O invisível e o indizível: interfaces entre fenomenologia, religião, política e narrativas
A privileged path to talk about God with Latin American voice

Ericson Sávio Falabret
Marcos Carneiro Silva
Alex Villas Boas
Jefferson Zeferino
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Religião, política e narrativas, literárias ou não, são construções culturais que objetivam dizer o humano e a realidade. São narrativas de sentido que organizam e expressam relações. Na literatura bíblica hebraica há distintos modos de se pensar o espaço público, entre eles destacamos aquelas teologias denominadas de proféticas e sapienciais. O profético é caracterizado por uma análise crítica da realidade que, não raro, aponta o pecado daqueles que defraudam os mais pobres: “Assim diz o Senhor Javé: Chega, príncipes de Israel! Afastem-se do roubo e da exploração. Pratiquem a justiça e o direito. Parem com as violências praticadas contra meu povo – oráculo do Senhor Javé” (Ezequiel 45,9); “Eu quero, isto sim, é ver brotar o direito como água e correr a justiça como torrente que não seca” (Amós 5,24). A tradição de sabedoria, por sua vez, está ligada à uma tentativa de compreensão do humano em sua finitude e de critérios para uma boa vida: “Ilusão das ilusões, diz Coélet, ilusão das ilusões, tudo é ilusão!” (Eclesiastes 1,2); “Portanto, louvo a alegria, porque a única felicidade para o homem debaixo do sol é comer, beber e se alegrar. É isso que vai sobrar de seus trabalhos cansativos, durante os dias da vida que Deus lhe concede viver debaixo do sol” (Eclesiastes 8,15). Estas formas complementares de narração da vida pensam uma variedade de dimensões da existência, tanto que a tradição sapiencial não deixa de pensar a questão política, assim como a profética não se furta de refletir acerca do sentido da vida. O profético e o sapiencial, não por último, assumem a tarefa de dizer o indizível e de visibilizar os invisibilizados. Como tentativas de tradução do humano em linguagem, oferecem uma experiência com o texto que pode provocar o leitor e a leitora em seus afetos, pensamento e ação. Essas dimensões teológicas também podem ser vistas nos textos neotestamentários, bastando indicar a atuação de Jesus, simultaneamente profética e sapiencial, e se estendem de modo multiforme no decorrer da história da teologia cristã, desde os primeiros autores cristãos até a atualidade. No presente dossiê ajudam a pensar a tarefa profética da teologia as abordagens de filosofia política. O caráter sapiencial, por sua vez, está representado pelas variadas interfaces entre teologia e literatura.

A abordagem fenomenológica possibilita uma aproximação da intensidade de alguns fenômenos. Ademais, o momento de complexidade cultural e política em que vivemos pede que essa relação entre o profético e o sapiencial enfrente o desafio da interdisciplinaridade para perceber a realidade contemporânea multifatorial. Essa perspectiva interdisciplinar é um dos traços mais característicos da Teoliterária, e nesse horizonte se buscou a interação entre teologia, ciências da religião, literatura e filosofia política para se analisar o cenário político atual. Um momento forte deste diálogo foi o VI Colóquio Internacional de Filosofia Política – CONFRONTOS –, realizado nos dias 8, 9 e 10 de outubro de 2019, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ, e que contou com o financiamento de duas importantes agências de fomento, a saber, CAPES e FAPERJ. O evento proporcionou analisar, no plano de diferentes narrativas literárias, políticas e filosóficas, como se dá o acirramento das hostilidades no campo político aberto pelas manifestações que ocorrem nas mais diversas sociedades contemporâneas, nos últimos decênios. Teremos ultrapassado a era da política estatal e partidária, cujo efeito se fazia sentir sobretudo em um fazer amparado na vida institucional e jurídica, e entramos numa nova era de confrontação política, feitas a partir de ações sociais massivas, pontuais e vindas da pulverização dos objetivos de diferentes grupos sociais? Finalmente, as motivações sociais e políticas se revelam mais próximas da violência social no nosso cotidiano? Ou, pelo contrário, os confrontos são parte da vida democrática? Esse dossiê tenta, através dos artigos apresentados por pesquisadores do Brasil e de vários países, responder às novas inquietações vindas da cena política da atualidade. Os artigos a seguir vão tentar responder a esses e outros tantos questionamentos:

O artigo de Ericson Falabretti intitulado Violência e história: o Lebenswelt da política analisa o debate que confronta a crítica de Merleau-Ponty ao romance de Arthur Koestler e a retomada da interpretação trágica da história a partir do marxismo.Com o título Política, verdade, tekné, o artigo de Samir Haddad discute, a partir das dinâmicas políticas contemporâneas e do papel das mídias sociais no uso político, as relações entre política e verdade e as distinções entre verdade factual e opinião, com o auxílio do pensamento de Hannah Arendt.

O artigo Crítica à estadolatria: contribuições da filosofia anarquista à perspectiva antirracista e decolonial, de Wallace de Moraes, apresenta a importância da perspectiva de análise decolonial ao apontar o racismo como eixo estruturante da Modernidade, resgatando alguns dos principais conceitos da filosofia anarquista.

O artigo de Diogo Reis, intitulado Filosofia em zona de confronto: máscaras securitárias, desejos coloniais, busca traçar algumas considerações críticas sobre a necropolítica racial de segurança pública em voga nos modos de operar do “governo da emergência”.

Com o título Aspectos sociais, políticos e governamentais da administração da vida e da morte, Simeão Sass e Dante Gallian elaboram um “diagnóstico do presente” acerca da pandemia de SARS-CoV-2 e de suas consequências acerca do ato de governar.

O artigo de Marcos Silva identifica, com o auxílio de Hannah Arendt e Michel Foucault, as origens do movimento denominado Escola sem Partido e o ambiente político profícuo em que se instalou e suas consequências para o sistema educacional e político no Brasil.

Intitulado La lucha por la vida: biopoder y biopolítica: una reflexión sobre experiencias comunitarias en México, o artigo de Pilar Calveiro desenvolve as características do biopoder na governamentalidade neoliberal no México, como forma de controle e, sobretudo, de seleção da vida.

Guilherme Castelo Branco, no artigo Pequenos partidos e novas estruturas políticas nas democracias, analisa a possiblidade e força dos pequenos partidos na vida política na atualidade e questiona se de fato o mundo contemporâneo realiza, de modo crescente e permanente, uma vida democrática feita através de ampla participação popular, em todos os aspectos.

O artigo de Emmanuel Chamorro, intitulado Neoliberalismo progresista y empresarialidad de sí, propõe uma análise das formas atuais de neoliberalismo a partir de Michel Foucault e numa perspectiva de organização de poder que não opera unicamente através do controle da economia, mas da constituição de determinadas formas de subjetividades.

Em O testemunho como linguagem do indizível: um objeto inobjetável e sua jurisdição de possibilidades a partir da fenomenologia de JeanLuc Marion, Donizete José Xavier explora a relação entre fenomenologia e teologia no referido filósofo francês, demonstrando que ao se pensar o testemunho como linguagem ele ultrapassa a argumentação racional, sendo portador de um excedente de sentido.

Rogério Gonçalves de Carvalho, em Representar o irrepresentável e formular o informulável: o mito em trânsito nos labirintos da literatura e da teologia, reconhece o déficit do discurso em relação à experiência, mas percebe no mito uma estratégia de comunicação do indizível.

O artigo Escrita de si em Etty Hillesum: da condição feminina à experiência mística, de autoria de Tânia Zimmermann e Cristiano Anderson Bahia, haure da experiência tornada diário e cartas que expressam a mística e a espiritualidade da autora judia, além de posicionamentos de crítica à sociedade de seu tempo.

Em A mulher com corpo de rio e nome de canoa: a simbologia da água em O outro pé da sereia, de Mia Couto, Geovanna Dayse Bezerra Silva e Vanessa Riambau Pinheiro analisam uma das personagens do romance e sua relação com o elemento água e com a forma simbólica do rio como modo de contar sua história e a história de seu povo.

Fernando de Mendonça, em O Desejo de Ver: Hilda Hilst e a redenção pelo grotesco, apresentam o divino em relação ao grotesco nas obras O Rato no Muro e Com os Meus Olhos de Cão. O autor se vale do arcabouço teórico de Rudolph Otto, sobretudo a partir da categoria do Mysterium Tremendum.

A luta calada das horas: revelação e silêncio no “Sétimo Livro” (Седьмая книга) de Anna Akhmátova é o texto apresentado por Alexandre Sugamosto e Uriel Iragaray Araujo. Os autores se ocupam especialmente da noção de silêncio e sua relação com o sagrado, identificando uma linguagem religiosa em Akhmátova.

Ana Catarina Coimbra de Matos, em A evidência do divino indizível em Vergílio Ferreira, tematiza os romances do autor português identificando em seu pensamento a discussão do eu em processo de autognose e que solicita do leitor o desfecho criativo do romance.

Em Vozes poéticas na escuta da fragilidade dos pobres: contribuições para uma reflexão teológica sobre a mística em diálogo com a poesia de Violeta Parra, Ceci Maria Costa Baptista Mariani, Claudio de Oliveira Ribeiro e Breno Martins Campos se ocupam da assim chamada espiritualidade da libertação como mística de olhos abertos. Em sua discussão teórica, os autores relacionam perspectivas teológicas de importantes pensadores latino-americanos como Maria Clara Bingemer, Rubem Alves e Gustavo Gutiérrez com a poesia de Violeta Parra.

O texto de Diogo Berns, Os Signos Audiovisuais na representação do Invisível e do Indizível na animação The Day the Sun Danced: the true story of Fatima, executa uma análise audiovisual com base no referencial teórico de Pierce, identificando modos de representação do religioso em formas e figuras.

Encerra o dossiê o artigo Love’s crossing through self-emptying language: Augustine of Hippo’s confessio and Adélia Prado’s mystical poetry, de Davi C. Ribeiro Lin. O autor destaca a noção de travessia, como metáfora geográfica para a jornada interior em Adélia Prado e Agostinho de Hipona.

Além do dossiê, o presente número apresenta também sete textos na seção de temática livre.

Em O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal, Jefferson Zeferino e Marcio Luiz Fernandes destacam a noção tracyana de clássico como contribuição aos estudos em teologia e literatura, valorizando a antropologia literária presente em narrativas marginais como provocação ao pensamento teológico.

Danilo Mendes, com o artigo intitulado Teofania e niilismo: leituras zizekianas de um haicai de Adélia Prado, relaciona literatura e filosofia da religião. A partir da poetisa mineira, o autor elabora um entrelaçamento entre niilismo e teofania em que se tematiza o nada proveniente de Deus.

O artigo A ausente presença, de Cleide Maria de Oliveira, oferece uma contribuição aos estudos em teologia e literatura por meio de um exercício de interpretação de poemas de Hilda Hilst que tematiza o desejo da presença de um Deus que está ausente.

Neffertite Marques Costa, em Os diferentes olhares sobre Monte Santo, o coração místico do sertão baiano, apresenta as narrativas que circundam a Guerra de Canudos, mais especificamente, aquelas ligadas ao município de Monte Santo. Entre outros, a autora destaca as contribuições da literatura de cordel e de Euclides da Cunha.

O texto O Imaginário no Sermão pelo Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, de Padre Antônio Vieira, de autoria de Alair Matilde Naves, busca contextualizar o sermão, considerando o imaginário religioso do período colonial e a discussão acerca de um mito fundador brasileiro.

Rita de Cassia Scocca Luckner, no texto A profanação do ser da guerra e da guerra do ser: uma releitura da obra O prisioneiro, de Erico Verissimo, por um viés teológico-literário, com base em autores como Mikhail Bakhtin, Walter Benjamin e Giorgio Agamben, destaca a linguagem como desveladora de realidades.

Por fim, o texto A presença do cântico dos cânticos na obra de Juan de la Cruz, de autoria de Cicero Cunha Bezerra e Josilene Simões Carvalho Bezerra, propõe a obra de Juan de la Cruz como meio para a hermenêutica da tradição bíblica.

Gostaríamos de concluir este editorial agradecendo o empenho de toda equipe editorial, organizadores, avaliadores e autores. Não somente a pesquisa se fortalece quando feita em redes, mas também a publicização destas investigações se beneficia da atuação de uma comunidade acadêmica engajada. Reflete essa teia de relações que possibilita a publicação desse número a pluralidade de instituições aqui representadas: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, Universidade Federal de São Paulo, Universidad Autónoma de la Ciudad de México, Universidad Complutense de Madrid, Faculdade de Teologia Metodista Livre, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Sergipe, Universidade de Brasília, Universidad Autónoma de Madrid, Universidade Federal de Juiz de Fora, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Universidade Federal de Santa Catarina, Faculdade Jesuíta, Katholike Universiteit Leuven, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Universidade Metodista de São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pontifícia Universidade Católica do Paraná.