A narrativa da criação nos versos da mulher que enganou o diabo
The narrative of creation in the verses of the woman who deceived the devil

Alair Matilde Naves
Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)Contatoprofessor.alairnaves@yahoo.com.br


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ResumoEste artigo apresenta uma aproximação entre a literatura de cordel e o texto bíblico de Gênesis 1 - 2, em vista de uma releitura da narrativa da Criação nos versos de A Mulher que enganou o Diabo, de Manoel D’Almeida Filho. A perspectiva é de uma possível intertextualidade, como uma espécie de diálogo entre as construções textuais da Bíblia e do cordel. A teopoética direciona este artigo, considerando o entendimento de Antônio Manzatto e José Carlos Barcellos como pano de fundo da aproximação entre a teologia e a literatura. A metodologia é a pesquisa bibliográfica e a leitura analítica dos livros, promovendo a compreensão do imaginário cordelista sobre a Criação nos sete mandatos de Maria da Conceição e a comparação com a narrativa bíblica. O poeta põe em versos o sonho de um lugar bom de se viver, um paraíso sem sofrimento e desigualdade, onde não há espaço para o mal e nem para o Diabo. 

Palavras-chave: Cordel; Diabo; Exorcismo; Paraíso; Teopoética

Abstract: This article presents an approximation between “literature de cordel” and the biblical text of Genesis 1 to 2, in view of a rereading of the narrative of Creation in the verses of The Woman who deceived the Devil, by Manoel D'Almeida Filho. The perspective is of a possible intertextuality, as a kind of dialogue between the textual constructions of the Bible and cordel. Theopoetics directs this article, considering the understanding of Antônio Manzatto and José Carlos Barcellos as the background for the approximation between theology and literature. The methodology is the bibliographical research and the analytical reading of the books, promoting the understanding of the cordelistic imagination about Creation in the seven mandates of Maria da Conceição and the comparison with the biblical narrative. The poet puts into verses the dream of a good place to live, a paradise without suffering and inequality, where there is no room for evil nor for the Devil.

Keywords: Cordel; Devil; Exorcism; Paradise; Theopoetics

Introdução

Em nossa dissertação de mestrado (NAVES, 2019, p. 25-26), descrevemos a literatura de cordel como uma manifestação cultural que transmite em versos, por meio da escrita, cantigas, poemas e histórias do povo pelo próprio povo. Compreendemos que o nome de cordel teve origem em Portugal, onde os livretos, antigamente, eram expostos em barbantes, como roupas no varal. Vimos também que no Brasil, a literatura de cordel é caracterizada, principalmente, pela poesia popular, que aparece inicialmente na forma oral passando histórias de geração para geração, assumindo posteriormente a forma escrita em livretos populares. O nome de cordel foi mantido com a apresentação destes livros ao público pendurados em varais nas feiras e praças, especialmente no nordeste brasileiro.

Sendo uma manifestação muito mais cultural do que intelectual, a literatura de cordel, ou simplesmente cordel tem como característica a simplicidade de sua estrutura, a musicalidade na cadência de seus versos e a narrativa monotemática dos enredos dispostos em cada um de seus livros. É um tipo de literatura que se destaca em regiões onde a cultura é mais valorizada no meio do povo. A realidade e o contexto nordestino brasileiro se tornaram o palco principal do desenvolvimento cordelista, carregando nos versos os mitos e os símbolos da cultura popular. 

Manoel D´Almeida Filho (1914-1995) é considerado como o maior poeta cordelista de todos os tempos. Nasceu em 1914, no município de Alagoa Grande, próximo a Campina Grande (PB), cidade, onde se deu seu encontro decisivo com a literatura de cordel. Quis aprender o ABC para decifrar as palavras nos folhetos, tornando-se, com isso, leitor habitual do gênero. A narrativa do folheto A Mulher que enganou o Diabo (ALMEIDA FILHO, 1986) descreve em 118 estrofes de seis versos a história de Maria de Conceição, uma mulher bonita e trabalhadora que se casou com um homem preguiçoso chamado Pedro Botelho. 

Pedro Botelho fez um pacto com o Diabo em troca de riqueza e Maria da Conceição faz uma aposta com o Tinhoso para resgatar a alma de seu esposo. A aposta é registrada num contrato assinado com sangue, no qual Maria prescreve sete mandados para que o Diabo realize no prazo de um ano sua obra cuidadosamente arquitetada.

A teopoética direciona nosso trabalho na perspectiva das afinidades e aproximações entre a literatura, a linguagem poética e a linguagem religiosa. O diálogo entre literatura e teologia visa trazer à luz o mistério da existência humana. A teopoética alcança a poetização da experiência mística, do encontro com o divino que é invisível aos olhos. Faz-se necessário entender a Teopoética como uma maneira de fazer Teologia. 

O enfoque de nossa leitura teopoética é o de uma possível intertextualidade entre a narrativa do cordel e o texto bíblico. Compreendemos que intertextualidade, nada mais é, do que a influência ou relação entre dois ou mais textos, analisando as referências, aproximações e ou distanciamentos existentes entre eles. A intertextualidade é uma espécie de diálogo entre as construções textuais tanto no conteúdo quanto na forma, ou nos dois juntos. 

1 Teopoética: literatura como teologia

Partindo da realidade do ser humano, teologia e literatura são manifestações culturais que contribuem para a apropriação de si e daquilo em que se acredita. O cotidiano da vida pode ser compreendido a partir das manifestações culturais. Muitos teólogos têm reconhecido o especial “contributo da literatura para uma abordagem da realidade do ser humano” (BARCELLOS, 2008, p. 41) entre o bem e o mal, entre a graça de Deus e o pecado do ser humano.

Para Barcellos, a teopoética pode ser compreendida como a arte de perceber e compreender “a teologia construída e veiculada pelas obras de um autor estudado, sustentando que a literatura pode ser em si mesma uma forma de teologia” (BARCELLOS, 2008, p. 49). Por teologia, entende-se um discurso de um conhecimento teológico, e, por literatura, uma forma vital e concreta, não-teórica e não conceitual de conhecimento da realidade humana e do mundo por meio de imagens e símbolos. Entre a literatura e a teologia o problema da interpretação vem à tona, uma vez que interpretar é algo que está no cerne da existência humana. O ser humano é um ser interpretante e buscador de sentido, e é livre para fazê-lo, pois 

Na vida real, cada indivíduo ou grupo tem o direito inequívoco de interpretar os textos literários como bem lhe aprouver. Com efeito, numa ordem democrática, não há nenhuma instância investida de poder capaz de desautorizar ou proibir uma qualquer leitura particular, pelo menos na medida em que esta se mantiver no âmbito da atribuição de sentidos, sem tirar daí consequências pragmáticas, as quais evidentemente já estariam sujeitas à legislação e às outras estruturas de poder vigentes. (BARCELLOS, 2008, p. 58). 

Diante de uma obra literária, a leitura será sempre do universo de um leitor, e é esta leitura que completa aquele determinado sentido da obra: o do leitor. Supõe-se o interesse do leitor e sua atenção a determinados aspectos do texto em detrimento de outros que poderão ser postos à margem. De tal modo, o universo do leitor e sua compreensão poderão acrescentar sentidos pertinentes ou não ao texto lido. 

Quanto à dinâmica que se estabelece em nossa leitura, acompanhamos Cantarela, na perspectiva de que nossas buscas 

direcionam-se ao polo do texto, no sentido de identificar nele um conteúdo religioso, um traço literário, uma correlação possível. Entretanto, o ato da leitura configura um processo cujo polo dinamizador, em correlação ao mundo do autor e ao texto, situa-se no leitor e no seu mundo. (CANTARELA, 2015, p. 109).

Quem seria esse leitor? Esse leitor é graduado em filosofia e teologia, especialista em Ensino Religioso e mestre em Ciências da Religião. Seu interesse de ler um folheto de cordel em correlação com o âmbito do sagrado brota de sua dissertação de mestrado, que versou sobre as representações do Diabo no Cordel de Manoel D’Almeida Filho (Naves, 2019, 232 f.: il). 

Segundo Barcellos (2008, p. 53-144), a literatura é um lócus privilegiado de compreensão da realidade humana em sua profundidade, por ser capaz de apreender um sentido para a existência. Este sentido procurado pelo ser humano configura o modo como Deus se dá a conhecer, o que faz da literatura um lócus que exige da teologia uma reflexão em busca de uma fé mais autêntica. A literatura é posta como lugar de desvelamento de sentido, de revelação divina. É nesse sentido que empreendemos o trabalho exposto neste artigo. 

Na perspectiva teopoética, é preciso destacar ainda a liberdade da literatura em relação à teologia dogmática para expressar novas formas e imagens teológicas possíveis, uma mudança de paradigmas no modo de fazer teologia. Assim, qualquer obra literária poderia ser submetida a uma leitura teológica. Para Antônio Manzatto (1994, p. 9), a teologia pode considerar a literatura como mediadora para se fazer a leitura da realidade humana e chegar às esferas reais da dimensão antropológica, pois o escritor, mesmo que não o faça de forma explícita, manifesta a dimensão religiosa que se faz presente no humano. E ainda, 

Se ela (a literatura) interessa à teologia como mediação para leitura do real vivido, isso acontece enquanto ela se esforça por abordar a problemática humana de uma forma que lhe é particular. É nesse sentido que a obra literária pode ser teológica ou apresentar um poder teológico. Essa teologia que se encontra presente na obra literária pode ser explícita, se o autor é cristão ou se ele ocupa-se de um tema teológico, ou então ser implícita ou latente, se o autor não é cristão ou apenas expressa experiências humanas outras que a religiosa. No fundo, o escritor trata do religioso mesmo se ele não o faz explicitamente, pois o homem tem um lado religioso, e é nesse aspecto que se encontra o interesse do teólogo, mesmo porque o religioso pode ser experimentado em uma linguagem que não é religiosa ou ao menos não explicitamente religiosa. (MANZATTO, 1994, p. 68-69).

A importância da literatura para a teologia se estabelece na medida em que a problemática humana se torna conteúdo das obras literárias, mesmo que conteúdos religiosos não sejam explícitos nelas, “pois, o caráter antropológico da literatura que é importante para a teologia” (MANZATTO, 1994, p. 69). A literatura consegue alcançar aspectos da realidade que não o são pelas ciências sociais e até mesmo pela filosofia.

Para Barcellos (2008, p. 126), a literatura não é apenas fonte de subsídios para a reflexão teológica, mas um lugar possível, relevante e pertinente, para a produção do discurso teológico. Uma obra literária, na perspectiva de sua capacidade de revelar e iluminar o mistério do humano e sua verdade, deve ser considerada como teológica: quanto mais humana, mais próxima do teologal. Em seus estudos, Barcellos afirma a possibilidade de recolher intuições teológicas que possam estar contidas na literatura e avaliar sua relevância teopoética. 

Neste empreendimento, dispomos um paralelo entre os versos extraídos da narrativa de A Mulher que enganou o Diabo (ALMEIDA FILHO, 1986) e o texto bíblico da Criação, de Gênesis 1 - 2. Buscamos uma aproximação possível entre os mandados de Maria da Conceição e os dias da Criação da narrativa bíblica. Percebemos que a alusão é um recurso intertextual aplicado na redação do cordel da Mulher que enganou o Diabo. A alusão é uma menção a elementos de outro texto. É uma intertextualidade que acontece de maneira indireta e sutil e pode não ser compreendida pelo leitor se ele não conhecer o texto originário, o bíblico. No cordel, a alusão é feita de forma implícita, apesar de o autor cordelista mencionar explicitamente personagens bíblicos relacionados com o tema da narrativa da criação, como Adão e Eva.

A aproximação entre o Cordel e a Bíblia será disposta de modo que as informações apresentadas possam auxiliar numa possível releitura do relato bíblico a partir da narrativa da Mulher que enganou o Diabo. A sequência dos textos segue a disposição que melhor aprouve ao estudo feito, acompanhada de uma análise comparativa e comentários. Destacamos ainda alguns elementos significativos das narrativas. A versão bíblica usada neste estudo é da Bíblia Católica Online, citada nas referências. 

2 No princípio: do Caos ao Cosmos

O poeta cordelista parte do nada que se tornou a vida de Maria depois da morte de seus pais. A vida de Maria se transformou num caos, ainda mais ao casar-se com Pedro Botelho, homem preguiçoso que queria ficar rico num pacto com o Diabo. 

Maria da Conceição
Perdeu os pais pequenina,
Ficou sozinha num sítio
Ao lado de uma colina,
Trabalhando para que
Deus lhe melhorasse a sina.
Apesar de ser bonita
Casou com um preguiçoso
Que, além de não trabalhar,
Chamava pelo Tinhoso...
Maria todos os dias
Reclamava do esposo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 19).

No decorrer da narrativa, o cordelista estabelece um ordenamento de recriação na vida da mulher. A sequência da obra empreendida pelo Diabo não segue a mesma ordem da Criação apresentada pela narrativa bíblica. O poeta cordelista coloca uma certa desordem naquela sequência dos dias da Criação bíblica, que são misturados e invertidos e circunscritos em seis mandados realizados.

No texto bíblico, Deus é o arquiteto do universo na obra da Criação que vê que tudo é bom ao final de cada dia. 

No princípio, Deus criou os céus e a terra. 
31 Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia. (GÊNESIS 1,1.31).

Deus organiza o mundo a partir do caos (desordem, vazio, confusão) e termina sua obra com o ordenamento do cosmos (beleza, equilíbrio, bondade). Na obra da Criação de Deus: sobrevém a tarde e depois a manhã.

No desenrolar da narrativa cordelista é a mulher bonita que se revela como arquiteta da obra realizada pelo Diabo, deixando-o desmantelado ao final. Na obra empreendida pelo Diabo: vem a noite quando o trabalho é realizado, entregando cada mandato ao final de cada noite, ou seja, pela manhã do dia seguinte. Assim, o Diabo promete a Maria: 

Para não haver demora
Quero logo começar.
Diga o primeiro mandado
Para que eu possa aprontar – 
Seja o que for – pela noite
E de manhã entregar. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 9).

Na narrativa bíblica, Deus, em sua sabedoria, criou o céu e a terra e selou a Criação com o dom da vida entregando toda a obra aos cuidados do homem e da mulher:

27 Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. 
28 Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." 
29 Deus disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. 
30 E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda erva verde por alimento." E assim se fez. (GÊNESIS 1,27-30).

Na perspectiva cordelista, a cada mandado realizado Maria estabelece o mandado seguinte, não dando prazo para o Diabo perceber que o que fizera estava bom. Os elogios feitos recaem sobre o Diabo e não sobre sua obra. Ele, ao ser reconhecido como macho e valente, fica todo derretido pensando no resultado do contrato. 

Maria foi ver e viu
As casas todas com gente;
Disse: – Muito bem, querido,
Agora fique contente;
Você está me provando
Que, além de macho, é valente. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 18).
O preto, ouvindo Maria, 
Ficou todo derretido,
Olhou-a de cima a baixo
E disse todo enxerido:
– Eu quero você inteira
E a alma do seu marido. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 19).

A liberdade poética do cordel transcende a ordem temporal e não tem a mesma lógica de ordenamento do caos do Gênesis, em que o poeta bíblico coloca a obra da Criação ao longo de sete dias com uma sequência crescente no desenrolar da própria obra: do nada para o tudo. Deus coloca ordem no caos, elevando-o a cosmos – o universo.

Na narrativa do capítulo 2 de Gênesis encontramos outra versão da história Criação em que o homem apareceu primeiro e só depois foi criada a mulher para lhe fazer companhia, uma ajuda que fosse adequada ao homem. A mulher foi tomada do homem (da costela) e passou a viver junto dele. Os dois vivem em harmonia no mundo criado por Deus. 

18 O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.” 
21 Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. 
22 E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. 
23 “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem”. (GÊNESIS 2,18.21-23)

Observamos que a mulher surge na narrativa bíblica depois da proibição de comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, cf. os versículos 18 a 23, e a proibição está disposta nos versículos 15 a 17:

15.O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden, para cultivar o solo e o guardar. 
16.Deu-lhe este preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; 
17.mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente. (GÊNESIS 2,15-17)

No cordel, a mulher apareceu na narrativa antes do homem. Ela é o primeiro personagem a entrar em cena, só depois surge Pedro, o homem que se tornou seu marido. O casal vivia em desarmonia, aquele homem não foi a companhia adequada: era preguiçoso e beberrão. Pedro, apesar das advertências de sua esposa, chamava pelo Tinhoso e oferecia sua alma a ele em troca de riqueza.

– Não chame por Satanás,
Que não precisamos dele.
O marido respondia:
– Eu confio tanto nele
Que, se me desse riqueza,
Eu daria a alma a ele. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4).

O poeta situa as condições em que Maria vivia com seu esposo para depois estabelecer a sequência da narrativa, a aposta, o contrato assinado pelo Diabo e o desenrolar da realização da obra por meio dos mandados. 

3 Sete mandados e sete dias: a obra do Diabo nos mandados de Maria

Manoel D’Almeida Filho dispõe os sete mandados de Maria no desenrolar da narrativa dos trabalhos executados pelo Diabo. Maria é a arquiteta de toda a obra realizada pelo Tisnado[1], conforme sua assinatura no contrato. Ela administra sem pestanejar um mandado após o outro, sem dar descanso ao Diabo. Ele, pensando unicamente nas duas almas e no corpo de Maria, executa paulatinamente cada mandado, e só no final percebe a cilada em que se meteu. 

No sétimo mandado o Diabo “descansou” de seu trabalho, pois não pode realiza-lo. Perdeu a aposta no sétimo mandado por se tratar de algo irrealizável por um Diabo: construir uma Catedral Católica que coubesse todos os santos, um altar para cada santo. Prescrevia também a construção de um altar principal para o sacrifício do Cordeiro e uma torre com um cruzeiro. O Diabo estaria construindo sua própria destruição ao realizar tal mandado. Assim, preferiu admitir que estivesse sendo enganado pela mulher, como veremos a seguir. 

No texto bíblico toda a obra da Criação foi entregue ao homem e à mulher. Depois de serem expulsos do Paraíso, o casal teve que trabalhar para ganhar o pão com o suor do rosto – o trabalho ficou aplicado como castigo. 

No Cordel toda a obra realizada pelo Diabo ficou como propriedade para a mulher e ela repartiu com seu marido e com os seus protegidos. No paraíso arquitetado por Maria, todos unidos trabalhavam e repartiam o lucro entre si – o trabalho ficou aplicado como benção. Este quadro social e econômico da cidade construída talvez expresse o sonho de uma sociedade igualitária e justa presente na esperança do povo. 

Ao final da narrativa, o Diabo é quem foi expulso para o Inferno e Maria ficou com o paraíso. Na narrativa não consta que Maria tenha mandado construir uma Catedral posteriormente. Consta apenas que o casal ficou feliz e liberto do Tinhoso, imune contra as desgraças e louvando a Deus Todo-Poderoso. 

A seguir, apresentamos os mandados e os dias da Criação tomando como ponto de partida o cordel, objeto primeiro de nosso estudo. A cada mandado, citamos o texto bíblico de forma comparativa para uma aproximação entre as duas narrativas. Os dias da Criação, conforme o texto bíblico não seguem o ordenamento cronológico do cordel, mas acompanham a leitura dos mandados de Maria.

3.1 O primeiro e o sétimo mandados: o primeiro e o segundo dia da Criação

Do caos floresce a Criação. No princípio, a terra estava informe e vazia, e de um abismo coberto de trevas Deus criou o mundo. A vida de Maria chegou às trevas da infelicidade, sem os pais e casada com um homem ruim e preguiçoso que chama por Satanás. Da vida infeliz nasce o novo mundo de Maria.

A obra arquitetada pela mulher aparece exuberante já no primeiro mandado. Compreende a casa e o terreno ao seu redor, sendo uma construção de 100.000 metros quadrados e um só teto, em dois andares, com salões e salas para todos os fins. Ao redor da construção temos parques, pomares, passeios, jardins e caramanchões, flores perfumadas, campos de jogos com tapetes e gramados, além de diferentes flores coloridas e perfumadas pelos jardins.

Veja bem, quero uma casa
Pelo seguinte projeto:
Com cem mil metros quadrados
Cobertos com um só teto
Que possa fazer inveja
Ao mais perito arquiteto.
O prédio com dois andares
É para ser construído 
Com um bom material
Perfeitamente escolhido
Para que depois de pronto
Fique todo dividido
Em muitos salões e salas,
Servindo a todos os fins:
Parques, pomares, passeios,
Caramanchões e jardins,
Para as realizações
Dos importantes festins.
Que tenha campos de jogos
Com tapetes e gramados
Conforme a necessidade
Dos esportes programados
Dentro dos campeonatos
Pelos times disputados.
Que tenha pelos jardins
As mais diferentes flores
Com os melhores perfumes
Fortes, embriagadores,
Exalados também das
Rosas de todas as cores. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 12).

O Diabo cria a casa do mundo de Maria durante a primeira noite para entregar nas primeiras horas do dia. Este foi o começo de tudo na obra realizada pelo Diabo.

Então, no dia seguinte,
Às cinco horas chegou
E disse:– A casa está pronta!
Enquanto a noite passou
Fiz tudo em algumas horas
Como a senhora mandou. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 13).

Do caos para a luz, ‘faça-se a luz’. O texto bíblico apresenta a terra sem forma e o começo de tudo, o dia e a noite, os céus e as águas:

A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 
3 Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita. 
4 Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. 
5 Deus chamou à luz dia, e às trevas noite. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia.
6 Deus disse: "Faça-se um firmamento entre as águas, e separe ele umas das outras". 
7 Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. 
8 E assim se fez. Deus chamou ao firmamento céus. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o segundo dia. (GÊNESIS 1,2-8).

Sobrevém a tarde e a manhã, estabelecendo a casa mãe, depois da separação entre a luz e as trevas, com o teto firmamento e as águas debaixo dele. 

No cordel, Maria explicita seu propósito à luz de sua fé antes mesmo do contrato com o Diabo 

E digo mais – fique certo – 
Com a fé que tenho em Deus,
Se o Diabo vier aqui
Com os falsos planos seus,
Há de perder o trabalho
Para os argumentos meus. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 5).

E é à luz da fé de Maria, representada na imagem da catedral católica e no sacrifício do cordeiro, conforme explicitada no sétimo mandado, que se separa o bem do mal, figuração de luzes e trevas. Diante da luz da fé de Maria o Diabo perde o duelo. No mandado não cumprido a luz se fez no paraíso de Maria:

Quero agora que construa
Uma catedral católica
Que caiba todos os santos
Da união apostólica
Para ser interpretada
A ciência parabólica.
Com altares para todos –
Sendo maior o primeiro
Para celebrar o santo
Sacrifício do cordeiro –,
E na torre da matriz
Quero um bonito cruzeiro. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 21).

O negro ficou tremendo
De beiço branco, amarelo
E disse: – Estou desgraçado,
Careca, roto, banguelo;
Caí em uma armadilha,
Sei que perdi o duelo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 22).

O início e o final da obra de Maria se encontram entrelaçados na dimensão de sua fé. De tal modo, o cordelista coloca entre a assinatura do contrato, o primeiro e sétimo mandados uma textura de entrelaçamento entre fé, confiança e certeza do sucesso da obra arquitetada por Maria e realizada pelo Diabo. Não é estabelecida uma planilha antecipada da obra a ser realizada, mas o desfecho revela que estava tudo muito bem delineado nos planos de Maria desde o começo. O fato de não contar tudo quanto está planejado revela sua astúcia, de modo que possa enganar o Diabo. Maria deixa com ele apenas o desejo crescente de levá-la par ao inferno juntamente com a alma de Pedro.

3.2 O segundo mandado: o terceiro dia da Criação

Depois de dar formato à terra, Deus ordena a produção de plantas, ervas e árvores frutíferas.

11 Deus disse: "Produza a terra plantas, ervas que contenham semente e árvores frutíferas que deem fruto segundo a sua espécie e o fruto contenha a sua semente." E assim foi feito. 
12 A terra produziu plantas, ervas que contêm semente segundo a sua espécie, e árvores que produzem fruto segundo a sua espécie, contendo o fruto a sua semente. E Deus viu que isso era bom. 
13 Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o terceiro dia. (GÊNESIS 1,11-13).

Maria ordena a criação de um roçado de cereais e verduras. Um roçado com cem quadros de cinquenta, campo arado com cereais e verduras, feijão, milho, quiabo, couve, maxixe, jerimum, melancia. Pode-se perceber na descrição um roçado típico nordestino, com plantas da região.

Maria disse: – Então vá
Fazer agora um roçado
Com cem quadros de cinquenta; 
Quero o campo todo arado,
De cereais e verduras
Rapidamente plantado. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 13).

O Diabo age apressadamente durante a noite para entregar a tarefa na manhã do dia seguinte:

Tisnado saiu a noite
E voltou ainda escuro.
No dia seguinte disse:
– o meu trabalho foi duro.
Mas o roçado está pronto
E já tem feijão maduro.
Também muito milho verde – 
Pode quebrar qualquer dia
Para pamonha e canjica,
Se é que a senhora aprecia –,
Quiabo, couve e maxixe,
Jerimum e melancia. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 14).

O Diabo se apresenta de forma cortês e amistosa para entregar os frutos de seu trabalho noturno. Maria parece não dar elegância a tal cortesia, pois logo em seguida estabelece o mandado seguinte.

3.3 O terceiro mandado: o quinto dia da Criação

Maria ordena a criação de uma barragem de vinte léguas rio acima, mas em forma de desaterro, imitando o mar – a chã: terra abaixo da planície – e manda encher de peixes de todas as espécies, inclusive vindos do mar, de água salgada adaptado para água doce, dentre eles uma baleia. Para uma obra tão ousada o Diabo chama seu povo infernal para ajudar nos trabalhos e usa a tecnologia para cumprir o mandado cientificamente difícil. A barragem é comparada ao oceano pacífico.

A mulher disse: – Está bem,
Quero que vá aprontar
Uma barragem bem feita
Para a água represar
Vinte léguas rio acima,
Que fique imitando o mar.
A barragem deve ser
Abaixo daquela chã,
No rio que fica ao lado
Com muito curimatã,
Traíra, pirarucu,
Tubarão e curimã.
Maria disse: – Eu entendo
Que esses peixes são pescados
Nas águas do oceano
Mas quero-os adaptados
Por você, para que sejam
Na água doce criados. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 14).

Do mesmo modo, o Diabo realiza a obra durante a noite e volta na manhã do seguinte. 

Quando o Tisnado saiu
Já estava escurecendo,
Só voltou no outro dia
Alegremente dizendo:
– A barragem ficou pronta
Quando estava amanhecendo.
Com o meu povo disposto
Foi um trabalho honorífico,
Usei um computador
Pelo lado científico...
Tem muito mais água que
No oceano Pacífico.
Peixes de muitas espécies
Das águas doce e salgada,
Tem até uma baleia
Com a boca escancarada
Que pode engolir até
Uma barca carregada. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 15).

Na sequência bíblica, Deus separou as águas da terra e formou o mar, povoou a terra e o mar de uma infinidade de seres vivos. 

9 Deus disse: "Que as águas que estão debaixo dos céus se ajuntem num mesmo lugar, e apareça o elemento árido." E assim se fez. 
10 Deus chamou ao elemento árido Terra, e ao ajuntamento das águas Mar. E Deus viu que isso era bom. 
20 Deus disse: "Pululem as águas de uma multidão de seres vivos, e voem aves sobre a terra, debaixo do firmamento dos céus." 
21 Deus criou os monstros marinhos e toda a multidão de seres vivos que enchem as águas, segundo a sua espécie, e todas as aves segundo a sua espécie. E Deus viu que isso era bom. 
22 E Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, e enchei as águas do mar, e que as aves se multipliquem sobre a terra." 
23 Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o quinto dia. (GÊNESIS 1,9-10.21-23).

Deus viu que tudo era bom e abençoou suas criaturas, enquanto o Diabo exibiu seu trabalho honorífico, tecnológico e científico. Maria deu os parabéns ao Diabo, sorriu e ordenou de imediato o mandado seguinte.

3.4 O quarto e o quinto mandados: o quarto dia e parte do sexto dia da Criação

Na organização do tempo e do espaço, enquanto Deus organiza a natureza, os espaços e o tempo, os dias e os anos, Maria organiza a cidade, os espaços públicos e os armazéns para a garantia do povo.

Maria disse sorrindo:
– Receba meus parabéns,
Agora vá construir 
Uma rede de armazéns
Para que o meu povo tenha
Guardados todos os bens. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 15).

Com o sorriso de Maria, o Diabo se encheu de prazer e foi realizar tudo até a manhã do dia seguinte. Nem percebeu que estava sendo enganado.

Com aquele sorriso doce
O preto quase explodia
De prazer e disse logo:
– Senhora dona Maria.
Vou fazer os armazéns
Antes que amanheça o dia. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 15).

Porém não sabia que
Estava sendo enganado,
Por isso fez o trabalho
Com esmero burilado
E bem cedo disse: – Pronto,
Foi tudo realizado. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 16).

O mandado dos armazéns espelha a visão administrativa e organizadora de Maria em sua obra. Colocando ordem na organização de seu povo e dos bens, a mulher coloca cada coisa em seu lugar.

No relato bíblico, o Criador organiza o tempo e o espaço, administra a claridade do dia e a escuridão da noite, estabelece os dias e os anos, colocando sua obra de forma articulada

14 Deus disse: "Façam-se luzeiros no firmamento dos céus para separar o dia da noite; sirvam eles de sinais e marquem o tempo, os dias e os anos, 
15 e resplandeçam no firmamento dos céus para iluminar a terra". E assim se fez. 
16 Deus fez os dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite; e fez também as estrelas. 
17 Deus colocou-os no firmamento dos céus para que iluminassem a terra, 
18 presidissem ao dia e à noite, e separassem a luz das trevas. E Deus viu que isso era bom. 
19 Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o quarto dia. (GÊNESIS 1,14-19).

Na obra de Maria encontramos uma cidade com 10.000 casas, ruas alinhadas, espaçosas e limpas, calcadas de pedras, áreas de lazer, praças arborizadas. Nota-se a arquitetura de uma cidade bem planejada.

A mulher disse: – Querido,
Você é bom de verdade,
Quero que vá hoje mesmo
Construir uma cidade
Com dez mil casas bem feitas
Cobrindo a localidade.
Ao redor da minha casa
Quero ruas alinhadas
Muito limpas espaçosas
Todas com pedras calçadas
Com áreas para lazer
E praças arborizadas. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 16).

O Diabo aceita a tarefa e convoca sua turma infernal para auxiliar na execução e entregar tudo a Maria antes do dia clarear. O Diabo tem pressa em terminar sua aposta e se dispõe logo a realizar as tarefas seguintes: 

O preto não vacilou – 
A tarefa foi aceita –,
Convocou a sua turma,
Executou a receita;
Antes do claro do dia
A cidade estava feita. 
Parecendo estar cansado
O preto chegou dizendo:
– Mais uma etapa está pronta!
Fiz um trabalho estupendo,
O que quer que faça mais?
Diga, que quero ir correndo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 17).

Na obra de Deus encontramos a multiplicação dos seres vivos sobre a terra, toda espécie de animais selvagens e domésticos, conforme os versículos que relatam a primeira parte do sexto dia.

24 Deus disse: "Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie." E assim se fez. 
25 Deus fez os animais selvagens segundo a sua espécie, os animais domésticos igualmente, e da mesma forma todos os animais, que se arrastam sobre a terra. E Deus viu que isso era bom. (GÊNESIS 1,24-25).

A criação da diversidade animal e seu ordenamento sobre a terra segundo cada espécie dimensiona a grandeza da obra divina como uma cidade bem planejada e bem organizada. 

A segunda parte do sexto dia corresponde à Criação do ser humano, que preferimos colocar no sexto mandado de Maria, correspondendo à recriação do ser humano resgatado com dignidade do caos social, como veremos a seguir.

3.5 O sexto mandado: o sexto dia da Criação

Deus faz o homem à sua imagem e semelhança.

26 Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra." 
27 Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. 
28 Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." (GÊNESIS 1,26-28).

A criação do homem no paraíso de Maria inclui todos os necessitados, todo tipo de gente à sua imagem e semelhança social. Ela ordena ao Diabo o resgate de quem está no caos social, os necessitados. Por sua vez, ele cumpre a tarefa até a manhã do dia seguinte:

Quero que vá procurar
Pessoas necessitadas,
Pobres, famintas, sofridas,
Que não possuam moradas,
Por elas, amanhã cedo,
Quero as casas habitadas. 
O negro agora saiu
Numa tremenda corrida
Procurando em toda parte
Cada pessoa sofrida,
E, quando o dia raiou,
Estava a missão cumprida. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 17).

Na obra de Maria, as casas são habitadas com pobres, famintos, sofridos, sem moradias, gente do mundo inteiro, dos morros (favelas) e dos brejos e pântanos (pauis). Há uma ressignificação do lugar social do ser humano e de quem é levado para a cidade construída pelo Diabo. A obra inteira foi entregue à mulher e ela repartiu com os seus protegidos. 

No relato bíblico toda a obra da Criação foi entregue aos cuidados do homem e da mulher. E Deus viu que tudo era bom. 

29 Deus disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. 
30 E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda erva verde por alimento." E assim se fez. 
31 Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia." (GÊNESIS 1,29-31).

Os necessitados recolhidos na cidade de Maria são pessoas provenientes de todas as partes do mundo, agora agrupados no mesmo lugar, fazendo o movimento oposto da dispersão ocorrida no evento da Torre de Babel, cf. Gênesis 11,1-9. O Paraíso de Maria reflete o sonho de uma nova sociedade em que os desvalidos são acolhidos, todos tem trabalho, todos participam nos lucros provenientes de seus trabalhos - uma sociedade igualitária.

Para fazer o seu gosto,
Quase estouro as minhas veias,
Percorri vários países,
Cidades, vilas e aldeias;
Estou cansado, porém
As moradas estão cheias. 
Tem espanhóis, alemães,
Suecos, russos, franceses,
Suíços, italianos,
Polacos, noruegueses,
Mexicanos, canadenses,
Argentinos e chineses;
Chilenos, israelenses,
Japoneses, africanos,
Peruanos, holandeses,
Gregos, venezuelanos,
Americanos, ingleses,
Tchecos, colombianos. 
Fiz a mistura dos pobres,
Doentes, famintos, nus,
Também alguns brasileiros
Das favelas, dos pauis,
Para que gerem pessoas
Pretas dos olhos azuis. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 18).

Todos os que ocuparam as casas são abençoados e protegidos de Maria. Na cidade todos unidos trabalhavam e repartiam o lucro entre si. 

Maria ficou feliz
Com os bens adquiridos
E repartiu tudo com
Todos os seus protegidos,
Que desde aquele dia
Não foram mais desvalidos. 
Agora todos unidos
Satisfeitos trabalhavam
Em uma sociedade
Que todos participavam
Em partes iguais dos lucros
Que os seus produtos lhes davam. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24).

Maria viu a obra realizada e ficou contente.
Maria foi ver e viu
As casas todas com gente;
Disse: – Muito bem, querido,
Agora fiquei contente;
Você está me provando
Que, além de macho, é valente. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 18).

Maria lisonjeia o Diabo, que fica todo satisfeito, coloca-se pronto para realizar o sétimo e último mandado.

3.6 O sétimo mandado amaldiçoado: o sétimo dia da Criação abençoado

Seis mandados foram cumpridos e o Diabo já estava se achando com o direito de levar as duas almas e o corpo de Maria para o Inferno. Ele mostra pressa de acabar sua obra e Maria lhe diz que vai ter de abaixar a crista, ou seja, deixar de ser arrogante.

Maria disse: – Você 
Está muito confiante
Porém vai baixar a crista,
Perder o tom arrogante
Quando não puder fazer
O meu mandado importante. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 21).

Maria sinaliza que chegou a hora de desafio final: no mandado importante o que vai sobrar pro Diabo será apenas fumaça.

O preto inda retrucou: 
– Enquanto o tempo não passa,
Diga o que tenho a fazer
Que estou com a mão na massa.
Maria disse: – Atenção,
Cuidado, lá vai fumaça! (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 21).

A obra que o Diabo não pode realizar compreende a construção de sua própria destruição. O cordelista coloca nos versos o marco da religiosidade cristã e católica: um altar e uma cruz que significam a desgraça do Diabo. Maria relembra o Diabo de que vai perder tudo o que fez, fazendo alusão ao contrato assinado.

Quero agora que construa

Uma catedral católica
Que caiba todos os santos
Da união apostólica
Para ser interpretada
A ciência parabólica.
Com altares para todos – 
Sendo maior o primeiro
Para celebrar o santo
Sacrifício do Cordeiro –,
E na torre da matriz
Quero um bonito cruzeiro.
Quero o templo construído
Bem feito com rapidez;
Se não fizer a meu gosto,
Engana-se desta vez:
Vai embora sem as almas
E perde tudo o que fez. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 21).

Ao perceber que o sétimo mandado era sua própria ruína e perdição, o Diabo se dá conta da enrascada em que se meteu. Desconjura da última obra chamando-a de trabalho imundo. 

O negro ficou tremendo
De beiço branco, amarelo.
E disse: – Estou desgraçado.
Careca, roto, banguelo;
Caí em uma armadilha,
Sei que perdi meu duelo.
Sei que não posso fazer
Um trabalho tão imundo,
Não vou perder meu conceito
Porque não sou vagabundo;
Nem mesmo se fosse por
Todas as almas do mundo. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 22).

Maria amaldiçoa o Diabo que vai estourar no inferno. A mulher exalta o poder de Deus e coloca o Diabo no lugar que lhe cabe: eterno subalterno. O exorcismo está feito com altar e cruz, com todos os santos e o Sacrifício do Cordeiro. O que sobra para ele é somente a fumaça de seu estouro. No sétimo mandado o Diabo perdeu a aposta assinada no contrato e descansou de seu trabalho.

Você perdeu a batalha 
Para as forças do eterno
Porque você será sempre
Do Divino um subalterno,
Com suas tramas malditas
Vá se estourar no inferno! 
O negro deu um estouro
Que a terra toda tremeu.
Um cheiro forte de enxofre
Pela casa rescendeu;
No meio do fumaceiro
Ele desapareceu. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24).

Característico da identidade e da presença real do Diabo na crença popular, o cheiro forte de enxofre se espalha pela casa na hora em que ele estoura e desaparece. O cordelista trata de garantir de que aquele que desaparece no fumaceiro era realmente o Diabo.

No relato bíblico, tendo concluído sua obra até o sexto dia, no sétimo dia Deus descansou de seu trabalho. 

1 Assim foram acabados os céus, a terra e todo seu exército. 
2 Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho. 
3 Ele abençoou o sétimo dia e o consagrou, porque nesse dia repousara de toda a obra da Criação. 
4 Tal é a história da Criação dos céus e da terra. (GÊNESIS 2,1-4).

Maria, por sua vez, fica com o paraíso construído pelo Diabo. O descanso é desenhado como uma sociedade igualitária em que todos participam dos trabalhos e dos lucros. O cordelista coloca nos versos finais o sonho bom do povo sofredor, que padece nas agruras da miséria e no inferno do sertão:

Agora todos unidos
Satisfeitos trabalhavam
Em uma sociedade
Que todos participavam
Em partes iguais dos lucros
Que seus produtos lhes davam. 
Assim o casal ficou
Libertado do Tinhoso
Maria muito feliz
Entre os braços do esposo,
Imune contra as desgraças,
Dando louvores e graças
A Deus Todo-Poderoso. (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 24).

Os louvores a Deus Todo-Poderoso sinalizam a dimensão da fé presente no meio do povo e a certeza da proteção divina àqueles que Nele creem. Maria e seu esposo vivem felizes em seu paraíso. 

Tal é a história da Criação do Paraíso de Maria.

Considerações finais

Maria da Conceição é a mulher do bem, trabalhadora e perspicaz, pessoa de fé e salvadora de seu marido Pedro Botelho. O poeta a coloca como enganadora do Diabo na construção de um novo mundo para sua família e para os desvalidos da humanidade.

Ao levar o Diabo a realizar as obras arquitetadas em cada um de seus mandados, Maria consolida uma inversão dos poderes do maligno que é levado a fazer o bem. Ela, na figura fragilizada de uma mulher, se enche de poder e determina tudo que o Diabo deve cumprir. E ele o faz sem pestanejar. Se no paraíso edênico figurava uma mulher enganada pela serpente, no paraíso cordelístico desponta uma mulher astuta que engana o próprio Diabo com seus interesses infernais. 

Maria promove o maior de todos os enganos ao Diabo: realizar boas obras na construção de um novo mundo. Um ser do mal realizando o bem. Há uma ressignificação do lugar do mal na obra da Criação. E o mal figurado no personagem do Diabo que é expulso. O casal herda o novo mundo e vive feliz louvando a Deus Todo Poderoso. 

O paraíso perdido pelas escolhas do primeiro casal no relato bíblico é reconquistado nos mandados da mulher realizados pelo Tisnado. O poeta põe em versos o sonho bom de um lugar bom de se viver, e viver sem medo de ser feliz, pois não há lugar para o mal nem para o Diabo que estoura e volta pro inferno. Vale destacar a inclusão dos desvalidos recolhidos pelo mundo afora e levados para a cidade que Maria mandou construir. No novo mundo todos vivem imunes contra as desgraças. Paraíso é este lugar bom de se viver, sem males, sem desgraças e sofrimentos. O próprio trabalho, antes colocado como castigo para o primeiro casal, agora é dádiva e alegria. Dignidade e felicidade para todos.

Concluímos com nossa leitura teopoética uma possível intertextualidade entre a narrativa do cordel e o texto bíblico. Consideramos a relação estabelecida pelo cordelista ao texto bíblico na alusão aos sete dias da criação, expressa nos sete mandados de Maria da Conceição. Trata-se de uma intertextualidade que acontece de maneira indireta e sutil, que requer um certo conhecimento do texto bíblico originário. O cordelista sugere a ideia de um lugar bom para se viver, sem sofrimentos e desigualdades: um “paraíso” figurado na obra arquitetada por Maria e realizada pelo Diabo.

Manoel D’Almeida Filho sugere aos seus leitores a imaginação um mundo bom, uma sociedade justa em que os desvalidos alcançam dignidade e vida. A ironia do Diabo enganado pela mulher é a linha do humor nordestino que desbanca o poder do Tinhoso e numa inversão de poderes coloca a vitória do bem na mão dos fracos. 

A intertextualidade alcançada aqui merece um estudo mais amplo na perspectiva da hermenêutica bíblica. O cordelista cita noutros versos deste mesmo cordel os personagens bíblicos de Adão e Eva, usa expressões que aludem ao fruto proibido, ao ‘fruto que Adão comeu’. Estes são elementos não explorados neste trabalho e que renderão outra pesquisa.

O tema do pacto com o Diabo e do exorcismo, nos versos da Mulher que enganou o Diabo, também pode ser tema de outro artigo.

Referências

ACADEMIA BRASILEIRA DE LITERATURA DE CORDEL. Disponível em: http://www.ablc.com.br/. Acesso em: 20.05. 2019.

ALMEIDA FILHO, Manoel d’. A mulher que enganou o Diabo. São Paulo. Editora Luzeiro Limitada, 1986. 

BARCELLOS, José Carlos. O drama da salvação: Espaço Autobiográfico e Experiência Cristã em Julien Green. Juiz de Fora: Editora Subíaco, 2008.

BARCELLOS, José Carlos. Literatura e teologia: perspectivas teórico-metodológicas no pensamento católico contemporâneo. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 3, n. 2, p. 9-30, jul./ dez. 2000. Disponível em: https://numen.ufjf.emnuvens.com.br/numen/article/view/852/737. Acesso

em: 24.05. 2020. 

CANTARELA, A. G. “Modelos de Leitura do diálogo entre religião e literatura”. In: Anais do V Congresso da ANPTECRE “Religião, Direitos Humanos e Laicidade”. PUC PR: Curitiba, 2015, p. 107-114. Disponível em: https://1library.org/document/zle174lq-modelos-de-leitura-do-dialogo-entre-religiao-literatura.html. Acesso em: 02.05.2022.

FUNDAÇÃO CASA RUI BARBOSA. Disponível em: 

http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/acervo.html. Acesso em: 20.05. 2019.

GÊNESIS. In: Bíblia Católica OnlineCapítulos 1 – 2. Disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/genesis/. Acesso em: 20.05. 2019.

MANZATO, Antônio. Teologia e Literatura. In: MANZATO, Antônio. Teologia e Literatura:

reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado.

São Paulo: Edições Loyola, 1994.

MATOS, Edilene. O imaginário na literatura de cordel. Salvador: Edições Macunaíma, 1986.

NAVES, Alair Matilde. Representações do diabo no cordel de Manoel D’almeida Filho. Dissertação (Mestrado). Belo Horizonte: Departamento de ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2019.

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Notas

[1] De acordo com Naves (2019, p. 99 e 108), Tisnado é um dos muitos nomes atribuídos ao Diabo no cordel. No livreto escolhido para este trabalho encontramos também os epítetos: Satanás, Tinhoso, Bicho e Capiroto (ALMEIDA FILHO, 1986, p. 14-15). O adjetivo tisnado pode ser entendido como enegrecido, meio queimado pelo sol: rosto tisnado pelo sol.