O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal
Suffering gives rise to thought: public theology in dialogue with marginal literature

Jefferson Zeferino*
Marcio Luiz Fernandes**
* Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Teologia da PUCPR por meio do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/ CAPES). Contato: jefferson. zeferino@hotmail.com
** Professor do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Contato: marcio.luiz@pucpr.br
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Resumo
Por meio de uma análise bibliográfica, o presente texto objetiva refletir, a partir da noção de clássico em David Tracy, acerca das relações entre as interpretações das experiências humanas de sentido e o método antropológico conforme desenvolvido no campo de estudos em teologia e literatura por Antonio Manzatto e Alex Villas Boas. A literatura marginal que para além do evento do texto se configura também como movimento cultural, traz consigo uma comunicação própria do humano que vive às margens, o que pode ser dialogicamente corroborado pelas intuições de Richard Kearney em sua proposição de uma hermenêutica da carne, e pela tematização de uma antropologia literária e teológica do sofrimento. Efetivamente, o conto Coração de mãe, de Ferréz, permite uma experiência de leitura que pode conduzir ao afeto, ao pensamento e à ação enquanto confronta o mundo do leitor, conforme elabora Paul Ricoeur, levando-o a desvelamentos de sentidos. Assim, propõe-se uma teologia pública profética e sapiencial. Profética, porque analisa criticamente a realidade social, denunciando as injustiças e anunciando uma esperança de transformação e libertação. Sapiencial, pois busca na força de sentido das representações do humano subsídios para se pensar a condição humana na atualidade.

Palavras chave: Teologia, Literatura, Caim, Saramago, Ricoeur.

 

Abstract
Through a bibliographical analysis this text aims at reflecting, stemming from the idea of classic in David Tracy, on the relationship between human experiences of meaning and the anthropological method developed in the field of theology and literature by Antonio Manzatto and Alex Villas Boas. Marginal literature as a cultural movement surpasses the text event, communicating the life of humans who live in the margins, which may be corroborated by Richard Kearney’s carnal hermeneutics, and by the thematization of literary and theological anthropologies of suffering. The short story entitled Coração de Mãe (Mom’s Heart), by Ferréz, gives rise to a reading experience that may lead to affection, thought and action confronting the reader’s world and unveiling meanings, as elaborated by Paul Ricoeur. So, the text proposes a public theology that is prophetical and wise. It is prophetical theology due to the critical analysis of reality, denouncing injustices and announcing hope of transformation and liberation. It is wisdom theology because of the search of the meaning strength present in the representations of the human being that may help thinking human condition nowadays.

Keywords:Public Theology. Theology and Literature. David Tracy. Richard Kearney. Paul Ricoeur.

Introdução

Avida se impõe! Recentes acontecimentos levam teólogos e teólogas à reflexão, contrição e conversão. Não raro se estabelece que a teologia envolve o estudioso de modo existencial, pensa-se na relação entre suas dimensões intelectiva e afetiva (cf. BOFF, 2015). Deixar-se afetar pela realidade de rostos sofredores pode gerar, simultaneamente, angústia e desejo de mudança. Com efeito, encontram-se exemplos vários de fechamento e negligência diante do outro, muitas vezes desenvolvidos de modo violento. A tentativa de construção de muros físicos como tradução de muros culturalmente sedimentados; o tratamento de humanos em migração como se fossem escória; a perpetuação de políticas paliativas de assistência sem a crítica apropriada ao sistema gerador de injustiças sociais; a utilização de práticas obsoletas em atividades extrativistas em virtude de vantagens econômicas; a eliminação de pessoas que lutam pelos direitos daqueles e daquelas em condição de vulnerabilidade social; descaso na formação humana e sucateamento das escolas; entre várias outras formas de violência estruturalmente legitimadas1 (pecado social) pela negação prática da dignidade de pessoas relegadas à subcidadania (cf. SOUZA, 2003).

Estas pessoas que não possuem sua alteridade reconhecida podem facilmente ser objeto de políticas de eliminação, exclusão, inferiorização (cf. ARENDT, 1968). Diante de um contexto em que pululam narrativas exclusivistas e autoritárias, pensa-se na força de sentido das produções literárias como um caminho de criação de rupturas estéticas sensibilizadoras de uma humanidade antes negligenciada, revelando uma ética que até então não era conhecida. Nesse contexto, o teólogo católico estadunidense David Tracy (2006; 2012), aponta para a ideia de clássico que, para ele, pode ser uma pessoa, um texto, uma pintura, um evento (diríamos aqui – qualquer interpretação do humano) que comunica ao humano algo de sua própria humanidade2 . Um clássico, na apropriação teológica de Tracy, possui simultaneamente dimensões revelacionais, pedagógicas e transformadoras. Em seu método de uma teologia pública, Tracy estabelece o diálogo entre os clássicos da razão, da arte e da religião como polo a ser criticamente correlacionado com a situação contemporânea, especialmente no que diz respeito à questão religiosa e à condição humana. Nesse ponto, incorpora-se a discussão do método antropológico desenvolvida no Brasil na área de teologia e literatura, que percebe no humano a abertura de diálogo entre uma antropologia teológica e uma antropologia literária.

A literatura marginal, que narra problemas sociais e a vida de personagens que vivem na periferia, apresenta-se como ponto de interlocução a esta teologia pública de valorização do humano. O conto Coração de mãe, de Ferréz e a própria caracterização do que se pode compreender por literatura marginal, lançam desafios concretos ao pensamento teológico, gerando a percepção de que uma teologia que não esteja atenta às dores do mundo não é apenas irrelevante, mas, desde uma perspectiva cristã, se configura em desserviço ao evangelho e à vida humana.

Isso posto, o presente texto objetiva oferecer uma contribuição tracyana à relação entre os estudos literários e os estudos teológicos; apresentar a possibilidade de compreensão da teologia pública como teologia que se ocupa daquilo que há de público e comum na experiência humana; pensar uma hermenêutica da carne, compreendendo que o sofrimento sentido na carne de si, do outro e do mundo informa a linguagem e a ética; abordar a antropologia literária presente na literatura marginal como provocação à teologia.

Relações entre o clássico tracyano, a hermenêutica da carne e o método antropológico da área de teologia e literatura

Por meio da noção de clássico conforme aplicada ao método teológico de correlação entre arte, razão e religião em David Tracy (2006) e como contribuição ao método antropológico utilizado na interface entre teologia e literatura (MANZATTO, 1994; VILLAS BOAS, 2016, 2020), busca-se demonstrar o sofrimento humano como aquilo que há de mais comum na experiência humana, bem como o tornar-se profundamente humano na encarnação na carne de si, do outro e do mundo (KEARNEY, 2015) enquanto tarefa pedagógica, poética e ética que pode ser provocada no encontro com o texto.

Assim, elabora-se aqui uma abordagem que analisa as narrativas de sentido oriundas da vida concretamente vivida e traduzidas em literatura e teologia. Com efeito, verifica-se no clássico tracyano uma antropologia de base que permite sua conexão não apenas com os estudos literários, mas com o todo das ciências humanas, pois localiza o teológico no humano. Desse modo, compreende-se aquilo que há de comum na existência humana como o que há de mais público3 e compartilhável, tanto para a interface dos saberes quanto para a busca humana de sentido:

[...] se qualquer ser humano, se qualquer pensador religioso ou teólogo produzir alguma expressão clássica do espírito humano numa jornada particular dentro de uma tradição particular, essa pessoa revela possibilidades permanentes para a existência humana tanto pessoal como comunal. Qualquer clássico [...] é sempre público, jamais privado (TRACY, 2006, p. 41).

Portanto, o clássico, em primeiro lugar, é a experiência humana que é transmitida em forma artística, filosófica ou religiosa. Essas produções, por sua vez, também podem se tornar clássicos, no sentido formal, com o passar do tempo. Aqui o relevo está na profundidade do humano que é comunicada. Aí também ressoa o caráter público da literatura como expressão da alma humana. De modo semelhante, em sua análise da obra Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, Antonio Manzatto – o patriarca dos teopoetas segundo um dos mais destacados pesquisadores na área de teologia e literatura (VILLAS BOAS, 2020, p. 43) – corrobora esta relação entre universalidade e particularidade, pois é na particularidade da experiência humana que se encontram elementos que podem ser considerados comuns. É dessa particularidade que nasce um clássico: “[...] é exatamente por fixar e retratar situações particulares, no caso a situação do povo da Bahia, que os romances de Amado são universalizáveis, isto é, podem falar ao homem e a todos os homens” (MANZATTO, 1994, p. 120-121).

Este modo de teologia pública4 resulta encarnada, pois, fugindo de uma perspectiva dogmatista (cf. GEFFRÉ, 1989), acolhe o humano e suas traduções como loci theologici. Nesse sentido, o lugar teológico na relação entre teologia e literatura é

[...] um “lugar” capaz de captar a profundidade humana e, portanto, capaz de apreender um sentido para a existência, modo como Deus se dá a conhecer e, portanto, lugar que exige da teologia uma reflexão em busca de uma fé mais autêntica, um locus revelationis, enquanto lugar de desvelamento de sentido (VILLAS BOAS, 2016, p. 31).

A força de sentido dos clássicos, portanto, está justamente na sua humanidade. Esta noção dialoga com aquilo que Manzatto denomina como objeto formal da arte: “Por conseguinte, é indubitável que esse pulchrum [belo] tem algo a dizer ao verum [verdadeiro] e, em certo sentido, o transcende, enquanto no homem vai dirigido a todo seu ser, e não somente à razão (ainda que assumindo-a)” (MANZATTO, 1994, p. 26). Aqui, é interessante notar que em sua imaginação analógica Tracy fala da relação entre os estudos da religião e os estudos da arte, na medida em que ambos se colocam diante do belo como assunto de investigação que sempre é maior que o método (TRACY, 2006; cf. ZEFERINO; SINNER, 2019).

São conhecidas as influências de Gadamer, com a própria noção de clássico, e de Ricoeur no pensamento de Tracy (cf. VILLAGRÁN MEDINA, 2016). Nesse sentido, nos parece pertinente trazer à tona a perspectiva de que o mundo do texto pode ser relacionado à ideia de clássico. O conceito de mundo do texto, como mundo de significação diante do qual o humano compreende a si mesmo na compreensão do texto, fala de uma comunicação da humanidade do humano presente na representação literária que está prenhe de um sentido profundo permeado por um movimento de imaginação, distanciação e apropriação. O mundo de significação do texto dá a pensar e provoca criativamente o mundo do leitor. É neste momento de refiguração, na recepção estética, que se torna possível imaginar novos modos de ser-no-mundo. Este caminho da literatura à ética reinaugura o círculo mimético de prefiguração, configuração e refiguração (mimesis I, II e III) (XAVIER, 2019, p. 204- 206; cf. RICOEUR, 1990, p. 43-57; 1976, p. 101-106; 1994, p. 85-131). Na tentativa mimética de se dizer algo, este algo é dito de modo distinto daquilo que representa, criando uma expansão semântica e um novo mundo. O primeiro estágio é a prefiguração que diz respeito à experiência e às pré-compreensões; o segundo é a configuração da narrativa em texto; e o terceiro é o encontro do mundo do texto com o mundo do leitor: “Na recepção, segundo palavra de Erasmo, lectio transit in mores, ou seja, nós recebemos do texto o convite a nos transformarmos e a transformar a nossa praxe [...]” (JERVOLINO, 2011, p. 62). A mimesis III, portanto, “constitui para Ricoeur o elemento aristotélico da catharsis provocada pelo texto, ou seja, da refiguração que o texto provoca no leitor, por meio de sua configuração narrativa da realidade no mundo da obra, alterando a sua pré-figuração [...]”. É neste nível que, em Gadamer, se fala de uma fusão de horizontes. Em linguagem ricoeuriana a imitação criadora se dá a pensar e provoca uma nova acolhida de sentido por parte do leitor. (VILLAS BOAS, 2016, p. 128, cf. 95-96).

Compreende-se, portanto, que a própria tentativa de se dizer algo é limitada diante daquilo que está sendo representado, mesmo assim, produz-se algo novo e nesta nova configuração há a possibilidade de comunicação com o leitor de tal modo a acarretar uma mudança ética. Ainda assim, há que se reconhecer que a pluralidade e dinamicidade da existência sempre escapa às sistematizações. Cada tentativa de tradução do mistério da existência é incompleta, contingente, insuficiente, sendo justamente esta insuficiência que permite que a roda continue girando, fazendo necessárias sempre novas sínteses e formulações teológicas. E mesmo que as mais belas obras já tenham sido escritas, elas ainda não exaurem as vivências humanas. Como diz a letra de Antonio Belchior consagrada na interpretação de Elis Regina (1976):

Não quero lhe falar meu grande amor / Das coisas que aprendi nos discos / Quero lhe contar como eu vivi / E tudo o que aconteceu comigo / Viver é melhor que sonhar / Eu sei que o amor é uma coisa boa / Mas também sei que qualquer canto / É menor do que a vida / De qualquer pessoa.

A experiência é única, sua tradução em linguagem é sempre uma tentativa de aproximação. E mesmo a poesia “é menor do que a vida de qualquer pessoa”, mas comunica algo. E em sua força desveladora de sentidos pode suscitar ações transformadoras (mimesis III):

Um clássico é um fenômeno cuja própria extraordinariedade e manutenção de significado resistem à interpretação definitiva. Os clássicos da arte, da razão e da religião são fenômenos cujo valor-de-verdade depende das possibilidades desveladoras e transformadoras que têm para seus intérpretes. Isto significa que os clássicos da arte, da razão e da religião são susceptíveis de manifestar significados desveladores e transformadores, bem como verdade, num modo que não é redutível ao debate (TRACY, 2012, p. 37).

Um clássico, assim o é, pois não pode ser cartesianamente dissecado, resistindo à dominação. Ora, não seria justamente a resistência à dominação um traço bastante marcante da experiência humana? Talvez tão marcante quanto as sucessivas tentativas de dominação. Em outras palavras, não seriam as respostas prontas (características de modelos teológicos exclusivistas) constituintes de uma intenção hegemônico- -colonial? (cf. SANTOS, 2014). Por outro lado, na resistência está a valorização da pluralidade e a esperança decolonial de desencobrimento de saberes e narrativas outras (cf. MIGNOLO, 2005; GROSFOGUEL, 2016). Assim, uma teologia atenta aos clássicos da humanidade se projeta para além de uma perspectiva estanque e normatizadora do dado revelado5 . Com efeito, Villas Boas identifica justamente nessa forma mentis exclusivista razões de recusa ao teológico:

A recusa ou a não recepção de Deus na literatura se deu como destruição poética da teodiceia em nome de uma sensibilidade ética de época que foi sendo cunhada como alteridade dentro do horizonte de expectativas do indivíduo moderno. A estética da recepção já havia apontado que a forma de pensar que desconsidera a subjetividade, ou seja, a sensibilidade do outro, é no mínimo potencialmente autoritária e engendra no imaginário social a possibilidade de formas de autoritarismo, e o consequente não reconhecimento da alteridade e do conflito como dimensões fundamentais da existência. A literatura nesse sentido colabora como depuradora moral, provocando a repensar as formas históricas de cristandade reminiscentes na mentalidade cristã. (VILLAS BOAS, 2016, p. 94, grifos do autor).

O método antropológico para a relação entre teologia e literatura (MANZATTO, 1994; VILLAS BOAS, 2016) reconhece na antropologia literária a força de humanização do humano em que a estética do real (verdadeiro) revela uma ética antes desconhecida6 (VILLAS BOAS, 2020, p. 40). Mais que ver, a literatura auxilia o humano a sentir a realidade, ensinando à teologia que o pensamento começa na pele (cf. KEARNEY, 2015; 2019). Contra uma teologia apática, Villas Boas elabora o seguinte:

O paradigma racionalista, assumido inclusive pela teologia, desconsidera a força investigativa da ficção e o caráter literário do saber humano, que não se amolda a paradigmas radicais, uma vez que se rege pelo hipodigma, por aquilo que há de comum na condição humana, sua necessidade de dar sentido à vida, sem com isso rejeitar a subjetividade em detrimento da objetividade, mas antes encontrar suas correspondências em suas ressignificações. O hipodigma na literatura é um reconhecimento da densidade antropológica para além da interpretação de cada época, o que equivale na teologia ao reconhecimento da densidade do Mistério da encarnação para além de cada paradigma teológico, permanecendo sempre algo de inaudito na dinâmica de uma tarefa nunca acabada. Aqui o pathos comporta maiores possibilidades de universalidade que a ratio cartesiana, pois é uma pergunta de sentido a partir do que afeta o indivíduo, o grande esquecido da cristandade da modernidade. A resposta à falta de garantia da existência não é suficiente nem reforçando um dogmatismo, tampouco sendo formulada externamente ao indivíduo, em que a instituição, religiosa ou não, detentora do pretenso saber, ganha o direito de definir as regras do jogo social; a diké se constitui antes como pergunta que provoca uma resposta não somente no indivíduo, mas do indivíduo, como sendo sua apropriação performativa. Sem a dimensão afetiva, qualquer resposta institucional ou teórica permanece mera informação apática (VILLAS BOAS, 2016, p. 74).

A profícua relação entre estudos literários e estudos teológicos permite esta redescoberta da via afetiva como caminho de sensibilização do humano ao humano por meio dos clássicos. Em consonância, a proposta de uma hermenêutica da carne indica a crítica ao pensamento ocidental que hierarquizou os sentidos, legando o tato a um patamar inferior ao da visão – projetando a noção de que a razão seria superior aos sentimentos.

Interessante notar a perspectiva de Husserl para quem o papel constitutivo do corpo vivente faz compreender que a sensação das minhas mãos e das mãos dos outros são pontos de partida para a compreensão da corporeidade de outros. No entanto, o corpo não é dado somente pelos atos da percepção externa, mas o tato está conectado à unidade do corpo vivente. Sobre este aspecto, Ales Bello (2004) escreve o seguinte:

Nós temos consciência de perceber nosso corpo; ainda mais, a consciência do corpo é uma consciência primária, pela qual eu posso dizer que esse objeto está fora de mim e que eu alcanço pelo toque de minha mão. O perceber tem necessidade da corporeidade. Para Husserl, na verdade, o sentido mais importante é o tátil por estar ligado ao corpo: a sensação tátil é a primeira sensação corpórea; o segundo sentido importante é a vista, sendo que há uma grande diferença entre o tato e a vista, porque o tato nos coloca em contato com as coisas de maneira direta em relação a nossa corporeidade e nos permite distinguir o nosso corpo das coisa que tocamos.

Uma hermenêutica, nesse contexto, compreende que a interpretação do mundo começa na experiência corpórea. Opera-se, portanto, uma crítica a movimentos excarnacionistas e desumanizantes por um lado; e, de outro, a valorização da encarnação e da humanização. (cf. KEARNEY; TREANOR, 2015). A profundidade da experiência humana, por sua vez, lhe garante um certo caráter de universalidade, não como um absoluto imposto de cima para baixo (senkrecht von oben), mas na sua força de comonalidade (hipodigma), nas constantes antropológicas comunicadas pelos clássicos. É neste sentido que a experiência confessional de uma determinada religião pode se doar como antropologia teológica e ajudar a pensar a condição humana. O humanismo encarnacional de Bonhoeffer, como nomeia Zimmermann (2016), aponta justamente para este movimento de profundidade da existência em que a cristoformação (Gleichgestaltung mit Christus) – tornar-se em semelhança a Cristo – significa um tornar-se profundamente humano (cf. BONHOEFFER, 2009). Dito de outra forma, esta encarnação na carne própria, do outro e do mundo (casa comum) (cf. KEARNEY, 2015), contém uma força de sentido compartilhável entre humanos e é realçada pelo modo próprio da literatura em contar histórias. Afinal, “Homo sum: humani nil a me alienum puto” (“sou humano, nada do que é humano me é estranho”) (Heauton Timorumenos, 77)7

Assim, quando se é humano, e tal humanidade é esteticamente encarnada, constantes antropológicas vem à tona. Para Ricoeur (1992), o sofrimento é a experiência humana mais universal e narrá-lo é justamente uma forma de suportá-lo e, ao mesmo tempo, de doá-lo ao pensamento. O pathos é visto como um valor que possibilita um acesso totalmente novo à questão antropológica. Estamos na linha do que preconizava Viktor Frankl (2008, p. 136) ao dizer que o sofrimento era contemporaneamente um fator de crescimento e de amadurecimento, trazendo ao ser humano um aumento de força. E diz: “Porque o que importa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado e que consiste em transformar uma tragédia pessoal num triunfo, em converter nosso sofrimento numa conquista humana”. Neste sentido, as narrativas que contam a realidade humana de vulnerabilidade, sofrimento, angústia, sobretudo a partir da realidade de vida das pessoas mais inferiorizadas (cf. MANZATTO; VILLAS BOAS, 2018) possuem também uma dimensão pedagógica:

Assim, a memoria passionis (uma categoria judaico- -cristã) do mundo reside na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, temor e espanto, vingança e compaixão, dos quais emerge de baixo para cima uma espécie de sabedoria partilhada do mundo (SANTOS, 2014, p. 133-134).

No confronto com a alteridade sofredora mediada pelos clássicos, há uma força de sentido mobilizadora que pode trazer para perto aquilo que antes era distante, desvelando um novo modo de ser-no-mundo, talvez mais sensível àquelas faces antes negligenciadas. O outro desumanizado transformado em categoria desencarnada é facilmente instrumentalizado. Um número numa planilha ou numa página de jornal não sensibiliza, pode ser cortado ou desconsiderado pelo bem da economia. No entanto, quando o outro é reconhecido em sua alteridade, trazido para perto por meio de uma narrativa que enreda o leitor no sofrimento de um personagem que não deixa de ser representação de muitos outros sofredores de carne e osso, aí também se torna possível uma conversão como mudança de perspectiva (metanoia). Desse modo, nota-se uma coexistência entre o belo e o verdadeiro no encontro entre leitor e texto, o que pode levar a pessoa envolvida e sensibilizada pela história contada a perceber verdade nela. Nesse sentido, a literatura envolve o humano inteiro, não apenas a razão. “[...] compreende-se e sente-se o que o autor nos diz, veem-se suas imagens, sentem-se cheiros e gostos ao se ler uma obra literária. A literatura comunica-se com a razão e com os sentidos humanos. Por isso diz-se que ela não é feita para ensinar, mas para deleitar” (MANZATTO, 1994, p. 26). Ainda assim, este deleite reflete acerca do sentido da vida humana em que a verdade é comunicada por meio do belo. “Se a arte busca mais deleitar que instruir, isso não impede que ela instrua sendo agradável, o que não é sempre o caso das ciências” (MANZATTO, 1994, p. 27). Este belo, entretanto, é também impactante, talvez possa ser acompanhado aqui da ideia de um thaumazein, um maravilhamento que, não necessariamente é agradável, mas é revelador. A literatura, assim como a vida – para evocar Clarice Lispector (2017, p. 107) em A hora da estrela – pode ser um soco no estômago.

O sofrimento humano, sentido na carne, é o começo da hermenêutica e, em contexto latino-americano, também tem servido de combustível para que as engrenagens teológicas se movimentem. Assim, a partir de uma perspectiva profética nutrida pela tradição judaico-cristã, constrói- -se um duplo movimento de anúncio e denúncia e, deste modo, nota- -se uma dimensão crítico-analítica e outra crítico-propositiva na fala teológica8 . Assim, além de interpretar os clássicos da arte, da razão e da religião, a teologia também arrisca posicionamentos concretos diante de realidades particulares. O rosto sofredor é a faísca que acende esta disposição profética de crítica social e de esperança de transformação das situações de injustiça. Sobre a questão dos clássicos no contexto da teologia latino-americana Tracy (2006, p. 511) afirma o seguinte:

Acima de tudo, as teologias da libertação permitem que todos os teólogos ouçam e vejam a tradição a partir de uma perspectiva fiel à autocompreensão que lhe é mais própria: a partir da perspectiva privilegiada pelos profetas antigos e por Jesus da mesma forma – a perspectiva dos párias, dos sem-poder, dos oprimidos, dos marginalizados, de todos aqueles cuja história o resto de nós havia presumido contar para eles. O clássico das teologias da libertação não consiste num texto, mas num evento clássico: o evento da práxis libertadora, em que as ações de povos inteiros, sua história reveladora, ignorada, esquecida, desprezada, finalmente está sendo narrada e ouvida em formas que ainda poderão transformar todos nós.

Conclui-se o presente tópico, portanto, com a perspectiva de que o clássico tracyano aponta para o reconhecimento do humano nas produções artísticas, filosóficas e teológicas e que esta representação pode auxiliar a pensar a condição humana na atualidade. Como demonstrado, este conceito dialoga e pode servir de aporte ao método antropológico dos estudos em teologia e literatura. Neste sentido, as condições humanas de sofrimento e vulnerabilidade são temas clássicos da experiência humana que podem também ser comunicadas de modo literário. Estas interpretações do humano possuem uma dimensão pedagógica capaz de provocar mudanças na compreensão que o leitor tem de si e do mundo com consequente novidade em seu modo de ser-no-mundo. Na parte seguinte deste texto nos ocupamos de uma literatura que narra a vida às margens que, apesar de não poder ser considerado um clássico no sentido formal, se dedica à reflexão de grandes temas humanos como o sofrimento, o desespero, a angústia.

Coração de mãe: um conto de literatura marginal

O conceito de literatura marginal pode ser compreendido de modos variados: a narração da vida que acontece às margens; produções que estão à margem das grandes editoras, ou que não se enquadram nos cânones literários estabelecidos; pensamento originário de grupos socialmente marginalizados; textos que se ocupam de personagens e espaços entendidos como marginais; ou ainda como uma escrita marginalizada (coloquial, com gírias, que preserva expressões da oralidade). (NASCIMENTO, 2006; NAPOLES, 2008). Nas décadas de 1960 e 1970, o termo foi atribuído a autores como João Antônio e Plínio Marcos, por escrevem sobre a vida de personagens das classes populares e sobre problemas sociais. No contexto da ditadura, as literaturas produzidas e divulgadas de modo alternativo aos padrões tradicionais ligados ao regime militar também receberam a designação de literatura marginal (poesia marginal). Estes poetas, localizados sobretudo no Rio de Janeiro, também se apropriaram do termo operando uma ampliação de seu sentido. Em grande medida, estes autores eram provenientes de classes mais privilegiadas, assim como o era seu público leitor. (NASCIMENTO, 2006, p. 12-15). Recentemente, o termo começa a ser utilizado por um grupo de autores, sobretudo de São Paulo, que estão social e culturalmente engajados: a ideia “[...] reporta ao conjunto de escritores da periferia que, no início dos anos 2000, se apropriou de certos significados do termo marginal, desenvolveu uma consciência comum e dá respostas conjuntas aos problemas específicos do campo literário desta época” (NASCIMENTO, 2006, p. 18). Este fenômeno é denominado por Nascimento (2006, p. 53) como um movimento-literário-cultural, pois possui uma dimensão coletiva, de ações conjuntas que superam o campo literário. Em entrevista à Vivian M. N. Napoles (2008, p. 44-45), Ferréz, um dos principais nomes da literatura marginal brasileira contemporânea, afirma:

É um conceito que a gente meio que inventou aqui. Antigamente, os autores como Lima Barreto e João Antônio chamavam o que faziam de literatura marginal. [...] Depois de um tempo que eu comecei a pesquisar, eu descobri que os autores chamavam eles assim como preconceito. Então, eu resolvi pegar esse nome literatura marginal. Preconceito, assim, que o pessoal já estigmatizava: - Ah, é uma literatura meio marginal, é uma coisa que não é oficial. Então, como a gente já tinha um movimento Hip-Hop, já tinha as favelas, tudo com os nomes certos, na literatura não tinha nome nenhum. Então, é literatura marginal, os que estão na margem, né? Na verdade, eu não sou muito apto a fazer crítica. Assim, em saber o que é de fato, porque a gente está fazendo. Mas, eu acho que é deixar mais acessível a literatura, a gente fazer lançamento em lugar que ninguém faz. Fazer eventos que tenham a ver com literatura mais para o povão pegar e ver. É disseminar a literatura mesmo, tirar da parte central da coisa. É, por exemplo, o jeito de escrever. [...] Porque eu queria escrever para que pessoas daqui, quando lessem, soubessem o que estava escrito.

Em fala recolhida por Érica Peçanha do Nascimento (2006, p. 42), o autor explica a origem do termo ligada às edições especiais da revista Caros Amigos sobre esta forma de produção literária:

Eu escolhi o termo [...] porque queria trazer outros autores, para que não ficasse só em mim e no Paulo Lins [autor de Cidade de Deus]. Eu procurei o editor da Caros Amigos com o projeto e ele aceitou; eu não queria ficar marcado como ‘o autor da periferia’. Eu criei o selo Literatura Marginal e a primeira edição especial vendeu mais do que todas as revistas. A terceira edição sai agora em abril e logo vão sair os livros dos escritores que participaram das revistas. A literatura não dá dinheiro, mas dá a maior satisfação de trazer à tona essas pessoas que não tinham nenhuma chance.

No prefácio de Os ricos também morrem, Ferréz (2015b) comenta que o que mantém a escrita viva é o contato com as pessoas, e o retorno delas em relação à sua literatura nos mais variados lugares (ruas, faculdades, favelas, movimentos sociais). Revoltado, motivado pela indignação, o autor vê a literatura marginalizada como sua missão de formação de senso crítico, tendo como público referencial alguém que nunca leu nada, quem não tem hábito de leitura. Ele busca retratar o seu povo com crítica social, denunciando os resultados de um processo civilizatório elitista, de controle da mídia, da economia e das mentes. Na esperança de plantar uma resistência ao consumismo e à massificação, valoriza a cultura local, a família, fomentando a autoestima de quem é da periferia. O que dá sentido à sua escrita é a compreensão de que a literatura pode provocar uma transformação social e deixar marcas nas vidas das pessoas

A categoria da revolta é captada por Ângela Maria Dias (2006) que – ao comparar o conceito de homem revoltado de Camus com o pensamento de Ferréz expresso no texto Terrorismo literário, introdução da obra por ele organizada Literatura marginal: talentos da escrita periférica (2005) – percebe a literatura marginal como um exercício de revolta, consciência histórica e crítica social, que desmascara a ilusão de que todas as pessoas são iguais e livres, uma vez que as classes mais pobres são sistematicamente oprimidas. Há na literatura marginal uma força contra-hegemônica de valorização da identidade local (p. 11-13). Neste sentido, nota-se neste movimento uma resistência a partir da cultura popular à projetos coloniais e epistemicidas (cf. SANTOS; MENESES, 2009; GROSFOGUEL, 2016).

Dias (2006) sustenta que a literatura marginal é marcada por um hibridismo que se desdobra na fronteira entre revolta e ressentimento, bem como num estilo próprio de mistura de gêneros literários (p. 14). Ao analisar a obra organizada por Ferréz há pouco citada, ela destaca como características da literatura marginal: “uma moldura heteróclita, entre o memorialismo ou o testemunho de experiências da vida periférica, a pedagogia de comportamentos e estilos de vida e a ficcionalização maior ou menor dos enredos” (p. 15). De modo semelhante, Zibordi (2006, p. 71) elenca três eixos para a análise dos dois primeiros números sobre literatura marginal publicados pela revista Caros Amigos, também organizados por Ferréz, a saber: “as trajetórias de vida, o projeto de pedagogia literária e a memória ressentida da produção”

1. “O narrador marginal é um sobrevivente, a testemunha imiscuída nos fatos, o transmissor do que viu e viveu”. As trajetórias de vida são matéria-prima da produção literária que engloba elementos biográficos ficcionalizados em maior ou menor grau. Não raro, narra-se a tristeza de vidas carentes não apenas de recursos financeiros, mas também de “[...] certos nutrientes subjetivos como bondade, atenção, cuidado, carinho, amizade, amor” (ZIBORDI, 2006, p. 71).

2. Zibordi (2006) apresenta a literatura marginal como um ato político que se desdobra em “posição solidária com os interesses do povo” (p. 75). O desafio posto é o de fazer literatura para o povo da periferia, acessível em linguagem e financeiramente, fomentando o gosto pela leitura. Um aspecto é a presença de personagens que são leitores, ou ainda que são influenciados por artistas também da periferia. Trata-se de um “[...] discurso literário que pretende ensinar, direcionar a construção de um futuro com mais dignidade e ampliar a capacidade crítica do público. Literatura para educar e influir”. Narrativa e pedagogia se entrelaçam: “Educação é a chave para a libertação” (p. 76). Na força coletiva de um mutirão da palavra os autores buscam “[...] atribuir valores identificados com a margem geográfica, econômica e social do país – nos temas, no tratamento deles, no vocabulário escolhido, na transmissão de uma experiência e na formação de novos valores”. Neste contexto, “fazer literatura na periferia é um ato de sobrevivência intelectual e física que define e dá significado estético a uma convivência cotidiana difícil e precária em todos os sentidos” (p. 82).

3. A memória ressentida sustenta os textos de literatura marginal como objeto próprio de reflexão, ou ainda como formação de um determinado quadro histórico. A memória demarca territórios e identidades entre “vencidos” e “vencedores”, revelando a mágoa e o rancor em relação às elites, bem como a tentativa de perceber nobreza no cotidiano e nos personagens periféricos (ZIBORDI, 2006, p. 82-87).

Isso posto, nos ocupamos agora do conto Coração de mãe, de Ferréz. Nele, o autor se faz instrumento para que emerja a voz da própria mulher nas linhas por ele escritas. Conforme entrevista concedida a Napoles (2008, p. 49), ele afirma: “Quando eu estou fazendo isso, estou tentando interpretar o sentimento de uma mulher e dando chance pra ela escrever. Eu tô tentando dar a chance de, através de mim, ela poder escrever”. Para Napoles (2008), esta mulher, que também é mãe, é dotada de um corporalidade própria.

O texto é um conto9 que, por meio de uma linguagem coloquial (com gírias e preservando expressões da oralidade), narra a decisão de uma mãe em relação à sua vida e à vida de seus filhos. A intriga, para se usar um termo caro a Ricoeur (1994), apresenta a mãe como personagem principal e narradora que, em primeira pessoa, recolhe suas memórias e apresenta o cenário que a leva à sua decisão. O conto retrata espaços ligados à periferia (a mãe e seus filhos moram num barraco) e à vida noturna de uma grande cidade. A família sobrevive com a venda de flores à noite. Além da mãe, do menino e da menina (filho e filha), a narrativa também apresenta “as menininhas fãs dos Travessos” para falar da perda de inocência precoce; cita a mídia como cúmplice dessa erotização e como vendedora de ilusões aos pobres; um homem que se apresenta como advogado e que convida seu filho a brincar em sua casa; as amigas dela do tempo do trabalho à noite junto aos homens da Classe A; César, seu companheiro já falecido; Gersão, alguém que dominava a região e responsável pela morte de César; o rapper GOG a quem ela escuta e que, segundo ela, entende sua situação; o vizinho que quebra o próprio barraco; o vizinho que continua trazendo parentes da Bahia, fugindo da seca e iludidos com São Paulo; Deus que, segundo ela, está meio que se esquecendo “de nóis” e que não pode perdoá-la, também cita a Bíblia que teria muitas coisas poéticas, mas que não lhe dá salvação; um senhor que dança com ela num sonho; o seu Osvaldo do açougue; sua irmã. A narrativa se desenvolve em torno da decisão que foi tomada e que é revelada por meio de um bilhete que dá a entender que a mãe se matou e levou seus filhos consigo para que não precisassem mais sofrer.

Cabe aqui perguntar que antropologia literária é narrada por meio da personagem sem nome, mas que é identificada como uma mãe. Ela é a mulher que servia aos homens da classe A; é alguém que se entende como uma sobrevivente, uma vez que muitas de suas amigas nunca conseguiram sair da vida na rua; é mulher que se envolve com um homem que a faz abortar e que é assassinado em virtude de dívidas; é uma mulher que entende que seu corpo é seu patrimônio e que este mesmo corpo que ama seus filhos e os acaricia, não deve ser usado para satisfazer um homem qualquer; é mulher que sofreu muito durante sua primeira gravidez; é mulher indignada com a situação de pobreza que vive, que passa fome; que trabalha à noite vendendo flores junto com os filhos; é mulher revoltada e honesta, que se identifica com letras de rap, mesmo reconhecendo que também no rap as mulheres tem pouco espaço; é mulher com posicionamento crítico em relação às mídias, à erotização das crianças e à venda da ilusão capitalista; é mulher que buscou sentido na Bíblia, mas que não encontrou salvação ali; é mulher decidida.

Os seguintes recortes do conto de Ferréz (2015, p. 69-72) dão o tom da narrativa:

Acordei naquele dia decidida, dois filhos e uma situação lastimável. Que fazer? Esperar? Não! A situação exige ação. Mas a decisão foi tomada, vou dançar com meus filhos hoje. Mesmo com uma mesa vazia a gente ora, eu sei que Deus tá meio que esquecendo de nóis, mas num tenho o que fazê que ele me perdoe, eu sei que tá difícil, o outro lado só ganhando, mais e mais e mais. E nóis? Bom, de fome, de sede, a gente quase desmaia, pra que querer fazer mais né? Dizem que a gente devia olhar o trigo, a bíblia tem um monte de coisa poética, mas não me dá a salvação, eu procurei por muito tempo, juro que procu-rei. Pelo menos de desbarrancar o morro parou, parou as chuvas, parou o risco de deslizamento. Eu sonhei ontem que um senhor chegava em mim, eu era bem pequenininha ainda, e ele dizia que a vida era uma dança, que a gente nascia e morria sozinha, mas no meio tempo tinha que dançar, e o difícil na vida era achar um bom par. O sonho acabava com ele dançando comigo, eu de vestidinho, lembro do detalhe das meias brancas, ele era tão doce. “me perdoem se fui fraca, mas vocês venceram, meus filhos nunca mais vão chorar, isso eu sei, vou com eles, vou dançar com eles, quem ler esse bilhete por favor entrega pro seu Osvaldo, o dono aí do açougue, que ele conhece minha irmã, diz pra ele dar o dinheiro da venda das coisas que tão no barraco pra ela, a gente num vai mais precisar, a gente só vai dançar agora”.

A antropologia literária de Coração de mãe desmascara visões de mundo elitistas e idealistas10. Percebe-se, no conto, dimensões revelacionais, pedagógicas, proféticas e sapienciais. Há, inclusive, uma teologia pública que critica profundamente uma hermenêutica da bíblia que seja alienada. Uma linguagem devocional que valoriza a imagem do trigo, mas que não percebe a urgência de que parem os deslizamentos de terra não considera a força de libertação que clama da própria tradição bíblica. A crítica profética do texto denuncia injustiças por meio da própria pele da protagonista, ela é mulher que age e sofre, seu corpo e os corpos de seus filhos, marcados pela dor e pela miséria são denúncias de um sistema de reprodução estrutural de violências. A mídia, o mercado e a religião, as grandes narrativas, não são fonte de salvação para ela. O texto revela ao leitor sensibilizado algo de sua própria humanidade e pede por uma revisão ética. Emerge daí uma sabedoria a partir de baixo, que ensina à teologia que a concreticidade da existência não pode ser reduzida a fórmulas doutrinais. Como linguagem pública, o conto retrata o sofrimento e a angústia como expressões da profundidade da experiência humana. Mas mesmo no desespero a mãe ainda sonha, e no sonho, dança. E a dança lhe é símbolo de salvação. Ela quer dançar, e ao escolher dançar com seus filhos revela uma sociedade fracassada.

Em diálogo com o quadro teórico desenvolvido na primeira parte deste tópico, nota-se, nesta literatura, uma denúncia à falta de sensibilidade das classes dominantes que, apesar de serem as representantes do bom gosto, da cultura e educação eruditas, são também responsáveis pelo sofrimento humano ao passo em que impõem um modo de vida de cima para baixo que esmaga as populações marginalizadas. Assim, pode-se afirmar que uma característica da antropologia literária da literatura marginal é a de ser uma antropologia revoltada. Com efeito, Dias (2006, p. 20) compreende que o homem revoltado, segundo Camus, é aquele que “[...] parte do real, prefere o homem de carne e osso, ao invés do ideal abstrato”. Nesse sentido, se pode afirmar que, de modo semelhante, a literatura marginal se inspira na vida vivida, entendendo, como propõe Kearney (2015), que a interpretação começa na carne.

Conclusões: teologia e antropologia marginal

A virada antropológica da teologia abre esta ciência hermenêutica ao diálogo com outros saberes e à sua própria revisão epistemológica. Neste sentido, o campo interdisciplinar dos estudos em teologia e literatura tem se mostrado importante veículo para a afirmação de um modo próprio de fazer teologia que é desenvolvida numa profunda interlocução com seus pares no ambiente acadêmico. Neste horizonte, o presente texto buscou apresentar a noção tracyana de clássico em seu método de teologia pública como contribuição ao método antropológico assumido por pesquisadores na área de teologia e literatura, com especial destaque às formulações de Antonio Manzatto e Alex Villas Boas. Uma vez exposta a relevância do humano como ponto de partida do pensamento teológico, optou-se por localizar no sofrimento aquilo que há de mais comum na experiência humana (Ricoeur). Além disso, o diálogo com a literatura permite notar a estética (aisthesis) como via de acesso à sensibilização do humano ao sofrimento do outro. Ao que uma hermenêutica da carne corrobora um processo de revisão de pensamentos excarnacionsitas e desumanizantes que, não raro, podem se traduzir em perspectivas exclusivistas e autoritárias ao conceberem que uma ideia pode valer mais que um ser humano. Ora, se, e acordo com Tracy, um clássico assim o é, pois comunica ao humano algo de sua própria humanidade, então ele possui uma importante dimensão pedagógica: o encontro com um clássico interpela e instrui, possibilitando uma experiência de leitura que pode levar à sensibilização, ao pensamento e à ação, desvelando uma ética antes desconhecida.

A literatura marginal, ao tratar de temas clássicos da humanidade ao mesmo tempo em que narra a vida às margens, enreda personagens numa intriga de caráter poético e sociológico, sapiencial e profético. Neste contexto, o trágico como revelação do sofrimento é também desvelamento de humanidade que no gênero do conto encontra um impacto veloz, mas não fugaz. Em Coração de mãe, Ferréz retrata o desespero causado pela miséria, interpelando o leitor existencialmente, legando-lhe o desafio de uma refiguração (mimesis III) responsável por meio de uma hermenêutica da carne (Kearney).

O coração de mãe narrado pelo texto está em sofrimento e revolta. O desespero, como tema antropológico clássico, coloca o leitor diante de uma história que não encontra saída para sua dor na vida e que desmascara uma sociedade fracassada. É denúncia pública que critica as estruturas de poder que permitem a perpetuação de situações de apequenamento da vida. O reconhecimento deste fracasso é o primeiro passo para a conversão. O testemunho literário dá o que pensar e o que sentir, lançando o desafio da contínua percepção de que a teologia ou parte do chão da vida ou resulta inadequada. Pensa-se, portanto, no sofrimento sentido na carne de si, do outro e do mundo como ponto de partida de uma teologia pública que assume a humanização do humano como sua tarefa profética e sapiencial. A teologia começa na pele

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Notas

[1]Entre as violências estruturais citadas, nota-se como o tema dos refugiados tem sido objeto de atenção de importantes expoentes do mundo acadêmico, como Bauman (2017, p. 13) – “Refugiados da bestialidade das guerras, dos despotismos e da brutalidade de uma existência vazia e sem perspectivas têm batido à porta de outras pessoas desde o início dos tempos modernos. Para quem está por trás dessas portas, eles sempre foram – como o são agora – estranhos. Estranhos tendem a causar ansiedade por serem diferentes – e assim, assustadoramente imprevisíveis, ao contrário das pessoas com as quais interagimos todos os dias e das quais acreditamos saber o que esperar” – e do mundo religioso como o Papa Francisco em seu discurso em Lampedusa: “Emigrantes mortos no mar; barcos que em vez de ser uma rota de esperança, foram uma rota de morte. Assim recitava o título dos jornais. Desde há algumas semanas, quando tive conhecimento desta notícia (que infelizmente se vai repetindo tantas vezes), o caso volta- -me continuamente ao pensamento como um espinho no coração que faz doer. E então senti o dever de vir aqui hoje para rezar, para cumprir um gesto de solidariedade, mas também para despertar as nossas consciências a fim de que não se repita o que aconteceu. Que não se repita, por favor. Antes, porém, quero dizer uma palavra de sincera gratidão e encorajamento a vós, habitantes de Lampedusa e Linosa, às associações, aos voluntários e às forças de segurança, que tendes demonstrado – e continuais a demonstrar – atenção por pessoas em viagem rumo a qualquer coisa de melhor. Sois uma realidade pequena, mas ofereceis um exemplo de solidariedade! Obrigado!” (FRANCISCO, 2013).

[2]Esta noção de clássico se aproxima daquilo que Edith Stein formula, em La struttura della persona umana (2000, p. 163-164), ao tratar da extensão da ideia de espírito. Ela propõe que o acesso ao mundo dos valores pode ser visto mediante a vida espiritual. Diz: “Todavia, esse é um mundo espiritual que, enquanto tal, está acessível para nós e reconhecemos que dele recebemos alguma coisa? Se assim fosse, deveríamos ampliar notavelmente o nosso conceito de espírito. Até agora falamos de espírito somente no sentido ligado a pessoa e ao ser pessoal de Deus, dos espíritos puros finitos e das almas humanas. Valores como bondade, beleza, sublimidade não são pessoas, nem atos realizados por pessoas; são objetos para sujeitos e eles mesmos não são sujeitos. Se são formas espirituais, temos aqui que fazer as contas, em todo o caso, com um novo tipo de formação espiritual, com um espírito objetivo”.

[3]Cuja etimologia remonta à raiz latina publicus que resulta da fusão entre poplicus (do povo – originária de populus) e pubes (termo que designa uma pessoa adulta). (cf. LEXICO, 2020). Opera-se aqui um alargamento do conceito de teologia pública em que, ao explorar-se a pluralidade dos termos teologia e pública, opta-se por significar a expressão no presente contexto como a análise que se ocupa das narrativas de sentido na experiência humana. Com efeito, esta perspectiva se correlaciona com demais formulações de teologia pública: dimensão pública da fé; discursos teológico no espaço público; relação entre teologia e sociedade; incidência pública da religião; discurso da teologia conforme seus públicos (igreja, academia, sociedade). Todos estes significados de teologia pública estão à serviço de uma tentativa de compreender o humano e suas narrativas de sentido formuladas em diferentes níveis e espaços.

[4]Para um panorama acerca das características dos estudos em teologia pública no Brasil e sua relação com a área de teologia e literatura ver a seguinte abordagem: Hermenêutica e Teologia Pública: elementos para a construção do discurso teológico em interlocução com os clássicos desde a Literatura a partir de David Tracy (ZEFERINO, 2018).

[5]No contexto do debate Manzatto-Magalhães sobre a relação entre religião e literatura, Villas Boas (2020, p. 44) elucida o seguinte acerca da terminologia revelação: “Revelação é um termo de tamanha densidade semântica e distintos usos históricos, contudo, no espírito pós-conciliar e latino-americano que Manzatto comunga, sua compreensão impulsiona a uma narrativa em ajudar o ser humano a ser mais humano, e encontra sua ‘correspondência’ [para falar em moldes de Magalhães] na antropologia amadiana, ao compreender o ser humano como ser feito para a felicidade e capaz de justiça e luta. Pode-se verificar que o método de Manzatto não parte de premissas filosóficas, que pré- -determinam suas respostas, aprisionando Deus dentro de uma metafísica que o torna ‘absoluto demais’ e tão distanciado da sua ação na história, mas parte da antropologia literária, ou seja, da liberdade narrativa para expressar a condição humana, que não raro é crítica de modelos eclesiológicos, crítica essa que não foi silenciada pelo autor”.

[6]A noção de uma revelação enquanto desvelamento de sentido que se dá na vivência humana pode ser identificada com a perspectiva de uma maiêutica histórica como formulada por Andrés Torres Queiruga (2010).

[7]Na peça Heauton Timorumenos, de Terêncio (Terenti, em latim), estas palavras de Cremes quando indagado por Menedemo acerca da razão de se preocupar com alheios que não lhe seriam atinentes, está num contexto de preocupação legítima com o amigo que, após esta abertura, também se abre e revela a sua dor em virtude do relacionamento conturbado com seu filho, Clinia. Neste contexto da obra de Terêncio, cabe indicar o comentário de José Juan Del Col a respeito do impacto da arte na experiência humana de reconhecimento do humano e do verdadeiro para si: “En cuanto a las máximas, la más famosa es, sin duda alguna, el verso 77: Homo sum: humani nihil a me alienum puto, ‘soy hombre; y por lo tanto, nada que sea humano me resulta extraño’. San Agustín atestigua que cuando en el teatro se oyó por primera vez este verso, el público prorrumpió en un gran aplauso; señal, esta, de consentimiento unánime. El verso, a la vez que refleja la humánitas o sentimientos humanos de los latinos, condensa también la humánitas, el alma y sentir humano de Terencio” (s.d., p. 6). Sobre a peça ver também a análise de Lefévre (2013).

[8]Esta dinâmica metodológica é apresentada na relação entre teologia pública e teologia política em A política como assunto da teologia pública: aportes na relação entre religião e espaço público à luz da tipologia de teologias políticas de Boaventura de Sousa Santos (ZEFERINO, 2019).

[9]De acordo com Sérgio Roberto Costa (2014, p. 86-87), com origens na cultura oral, o conto é um gênero literário narrativo mais curto (short story) que outros gêneros narrativos como o romance. Em virtude disso, geralmente se ocupa de um espaço geográfico e temporal restritos, além de possuir um número reduzido de personagens. A construção do texto imbrica tempo, espaço e personagem numa fracção dramática. “Associa-se ao desejo humano de compartilhar acontecimentos, sentimentos e ideias”. Em consonância, Rosa Maria Goulart (2003) identifica como características dos contos a narratividade e a ficcionalidade, bem como, por vezes, a brevidade e a condensação. A possibilidade de ser contado, ou mesmo lido de uma só vez também lhe são característicos (cf. NETO, 2003).

[10]Sobre a importância de promoção de espaços para que as mulheres possam narrar suas próprias histórias de sofrimento e, assim, suportarem umas às outras ver o instigante capítulo Violências contra as meninas e as mulheres no Brasil e na África do Sul: um desafio urgente para a teologia pública em diálogo com a teologia feminista da libertação a partir da dimensão da interseccionalidade, de Claudete Beise Ulrich e José Mário Gonçalves (2020) no recente volume 8 da Coleção Teologia Pública organizado por Rudolf von Sinner, Claudete Beise Ulrich e Dion Forster.