O espiritualismo no pensamento de Nestor Victor: modos de ler literatura  
Spiritualism in Nestor Victor’s thought: ways of reading literature 

 

Roberto da França Neves*
*Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: roberto.talassa81@gmail.com 

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Resumo:

Em diversas oportunidades de sua carreira de escritor, Nestor Victor manifestou-se convicto da relevância da natureza espiritual e de sua precedência em relação à matéria para a compreensão da melhor percepção da realidade. Adepto da corrente de pensamento espiritualista que se opunha ao Naturalismo e aos estereótipos do cientificismo, valorizou perfeitamente a eternidade da consciência individual, embora não fosse especificamente seguidor de nenhuma religião. Engajado nos ideais neorromânticos, acreditava na existência do espírito, mas não se sentia confortável com os velhos dogmas da religião e a crença no sobrenatural. Mesmo não aderindo a nenhuma denominação religiosa, ao longo de sua carreira se opôs ao materialismo, sempre entusiasmado com as manifestações espiritualistas que davam vigor ao censo do mistério na manifestação mais profunda do real. Marcou sua carreira pela admiração de grandes personalidades que dedicaram suas vidas em prol do discurso literário. Acima de tudo, a literatura era, para ele, um meio de apreciar as correspondências que os grandes espíritos mantinham entre si e praticava a leitura e a produção de ensaios com a finalidade de atingir novos valores. Professor de literatura, ensinou alunos e grandes escritores do seu tempo a perceberem as grandezas éticas por trás das densidades estéticas. 

Palavras chave: Farias Brito; religião; Nestor Victor; espiritualismo; romantismo 

 

Abstract
On several occasions in his writing career, Nestor Victor manifested his conviction of the relevance of the spiritual nature and its precedence over matter for the understanding of the best perception of reality. An adept of the spiritualist current of thought that opposed Naturalism and the stereotypes of scientism, he perfectly valued the eternity of individual consciousness, although he was not specifically a follower of any religion. Engaged in neo-Romantic ideals, he believed in the existence of the spirit, but was not comfortable with the old dogmas of religion and belief in the supernatural. Even though he did not adhere to any religious denomination, throughout his career he opposed materialism, always enthusiastic about spiritualist manifestations that gave vigor to the sense of mystery in the deepest manifestation of reality. He marked his career by the admiration of great personalities who dedicated their lives to literary discourse. Above all, literature was, for him, a means to appreciate the correspondences that the great spirits kept among themselves and he practiced reading and producing essays with the purpose of reaching new values. A literature professor, he taught students and the great writers of his time to perceive the ethical grandeurs behind the aesthetic densities. 

Keywords: Farias Brito; religion; Nestor Victor; spiritualism; romantism 

Considerações iniciais: Nestor Victor, um homem motivado por sentimentos e ideais 

Nestor Victor dos Santos (1868-1932) foi o principal articulador do destino das principais obras simbolistas no Brasil. Nascido em Paranaguá, teve contato com os principais escritores brasileiros, entre o final do século XIX e as três décadas iniciais do século XX. Silveira Neto, autor de Luar de Hinverno (1900), convidou-o para prefaciar a sua obra, que teria marcado o movimento dos novos naquele período (VICTOR, 1979, p.80). Conforme sinaliza Andrade Muricy (1987, p.337), seu principal biógrafo, Cruz e Sousa, o maior poeta simbolista no Brasil, autor de Faróis, teve esta obra divulgada por seu intermédio em 1899, ocasião em que apresentou também o ensaio crítico Cruz e Sousa, com o intuito de atualizar os seus leitores acerca da relevância da obra de seu maior amigo. Seu estudo acerca do Poeta Negro foi responsável por dissipar incompreensões de uma crítica cartesiana e materialista em relação às obras notáveis Missal e Broquéis (1893). Foi graças ainda a sua intervenção que diversos poemas em versos e em prosa de Cruz e Souza vieram a público, através da publicação de Evocações e de Últimos Sonetos em 1905. 

Nesse período, a sua obra A hora (1900) apresenta com grande entusiasmo autores estrangeiros dotados de uma nova sensibilidade poética, entre eles Maurice Barrès, Edmond Rostand e Henrik Ibsen. No prefácio, confessou que procurava meditação e atividades contemplativas através do pensamento artístico de grandes autores contemporâneos, um desejo de aperfeiçoamento espiritual e consolo para a dor de perdas irreparáveis em sua vida recente. O nosso ensaísta se afastaria por um período da vida social e se dedicaria apenas ao manuseio e leitura de livros educativos no claustro da sua intimidade: 

Vai para três anos, circunstâncias da minha vida levaram- -me a procurar apoio e consolo mais numa existência de gabinete, do que de convivência com os homens, mais de meditação e de contemplatividade do que de ação e de produção literária (VICTOR, 1969, p.33). 

Entre tantos feitos para estes novos literatos, realizou uma notável parceria com o escritor belga Maurice Maeterlinck e fez a tradução de A sabedoria e o destino, que veio a público brasileiro com uma introdução feita por ele. Só para termos uma noção de um engajamento que fez parte de toda a sua trajetória, a obra póstuma Os de hoje (1938) reúne ensaios muitas vezes publicados no Jornal O Globo, que comprovam o seu entusiasmo com os trabalhos de Graça Aranha, Jackson de Figueiredo, Raul de Leoni, Gilka Machado, Murilo Araújo, Plínio Salgado, Andrade Muricy, Barreto Filho, José Américo de Almeida, Mário de Andrade, Tristão de Athayde, Adelino Magalhães, Jorge de Lima, Cassiano Ricardo, Wellington Brandão, Luiz Delgado, Menotti Del Picchia, Jaime Balão Júnior, Rodrigues de Abreu, entre outros nomes relevantes da Belle Époque e do período modernista. 

Muricy tornou-se o guardião do acervo pessoal de Victor, após seu falecimento, além de ter obtido dele preciosas informações acerca da biografia de muitos autores. A produção mais conhecida de Nestor Victor são os ensaios, já que era o principal expositor e divulgador dos autores classificados como simbolistas. Todavia, sobre o nosso autor paranaguense criador de ficção e poemas pouca informação ainda está à disposição do público. Sua prosa de ficção e seus poemas ficaram um pouco esquecidos com o tempo; inclusive, os críticos têm procurado dispensar o Victor da prosa e do verso, ao encaminhar a sua memória apenas para o campo da crítica: “A grande poesia da sua alma terá outros ritmos, falará outro idioma: o do ensaísta e do moralista” (MURICY, 1976, p.175). Embora essa declaração seja passível de questionamentos, o Victor ensaísta muito nos interessa, porque valoriza um autor preocupado com a reformulação da moral, que dava sinais de saturação e era atacado por filósofos e pensadores. 

Embora poeta Cruz e Sousa seja conhecido como o maior realizador de produções do pensamento simbolista, Nestor Victor, seu querido amigo, é considerado o grande apóstolo do movimento. Foi o mentor intelectual para que uma corrente de pensamento antimaterialista vingasse no Brasil. Muricy dedica a ele o protagonismo dos acontecimentos no círculo simbolista brasileiro a partir dos anos 1880 em O símbolo à sombra das araucárias (1976). A imagem transmitida do nosso ensaísta é a de um perspicaz autodidata que se interessava por política e amava estudar e pesquisar sobre os mais diversos assuntos que inquietavam a humanidade no século XIX e XX. O mundo como vontade e representação, de Arthur Schopenhauer, era o seu livro de cabeceira. Todo o seu combate contra as hordas disciplinadas do naturalismo pode ter sido impulsionado com as palavras do mestre, que retiravam da ciência a explicação mais íntima da essência das coisas: 

Se a lei do materialismo fosse a verdadeira lei, tudo seria esclarecido, tudo seria explicado; tudo se reduziria ao cálculo, que seria o deus supremo, no templo da Verdade, ao qual nos conduziria ditosamente o princípio da razão (SCHOPENHAUER, 2016, p.132).

O testemunho relatado no prefácio das suas Obras Críticas é bastante relevante para demonstrar que a admiração de Victor por Cruz e Sousa foi algo como o caso de uma epifania secularizada: “Essa amizade passaria a ser a tônica emocional, com poderosas conotações estéticas e morais, de sua vida do espírito” (MURICY, 1969, p.XI). Em outro depoimento, foi atestado que o Poeta Negro se tornou para ele um mestre, a quem devia o aprimoramento da sua formação: “Confessava que nenhuma amizade pudera proporcionar-lhe o alimento substancioso, o alto inebriamento espiritual que lhe valia o trato com o Poeta Negro” (Id., 1987, p.337). Muitas palavras do próprio Victor ainda lançam luz sobre essa gratidão e conotam um carinho singelo que se vê tão presente entre homens iluminados por uma rara sensibilidade da natureza humana como estas: “Estávamos os dois unidos numa correspondência de vistas e numa intimidade raras” (VICTOR, 1979, p.79). Um ao outro compartilhava muitas obras em fase de gestação, sem contar que alguns textos de ambos tiveram inspiração nesta sincera amizade, o que nos motiva a conceber a literatura como forma de expressar o afeto entre os espíritos, em nível acima da normatização das vias sociais e morais. 

1. A literatura como forma de espiritualidade no contexto histórico do materialismo

A concepção do panteísmo integra matéria e consciência, ao contrário da divisão do mundo a partir do dualismo entre o efêmero e o imutável. Vale a pena trazer à memória os trabalhos de Mircea Eliade acerca da inserção do espaço profano no espaço sagrado em O sagrado e o profano e da nova humanidade formada a partir da reconciliação dos contrários em Mefistófeles e o Andrógino. Neles há uma concepção panteísta ainda que haja um movimento de retorno à origem do universo. Ainda que a filosofia platônica esteja na base do pensamento religioso, é notável considerar a noção de reintegração latente entre matéria e espírito. Nesta pegada, a função das festas religiosas e do templo, por exemplo, é dominar os espaços caóticos do universo, o mundo precário pela transitoriedade e transformá-lo, restaurando ao universo divino. O espaço profano é novamente reintegrado no cosmos: 

Um território desconhecido, estrangeiro, desocupado ainda faz parte da modalidade fluida e larvar do ‘Caos’. Ocupando-o e, sobretudo, instalando-se, o homem transforma o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição ritual da cosmogonia (ELIADE, 2019, p.34).

A partir de uma nova concepção de ciência que se reintegra com a metafísica, é possível verificar que muitos estudos sobre religião no século XX expandem o conceito de sagrado a partir do profano e o conceito do profano a partir do sagrado. O binarismo pode ser substituído por uma noção de espiritualidade que abrange todo o universo como um espaço único e assim reintegrar progressivamente ciência e discurso sobre a religião. Contra o frágil realismo e a sua representação de realidade através da aparência ou pelos dados combináveis mais próximos da argúcia intelectual do observador atento, Gaston Bachelard investe, questionando a antiga ciência e propondo uma nova epistemologia: 

Mais do que nunca, urge romper com a ideia de que a experiência comum possa ser origem racional da experiência científica, conceito contra o qual pressiona a epistemologia bachelardiana desde suas primeiras obras (CARVALHO, 2013, p.100).

Para o filósofo, a teoria, a abstração e a pergunta precedem o fenômeno observável: 

Na nova epistemologia, no domínio da ciência teórica, os dados são resultados; as demonstrações científicas constituem o fenômeno que é recriado tecnicamente no âmbito da teoria, confirmando, assim, a primazia da reflexão abstrata sobre a percepção empírica (CARVALHO, 2013, p.100).

De forma sucinta, podemos afirmar que a nova ciência desfaz o aspecto antimetafisico da velha ciência. Podemos ir mais longe e alcançar uma transcendência absolutamente total, por meio da desconstrução do objeto a fim de adquirir alguma percepção da realidade: “é negando o objeto que se descobre a matéria” (CARVALHO, 2013, p.101). Há um retorno ao pensamento em substituição das teorias mecanicistas: “O novo reino da racionalidade do século XX passou a ser revestido de qualidade filosofal como condição para compreender e elaborar sínteses cada vez mais complexas” (CARVALHO, 2013, p.102). Os simbolistas no século XIX prenunciavam todo esse universo de conquistas em torno de um novo racionalismo, que não dispensava o mundo sensível, conforme a síntese do pensamento bachelardiano. 

Há um cientista extremamente importante para os estudos literários, Alfred North Whitehead, que foi citado sobre Edmund Wilson em Castelo de Axel, trabalho crítico sobre a corrente espiritualista na literatura. Ele aproximou ciência e filosofia e contestou os pressupostos da aparência observável como algo próximo da nossa percepção de realidade: “O universo, se concebido apenas nos termos da causação eficiente de interconexões puramente físicas, apresenta uma aguda e inconciliável contradição” (WHITEHEAD, 1988, p.13). Desse modo, ele se opõe ao quadro teórico do naturalismo no século XIX, que veio a ser a crença no domínio do factual sobre a teoria, como a do escritor de literatura Zola que “acreditava serem idênticas a composição de um romance e a realização de um experimento de laboratório (WILSON, 1993, p.12)”. Esta sistematização no discurso literário de estereótipos de ciência é que veio a ser o naturalismo, ou estereótipo dos naturalistas, ressaltando que muitos destes também desconstruíram a realidade pela imaginação: “Esta doutrina chamou-se, em Literatura, Naturalismo, e foi posta em prática por romancistas como Zola” (WILSON, 1993, p.12). É importante assinalar ainda o depoimento do maior divulgador das novas sensibilidades artísticas, difundidas pelo simbolismo no século XX, em prol da defesa que o físico faz para o romantismo: 

Neste particular, é elucidativo considerar a interpretação do Movimento Romântico dada por A. N. Whitehead no seu livro Ciência e mundo moderno. O Movimento Romântico foi de fato uma reação contra as ideias científicas, ou melhor, contra as ideias mecanicistas a que certas descobertas científicas deram origem (WILSON, 1993, p.10).

Retornando o foco para Whitehead, ressaltamos que ele não define a razão como estabilidade como é notório na religiosidade tradicional, mas como movimento e transformação constante; é desse modo que ele aproxima ciência e metafísica: “se a doutrina da Ciência, como uma busca da simplicidade descritiva, for esboçada no sentido de torná-la livre de metafísicas, nesse mesmo sentido a Ciência perde sua importância” (WHITEHEAD, 1988, p.27). Se o intuito de uma relação muito próxima entre espiritualidade e arte, principalmente literatura, ocupou os esforços dos artistas a partir dos românticos, alcançamos outro patamar: aproximar basicamente a ciência com a espiritualidade desenvolvida no romantismo e no simbolismo. 

Nesse passo, adentramos uma nova experiência: a poesia passa a ter a missão de expressar a vanguarda de uma espiritualidade que expressa os novos parâmetros da ciência. Para esse fim, uma ressalva deve ser feita: não se trata de seguir particularmente uma religião ou de usar a literatura como mero mecanismo pedagógico para educação religiosa, mas de difundir um aperfeiçoamento moral que esposava o ser oculto da alma como percepção da realidade. O romantismo foi a retomada de uma transcendência que não mais se coadunava com o culto artificial: 

O movimento do poeta romântico é de ascensão constante através do que Wordsworth chama “a terra adornada com luz celestial”. O meio para esta ascensão é um esforço constante para conseguir a purificação moral e a apreciação das belezas da terra, que recordam sem cessar que são apenas os símbolos do oculto (BALAKIAN, 1985, p.22).

No percurso do romantismo, a arte foi considerada uma forma de espiritualidade, através de uma interiorização do ser que culminava na interligação com o cosmos, através de nomes importantes como Gérard de Nerval. Um passo a adiante, o simbolismo é fortemente marcado pela limitação da transcendência das coisas do universo ao âmbito terrenal, desfazendo a antiga dualidade platônica. Neste vetor, destacamos o pensamento de Baudelaire, precursor do Simbolismo, que deixou um legado para os poetas vindouros. Para ela, divulgou-se em alguns poemas de Fleurs du mal uma readaptação da teoria da correspondência de Emanuel Swedenborg, ao excluir a concepção metafísica tradicional. Baudelaire abandona a expectativa da transcendência metafísica: “traindo [Baudelaire] o santo padroeiro dos literatos de sua época [Swedenborg], a experiência espiritual que se comunicará em sua antologia, cuidadosamente concebida, está realmente circunscrita aos limites da natureza humana” (BALAKIAN, 1985, p.32). Assim, os autores simbolistas compartilharam da noção de que os entes materiais e espirituais, de acordo com a velha dicotomia entre mundo sensível e inteligível de Platão, são a representação do universo artístico recriado pela transfiguração dos entes metafísicos a partir do contato sensorial com o mundo. Assim, desenvolveu-se no século XIX as bases de um contato com a realidade a partir de uma reformulação do mundo inteligível. Rimbaud também observa no poeta a mesma missão de profeta, o visionário que vê além do comum dos mortais e deseja reunir com o Todo: “O papel que lhe é designado consiste em traduzir as coisas que os outros creem inanimadas e expressar alguma grande força cósmica que teria sentido em si mais intimamente do que o comum dos mortais” (PEYRE, 1983, p.26-7). 

Os estudos espiritualistas sobre a poesia no século XX compreendeu que esta transcendência visa à manifestação da mente do poeta e a correspondência com o seu espírito, pela concepção filosófica de Bachelard: “A fenomenologia, ao se interessar pela narrativa da vivência guiada pela subjetividade, é um método que consente reviver imagens, assim como ímpetos criativos da imaginação, pondo-nos em contato direto com a mente do poeta” (CARVALHO, 2013, p.156). Aproxima-se o simbolismo da espiritualidade na medida em que dá preferência à sugestão e à evocação, em lugar da nomeação semelhantemente aos escritos proféticos espiritualistas: “A missão do poeta é decifrar o invisível. Ele é um tradutor e um revelador de mistérios que permanecem despercebidos ao comum dos homens (PEYRE, 1983, p.21)”. 

Nessa linha de pensamento, há uma expectativa para o poeta; ele não é o contemplador do espaço, mas o sensibilizador de uma nova revelação da força cósmica que cada ente do universo deve desenvolver. Tomemos a tentativa de Bachelard de reformular a reconciliação da alma com o universo, no ato de reconduzir “o ser à ruptura entre a pura contemplação do universo e um envolvimento profundo com as forças cósmicas, ocasião para a revelação de um si mesmo mais íntimo e profundo” (CARVALHO, 2013, p.113). Um novo caminho aparece: com a reformulação da objetividade, a poesia torna-se a linguagem da alma ou a possibilidade concreta de reencontro dos espíritos e a reintegração do ser com o universo: 

Poesia é fenomenologia da alma. Entende-se alma como a nossa representação do cenário interior. A imagem como evento psíquico é a origem da consciência, assim como o é também da linguagem (CARVALHO, 2013, p.166).

Ainda veremos como Nestor Victor trilhou os caminhos do transcendentalismo, que reintegra o homem ao cosmos como atividade poética, para realizar ensaios sob a ótica da convergência de almas e uma intimidade espiritual entre os artistas das palavras.  

2. O pensamento espiritualista de Nestor Victor

Se trouxemos alguns esboços sobre a reintegração de espiritualidade e percepção da realidade, em gestação na literatura do século XIX, também é preciso dizer que muitos literatos se aproximaram da religião. Muitos simbolistas se converteram ao cristianismo e outros se voltaram para uma vida religiosa, o que os fizeram se aproximar, de algum modo, do fenômeno transcendente. O caso mais corriqueiro foi o de Paul Verlaine, que mudou radicalmente de vida após a sua conversão ao catolicismo. No entanto, na maioria dos casos houve uma proximidade com o esoterismo. Nós temos exemplos no Brasil como o de Rocha Pombo e Dario Veloso. De certo modo, o resgate da transcendência foi uma ponte para a readaptação da teoria da correspondência e para uma nova noção de espiritualidade. 

O aspecto mais generalizante dos simbolistas era o seu combate ao naturalismo: “O único terreno comum de entendimento dos simbolistas foi o da sua denúncia do naturalismo, nos seus aspectos mais provocantes, na teoria, e nos mais sórdidos, nas obras” (PEYRE, 1983, p.55). Nestor Victor também bateu nessa tecla. Ele manifestava-se contrário ao mecanicismo das correntes naturalistas (ou dos estereótipos naturalistas) e desse modo ia de encontro à concepção de que toda a realidade poderia ser explicada e manipulada prioritariamente pelos entes materiais: “O materialismo e todas as doutrinas que nele em última análise se resolvam sempre me foram antipáticas” (VICTOR, 1969, p.243). Ele absorve das correntes antinaturalistas a energia vital da espiritualidade. 

Na introdução à obra A sabedoria e o destino, Nestor Victor fala de engajamento espiritualista de Villiers de L’isle Adam e de Stéphane Mallarmé. Afirma que estes autores deram feições ao movimento simbolista; no entanto, distancia-se da finalidade estética ou qualquer nuance de arte pela arte e menciona tendências místicas e aspirações transcendentais neles. Louva as biografias artísticas que se inspiraram seriamente no misticismo. 

As tendências místicas de um e de outro os tinham levado ao estudo de todas as épocas mais caracteristicamente espirituais, que do fundo dos séculos estivessem acenando numa correspondência misteriosa a esta de hoje, agora em tentativa de formação (VICTOR, 1973, p.9).

Ressalta características espiritualizantes com um transcendentalismo que não passa de uma vestimenta da mais excelsa agudeza do espírito: 

Dessa vida de ascetismo beneditino trouxeram ambos na fronte uma doce palidez severa, e no gesto esta sobriedade aristocrática que traduz ausência completa de pretensão a domínios grosseiros, mas por preocupações transcendentais e excelsas (VICTOR, 1973, p.9).

Acerca de Matias Aires, tenta resgatar o seu nome e a sua obra, através de uma motivação espiritualista; ele era um psicólogo moralizante e por isso mesmo merecedor da lembrança de seu nome e do desfrute das páginas de seu pensamento, como a apreciação de um espírito iluminado: 

Chama-se ele Matias Aires, e dele se pode dizer com toda a propriedade que, sobre ser um alevantado engenho, é um psicólogo, e relativamente ao seu tempo, um “ativista”, malgrado o indício que se possa colher do título que tem seu livro principal, as Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens. É um autor, pois, cuja ressurreição ora se impõe (VICTOR, 1973, p.46).

Como se pode perceber, o autor deve ser resgatado para que possamos aprender e contornar com a nossa sensibilidade de leitor uma alma entregue à nobreza de sentimentos e não exatamente o conhecimento de um livro. É assim que Nestor Victor interpreta o seu filósofo português Matias Aires: 

Esses trechos bastam para indicar uma alma simpática e nobre, uma alma de intelectual acima de tudo enamorado do belo, sentimento que é a base da liberdade espiritual no homem e craveira por onde se pode aferir a latitude de uma alma, tanto mais em época escura, constringida, tormentosa, cheia de perigos e duramente ajoujante, qual foi aquela em que coube viver ao velho pensador patrício de que aqui se fala (VICTOR, 1973, p.48).

Devemos considerar a carta à escritora Gilka Machado, no dia 8 de Abril de 1917, quando ele ressalta a marca do espiritualismo para o seu trabalho poético no livro Estados d’Alma: “Dou-lhe um aperto de mão pelo seu novo livro Estados d’Alma. Acho que a senhora fez extraordinário progresso do primeiro para este: há nele mais aristocracia de forma, mais espiritualidade, mas larga mais alta inspiração” (VICTOR, 1973, p.86). 

No intuito de observar que o espiritualismo de Nestor Victor não se aliançava com a religião tradicional, possuímos exemplos claros dessas manifestações. Em algum momento de sua carreira, ele rechaçou o catolicismo, visto como uma religião do atraso: “A França, no entanto, para evoluir francamente, precisava emancipar-se do catolicismo” (VICTOR, 1911, p.238). Ele não era católico e não aceitava fazer uma arte que fosse propaganda para qualquer religião. Demonstrou em Signos, a desconfiança com o surgimento de novas seitas. Nesta obra, criou a personalidade de Bruce na novela “Sapo”, um profeta moderno, que somente lia um livro da bíblia, desprezava outros e manipulava a exegese ao seu interesse. O personagem tornou-se o tipo fanático, que cinicamente supervaloriza um trecho da bíblia em detrimento de outros: “Passava-lhe pelo cérebro uma ideia absurda: a de se fazer um novo Isaías” (VICTOR, 1897, p.165). Era um tipo perigoso, fruto dos seus devaneios e da livre interpretação de livros religiosos, sem qualquer apuro crítico mais sofisticado. A falta de um genuíno conhecimento espiritual causou-lhe a ruína psicológica, uma vez que não sabia lidar com os sistemas morais e a culpa acabou por lhe corroer o cérebro: Bruce não suportou as responsabilidades do encargo a que se atribuiu como profeta: “Tinham-lhe voltado suas preocupações morais. Ele se encontrara de novo consigo mesmo, mas ficara assombrado da ruína trágica que representava agora, vendo- -se cheio de crimes e de lama” (VICTOR, 1897, p.203). 

De modo algum podemos supor que Nestor Victor flertava com o ateísmo. Definia o lado sobrenatural do fenômeno religioso dentro do plano da realidade, ainda que imperceptível: “O que chamamos sobrenatural não é mais do que a realidade que está fora do nosso alcance” (VICTOR, 1920, p.8). Desse modo, influenciado pelas ideias de Farias Brito, achava-se Nestor Victor um panteísta: “É certo, o panteísmo para que visivelmente propendo ainda nessas linhas transcritas, é bastante vago, de modo a poder interpretar-se como tendência mal disfarçada para um espiritualismo característico” (VICTOR, 1969, p.243). Embora se mantivesse neutro no terreno do sobrenatural da maioria das religiões, Nestor Victor manifestava a sua espiritualidade por acreditar no primado da consciência sobre a matéria. Se para muitos o termo espiritualidade, tão recorrente nos trabalhos do autor, pode parecer apenas as atividades da imaginação, não necessariamente alicerçando questões de fato espiritualistas, suas bases teóricas reforçam uma amplitude muito maior que a lição comum. O ensaísta marcou sua produção crítica pela conformidade com o espiritualismo e não deu uma significação simplesmente metafórica do termo. A densidade de informações e leituras para o conceito pode ser vista e analisada na obra Farias Brito, publicada em 1917, que é o arcabouço da corrente que se desenvolvia no Brasil nas mãos de um Cruz e Sousa e de um filósofo brasileiro, o próprio Farias Brito. 

Nestor Victor repete as palavras de Farias Brito em O Mundo Interior acerca desse primado do espírito sobre a matéria: “A essência íntima de tudo ser, o ser próprio e a existência verdadeira de todas as coisas é o espírito” (BRITO apud VICTOR, 1969, p.205-6). Em algum momento, é observado o choque com o conceito de Vontade da filosofia schopenhaueriana, uma vez que esta posiciona a vontade como essência do universo. Para Victor, a essência do universo é o espírito, defendendo certa noção de livre-arbítrio que vem das teorias políticas e não do filósofo: “Farias Brito, dando assim o primado ao espírito, está em desacordo com os que entendem dar esse primado à vontade” (VICTOR, 1969, p. 205). A matéria não tem existência própria nem primado sobre as manifestações da consciência, mas é derivada do imaterial e do espírito: “Toda matéria vem, pois, do imponderável… A matéria desfaz-se e, ainda em seu elemento mais resistente, a massa, vem do imaterial e perde-se no imaterial” (BRITO apud VICTOR, 1969, p.204). Essa declaração com base na filosofia da ciência, aqui desenvolvida por Farias Brito, vai encontrar bases mais sólidas com os pressupostos da filosofia de Gaston Bachelard. É para o panteísmo, a partir de uma interpretação científica, que os nos pensadores vão, uma vez que o seu panteísmo não exclui o conceito espiritual e tem nele a base do universo material: “Vê-se que não há existência que não seja de ordem espiritual” (BRITO apud VICTOR, 1969, p.205). Victor, no entanto, não pendia para um espiritualismo que pretende reencontrar-se no fundamento material em algum momento, embora visse com satisfação qualquer doutrina que saísse da rigidez do materialismo filósofo dos séculos precedentes; ele se nutria do senso de mistério que as religiões trazem consigo: “A minha tendência romântica sempre a senti eivada de religionismo, porém jamais sob a disciplina de uma crença organizada” (Ibid., p.243-4). 

Nestor Vitor toma ainda as palavras de Farias Brito na obra mencionada, acerca de Deus como o seu próprio ponto de vista sobre a essência da divindade. Desenvolve assim uma concepção panteísta: “Deus, devendo ser concebido como a perfeição absoluta, não tem, pois, vontade: é o ser uno e completo, do qual tudo sai e no qual tudo entra; o ser e todo o ser, o pensamento e todo o pensamento” (BRITO apud VICTOR, 1969, p.209). Sendo uma energia presente em todo o universo, deus é uma atividade criativa através do pensamento. 

Apoiando-se nas palavras de Farias Brito, Nestor Victor lança novas bases para a filosofia, através da função de salvação moral da humanidade. Defende a reformulação do pensamento filosófico na modernidade em prol de condições educativas para o aperfeiçoamento do espírito: “nada mais lógico do que estar persuadido que só pode resultar a salvação de um rumo que se dê à filosofia moderna inteiramente diverso do que ela tem seguido até aqui” (VICTOR, 1969, p. 217). Neste sentido, caminharemos para deixar nos estudos sobre Nestor Victor a literatura como exercício espiritual da benevolência e da bondade entre as consciências humanas. 

Nestor Victor vê na filosofia a responsável por uma educação moral que pode muito bem substituir a religião de modo mais proveitoso: 

Deste modo, torna-nos conscientes de nossa própria realidade, como da realidade exterior: orienta-nos na vida; explica-nos o sentido de nossa posição no caos da universal existência, habilita-nos, em suma, a fazer a dedução da lei a que devemos obedecer (BRITO apud VICTOR, 1969, p. 217).

Aquele que opta pela filosofia, pode muito bem prescindir da religião; de certa forma, ele manifesta a tendência moderna de se buscar uma experiência com o divino através do estilo de vida, ao invés da adesão a uma organização religiosa: “À filosofia, como ciência do espírito, corresponde, pois, na prática a religião. É que essa ciência nos dá uma intuição da vida e do mundo” (BRITO apud VICTOR, 1969, p.217)”. Embora tivesse afirmado isto num ensaio em homenagem ao filósofo Farias Brito, desde Signos, sua obra de contos, publicada em 1897, já tinha a opinião de que é da filosofia que precede e dá formato à religião e não o inverso: “De nós é que derivam Religiões e Teorias, nós somos os pais de todos os homens, os árbitros da Consciência e da Fé” (VICTOR, 1897, p.5). 

3. Exercícios de contemplação das almas: o mestre e amigo Cruz e Sousa 

A leitura das obras literárias então passa a ser um exercício de contemplação e admiração de homens de pensamento, nos quais sobressaem a bondade, a benevolência e o exemplo de ética, arautos do idealismo. Este é o passo seguinte que Nestor Victor dá ao filiar-se na corrente espiritualista do pensamento que permeia a manifestação artística. Ler literatura era para ele observar nos seus irmãos espirituais a representação dos ideais. Importante ressaltar que tais qualidades derivam do espírito e não da matéria, segundo o ponto de vista que assume através das palavras de um filósofo brasileiro Farias Brito. No ensaio Farias Brito, consegue transfigurar a percepção do conteúdo de sua filosofia no modo de experimentar um alto grau de bondade humana: “Será necessário ainda mais para se ver que Farias Brito, acima de tudo, o que representa é um alto expoente da bondade humana, o mais alto que um pensador brasileiro já conseguiu representar até aqui?” (VICTOR, 1969, p.217). Toda a sua filosofia, longe de ser um puro exercício de especulação intelectual, é um estratagema de outra finalidade, que tem a ver com as clarividências espirituais: conceber e admirar a dignidade e nobreza do caráter da bondade e ter intimidade com os espíritos. 

O homem extraordinário é para Nestor Victor uma das formas de acreditar na espiritualidade. Ele emocionava-se e vibrava em ver um ser aparentemente simples com todas as dificuldades que o preconceito e o meio hostil lhe impuseram, como caso de Cruz Souza, sobressair-se pela magnitude da inteligência: “Cruz e Sousa é um homem preto, e por ser tal é a essa qualidade que o mundo lhe há de atribuir muitas das suas qualidades extraordinárias que são defeitos aos olhos vulgares” (VICTOR, 1969, p.21). Cruz e Sousa foi o maior representante da corrente espiritualista no Brasil. Victor o não lê exatamente como simbolista, embora fosse o mais notável deles por sua talentosa produção poética, mas como digno exemplar humano dos que acreditavam na supremacia da consciência sobre a matéria. Sobre o seu simbolismo, ele fazia ressalvas: “ele não chegou a representar a estética simbolista sob todos os seus aspectos” (VICTOR, 1969, p.239). Porém, as marcas do espiritualismo lhe eram mais relevantes e evidentes: 

Mas é justamente porque ele representa, sobretudo, o que vem a ser na realidade a alma do novo credo, – o seu neorromantismo ou intuitivismo, – que o poeta negro pôde quase, logo de entrada, esgotar as possibilidades proporcionadas à nossa poesia pela tendência de que foi corifeu aqui (VICTOR, 1969, p.239).

Cruz e Sousa acabou sendo para ele uma espécie de mestre profano que ensina o sagrado. Nestor Victor o compara com religiosos e verifica a agudeza poética transfigurada na uma espiritualidade que vem sobretudo do pensamento: “Cruz e Sousa é um fanático da arte, como as Santa Teresa são as fanáticas da Religião” (VICTOR, 1969, p.18). 

Os Signos, segundo Cruz e Souza, parece ser uma obra que perpassa as futilidades e mediocridade das convicções comuns, expondo-as a uma situação de simplicidade diante do cosmos abundante exuberante. Tudo empenho se deve ao renascimento de uma nova forma de crença e fé, um transbordamento de vitalidade essencial e não um mero intelectualismo ou qualquer esnobismo: 

O glorioso artista dos Signos conseguiu enfeixar na sua obra os símbolos mais expressivos e belos, alguns de um fundo bem cruel e bem funesto, mas onde ressaltam, vivas e dominantes, as sensações e as ideias que uma rara fé desperta nos espíritos definitivos (CRUZ E SOUSA, 1961, p.797).

Cruz e Sousa ensinou Nestor Victor a produzir literatura como exercício de aferição e compreensão máxima da alma humana, a partir de alguns poemas em prosa que escreveu, com o intuito de amplificar os personagens da obra de contos recém-publicada pelo amigo. Através de artigos do jornal A República, o Poeta Negro percebeu, por exemplo, que o personagem Bruce, uma das criações de Nestor Victor, foi para ele uma oportunidade de tocar nesse Infinito panteísta, que ele tanto devotou: “O tipo de Bruce é um dos mais intensos e profundos entre as Criações universais. Sente-se que ele desloca as correntes do ar, move- -se, respira, vive, agita convulsivamente os braços no Infinito” (CRUZ E SOUSA, 1961, p.802). Para estes seres, amigos entre si, a literatura era o encontro de Deus. De outro modo, uma verdadeira obra de arte deve mexer com todas as vibrações do corpo físico e é uma forma de conhecer os recônditos secretos de uma alma iluminada: 

A obra de um artista vem inteira e completa nos seus nervos, no seu sangue, na sua inspiração, na sua virtude, na sua moral, na sua alma, realizando o que de fato se pode chamar a natureza de um Complexo estético, um mundo novo de Intelectualismo requintado (CRUZ E SOUSA, 1961, p.805).

Nem mesmo Émile Zola, o mestre do Naturalismo, escapa de uma interpretação espiritualista da parte de Cruz e Sousa. Por um lado, a produção deste naturalista o aquece com um calor, que o esgota de um traço decadente mal-resolvido, em suas rigorosas pretensões à análise científica: “Os livros de Zola, para dar aqui o exemplo de uma das organizações chefes do nosso tempo, aí estão – candentes, gerados numa atmosfera de fornalha, transbordando de surpresas de observação e análise” (CRUZ E SOUSA, 1961, p.678). Por outro lado, entusiasma-se e delira-se diante de um autor que se rende à arte e que se dota de um apelo metafísico: “Nos livros de Zola, porém, sente-se o efeito de uma monstruosa trombeta de bronze soprada por um Hércules gigantesco, formidável” (Ibid., p.678). Sem dúvidas, longe de qualquer aprisionamento estético, existe para Cruz o homem que ensina o que tem de mais importante em sua alma. 

O panteísmo de Cruz e Sousa se vê em “Tísica”, poema em prosa de Missal. Nele, uma mulher que pende para o panteísmo é um entre tantos exemplos de mistificações poéticas para a reintegração do ser com o universo: “com olhos cheios de fluidos místicos do Panteísmo, e que parecem subir, através de nimbos, além, às empíreas regiões dos excelsos arcanjos alvos de luz...” (CRUZ E SOUSA, 1961, p.463). O panteísmo observado no pensamento de Victor pode ter sido uma ideia derivada de Cruz e Sousa, nesse encontro de almas amigas que compartilhavam, antes das experiências poéticas, as experiências da alma. Para o Cruz e Sousa a educação pela literatura era sempre “Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho” (CRUZ E SOUSA, 603). O que ele queria dizer nestas palavras é que eternamente os autores produzem autores, independentemente de serem “sol”, “sombra” ou “espelho”. O poeta latino Virgílio, por exemplo, é um produto oriundo de Homero: “Sempre este espelho – Homero, contra este espelho – Virgílio” (CRUZ E SOUSA, p.603). Exemplificando, mesmo processo espiritual de correspondência de almas ocorre entre Shakespeare e Honoré de Balzac: “Sempre este espelho – Shakespeare, contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho – Dante” (CRUZ E SOUSA, p.603). E assim indefinidamente. Então, ler literatura é antes de tudo aproximar-se de outras almas e ter contato espiritual com elas. 

4. O exemplo da carta de Nestor Victor a Breno Arruda

Escolhemos, entre muitos ensaios que ainda merecem ser analisados para o intuito de desenvolver a apreciação da literatura como exercício de acolhimento e recepção de biografias notáveis e mentes brilhantes, a carta de Nestor Victor a Breno Arruda, em 22 de dezembro de 1921. Nesta ocasião, o ensaísta tenta ensinar o novo autor a observar uma via espiritualista através da literatura romântica. Temos acesso ao documento graças à iniciativa de Andrade Muricy, que, através do contato com o próprio Victor, conservou muitos textos do mesmo e mais tarde publicou-os em três tomos pelo incentivo da Casa Rui Barbosa, resgatando escrituras de diversos gêneros, como as cartas, além de artigos publicados na imprensa. 

Nesta carta, o nosso autor aproveita algumas produções para ensinar Breno Arruda a obter maior compreensão da literatura brasileira. Tendo como cerne da sua teoria o idealismo, comenta como a energia do espírito peregrinou aqui através do romantismo, quase como uma tendência natural do povo brasileiro. Proporcionalmente, não pôde deixar de haver certa resistência ao realismo, já que este solo é profundamente infértil para a semente materialista. São registrados os resultados da recepção do romantismo no século XIX, com várias demonstrações da nobreza dessa confraria de escritores, assim como toda a propensão para a satisfação de uma ética espiritualizada. Nestor Vitor alegra-se com certa aversão ao realismo no novo escritor e deixa impressões de compartilhar as mesmas opiniões acerca da corrente espiritualista que se formou no final do século XIX: “Parece-te que é porque o realismo ‘constituiu uma forma de arte contrária inteiramente ao temperamento da nossa raça’; que ‘esta o repeliu sempre, em virtude da sua própria natureza” (VICTOR, 1973, p.187). Ao observar certa propensão do nosso povo para os românticos, ele afirma que autores como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo nunca deixaram de ser os mais queridos, mesmo durante o esplendor da moda realista e simbolista: 

Na verdade, contestar-se que Alencar, Macedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, sempre foram, mesmo através de toda a moda realista e simbolista, dos nossos autores mais populares, e ainda o são até hoje, é querer negar o que salta aos olhos (VICTOR, 1973, p.187).

Nesse sentido, é inescapável para o sentimento brasileiro a aliança entre o espiritualismo e o romantismo, ou antes o romantismo como via de acesso à negação dos ditames materialistas. Nesse passo, outra consideração que reafirma o que dissemos sobre a leitura de literatura como modo de penetrar na alma de seres ilustres é a agregação do naturalismo a uma cultura falsamente intelectual. Nestor diz a Breno que para os naturalistas “faltou-lhes em ingenuidade, em profundidade, em intuição, o que lhes sobrava em influência livresca” (VICTOR, 1973, p.190). Enquanto os naturalistas se tornaram obcecados por livros e desprezaram os contornos da alma (nota-se uma grande tradição de estudos dentro da corrente de Sílvio Romero e Tobias Barreto – por exemplo, o mesmo Tobias já lia Nietzsche no Brasil em 1876), os neorromânticos (decadentistas e simbolistas), esnobando a “influência livresca”, acharam-se ligados à essência da literatura como desbravamento da alma alheio e o encontro mais profundo com Deus. 

Outra declaração que une romantismo e espiritualismo, remete-se ao misticismo genuinamente brasileiro, como marca romântica de originalidade adquirida no Brasil, uma originalidade de fonte espiritualista: “Esse forte sopro poético e esse misticismo (o último entendido à moderna) é que nos fazem ir entoando instintivamente com os românticos...” (VICTOR, 1973, p.190) Os autores deram feições bem naturalizadas com a terra, pois “aproveitando o grande arranco facultado em todo o ocidente à hora literária e artística em que surgiram, puderam ser corajosamente brasileiros, como ainda não se fora até então” (VICTOR, 1973, p.190). 

Desse modo, deixando mais uma vez claras as suas marcas românticas, Victor faz um passeio sobre vários autores, mostrando as correspondências de alma e a interseção entre dos sentimentos como finalidade última da literatura. Nas obras de José de Alencar, Cinco Minutos e A viuvinha, faz-nos observar obras literárias como a transfiguração do carinho e ternura do povo pelo autor: “O que procuras, em última análise assimilar do autor de Cinco Minutos e d’A viuvinha é o seu genuíno brasileirismo, na extraordinária simpatia, no carinho que nossa terra e a nossa gente lhe inspiraram” (VICTOR, 1973, p.193). 

Na obra Águas de Primavera (1872), do escritor russo Ivan Turgueniev, Victor vislumbra a idealização dos sentimentos como o objetivo da obra, entre eles, a alegria espontânea e a confiança. No mesmo diapasão, ele compara estes sentimentos com os comportamentos que existem no mundo desgastado e saturado pela mesmice da obsessão da aparência. É na literatura que ele manifesta a beleza de tais ideais: “Em Águas de Primavera, tem mais valor o que é justamente mais risonho, mais otimista, ou, pelo menos, mais revelador de confiança no que o próprio mundo seja capaz de oferecer-nos” (VICTOR, 1973, p.187-8). 

Já acerca da obra de outro autor brasileiro, que Bruno devia estudar com afinco, Beatitudes, de Pereira da Silva, ele destaca a crença metafísica e a transição entre os mundos material e espiritual: “No extraordinário poeta das Beatitudes o que se exalta principalmente é a Dor, pela crença em uma finalidade metafísica para a qual a vida aqui na terra não é mais que uma fase de amaríssima transição” (VICTOR, 1973, p.188). Victor queria que Breno Arruda visse em Pereira da Silva um cristão um espiritualista, mas não um cristão dogmático: “Ele é um cristão quase como o foram os nossos românticos” (VICTOR, 1973, p.188). 

Para Victor, a companhia dos amigos e as suas influências sobre nós não desbota as particularidades de um espírito. A influência dos outros não é por nenhum motivo para ninguém se envergonhar da personalidade ou considerar-se como autor sem inspiração. Muito pelo contrário, ele acreditava na correspondência das almas, e dessa forma ultrapassava a energia e o conceito do gênio individualista dos autores do século XIX, apelando de vez para o espiritualismo e para a confluência de sentimentos benignos a que os homens devem estar dispostos. A riqueza da personalidade se constrói com perspicácia na aprendizagem com os outros, os próximos. É o caso de Pereira da Silva em relação aos autores que leu e com os quais aprender: Pereira da Silva (...) é irrecusavelmente um Varela de hoje” (VICTOR, 1973, p.188). Alguém que, mesmo a distância, chegou a conviver com Baudelaire, Cruz e Souza e Emiliano Perneta: 

quero dizer, um Varela que viveu, por constante lição, com E. Poe, com Baudelaire, com Samain, com Rodenbach, com Antônio Nobre, com Cruz e Souza, com Emiliano Perneta, mas por isso mesmo uma individualidade pertinente, interessante, nova (VICTOR, 1973, p.188).

Victor acreditava tão profundamente nesta correspondência de almas, que mesmo a distância o romântico Fagundes Varela conseguia conectar-se com os autores dotados de uma nova sensibilidade. 

Considerações finais 

Tentamos colecionar dados que demonstram que Nestor Victor construiu toda uma carreira em defesa dos valores românticos e espiritualistas, que estavam alinhados pelas relações entre literatura e filosofia (e religião). Valorizando a consciência, o nosso autor fez dela o primado das relações verdadeiramente intelectuais, despindo todas as intenções de esnobismos intelectuais. Ele usava a literatura para harmonizar-se com o cosmos e manter correspondência com as almas; a literatura foi para o autor de Farias Brito o modo de tatear as almas e amá-las espiritualmente. É essa imagem de Nestor Victor que precisamos resgatar em trabalhos vindouros. 

Referências

BALAKIAN, Elizabeth Anna. O Simbolismo. Tradução: José Bonifácio A. Caldas. São Paulo: Perspectiva, 1985. 

CARVALHO, Marcelo de. Conhecimento e Devaneio: Gaston Bachelard e a Androginia da Alma. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. 

CRUZ E SOUSA. João da. Cruz e Sousa: Obra completa. Org. Andrade Muricy. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961. 

ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2018. 

PEYRE, Henri. A literatura simbolista. Tradução: Maria Helena Nery Garcez e Maria Clara R. T. Constantino. São Paulo: Cultrix, 1983 [1976]. 

VICTOR, Nestor. Folhas que ficam. Rio de Janeiro: Grande Livraria Editora Leite Ribeiro-Maurilo, 1920 (1900-1914). 

VICTOR, Nestor. Obra crítica de Nestor Vítor. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Casa de Rui Barbosa, 1969, 1973, 1979. 

VICTOR, Nestor. Paris (Impressões de um Brasileiro). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1911. 

VICTOR, Nestor. Signos. Sapopemba: Tipografia Correia, Neves C., 1897. 

WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. Tradução: Aires da Mata Machado Filho. São Paulo: Brasiliense, 1951 [1925]. 

WHITEHEAD, Alfred North. A função da razão. Tradução: Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988 [1929]. 

WILSON, Edmund. O castelo de Axel (estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930). Tradução: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1993.