivo de estabelecer relações discursivas entre a narrativa e o gênero literário sapiencial da Bíblia Hebraica, a fim de argumentar a favor de uma narrativa de “superaventura sapiencial”, isto é, concentrada no tema da sabedoria. 

O discurso sapiencial identificado em “Os desafios de Shazam!” parece girar em torno dos elementos do gênero literário sapiencial, conforme lido e interpretado na Bíblia Hebraica. A princípio, a história toma como pressuposto a cosmovisão sapiencial, que afirma a existência de um universo ordenado e incentiva a manutenção da ordem por meio de bons procedimentos morais. Na HQ, Freddy Freeman é escolhido como novo candidato a Shazam para que a ordem universal seja reestabelecida e a magia possa ser regida pelas forças benéficas do mundo. Além disso, para que os desafios sejam cabalmente cumpridos, o protagonista precisa colocar-se em condição de aprendiz, seguindo os conselhos e admoestações de Billy Batson, o antigo Shazam, de Zareb Babak, que no final da história se revelará como Zeus, e outros deuses introduzidos na narrativa. Essa lógica de comunicação didática, método de ensino- -aprendizado, é natural do discurso sapiencial, que procura estabelecer uma hierarquia entre mestre e discípulo, professor e aprendiz. 

A série também se utiliza com frequência da linguagem sapiencial quando pretende comunicar virtudes específicas ao protagonista. Em diversas situações, Freddy Freeman se vê alvo de provérbios, enigmas, conselhos e outras expressões fraseológicas que compõem o gênero literário sapiencial na Bíblia Hebraica – e em outros contextos fora do universo bíblico. Além disso, a sabedoria, assim como em Provérbios, é personificada em “Os desafios de Shazam!” como uma mulher; na verdade, tanto na referência bíblica quanto na HQ o protagonista-aprendiz é confrontado com uma pluralidade de figuras femininas que poderão ou não o conduzir ao sucesso. A personagem Sabrina, na narrativa, é introduzida como a figura feminina que disputará os poderes de Shazam e, assim, atua como a vilã que investe na decadência do personagem, análoga à “mulher loucura” de Provérbios. 

É possível que outras peculiaridades sapienciais sejam identificadas na série, caso o estudioso se aprofunde nos conceitos apresentados neste trabalho ou explore outros que não foram mencionados aqui. Em todo caso, o alinhamento do discurso sapiencial bíblico com o identificado na série “Os desafios de Shazam!” pode ser evidência de uma “superaventura sapiencial”: uma narrativa de embate entre super-heróis e super-vilões que gira em torno de elementos relativos à sabedoria na Bíblia Hebraica. 

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Notas

[1] “Capitão Marvel” foi o nome conferido ao atual Shazam em sua primeira reelaboração ainda em 1939, com a estreia da Whiz Comics. Após um período sem qualquer publicação ou referência ao personagem, e devido ao nascimento da Marvel Comics juntamente com o registro de um personagem com o mesmo nome a partir de 1967, a DC Comics resolveu rebatizar o personagem como “Shazam” embora, naquela época, ainda reclamasse para si o título do “Capitão Marvel original” (Shazam! #1).  

[2] Segundo Reblin (2014, p. 172): (1) quadrinhos produzidos por instituições religiosas, onde se inserem narrativas que apresentam doutrinas ou crenças específicas; (2) quadrinhos com temas reconhecidamente religiosos, que incluem histórias de personalidades, líderes, lendas, sagas etc.; (3) quadrinhos com religião como ilustração contextual, em que a religião não aparece diretamente na narrativa, mas como uma ilustração do universo simbólico-cultural dos personagens; e (4) quadrinhos como expressão das estruturas simbólicas religiosas.