César Martins de Souza*
Weverton Castro**
*Doutorado e pósdoutorado em História pela Universidade Federal Fluminense. Contato: cesarmartinsouza@gmail.com
**Mestre em Ciências da Religião - Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Doutorando em Educação Religiosa (Andrews University-EUA). Professor na Faculdade Adventista da Amazônia (FAAMA). Endereço para acessar o currículo lattes http://lattes.cnpq. br/5299263220772950. Contato: weverton.castro@faama.edu.br
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No final do século XIX, o renomado escritor russo Liev Tolstói publicou O reino de Deus está em vós, no qual defende suas principais propostas para a sociedade baseadas em sua visão sobre o cristianismo. Em momentos em que o cristianismo aparece na sociedade como sendo utilizado para embasar a defesa do endurecimento de punições contra o crime, como pena de morte, o uso de armas para se defender e até mesmo de guerras e exclusões sociais em todo o mundo, a proposta de Tolstói de libertar a humanidade do mal, baseando-se na resistência não violenta a todas as formas de violência ganha atualidade. Partindo do método de análise sociológica e de contextualização histórica de O reino de Deus está em vós, fica evidenciada sua defesa de que Cristo libertou todas as pessoas e que podem então decidir entre o bem e o mal, rejeitando a violência e buscando estabelecer o reino de Deus em cada ser humano para que pudessem chegar ao entendimento da verdade. Assim, o autor constrói seu trabalho, propondo uma ruptura com a violência na sociedade, a partir de uma releitura dos evangelhos, para apontar caminhos a serem seguidos com o objetivo de afirmar a não violência, enquanto algo que deveria ser vivenciado e defendido por todos os cristãos.
Palavras-chave: Liev Tolstói, não violência, sociedade, cristianismo
At the end of the 19th century, renowned Russian writer Leo Tolstoy published The kingdom of God is within you in which he defends his main proposals for society based on his vision of Christianity. At times when Christianity appears in society as being used to support the defense of the hardening of punishments against crime, such as the death penalty, the use of weapons to defend itself and even wars and social exclusions worldwide, the Tolstoy’s proposal to free mankind from evil, based on non-violent resistance to all forms of violence, gains relevance. Based on the method of sociological analysis and historical contextualization in The Kingdom of God is in You, of Tolstói, it is evident his defense that Christ freed all people, and they can then decide between good and evil, rejecting violence and seeking to establish the kingdom of God in every human being so that they might come to an understanding of the truth. Thus, the author builds his work, proposing a break with violence in society, based on a rereading of the gospels, to point out ways to be followed in order to affirm non-violence, as something that should be experienced and defended by all Christians.
Keywords: Leo Tolstoy, non-violence, society, Christianity
O historiador Eric Hobsbawm (1995, p. 7-8), no final do século XX, publicou Era dos extremos, no qual lançou um olhar retrospectivo marcado por suas próprias memórias sobre este século, que considerou como sendo o de transformações mais bruscas da História. O final do século XIX, como aponta este mesmo historiador em outro livro, Era dos impérios (2010, p. 464), criou na população, sobretudo do mundo ocidental, uma euforia marcada pela ideia de que o mundo finalmente encontraria a paz, equilíbrio econômico e o controle das grandes pandemias.
Mas, o século foi marcado por epidemias e pandemias, assim como iniciou com uma grande guerra, que ficou conhecida como Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, e assistiu a diversos outros conflitos sangrentos, atingindo momentos que ficaram marcados por massacres em massa, como o Holocausto, perpetrado pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, no qual aproximadamente 6 milhões de judeus foram assassinados.
Ao longo da História houve muitos derramamentos de sangue, sendo que alguns deles partiam do cristianismo como a base ideológica para as ações violentas juntamente com eventos políticos. Exclusões sociais, perseguições políticas, massacres, condenações a morte por diferentes formas, guerras e preconceitos em vários momentos tiveram na defesa da fé cristã ou de outras religiões, o pressuposto para que viessem a ocorrer. Richard Dawkins (2007, p. 260-262) em Deus um delírio, argumenta neste sentido, ao defender que uma série de graves problemas do mundo ocidental, advém da crença cristã no Deus único.
A mesma linha argumentativa é seguida por Zizek (2014, p. 111-114) que se preocupa com o fato de, em sua visão, muitos cristãos acreditarem em valores ético-morais elevados somente quando buscam fugir ao castigo do Deus judaico-cristão ou como forma de agradá-lo, de modo que o autor acredita que o ateísmo teria mais mérito pelo fato das pessoas buscarem ser melhores por acreditarem concretamente nos valores que defendem. Assim, a busca pela virtude em suas vidas estaria baseada em uma ética concreta e não como uma espécie de oferenda para fugir aos castigos ou agradar a uma divindade.
Meyer (2010, p. 100) acredita que não foi a fé cristã ou de outras crenças religiosas que embasou guerras, perseguições e massacres, mas que de uma forma inversa, foi utilizada como um marcador identitário de nacionalidade e como um pressuposto ideológico para desejos de países, grupos e segmentos da sociedade, no sentido de obter legitimidade e conseguir adeptos para suas ações. Desta forma, a crença cristã em Deus não seria em si mesma o fundamento para ações violentas e a implementação de regimes pautados em ideias excludentes ou perseguições ao longo da História, como acredita Dawkins (2007), mas apenas sendo utilizada indevidamente como aparato ideológico para estas práticas por determinados grupos, regimes ou governos nacionais.
Do mesmo modo, o cristianismo também embasou ações de resistência a violência em diversos momentos da História, de forma que pessoas ou grupos pautados em crenças de origem cristã buscaram se opor a todo tipo de violência mesmo quando esta viesse praticada por governos considerados legitimamente democráticos.
Nesse sentido, o russo Liev Tolstói, considerado um dos maiores literatos da História, é autor de obras como Guerra e Paz (2017), que rapidamente caiu nas graças da crítica especializada e pelos leitores (BARTLETT, 2013, p. 194) e Anna Karênina (2000) “o romance sobre o qual os leitores invariavelmente afirmam que é impossível parar de ler” (BARTLETT, 2013, p. 198).
Tolstói também escreveu livros sobre o cristianismo, como O reino de Deus está em vós. Essa obra teve grande importância ao longo do século XX, ao ser utilizada como o fundamento filosófico ou religioso da resistência pacífica (TOLSTÓI, 2011, p. 244-245), por movimentos que lutavam contra a segregação racial e outras formas de opressão institucionalizadas em países tidos como democráticos como Inglaterra e Estados Unidos.
No presente texto se busca compreender a obra enquanto um espaço que dialoga com as práticas sociais e os problemas vivenciados pela sociedade, em uma análise sociológica. Assim, busca-se analisar que um livro traz marcas do contexto social e da temporalidade em que se insere, não se constrói de modo objetivo, acompanhando as imagens que constrói, bem como sua intertextualidade com outras obras para mergulhar nas abordagens propostas (SEVÄNEN, 2018, p. 54-55).
A obra analisada neste artigo, O reino de Deus está em vós, publicada pela primeira vez em 1893, vem no rol de uma série de trabalhos ensaísticos de Tolstói, marcados por temáticas que dialogam sobre a sua fé e com suas produções literárias. A primeira das obras de Tolstói sobre o cristianismo, A confissão, foi publicada em 1879, logo após seus dois trabalhos mais conhecidos e que o consagraram como um dos maiores escritores da história da literatura universal: Guerra e paz, publicada originalmente em 1869 e Ana Karênina, em 1877.
Ao longo do século XX, líderes importantes surgiram, apregoando a não violência e a resistência pacífica ao mal, como o pastor batista Martin Luther King Jr. e o líder hindu Mohandas Gandhi, que se opuseram ao regime de segregação racial em diversos estados dos Estados Unidos e à opressão à Índia, pelos ingleses, respectivamente, o que destaca a importância de estudar a obra cristã de Tolstói, na defesa da não violência.
Como afirma King (1999, p. 301-314), dois grandes líderes religiosos pacifistas do século XX, Luther King e Gandhi, foram influenciados pelas ideias do escritor russo, que pensava o cristianismo como concreto e necessariamente impactando o cotidiano dos indivíduos, podendo levar a fissuras ou até mesmo rupturas com a lógica social e sobretudo estatal estabelecida.
Tolstói buscou viver suas ideias, de tal forma que enfrentou problemas em seu casamento, rompeu com a Igreja Russa, abriu mão dos direitos sobre suas obras, criou uma escola, passou a se vestir como um camponês da Rússia (ele era da nobreza e as vestimentas eram utilizadas como forma de diferenciação social na sociedade russa) e dividiu em vida seus bens com a esposa e filhos (BARTLETT, 2013, p. 135-136).
No presente artigo se buscará compreender diversos aspectos de uma obra sobre as temáticas cristãs do escritor russo, acompanhando a trajetória intertextual do livro, bem como o contexto histórico-social com o qual dialoga e como se estende para outros tempos e espaços. No sentido de problematizar os principais aspectos da obra como um todo, buscar-se-á acompanhar as principais temáticas de O reino de Deus está em vós (TOLSTÓI, 2011), com suas provocações sobre violência e o cristianismo. Deste modo, parte-se da discussão sobre a hermenêutica bíblica da obra, para mergulhar no centro do foco temático, passando pela abordagem sobre a não violência e a relação dos cristãos com os estados, bem como a visão do autor sobre a resistência não violenta a qualquer agente externo que se oponha ao que acredita se constituírem em princípios fundamentais do cristianismo.
Para Tolstói (2011, p. 56-59), o cristianismo não é o conjunto de leis e regras abstratas e distantes da realidade da maioria das pessoas, mas, ao contrário, é concreto, incluindo um conjunto de crenças e doutrinas que devem ser vividas de forma prática, mesmo que isso exija sacrifícios e perdas pessoais a muitos cristãos.
O livro O reino de Deus está em vós foi proibido pela censura na Rússia, de modo que teve sua primeira publicação somente em 1894, na Alemanha. Neste livro, o autor parte do Sermão da Montanha, presente na Bíblia, nos evangelhos de Mateus, Marcos Lucas e João, para rejeitar qualquer tipo de associação entre o cristianismo e o Estado, por considerar que Cristo proibiu todas as possibilidades de uso da violência:
O mesmo ensinamento sobressai ainda com mais nitidez das palavras ditas a Pedro quando este tentou se opor à violência dirigida a Jesus. (Mt 26, 52) Pedro não defendia a si mesmo, mas a seu Mestre divino e adorado. Mas Cristo proibiu-o dizendo: “Guarda tua espada no seu lugar, pois todos que pegam a espada, pela espada morrerão”. (...) Condenamos à morte um delinquente para dele livrar a sociedade, e nada nos prova que esse delinquente não mudaria amanhã de conduta e que sua execução não seria uma crueldade inútil (TOLSTÓI, 2011, p. 42-43)
Stadler (2018, p. 371) problematiza que Tolstói era da nobreza russa, passou a se vestir como um camponês, tornara-se vegetariano, manteve a fé cristã, mas enfrentou resistências em seu país. Acreditava que o combate à violência passa pela negação total a ela e que ao agir assim assume-se uma forma de resistir ao mal de forma pacífica, como teria ensinado Jesus. Para ele, esta seria uma ação revolucionária.
Ele defendeu que os evangelhos deveriam ser o único fundamento da fé cristã e renegava os demais livros canônicos da Bíblia e a submissão das pessoas aos desígnios dos governos e de suas instituições, pois a liberdade cristã pautava-se na transformação do indivíduo (STADLER, 2018, p. 372). Não haveria como, em sua opinião, conciliar o cristianismo com alguma prática violenta, pois a resistência ao mal defendida no livro, perpassava até mesmo aceitar o uso da violência contra si mesmo, sem opor resistência, como forma de preservar os princípios da ética-moral cristã.
Tolstói não está propondo a construção de estados teocráticos cristãos, mas uma transformação dos sujeitos que se autodefinem como cristãos, para que compreendam o evangelho como trazendo a não violência e que os conceitos cristãos não seriam teorias abstratas, mas algo que deveria ser vivido na prática. O escritor se manifesta contrário ao uso da violência pelos cristãos, mesmo que seja para salvar a própria vida, pois isso colocaria a pessoa em rota de colisão com os ensinamentos de Jesus:
Todos os homens de nosso mundo cristão sabem, de forma absoluta e pela tradição, pela revelação, e pela consciência, que o homicídio é um dos maiores delitos que pode cometer um homem, como está dito no Evangelho, e que este delito não é relativo, isto é, que matar seja um pecado para uns e não o seja para outros. (...) Contudo os homens veem, desde a sua infância, que o homicídio não é só admitido, mas também abençoado por aqueles que são considerados como seus guias espirituais, designados pelo próprio Deus, e veem também os chefes leigos portarem, com perfeita tranquilidade e até com orgulho armas letais e, em nome da lei exigirem dos cidadãos, e até mesmo de Deus, sua participação nos assassinatos. (TOLSTÓI, 2011, p. 278-279)
Tolstói se opõe à guerra e a define como um espaço onde matar se torna permitido e até mesmo abençoado. Argumenta quão contraditório se torna quando um líder religioso abençoa armas e soldados que partem para uma batalha a fim de matar outrem e acredita que não há como defender tais práticas. Em sua concepção tentar reunir em uma mesma ideia cristianismo e o uso de armas, mesmo que seja para se defender, seria não somente contraditório como também condenável, pois lembra que Cristo ensinou a oferecer a outra face a quem nos agride e repreendeu Pedro que se opunha com uma espada à injusta prisão efetuada pelos soldados contra o próprio Jesus.
A repreensão ao uso da espada por Pedro e o Sermão da Montanha, são usados com frequência por Tolstói (2011, p. 39-43) para argumentar que o uso da violência para defesa do indivíduo ou da sociedade seria, na prática, uma forma de transigir com o mal e de agir em oposição a doutrina de Jesus. Não haveria como, em seu pensamento, uma pessoa se autodefinir como cristã e defender o uso de armas, a pena de morte ou a guerra, por serem práticas opostas aos fundamentos da fé cristã.
Como o pensamento de Tolstói sobre a questão da não violência é construído sobre uma espécie de teologia cristã, cabe a reflexão, ainda que de forma breve, sobre o ângulo do cristianismo do qual ele defende suas ideias. Ainda que pareça contraditório, Raymond Marcin (2003, p. 330) declara que dificilmente poderíamos classificar Tolstói como um cristão, visto que ele negava a divindade de Cristo e outras doutrinas basilares do cristianismo. Ou seja, a definição que o escritor russo tinha do cristianismo é bem particular e não deve ser confundida com o sentido ortodoxo tradicional.
Na obra em questão, O reino de Deus está em vós, Tolstói faz um recorte cirúrgico da Bíblia, selecionando porções que estão em harmonia com suas teses. Ele se detém no Novo Testamento, especificamente nos sermões de Jesus, para daí desenvolver sua teologia. Porém, se a Bíblia for tomada em sua totalidade, como ela o é na maior parte do Cristianismo, textos do Antigo Testamento, onde encontram-se narrativas de guerras, execuções, violências e outras manifestações militares, dentro do contexto da ordem divina, farão brotar dificuldades para uma teologia simplista a respeito da não violência. O contexto amplo do texto bíblico, quando se inclui tanto o Antigo quanto o Novo Testamentos, complexificam a questão da não violência e seus desdobramentos, apontando para exceções e diferentes perspectivas socioculturais sobre a questão.
O ponto principal a ser destacado aqui é que o termo cristianismo, dentro da visão de Tolstói, deve ser compreendido a partir de um olhar seletivo do autor. Ele dá sua própria definição para o termo ao fatiar as porções que lhe interessam, para a partir destes pedaços, construir sua teologia.
No mundo contemporâneo que assistiu a diversos conflitos e guerras ao longo da História, nos quais a fé religiosa, incluindo a fé cristã funcionou como o substrato para o uso da violência, e no momento atual em que surgem cada vez mais grupos da sociedade argumentando que armas, guerras, pena de morte são aceitas como práticas cristãs, a voz de Tolstói que inspirou líderes pacifistas ao longo do século XX deve ser analisada para refletirmos sobre as relações entre fé e violência.
Prokopyshyn (2012, p. 66), considera uma injustiça frequentemente cometida nas análises sobre a obra de Tolstói o fato de geralmente não ser estudado como um grande filósofo ou um refinado pensador, mas somente como um dos maiores escritores da literatura universal. O autor argumenta que os ensaios e a produção literária deste escritor russo, trazem um grande volume de construções filosóficas que devem ser problematizadas enquanto tal, para que se possa compreender seus trabalhos.
Na análise de Stadler (2018, p. 377-378), o pensamento de Tolstói é marcado profundamente por suas leituras e concepções do cristianismo e por sua crítica às instituições e a muitas argumentações ideológicas que, segundo ele, defendiam o uso oficial da violência pelo Estado. Stadler analisa que o escritor russo, que nasceu e cresceu na cidade de Yasnaya Polyana, no século XIX, renegava o uso da violência enquanto instrumento legitimado para combater a violência, pois esta ideia não encontraria sustentação nos ensinamentos de Jesus Cristo.
Refletindo sobre o momento atual, Zizek problematiza o crescimento da violência no mundo contemporâneo e como ela muitas vezes é associada às grandes religiões do planeta:
Mas será essa a lição que devemos tirar da violência homicida das multidões, dos saques e incêndios promovidos em nome da religião? Por muito tempo nos foi dito que, sem religião, seríamos simples animais egoístas lutando cada um pelo que é seu, não teríamos outra moral senão a de uma alcateia e que só a religião poderia nos elevar a um nível espiritual superior. Hoje, enquanto a religião emerge como a principal fonte de violência assassina neste mundo, começamos a nos cansar de ouvir constantemente afirmações de que os fundamentalistas cristãos, muçulmanos ou hindus nada mais fazem do que distorcer e perverter a nobre mensagem espiritual e suas crenças. (ZIZEK, 2014, p. 110)
Zizek admite que a resistência ao mal, sem uso da violência é um valor defendido por Cristo, mas questiona se as grandes religiões do mundo, não trazem em seu cerne discursos ou doutrinas que defendem na prática o uso da violência que vem sendo empreendida por multidões em nome da fé. Ele coloca em dúvida se seriam apenas grupos fundamentalistas ou se não estaria disseminada no interior das grandes religiões a associação entre religiosidade e violência.
Os questionamentos de Zizek vão ao encontro das ideias de Tolstói, pois o escritor russo acredita que o cristianismo é com frequência utilizado como argumento para as guerras, pois supostamente em nome de Cristo já se matou muitas pessoas e que até mesmo líderes religiosos chegam a confraternizar com a violência oficial, inclusive ao abençoar armas e soldados. O autor acredita que não é possível esta união entre Estado e cristianismo na legitimação de prática coercitivas “... porque a violência não protege a humanidade, aliás, priva da única proteção possível: a difusão do princípio cristão”. (TOLSTÓI, 2011, p. 245).
Haveria na concepção de Tolstói portanto uma confusão doutrinária quando se admitem possibilidades de uso de violência aceitas pelo cristianismo, como, por exemplo, para coibir outras práticas violentas, pois Cristo teria ensinado que somente guardando a espada e resistindo pacificamente ao mal é que a sociedade poderia caminhar para romper com este problema. As instituições repressoras e coercitivas do Estado não deveriam, em sua opinião, ser vistas como um caminho para a paz, mas para alimentar a guerra e a agressão, de forma que os cristãos deveriam buscar a verdade de Cristo para enfrentar a violência que seria a resistência pacífica ao mal. Suas obras, incluindo O reino de Deus está em vós, não trazem propostas políticas enquanto atuação de estado ou planos para governos, mas trazem reflexões sobre temas que considera importantes e deveriam se tornar em experiências concretas para os cristãos.
Incontri (1991) analisa as obras de Tolstói e rechaça qualquer tipo de intencionalidade política, dentro da lógica da hierarquia estatal, por parte dele. A autora argumenta que o escritor russo renega as disputas políticas para opor resistência ao mal sem violência, pois ele não estaria em busca de libertar grupos ou classes sociais, como os marxistas, mas a humanidade inteira. Seus escritos seriam uma forma de expor sua proposta libertária no sentido de construir uma sociedade não-violenta ao redimir a humanidade com base nos ensinamentos de Cristo vivenciados por todas as pessoas (INCONTRI, 1991).
O escritor russo manifesta que existe uma franca divergência entre as doutrinas cristãs e as instituições de Estado. Ele questiona os acordos entre os governos e as igrejas cristãs. Tolstói não concorda com a institucionalização da fé cristã nas sociedades, por acreditar que esta situação coloca as igrejas cristãs em uma função paradoxal, pois, desta forma, passariam a exercer papeis dentro do Estado, tornando-se coparticipantes da violência oficial.
Ao defender que ninguém pode obrigar um cristão a agir contra seus princípios, ele se opõe a acordos entre cristãos e o Estado, por acreditar que não teriam nada a ganhar, mas, pelo contrário, os obrigaria a renunciar aos fundamentos da fé cristã:
Fala-se de libertar a Igreja cristã da tutela do Estado, sobre dar ou não liberdade aos cristãos. Há nisto um mal-entendido. A liberdade não pode ser concedida nem roubada aos cristãos: É sua propriedade inalienável; e, ao se falar em dá-la ou retomá-la, trata-se, evidentemente, não dos verdadeiros cristãos, mas daqueles que apenas usam este nome. O cristão não pode deixar de ser livre, porque nada e ninguém pode deter ou até retardar seu caminho para o objetivo por ele preestabelecido (TOLSTÓI, 2011, p. 204).
Tolstói opõe em seu livro uma visão dentro do cristianismo que não vê problemas com as associações ao Estado. O paradoxo estaria no fato de que assim os cristãos se tornariam participantes da violência institucionalizada pelo Estado. Stadler (2007, p. 375) analisa que a relação entre igrejas e estados se baseiam na compreensão de que Deus autoriza o uso da violência por alguns humanos, como forma de pacificar as sociedades. Segundo essa lógica, seria legitimo matar desde que em nome do Estado, a partir de um aparato institucional oficial, supostamente legitimado por Deus.
Levinas ao estudar a natureza dos conflitos na sociedade, pensa, no mesmo sentido de Tolstói, que as instituições de Estado podem funcionar como aparato legitimador de práticas violentas. Assim, ele afirma:
que a origem daquilo que tem sentido no rosto do outro exige, contudo, – frente à pluralidade de fato dos seres humanos – , a justiça e o saber; o exercício da justiça demanda tribunais e instituições políticas e até – paradoxalmente – alguma violência, que toda justiça implica. A violência é originariamente justificada como defesa do outro, do próximo (seja ele um parente meu ou o meu povo!), mas é violência para alguém. (LEVINAS, 2014, p. 30-31)
O exercício da justiça envolveria o uso da violência como forma, na visão de Levinas, de se defender o outro e, ao mesmo tempo, de se proteger do outro, visto como um indefeso e como ameaça. Essa defesa do/ ao outro como forma de pacificar a sociedade e/ou de garantir os direitos individuais, seria uma forma de violência para alguém contra o outro.
Zizek (2014, p. 45-67), em capítulo de seu livro denominado “Teme a teu próximo como a ti mesmo”, traz no título uma paródia a um ensinamento de Cristo, para problematizar que a doutrina foi modificada em nossa sociedade, pois o amor ao próximo foi substituído pelo medo que se apropria das doutrinas cristãs para metamorfoseá-las em fundamento para preconceitos, exclusão social, defesa da pena de morte, uso de armas e até mesmo massacres.
Ao defender que a violência, mesmo a institucionalizada é uma prática contrária às ideias centrais de Cristo, Tolstói, enfrentou a Igreja Ortodoxa Russa, por acreditar que ela se apegava aos rituais e superstições ignorando os ensinamentos de Cristo (BARTLETT, 2013, p. 64). Tolstói enfrentou problemas na sociedade russa de seu tempo, por buscar vivenciar suas concepções sobre a defesa da verdade cristã como sendo única, inegociável e irrevogável. Ao discutir as ideias do escritor russo, Berlin acredita que, de fato, este autor enxerga que:
A verdade, disse Tolstói, <foi, é e sempre será linda>. Eu não sei se é bem assim no campo da ética, mas me parece perto o suficiente daquilo em que a maioria de nós quer acreditar para não ser sutilmente deixada de lado (BERLIN, 2016, p. 53-54).
Tolstói defendia a beleza da verdade de Cristo, não para conseguir o favor divino, como escreve Zizek (2014, p. 113) ao criticar as motivações de muitos cristãos para seguir as regras e leis do cristianismo, mas porque acredita na mensagem cristã e em como ela poderia ser o caminho para vencer a violência. Ele acredita que “em vez de ameaças de castigo para as infrações das regras ditadas por antigas leis religiosas ou civis, em vez de atrair recompensas por sua observância, essa doutrina atraía apenas por ser a verdade” (TOLSTÓI, 2011, p. 57).
As crenças de Tolstói decorrem de sua busca pela verdade, entendida como os ensinamentos de Cristo e que prezam pela liberdade dos indivíduos. Neste sentido, não se pode confundir suas ideias com a proposta de uma teocracia centrada no cristianismo, pois busca somente apontar as contradições entre a não violência e o cristianismo, conclamando os que professam esta religião a viver as crenças de forma prática, mesmo que por isso tivessem de enfrentar perdas pessoais.
A beleza da verdade, para Tolstói, constitui-se na jornada de uma vida, mas que tem um ponto de partida que é compreender os fundamentos da mensagem de Cristo. Não seriam os castigos ou o medo de Deus que o moviam, como argumenta no livro, mas o amor à beleza da verdade de Cristo, presente nos evangelhos, como o caminho para vencer o mal. As análises e mesmo acusações que sofreu de que defendia ideias que se opõem ao Estado de Direito, muitas vezes baseavam-se no que Zizek denomina como a fé simplesmente tolerada pelos outros que não suportam vê-la como vivenciada na prática:
É por isso que, em nossas sociedades seculares baseadas na escolha, aqueles que mantêm uma pertença religiosa substancial se encontram numa posição subordinada. Ainda que sejam autorizados a manter a própria fé, ela é “tolerada” como uma escolha ou opinião idiossincrática pessoal. A partir do momento em que optam por apresentá-la publicamente tal como ela é para eles mesmos – como, digamos, uma questão de pertencimento substancial –, são acusados de “fundamentalismo”. (ZIZEK, 201, p. 119)
A oposição de Tolstói à sujeição dos cristãos ao Estado perpassa sua compreensão sobre a verdade e o apego a ela como o fundamento imutável e absoluto da fé e que não pode ser negociada, sob o risco de se perder a razão de ser e existir do cristianismo. Ele também se manifesta contrário à militarização da sociedade por acreditar que ela incentiva a institucionalização da violência e leva à criação de uma hierarquia rígida que submete as pessoas à ideia de que é possível seguir vozes de comando sem ter responsabilidades perante seus atos:
Devemos notar que essas mesmas ideias são desenvolvidas nas instruções dadas aos soldados e que devem por eles ser decoradas. Nelas é dito que somente o comandante será responsável pelas consequências de suas ordens. Mas isso não é verdade. O homem não pode fugir da responsabilidade dos atos que comete. (TOLSTÓI, 2011, p. 31)
Sua reflexão é de que o cristianismo impõe responsabilidades dos indivíduos perante Deus e em consequência aos outros e que, portanto, é impossível seguir um líder, ou uma cadeia de comando sem ter responsabilidade por seus atos. A noção defendida por ele de que a fé é uma jornada para em busca da verdade de Cristo como a presença do reino de Deus em cada um de nós, coloca cada indivíduo na condição de corresponsável por aquilo que faz ou defende e assim conclama todos a tomar decisões:
Se a maioria prefere submeter-se, não é por madura reflexão sobre o bem e o mal que isto pode resultar, mas porque está, por assim dizer, hipnotizada. Obedecendo, os homens submetem-se simplesmente às ordens que lhes são dadas, sem refletir e sem fazer um esforço de vontade. Para não obedecer, é preciso refletir com independência, e isto constitui um esforço de que nem todos são capazes (TOLSTÓI, 2011, p. 181).
A verdade para Tolstói é uma busca consciente desenvolvida por toda a vida e que leva conscientemente as pessoas a decidir pelo bem, ensinado por Cristo nos evangelhos. O escritor argumenta que o cristianismo não coaduna com a submissão cega a nenhum poder instituído, pois em primeiro lugar os professos cristãos deveriam seguir as leis de Deus, o que, em sua visão, os impede de se curvarem a ordens que os vinculem ao exercício da violência. Contudo, ele acredita que o cristianismo exige reflexão autônoma, o que seria um esforço que nem todos poderiam ser capazes ou estar dispostos a fazer. Afirmando que o foco dos cristãos seria a construção do reino de Deus nas vidas de cada ser humano como o único caminho para alcançar o reino de Deus em outro plano, o escritor russo defende que os cristãos não devem servir às funções de Estado por considerar que possuem a violência como algo intrínseco aos seus papeis.
No autocrático regime imperial russo, que vigorava no século XIX, a ideia de patriotismo e de colocar todos os súditos na condição de servos do Estado era fundamental para o modo como estava estruturado o poder, de forma que ao defender a ruptura dos cristãos com as funções de Estado, Tolstói entra em confronto com o czarismo que tinha na igreja uma função estatal.
Ao refletir sobre sua visão na infância, em relação ao Estado, Berlin afirma que o patriotismo estatal encarna virtudes pagãs e não cristãs:
Achava que para tal eram precisos uma classe de governantes corajosos, habilidosos, inteligentes e bem- -dotados que soubesse como aproveitar oportunidades, e cidadãos que fossem adequadamente protegidos, patrióticos, orgulhosos de seu Estado, ou seja, encarnações das virtudes pagãs (BERLIN, 2016, p.29).
Na análise de Berlin, Tolstói enxergava a virtú pagã do Estado como impossível de ser combinada com os valores cristãos por defenderem práticas opostas. Em sua visão, o Estado com o aparato judicial, policial, militar e as demais funções civis se pautavam na coerção e no uso da violência institucional, ao mesmo tempo em que busca construir os bons cidadãos, submissos a pátria. Para Tolstói (2011, p. 181), os cristãos devem seguir apenas os ensinamentos de Cristo e nunca se submeterem sem questionar a qualquer que seja o poder ou ordem de origem humana.
Mesmo quando aplicadas ao século XX, nas práticas de Gandhi ou Luther King, em regimes considerados democráticos, as ideias de Tolstói tendem a causar embates com os poderes instituídos. Tolstói influenciou grandes líderes pacifistas como Mohandas Gandhi e Martin Luther King que marcaram o mundo no século XX (PROKOPYSHYN, 2012, p. 65).
Na experiência histórica de Gandhi e Luther King, bem como de outras lideranças do século XX, as ideias de Tolstói sobre pacificamente não se conformar ao mal e à violência, mostram-se não como algo impossível, mas como uma possibilidade social que pode transpor o pensamento e se mostrar, apesar dos percalços, como uma construção concreta.
Naquet (2002, p.183) argumenta que a democracia se ampara no princípio de que é fundamental o direito de expressão de todos para que se possa tomar decisões majoritárias. Assim, os indivíduos, nos estados democráticos, devem aceitar a decisão da maioria, que passa a se tornar a regra que todos devem respeitar. Tolstói (2001, p. 185) se opõe a todas as normas e leis que sejam consideradas contrárias aos princípios cristãos e defende que ninguém deve seguir cegamente a leis humanas, pois necessitam verificar se estão de acordo com a doutrina cristã. Caso as leis humanas estejam em desacordo com as doutrinas cristãs, devem se recusar a cumpri-las. Mesmo no século XX ou XXI as ideias deste escritor podem confrontar-se com o Estado e seus governantes por provocarem oposição a alguns princípios fundamentais do estado contemporâneo, mesmo que sejam Estados democráticos.
Escrevendo sobre a relação entre cristianismo, ética e política, Antoniazzi (1997, p. 10) considera que é muito difícil para os cristãos conservadores ou fundamentalistas se adequarem a democracia se ela tender ao relativismo como não priorizando princípios éticos e morais considerados por estes como inegociáveis:
Está bastante claro que a opção religiosa aqui definida como “conservadora” não se concilia com a democracia. Seja qual for a definição de democracia que adotarmos, ela sempre implicará iguais direitos para todas as pessoas diante da lei e da sociedade, sem discriminações religiosas, étnicas ou culturais. (...) Se a democracia virar relativismo moral e o pluralismo uma forma de negação da verdade, a democracia pode confrontar valores cristãos sobretudo de grupos conservadores que defendem o apego às leis de Deus, acima de leis humanas e como a verdade imutável.
Na visão de Antoniazzi, dependendo das exigências ou das tendências dos governos democráticos, os cristãos conservadores podem assumir uma postura que os coloque em rota de colisão com o Estado, por não aceitarem ceder ou negociar suas crenças ou princípios ético- -morais. Para Paulo Neto (2017, p. 833) a fé cristã não entra em confronto com os princípios éticos da sociedade democrática, pois o respeito a todos como iguais é um fundamento do cristianismo. Em sociedade, os cristãos poderiam ter então a possibilidade de viver sua fé enquanto experiência concreta de respeito ao diferente, a partir da aprendizagem prática da ética que recebe a todos. A fé cristã poderia abarcar, na visão de Paulo Neto (2017, p. 836), os mais variados grupos da sociedade aceitando a convivência não limitante com eles, sem que incorra em concessão de seus princípios.
Ainda que vivendo em um regime autocrático, governado pelo Czar, a proposta de Tolstói não visa apenas a Rússia, mas o mundo inteiro, pois seu desejo era, como afirma Incontri (1999, p. 104), libertar toda a humanidade do pesado jugo estabelecido por poderes exteriores que, segundo ele, obrigavam os cristãos a agir contra seus princípios em todos os países e a se tornarem partícipes de práticas que disseminam a violência e a opressão.
Tolstói defendia que os cristãos deveriam resistir pacificamente até as últimas consequências, mesmo em risco de prisão ou morte, a toda e qualquer forma de mal. Nem mesmo a justificativa do uso de sistemas repressivos, como forma de proteger a sociedade deveriam, em sua visão, ser aceitos pelos cristãos. Nesse sentido, a análise de Levinas (2014, p. 30-31) se encontra com a de Tolstói, pois a violência para proteger do/o outro ainda será violência contra alguém.
Para quem acredita que as leis de Deus são imutáveis e todos os princípios cristãos inegociáveis, devido ao seu caráter divino, que estabeleceria nas vidas de cada ser humano o reino de Deus, toda e qualquer lei que relativize a ética cristã deveria ser refutada. Esta concepção, pode, em alguns momentos, colocar cristãos mais conservadores em confronto com governos ou regimes, ainda que estes tenham sido estabelecidos em democracias.
O problema, exposto por Tolstói residia no fato de que a crença no poder das instituições não substitui o fato de que elas são operadas por seres humanos, movidos não por objetivos altruístas, mas por desejos pessoais que envolvem a busca pelo poder e riquezas:
O objetivo do poder e sua razão de ser estão na limitação da liberdade dos homens que gostariam de colocar seus interesses pessoais acima dos interesses da sociedade. Mas, quer o poder seja adquirido pelo exército, por herança ou por eleição, os homens que o possuem em nada se diferenciam dos outros homens e, como eles, estão inclinados a não subordinar o próprio interesse ao interesse geral; muito pelo contrário. (TOLSTÓI, 2011, p. 168)
O autor de O reino de Deus está em vós argumenta que os princípios cristãos não podem diferenciar regimes, quer sejam eleitos ou não, pois a liberdade dos cristãos não deve ser negociada nem concedida; ela existiria em si mesma, como um fundamento irrevogável. Os governantes, em sua opinião, independentemente da natureza de seu governo, seriam pessoas movidas por interesses pessoais, enquanto os cristãos deveriam ser movidos por ideais libertários voltados não apenas a eles mesmos, mas a toda a humanidade.
Nessa perspectiva, seria impossível, para Tolstói, negociar a linda verdade cristã (BERLIN, 2016, p. 53-54) que define a forma de ver, ser — 494 e estar no mundo, com governantes movidos por interesses pessoais e instituições de Estado que possuiriam funções vinculadas a disseminar práticas violentas na sociedade, sob o pressuposto de buscar coibi-las.
A defesa da liberdade como um bem supremo dado por Deus a toda a humanidade, colocava Tolstói em oposição aos regimes, sejam autocráticos ou democráticos, pois, em sua visão, os Estados apenas obrigariam as pessoas a consentir com o erro. Na concepção dele “o homem pode deixar de fazer aquilo que considere errado, mas não pode deixar de achar errado o que é errado”. (TOLSTÓI, 2011, p. 132).
Zizek analisa que nossas sociedades se pautam em regimes que funcionam como legitimadores de nossa própria exploração e que, para se sustentar, buscam roubar a autonomia de pensamento e reflexão de cada ser humano para que sua liberdade esteja cerceada por um constante consentimento tácito:
Podemos, evidentemente, sustentar que, de certo modo, a situação do Ocidente é ainda pior pelo fato de a própria opressão ser nele obliterada e mascarada de livre escolha. (Do que você está reclamando? Foi VOCÊ que escolheu fazer isso.) Nossa liberdade de escolha, efetivamente, funciona muitas vezes como um simples gesto formal de consentimento de nossa própria opressão e exploração (ZIZEK, 2014, p. 120)
Zizek questiona os fundamentos de regimes democráticos em sociedades ocidentais capitalistas, onde o voto e as escolhas apenas expressariam publicamente a condição de exploração e opressão de cada indivíduo que na prática não teria direito a escolher, mas apenas a manifestar adesão a sistemas e governos em vigor, que em contrapartida estariam lhe roubando ou cerceando direitos mais fundamentais, como a liberdade.
Tolstói (2011, p. 204-207), ao contrário, defende que a nossa própria condição humana dada por Deus, nos concede o direito de nunca transigir com o que é errado, pois nosso pensamento não pode ser alterado por interesses pessoais vigentes nos Estados. Uma pessoa poderia eventualmente fazer o que considera errado, mas não deveria nunca mudar seu pensamento, de modo a transigir ideologicamente com o erro. Em sua concepção, quando alguém se submete a ordens superiores, ainda que estabelecidas legalmente, deve ser responsabilizado por suas ações, pois o direito de pensar e a liberdade de fazer escolhas são inerentes à condição humana e, por isso, nenhuma pessoa pode justificar suas práticas sob o pressuposto de que seguia ordens militares ou civis.
As punições, como prisão e morte ou perda de bens materiais não poderiam, em sua concepção, forçar um cristão a fazer o que é errado ou a transigir ideologicamente com o erro. Suas perspectivas de libertação do pensamento para que se espraiassem sobre as práticas humanas, o levaram a fundar uma escola modelo, na cidade onde nasceu Yasnaya Polyana, na província russa de Tula. Na escola por ele criada e mantida, pretendia implementar as mudanças práticas na educação para que as crianças pudessem de fato ser livres em seu pensamento e ações e, desta forma, capazes de se opor pacificamente ao mal presente na sociedade (INCONTRI, 1991, p. 112). Para Incontri (1991, p. 103), Tolstói desejava a libertação de toda a humanidade dos jugos que a oprimem, acreditando ser necessário romper com sistemas estabelecidos na sociedade que se utilizariam da religiosidade e da educação para dogmatizar. Visando implementar suas próprias ideias a respeito da educação, o escritor russo criou uma escola em Yasnaya Polyana, na qual:
deixava que as crianças se sentassem em qualquer lugar, que se levantassem quando bem quisessem e respondessem em coro às perguntas — um sistema bem diferente da aprendizagem controlada e mecânica. (BARTLETT, 2013, p. 214).
Acreditava, portanto, que ao investir na educação de crianças e jovens poderia ter um caminho para transformar a sociedade, de modo a afirmar suas ideias pacifistas, marcadas pela recusa intransigente à violência, ao uso de armas e aos mecanismos repressores, mesmo quando estes fossem usados para coibir a violência.
A obra O reino de Deus está em vós, de Liev Tolstói, ainda hoje provoca controversos debates não apenas no campo da política como também no seio das igrejas cristãs, pois se opõe ao que muitos consideram os fundamentos de nosso mundo atualmente conhecido e contesta valores consagrados pela sociedade ao defender uma outra ética que enxerga como sendo baseada em princípios cristãos inegociáveis.
As ideias de Tolstói na prática propunham a quebra da ordem estabelecida no estado autocrático czarista em que vivia, pois acreditava que a busca da verdade era uma forma de libertar de regimes políticos e de seus governantes, civis ou militares, eleitos ou não, incapazes de pensar e agir na sociedade para além dos interesses pessoais. Cabe destacar, contudo, que não aponta como o caminho uma ruptura radical com o estado, mas defende que os cristãos vivenciem sua fé na prática e que não se submetam a nenhum regime, governo ou políticas contrárias a ética cristã, pois Cristo ter-lhes-ia devolvido a liberdade e ela deveria ser vivida mesmo que ao custo de perdas pessoais ou da própria vida. Quando criou uma escola em Yasnaya Polyana, pretendia formar crianças e jovens dentro de suas propostas de liberdade e não violência, por acreditar que a educação é um caminho fundamental para transformações na sociedade e uma forma de construir a resistência não violenta ao que considera errado. O cristianismo, que ele extrai de porções do evangelho, se transforma, portanto, na base de seu pensamento. As ideias do escritor russo saem de sua pena para a implementação de ações concretas, pois enxergava nelas um caminho para a reelaboração prática de conceitos e ideologias presentes na sociedade russa e no mundo.
Citando a frase cada vez mais popular de Cristo presente no Evangelho de João, 8:32, “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 1865), Tolstói (2011, p. 225) defende a beleza da verdade cristã que traria autonomia de pensamento, capacidade de reflexão a todas as pessoas e, por isso mesmo, não lhes permitiria mais sujeitar-se voluntariamente ou não a governantes e Estados que estabelecem a mentira e a opressão como suas prerrogativas. Argumenta que Cristo libertou a todos e ninguém pode sujeitar-se a quem quer que seja e depois justificar ações erradas.
A proposta de Tolstói confronta-se com a sociedade em que vivia e com muitas outras em outros tempos e espaços, não por buscar a ruptura, mas por defender que os valores estatais muitas vezes estão solidificados no medo, na coerção, no uso da violência e na retirada do direito à liberdade. Assim, não está propondo a implementação de uma teocracia, mas buscando desafiar os que se definem como cristãos a vivenciar suas crenças individualmente e coletivamente, enquanto crenças compartilhadas socialmente. A ideia de teocracia colocaria fortes embaraços a sua crença na não violência, por se opor até mesmo a repressão aos crimes.
O confronto surgiria, portanto, da vivência intransigente das crenças que acreditava serem corretas em sociedades que, segundo ele, estariam ancoradas no uso da violência como forma de organização social. O autor de O reino de Deus está em vós, acredita que a verdade liberta, mas ao fazê-lo ela abre caminhos para que os cristãos não possam mais aceitar se submeter às normas e regras estabelecidas pela sociedade quando estas entrarem em contradição com os ensinamentos de Cristo. Eles deveriam respeitar a todos os outros e resistir ao mal, renunciando tudo o que obstaculize a experiência cristã da não violência, mesmo que em prejuízo de seus bens ou até mesmo da própria vida.
Se a verdade liberta então os cristãos deveriam buscar um encontro com ela e vivenciar a todo custo sua liberdade, resistindo ao mal e encontrando caminhos para que o cristianismo se tornasse em uma experiência prática. Como vimos ao longo deste artigo, a visão de Tolstói sobre a Bíblia e que ampara suas ideias sobre o cristianismo enfrenta controvérsias no meio cristão, devido aos recortes que faz. Contudo, seu mergulho em algumas passagens da Bíblia, sobretudo no Sermão da Montanha, inspirou grandes líderes religiosos e políticos do século XX, como Martin Luther King e Mohandas Gandhi, que fizeram da não violência e da resistência pacífica ao mal uma conduta prática de suas crenças e de suas vivências individuais e coletivas.
Tolstói aponta o enfrentamento pacífico a tudo o que se oponha aos princípios da não violência. Quando se analisa a experiência histórica, na ação de personagens acima, é possível perceber que suas propostas não se detêm ao campo das ideias, mas são pensadas enquanto práxis. Ele mesmo quando adotou algumas mudanças em sua própria vida, aponta para a possibilidade de suas ideias se tornaram em construções individuais e coletivas.
O historiador Edmund Wilson em Rumo à Estação Finlândia (1987, p. 401-426), analisa a história da construção das ideias socialistas e de seus principais personagens, afirmando que em alguns momentos, algumas pessoas resolvem fazer da vida delas um evento da História, como, segundo ele, ocorreu com Trotsky. Em seus livros e na própria vida, Tolstói parece se encaixar no perfil proposto por Wilson, como uma pessoa que resolveu fazer de si mesma um evento da História. Ele dividiu seus bens com a família, deixou de utilizar as vestimentas que cabiam a um nobre, criou uma escola para implementar suas ideias e fez de suas crenças uma experiência de vida, apontando para sua implementação na sociedade.
Sua vida se tornou como uma peregrinação em busca de, como acreditava, não mais cooperar com a ordem social estabelecida e sim levar adiante sua proposta de transformar a humanidade pacificamente e sem impor o que pensava ser o caminho, mesmo que ao custo de renúncias e problemas que teria de enfrentar na sociedade de seu tempo, mas que não lhe roubaram o lugar entre os maiores escritores da história da literatura.
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