Unauthorized Kindness: the
camouflage of the sacred in Geni
and Zeppelin by Chico Buarque
Unauthorized Kindness: the
camouflage of the sacred in Geni
and Zeppelin by Chico Buarque
Abdruschin Schaeffer Rocha*
*Doutor em Teologia pela
PUC-Rio. Professor do
curso de graduação em
Teologia e do programa
de Pós-Graduação em
Ciências das Religiões da
Faculdade Unida de Vitória.
Contato: abdo@fuv.edu.br
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Resumo
O artigo pretende discutir as marcas do sagrado camuflado na canção Geni e o Zepelim,
de Chico Buarque de Hollanda. Denuncia a
cultura que privilegia a figura do protagonista
e destaca o papel dos coadjuvantes invisibilizados e mundanizados na obra buarqueana.
À semelhança de tantas outras canções de
Chico Buarque, Geni e o Zepelim se destaca
por nos expor ao vigor que deriva da capacidade humana de gritar, interpelar e se rebelar.
O artigo explora o conceito de camuflagem do
sagrado, especialmente como sugere Mircea
Eliade, e o propõe como lente através da qual
considera a sacralidade da bondade expressa pela protagonista da canção — virtude
que se apresenta timidamente por entre as
camadas de estereótipos sociais e religiosos
—, normalmente desconsiderada pela religião
acostumada às chancelas e autorizações em
função de sua profanidade. Parte-se do pressuposto de que o profano é o terreno comum
onde os humanos se reconhecem como tais, e para onde devem retornar sempre que o sagrado se torna opressor, para uma
vez mais reconstruir o sentido, postular o sagrado libertador.
Palavras chave:Geni e o Zepelim; Chico Buarque; camuflagem do sagrado; sagrado- profano.
Abstract
The article aims to discuss about the the marks of the sacred camouflaged
in the song Geni and the Zeppelin, by Chico Buarque de Hollanda. It denounces
the culture that privileges the figure of the protagonist and, on the other hand,
highlights the role of invisible and worldly people in Buarquean work. Like so
many other songs by Chico Buarque, Geni e Zepelim stands out for exposing us
to the vigor that derives from the human capacity to shout, question and rebel.
The article explores the concept of camouflage of the sacred, especially as suggested by Mircea Eliade, and proposes it as a lens through which to consider
the sacredness of goodness expressed by the song’s protagonist. The virtue of
goodness, embodied by Geni, appears timidly among the layers of social and
religious stereotypes, which is why, due to its profanity, it is usually disregarded
by the religion it endorses and authorizes. It starts with the assumption that the
profane is the common ground where human beings recognize themselves as
such, and where they must return whenever the sacred becomes oppressive, to
once again reconstruct the meaning, postulate the sacred liberator.
Keywords:Geni and the Zeppelin; Chico Buarque; camouflage of the sacred; sacred-profane.
Introdução
Segundo Mircea Eliade, nos períodos de crise religiosa normalmente não se podem prever as respostas criativas, muitas das quais manifestas em experiências do sagrado potencialmente novas, já que é exatamente a novidade e a suposta expatriação que as tornam irreconhecíveis. Ainda que a chamada secularização seja razoavelmente bem-sucedida ao nível da vida consciente — ao destituir de sentido as velhas teologias, dogmas, crenças, rituais etc. —, todavia, seres humanos vivos não podem ser reduzidos à sua atividade racional consciente, afinal, ainda sonham, apaixonam-se, ouvem música, vão ao teatro, assistem a filmes, ou seja, vivem não apenas em um mundo histórico e natural, mas, também, num universo existencial privado, num Universo imaginário. Mesmo em sociedades radicalmente secularizadas, é possível notar uma série de fenômenos aparentemente não religiosos nos quais se podem recuperar vestígios do sagrado. A arte, nesse sentido, torna-se uma importante instância dessa manifestação elusiva (ELIADE, 1989, p. 11-12).
De modo diferente, Northrop Frye nos chama a atenção para o fato de que existe um liame entre religião e linguagem sob um ponto-de- -vista literário, já que a concentração da poesia é a exigência mínima para que um livro seja considerado sagrado, o que significa um íntimo relacionamento entre a sacralidade e as condições de sua linguagem (FRYE, 2004, p. 25). Por mais que seja perturbadora aos fiéis de uma dada religião a ideia de se pensar o seu livro sagrado literariamente, o que Frye está nos dizendo é que é difícil separar essas instâncias, mesmo se tratando de um livro sagrado. Nesse sentido, percebe-se que os limites entre aquilo que chamamos de sagrado e profano são muito tênues, e essa imprecisão se torna terreno fértil para as novas e criativas respostas, como afirmou Eliade.
Partimos aqui do pressuposto de que Geni e o Zepelim de Chico Buarque (HOLLANDA, 1982) é uma obra que nos permite essas transgressões de fronteira entre o sagrado e o profano. Conta-se entre aquelas obras de arte que tem o poder de fraturar o ritmo involuntário do cotidiano, exigindo-nos novas respostas. Trata-se de uma das principais canções do musical de Chico Buarque, a Ópera do Malandro, de 1977- 1978, que resultou da confluência de dois desejos iniciais: uma adaptação da Ópera dos mendigos (1729), de John Gay, projeto que nasceu do diretor Luiz Antônio Martinez Corrêa, e uma adaptação da Ópera dos três vinténs (1928), de Bertolt Brecht, projeto de Chico Buarque. Do estudo das duas peças nasceu a Ópera do Malandro, que estreou em 26 de junho de 1978 (HOMEM, 2009, p. 166).
Como uma das músicas de maior sucesso da peça e do álbum lançado um ano após a estreia do musical, Geni e o Zepelim logo passou a ser tocada em todas as principais rádios da época, tornando-se popular em plena ditadura militar. Suas críticas à hipocrisia de uma cidade que discrimina sua heroína prostituída até hoje revelam vestígios de bondade que, embora timidamente misturados ao material aleatório vulgarizado, abrem espaço para a compreensão do sagrado a partir de categorias alternativas, bem como nos chama a atenção para a complexidade do humano, este que sempre escapa às catalogações e taxonomias. Como uma das músicas de maior sucesso da peça e do álbum lançado um ano após a estreia do musical, Geni e o Zepelim logo passou a ser tocada em todas as principais rádios da época, tornando-se popular em plena ditadura militar. Suas críticas à hipocrisia de uma cidade que discrimina sua heroína prostituída até hoje revelam vestígios de bondade que, embora timidamente misturados ao material aleatório vulgarizado, abrem espaço para a compreensão do sagrado a partir de categorias alternativas, bem como nos chama a atenção para a complexidade do humano, este que sempre escapa às catalogações e taxonomias.
Na tentativa de buscar as marcas de um sagrado camuflado, o artigo se divide em quatro partes: inicialmente apresenta-se a estrutura da música e os seus principais temas, ao modo de uma antecipação das intuições que serão exploradas; em seguida, busca-se identificar o lugar do coadjuvante no contexto da obra buarqueana; na terceira seção intenta-se apresentar o conceito de camuflagem do sagrado, privilegiando o aporte teórico de Mircea Eliade; finalmente, identifica-se na quarta seção o tema da bondade como exemplo de camuflagem do sagrado no contraponto com as chancelas da religião.
Estrutura e apresentação dos principais temas
Embora Geni e o Zepelim possa ser analisada a partir de outras estruturas, sobretudo por se tratar de uma canção, neste artigo privilegiou-se a estrutura literária (o poema escrito) e suas ressonâncias nos termos da relação que deriva da dissimulação do sagrado no profano. A poesia é o modo como a linguagem se pronuncia e se mantem em seu próprio vigor, em seu próprio pudor, já que “A poesia de um poeta está sempre impronunciada. Nenhum poema isolado e nem mesmo o conjunto de seus poemas diz tudo” (HEIDEGGER, 2003, p. 28).
A estrutura da canção se compõe de quatro estrofes, com 18 versos cada, acompanhadas respectivamente de quatro versões diferentes do coro que vão delineando o próprio movimento crescente da peça literária. Vejamos a estrutura da obra e os principais temas que a perpassam.
“Ela dá pra qualquer um”. Esta frase sintetiza a primeira estrofe da canção e nos expõe a personagens e espaços não-autorizados. Há uma profusão de seres proscritos e espaços profanos que se encontram intimamente vinculados à protagonista, de modo a caracterizá-la. Na verdade, desde que renegados em nome da moralidade oficial, deparamo-nos mesmo é com a presença de “não-seres” e “não lugares”.
De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes /É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade / E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir (BUARQUE, 1982).
Os “não-seres” são representados por uma gama de personagens normalmente discriminados por nossa sociedade hipócrita, que sobrevivem atravessados pelas contingências e em cujo processo se revelam humanos; são viventes que estão presentes em nossa sociedade, mas, como sujeito negado, como ausência. Somos apresentados a grupos marginalizados (“de tudo o que é nego torto”), aos sem-lugar (os “errantes” e “retirantes”), aos deficientes físicos (os “cegos”), aos desprovidos de recurso e de esperança (“quem não tem mais nada”); também àqueles que são confinados aos lugares de reclusão (os “detentos”), aos insanos e leprosos (“loucas” e “lazarentos”), aos frágeis e inexperientes (“moleques do internato”), aos impotentes e deficientes (“velhinhos sem saúde”) e até às solitárias e desesperançadas (“viúvas sem porvir”).
Não apenas seres ignóbeis são narrados nessa primeira estrofe, mas, também, percebemos que os locais onde Geni oferece o seu corpo são, na verdade, não-lugares, pelo menos quando considerada a legitimidade da própria união dos corpos nos termos da sacralidade do matrimônio. Os locais escolhidos pelo poeta seriam lugares legítimos e comuns não se prestassem aqui à perversão de Geni. Por isso o “mangue”, que embora seja um ecossistema, na canção carrega uma clara conotação pejorativa, já que em perspectiva popular nos remete a um lugar fétido, lamacento, cheio de mosquitos e muitas vezes impenetrável; também o “cais do porto”, mencionado de modo pejorativo em função da promiscuidade que normalmente carreia; são apresentados ainda os espaços escuros da “garagem” e da “cantina”, mas, também, deparamo- -nos com a imprudência e insegurança refletidas na escolha de lugares, tais como “atrás do tanque” e “no mato”.
O não-lugar dos não-seres é, por outro lado, o próprio lugar da vulnerabilidade humana. É assim que Geni, na perspectiva do narrador, ao “dar pra qualquer um” expressa sua estranha bondade no contexto de personagens e espaços não-autorizados. Por outro lado, pelas mesmas razões, a cidade impropera a primeira versão do coro:
Joga pedra na Geni! / Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni! (BUARQUE, 1982).
“Joga pedra na Geni!”. “Jogar pedra” nos remete a uma prática punitiva muito comum no mundo antigo, também associada a leis de caráter religioso, tal como se pode notar na narrativa neotestamentária da “mulher adúltera”, prática evocada pelas autoridades religiosas por se tratar de um caso de adultério e contestada por Jesus em função de sua hipocrisia (Jo 8, 1-11). O coro ainda sugere uma ontologização da punição, na medida em que a cidade trata Geni como aquela que “foi feita pra apanhar”. Aqui não apenas se encontra entremeado o pressuposto de que o destino e vocação de Geni supostamente são constitutivos de sua humanidade, como também implícita está a ideia de uma profanidade inexorável e inelutável, ou seja, a profanidade como destino irremediável e irrevogável do ser. Além disso, apesar de o narrador considerá-la como “um poço de bondade”, numa clara legitimação do altruísmo dissimulado, essa profanidade em sentido pejorativo qualifica como “maldita” aquela cuja bondade se manifesta no oferecimento de seu próprio corpo ao público marginalizado, afinal, na perspectiva dos guardiões da moralidade, ela é abjeta exatamente porque “dá pra qualquer um”.
“O comandante e a formosa dama”. A segunda estrofe narra a chegada do Zepelim e seu comandante. É quase inevitável que se contraste o brilhante dirigível aos não-lugares e o comandante aos não-seres, tais como caracterizados na primeira estrofe. Estaríamos aqui diante de um ser e um lugar supostamente autorizados?
Um dia surgiu, brilhante / Entre as nuvens, flutuante / Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios / Abriu dois mil orifícios / Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada / Se quedou paralisada / Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante / Desceu o seu comandante / Dizendo: “Mudei de ideia!”
Quando vi nesta cidade / Tanto horror e iniquidade / Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama / Se aquela formosa dama / Esta noite me servir (BUARQUE, 1982).
O Zepelim e seu comandante são qualificados pelo poder e majestade, pela pompa e imponência, características que os colocam, num certo sentido, em contraponto à fragilidade de Geni, e em outro, à indefensabilidade da cidade. No entanto, embora o seu poder e imponência tragam terror à cidade e ameacem subjugá-la, o comandante não é tão diferente dos seus habitantes, tanto daqueles que se colocam como os guardiões da moralidade como dos desprezíveis amantes de Geni. O comandante, por um lado, está especialmente atento à iniquidade do outro, afinal, também possui lá seus princípios morais; por outro, está inclinado a aplacar sua ira, absolver a cidade e negociar seus princípios morais caso a formosa dama aceite servi-lo com seu corpo. O horror e iniquidade, palavras que caracterizam a condição à qual a cidade está entregue, mostram uma linguagem religiosa propositadamente misturada aos elementos profanos da peça literária. Há belos contrapontos inferidos na poesia, que evocam a relação sagrado-profano e merecem nossa atenção.
“Mas não pode ser Geni!”. Esta frase sintetiza a reação do povo que caracteriza a segunda versão do coro.
Essa dama era Geni! / Mas não pode ser Geni! /
Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni! (BUARQUE, 1982).
A exclamação do povo mostra também a sua perplexidade quando se percebe que a infame Geni poderá ser a expiadora da cidade. A estrutura principal do coro se mantém, mas, é por meio de sua peculiar genialidade literária que Chico Buarque, com pequenas mudanças, altera completamente o sentido do coro colocando-o à serviço do movimento crescente da narrativa poetizada. Em outras palavras, como Geni poderia se transformar na salvadora da cidade, se “Ela é feita pra apanhar”, se “Ela é boa de cuspir, se “Ela dá pra qualquer um”? É assim que a cidade se queda transtornada pela possibilidade de ser salva pela “Maldita Geni”.
A terceira estrofe desenvolve aquilo que já se encontra anunciado no final da estrofe anterior: Geni, de fato, encantara o forasteiro!
Mas de fato, logo ela / Tão coitada e tão singela / Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso / Tão temido e poderoso / Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela / (E isso era segredo dela) / Também tinha seus caprichos
E ao deitar com homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre / Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia / A cidade em romaria / Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos / O bispo de olhos vermelhos / E o banqueiro com um milhão (BUARQUE, 1982).
“A coitada cativara o forasteiro”. Salta aos olhos aqui o fato de que todo essencialismo parece malograr diante das ambiguidades que se encontram no texto. Ao contrário do que encontramos na estrofe anterior, estamos diante de uma transgressão das fronteiras materializada na inversão de papéis e lugares. Agora somos expostos ao poder de Geni que se contrapõe à fragilidade do comandante, afinal, “O guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso, era dela prisioneiro”. Enquanto a fragilidade de Geni se constitui sua força, a força do comandante se constitui sua fraqueza. É o fato de ser “coitada” — numa sutil e ambígua referência tanto à singeleza quanto ao coito — que torna Geni poderosa a ponto de cativar o comandante.
Também somos perspicazmente apresentados aos valores de Geni, já que ela “Também tinha os seus caprichos”. Esperaríamos que a formosa dama não tivesse qualquer problema em se “deitar com homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre”, posto que isso aparentemente se afiguraria como um prêmio se comparado aos não-seres com os quais costumava se deitar. Mas, curiosamente, ao contrário do que a cidade pressupunha, ela tinha os seus princípios e exatamente por isso “Preferia amar com os bichos” a se deitar com tão vistoso guerreiro.
Novamente a linguagem religiosa se apresenta em meio às contradições propostas por Chico Buarque. Agora os princípios e o pudor de Geni soam como “heresia” aos olhos da cidade que, “em romaria”, “foi beijar a sua mão”. Contrição, quebrantamento e recompensa, elementos facilmente teologizáveis, representam respectivamente as ações penitentes do prefeito, do bispo e do banqueiro que se somam ao clamor da cidade. Os guardiões da moralidade não hesitam em suplicar a expiação da prostituta, na forma magistral da terceira versão do coro:
Vai com ele, vai, Geni! / Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar / Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um / Bendita Geni! (BUARQUE, 1982).
A frase “Você dá pra qualquer um”, até aqui recorrente e inviolável, nesse momento se encontra à serviço de um novo sentido: antes justificativa de sua maldição, agora fundamento de sua bendição.
“Entregou-se a tal amante”. A quarta e última estrofe narra a compaixão de Geni pela cidade e sua entrega ao carrasco.
Foram tantos os pedidos / Tão sinceros, tão sentidos / Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante / Entregou-se a tal amante / Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira / Lambuzou-se a noite inteira / Até ficar saciado
E nem bem amanhecia / Partiu numa nuvem fria / Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado / Ela se virou de lado / E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia / E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir (BUARQUE, 1982).
Os principais personagens da narrativa — os “guardiões da moralidade”, o comandante e a própria Geni — se aproximam na medida em que todos parecem negociar seus princípios. Entretanto, há de se notar as significativas diferenças nos motivos que levam ao afrouxamento dos valores que os animam. Os “guardiões da moralidade” (o prefeito, o bispo, o banqueiro e a maioria dos citadinos) negociam seus princípios pra salvarem a própria pele (tolerância resignada à expiação de Geni); o comandante negocia os seus princípios em nome de um prazer momentâneo e por isso está disposto a absolver os citadinos; Geni, por outro lado, negocia seus princípios movida exclusivamente por abnegação, altruísmo e solidariedade para com o outro.
Mas, nem sempre a abnegação, altruísmo e solidariedade transformam aqueles que apressadamente colonizam seres e espaços. Uma vez que a cidade se encontra redimida, voltam a insultar sua salvadora, mas agora de uma forma ainda mais hostil e implacável.
Joga pedra na Geni! / Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni! (BUARQUE, 1982).
Sempre pelos mesmo detratores, Geni foi inicialmente maldita pela convicção e depois pela perplexidade; tornou-se bendita pela resignação e, finalmente, ainda mais maldita pela insensatez e obtusidade.
A cultura do protos e o lugar do coadjuvante no contexto da obra buarqueana
Nossa cultura atual, muito afeita às celebrações em torno da figura do “protagonista”, normalmente não visibiliza aquilo que está para aquém da exposição e do extraordinário da vida. Há muito mais reunido sob o signo do “protagonista” — protos + agonistès (BUENO, 1974, p. 3227) — do que nossa cultura consegue legitimar. Entretanto, normalmente privilegia-se o protos — ou seja, o “primeiro”, o “mais importante”, o que se coloca em “relevo” — em detrimento do agonistès, expressão a partir da qual seríamos remetidos à ideia de um “combatente”, um “lutador”. Este acaba sendo recorrentemente subsumido e tornado refém dessa tirania do espetáculo, da necessidade cultural de se legitimar pela exposição. Como já diagnosticava Guy Debord, na década de 1960, tanto mais se é quanto mais se parece ser (DEBORD, 1997). No contexto da espetacularização do mundo, lutar e combater supostamente cumpririam apenas o fado de nos transformar em seres relevantes e notórios. Na cultura do protos, o prot-agonista não tem a ver apenas com o personagem principal de uma tragédia, drama ou comédia em torno do qual se constrói e se realiza toda a trama. Na verdade, traduz-se numa imagem que resulta da vontade de poder, do anseio por alcançar o lugar mais sublime, desejo diante do qual toda luta e combate é relegado a segundo plano e só vige para cumprir o destino almejado.
O discurso sobre o qual a cultura do protos se constrói é dualista porquanto inflaciona certos aspectos da realidade e ignora outros, afinal, nem todos os que lutam e combatem nos contextos cruéis e desumanos de nossa sociedade significativamente injusta se tornam importantes ou mesmo visibilizados. Em grande medida os coadjuvantes são lutadores e combatentes, todavia, apesar disso, permanecem coadjuvantes. Em sociedades injustas, marcadas pela subalternidade, as aspirações são consideravelmente menos pretensiosas: sobreviver é mais do que suficiente! A cultura do protos tem o poder de gerar moldes sociais que vão se tornando parâmetros para a vida, movimentam a produção de artigos de consumo e nos levam a construir uma cultura de preconceito e exclusão, de simulacros e simulações (Cf. BAUDRILLARD, 1991.) que, além de desumanizante, também é ineficaz quando se trata de assumir a dor de se viver e suas implicações.
Tal cultura ignora que no teatro da vida, todos estão por demais implicados no espetáculo; não há um lugar seguro onde se possa sentar confortavelmente como espectador e admirar as brilhantes performances, a linda paisagem, a alegria ou a dor do outro, cenários que facilmente se tornariam da ordem do entretenimento. Tudo e todos estão imbricados: ricos e pobres, profetas e povo, vida e morte, palco e plateia (ROCHA, 2019, p. 119).
A cultura do protos, nesse sentido, ignora a própria vulnerabilidade humana como elemento constitutivo do ser. Ao evocar autores como Lévinas, Dussel, Hinkelammert e Logstrup, Sturla Stalsett insiste que a demanda ética surge desde a vulnerabilidade do Outro, afinal, não se pode escutar e responder à voz que emerge da vulnerabilidade se não se reconhece a própria vulnerabilidade. Nas palavras Stalsett,
Sin reconocimiento de la propia vulnerabilidad no es posible percibir la vulnerabilidad del Otro, y por lo tanto no es posible la acción ética. Dicho de otra forma, sin el reconocimiento de la interdependencia que surge de una vulnerabilidad compartida, no puede escucharse y responderse al grito del sujeto [...] Esta interdependencia expresada en la vulnerabilidad compartida [...] se afirma en la frase de Franz Hinkelammert: ‘el asesinato es suicidio’. Lo que aquí se ve, es el carácter constituyente de la vulnerabilidad, tanto en sentido antropológico como en sentido ético. Antropológicamente dicho: ‘Yo soy solo si tú también eres (ubuntu); éticamente expresado: “Ama a tu prójimo, porque tú lo eres” (STALSETT, 2002, p. 33.).
Essa vulnerabilidade, enquanto marca do sujeito ausente, está na contramão dos fundamentalismos, sejam os tradicionais religiosos de cunho protestante, católico, islâmico, hindu ou mesmo o fundamentalismo do Império neoliberal globalizado, na medida em que estes não aceitam sua própria vulnerabilidade — consequentemente, tornam-se insensíveis à vulnerabilidade do outro. O sonho de todos os fundamentalismos é a invulnerabilidade absoluta, mas, segundo Stalsett, as maneiras de se buscar a realização desse sonho são distintas nos dois casos. O fundamentalismo religioso procura eliminar seu adversário mediante a violência simbólico-religiosa que se nutre dos textos sagrados, da história e do dogma. Inquisições, por um lado, terrorismo islâmico, por outro, marcam as posteriores materializações dessa violência. O fundamentalismo do Império global, por sua vez, busca na supremacia absoluta da tirania capitalista e da tecnologia a realização de seu sonho de invulnerabilidade. Portanto, à vulnerabilidade dos viventes, traço constitutivo de sua humanidade, contrapõe-se a força dos fundamentalismos.
O globo como um todo é vulnerável e tal vulnerabilidade é compartilhada por todos os habitantes do planeta. Tal vulnerabilidade se percebe em realidades que vão da ameaça nuclear e os problemas ecológicos que derivam do desenvolvimento desenfreado às ameaças terroristas que a todos apavoram. No entanto, embora compartilhada, essa vulnerabilidade é assimétrica no sentido de que existem poucos ganhadores e muitos perdedores. Então, quando nos referimos à ética frente ao fenômeno da globalização, referimo-nos a uma vulnerabilidade compartilhada, porém assimétrica. Portanto, a ética constitui-se no reconhecimento dessa vulnerabilidade compartilhada e assimétrica, assumida como tarefa pessoal e coletiva.
Stalsett também chama a atenção para o fato de que a busca excessiva por segurança, na esperança de eliminar a vulnerabilidade humana, pode ter consequências desumanizantes, já que a vulnerabilidade é constitutiva do ser humano — “ser humano é ser vulnerável” —, além de se constituir abertura ao outro, na acepção de Emmanuel Lévinas. A vulnerabilidade, nesse sentido, é o fundamento de toda sensibilidade, compaixão e comunidade. A ausência de reconhecimento da vulnerabilidade inviabiliza o reconhecimento da vulnerabilidade do outro e a demanda ética que daí decorre. Para o teólogo norueguês, o sonho da invulnerabilidade, central no projeto moderno e desejado pelos impérios históricos e atuais, é um sonho imoral, porquanto desumanizante (STALSETT, 2004, p. 145-157).
A cultura do protos também poderia ser compreendida nos termos daquilo que Lévinas chamou de “modelos da satisfação”. Segundo tais modelos, “a posse comanda a procura, o gozo é melhor que a necessidade, o triunfo é mais verdadeiro que o fracasso, a certeza mais perfeita que a dúvida, a resposta vai mais longe que a questão” (LÉVINAS, 2005, p. 111). Subsidiados por esses modelos, procura, sofrimento, fracasso, dúvida, questão tornam-se apenas diminuição do achado, do deleite, da felicidade e da resposta, palavras-chave em torno das quais a cultura do protos cria os seus enredos. Embora frequentemente colonizado no contexto dos “modelos da satisfação”, o agonistès nos lembra que pessoas reais — aqueles que lutam cotidianamente em face de uma cultura opressora —, na verdade, definem-se mesmo pela procura, pela carência, pelo revés, pela perplexidade ou mesmo pelas contínuas indagações. Segundo Lévinas, estaríamos diante de um ineludível e constitutivo estado de indigência, sem o qual não haveria humanidade possível. Os modelos da satisfação que orientam nossa cultura, embora pareçam constantemente atropelados pela vida assim “como ela é”, cativam pelas promessas que lhe são implícitas ao modo de uma vida assim “como deveria ser”.
Também é oportuna a alegoria kantiana, que surge no contexto de uma crítica ao chamado mito da caverna de Platão (Cf. KANT, 2015, p. 50), que normalmente se tornou uma espécie de tipologia da insistência pelo novo, pela liberdade, pela autonomia e racionalidade, elementos caros à Modernidade Ocidental, sobretudo quando consideramos sua sôfrega busca pelo progresso e dominação da natureza. Quanto à crítica de Kant à perspectiva platônica, assim se expressa Rocha:
pouco se percebem que sob o manto da univocidade da Verdade platônica escamoteia-se a negação do lugar onde mais somos humanos: a caverna, o mundo sensível, finito, natural, albergue da multiplicidade, da relatividade e da experiência. E é nesse sentido que outra metáfora, a de Kant, surge como crítica contundente: a leve pomba, na medida em que corta o ar e sente sua resistência, poderia imaginar que seria muito melhor voar no vácuo [...] Movimentar-se na vacuidade do mundo metonímico da abstração e do ideal, tal é o anseio e sofreguidão daqueles que desejam apressadamente abandonar o chão da experiência humana, esta que se traduz na própria resistência do ar enfrentada pela leve pomba em seu voo. A finitude humana, condição inescapável, embora resista à vontade de poder, surge como elemento constitutivo sem o qual não haveria voo (ROCHA, 2019, p. 120).
No contexto de uma cultura que celebra os modelos de sucesso, as grandes performances, o prot-agonismo a qualquer custo, são dignas de nota as críticas que se colocam à serviço da visibilidade de tudo aquilo que se tornou da ordem do banal. Essa postura filosófica que se traduz no encanto diante do que foi banalizado e epistemologicamente colonizado, pode ser percebida ao longo de toda a obra buarqueana, já que é flagrante o destaque que dá aos sujeitos mundanizados e invisibilizados. Tal acento dificilmente se faz notar sob as “lentes jornalísticas”, metáfora que muito bem poderia traduzir o modo como nossa cultura nos condiciona a nos aproximarmos das pessoas: considerando o grande, explorando as crises, editando e resumindo o ordinário, entrevistando o fascinante (PETERSON, 1987, p. 149). É característica marcante da obra buarqueana a protagonização daqueles coadjuvantes mais invisibilizados de nossa sociedade, mas, não à revelia de sua condição subalternizada. Chico Buarque nos expõe o tempo todo ao vigor que deriva da capacidade humana de gritar, interpelar e se rebelar. Quando compõe é como se tivesse a “câmera” em suas mãos e, assim, a oportunidade de enquadrar os coadjuvantes, tirando-os da condição de figurantes e dando-lhes a chance de revelar seus desconfortos, suas cicatrizes mais profundas, sua invisibilização e anti-heroísmo.
Arquétipos de todos nós são as dezenas de personagens comuns e desconhecidos, em situações cotidianas, lutando e combatendo como coadjuvantes, que povoam a obra de Chico Buarque. Ele não apenas é um conhecedor da realidade brasileira, mas, consegue de forma poética traduzir tal realidade de modo a permitir a fácil identificação dos vários e reais coadjuvantes com os seus múltiplos personagens. Que mulher subalternizada não se identificaria com a ironia implícita na experiência das “mulheres de Atenas”, conhecidas por renunciarem a seus desejos com vistas a satisfazer o desejo de seus maridos, “orgulho e raça de Atenas”? Que operário brasileiro, homem ou mulher, não se identificaria com a história de um trabalhador comum que vive o seu último dia “como se fosse o último”, entre o lar e a “construção”, e experimenta a absurdidade e despropósito de uma morte que mais parece finamento? A morte, como muito bem nos lembra Heidegger, não se trataria de uma experiência que pressupõe sentido, que é elaborada enquanto se vive, quando se pode viver1 ? Mas, qual o sentido na morte de tantos coadjuvantes do nosso Brasil, que lutam dia a dia para sobreviverem, à despeito de serem oprimidos por estruturas injustas e finalmente se resumirem aos números estatísticos? Quem mesmo inflado pela cultura do protos não se identificaria finalmente com aqueles que querem “ter voz ativa” e no próprio “destino mandar”, mas, “eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”? Mesmo os que não querem se calar, bebendo o “cálice” de vinho tinto de sangue, todos os dias não são obrigados a “tragar a dor e engolir a labuta”? E o que dizer daqueles que vivem aqui e ali suas experiências extraordinárias? Não é plausível dizer que no final das contas se definem mesmo pela recorrência do “cotidiano” que insistentemente os desafia a ver o novo no velho? Certamente há muitos que se sentiriam convidados a ressignificarem sua dor ao verem “passar” na avenida “um samba popular”, alegria fugaz que bamboleia por sobre os paralelepípedos que trazem à memória os que sangraram pelos nossos pés e sobre os quais sambaram nossos ancestrais! Um convite a acessar os bastidores da nossa infeliz história”, “passagem desbotada na memória”, tempo em que os filhos da “nossa pátria mãe tão distraída “levavam as pedras feito penitentes erguendo estranhas catedrais”! O que dizer daqueles personagens ordinários, cotidianos, sofridos, que — “à toa na vida” — se despedem da dor “pra ver a banda passar”, mesmo que depois novamente tudo tome o seu lugar?
Chico Buarque nos tira da plateia e nos lança pujantemente no palco — morada do improviso —, o ambiente no qual todos nós, protagonistas ou coadjuvantes, nos revelamos constitutivamente vulneráveis. Aqueles que estão no palco não têm tempo para idealizações, contracenam o tempo todo, razão pela qual vivem constantemente a experiência da aproximação de outros personagens. É nesse sentido que a obra buarqueana nos desperta para uma demanda ética que surge desde a vulnerabilidade do outro.
Em Geni e o Zepelim nos deparamos com uma personagem que facilmente se camufla e se perde no cenário em função do papel social que está fadada a cumprir. Entretanto, a “câmera” de Buarque se recusa ao vício jornalístico, sempre à serviço do fascinante e extraordinário. Busca, ao contrário, construir uma narrativa na qual a figura subalternizada de Geni assume o papel principal e, ao contrário de todos os outros personagens principais, ganha um nome. Os demais — os citadinos, o comandante, o prefeito, o bispo e o banqueiro — são conhecidos por seus títulos e posições, reveladores que são das diversas instâncias nas quais se destila o preconceito da sociedade. Geni é figura arquetípica, mas, também, a encarnação dos muitos subalternizados que, sob as lentes das “câmeras” certas, podem emergir vigorosamente em meio à gama de personagens metonímicos. “É com ela que nos solidarizamos e por quem nos simpatizamos; é dela que nos aproximamos e com a qual nos identificamos; e é a ela que recorremos quando por conta da injustiça e do preconceito nos convulsionamos” (ROCHA, 2019, p. 122).
O sagrado camuflado e a colonização dos loci de sentido
Geni e o Zepelim inevitavelmente nos convida à discussão da relação entre sagrado e profano, ricamente explorada pela literatura afim. De modo geral, entretanto, é preciso inicialmente destacar alguns elementos aos quais somos remetidos quando consideramos essa relação. Primeiramente há de se considerar o caráter ambíguo do sagrado, essência de toda religião. Se, por um lado, sua acepção indo-europeia nos conduz à ideia de separação, por outro, também somos remetidos à ideia de contato (GALIMBERTI, 2003, p. 11-12). Ou seja, o sagrado sempre impõe uma certa distância com respeito ao que se venera, mas, ao mesmo tempo, é isso em relação ao qual nos sentimos atraídos. Temor e reverência, por um lado; intimidade e atração, por outro.
Em segundo lugar, destaca-se o caráter hermenêutico do sagrado. Isso significa que não se trata de uma propriedade inerente a certas pessoas, coisas, tempos ou lugares, ou seja, não deve ser compreendido como substância (ousía), como estrutura necessária e permanente. Ao contrário, trata-se de uma operação do olhar, o que significa que está mais no olho de quem vê do que propriamente naquilo que é visto. O fato de o sagrado ser refém das operações hermenêuticas possibilita a constatação de que as mesmas coisas podem ser concomitantemente sagradas e profanas. A experiência com o sagrado, como nos diria Mircea Eliade, é uma experiência de ser, de sentido e de verdade. Nas palavras do fenomenólogo das religiões,
Com efeito, é difícil imaginar como poderia funcionar a mente humana sem a convicção de que existe algo de irredutivelmente real no mundo, e é impossível imaginar como poderia ter surgido a consciência sem conferir sentido aos impulsos e experiências do Homem. A consciência de um mundo real e com um sentido está intimamente relacionada com a descoberta do sagrado. Através da experiência do sagrado, a mente humana apreendeu a diferença entre aquilo que se revela como real, poderoso, rico e significativo e aquilo que não se revela como tal — isto é, o caótico e perigoso fluxo das coisas, os seus aparecimentos e desaparecimentos fortuitos e sem sentido (ELIADE, 1989, p. 9).
Percebe-se que para Eliade o sagrado não é um estágio na história da consciência, como tantas “histórias das religiões” já afirmaram, mas, trata-se de um elemento da estrutura da consciência, o que significa que na medida em que o ser humano não pode viver no caos, o mundo de sentido resulta de um processo dialético que pode ser visto como uma manifestação do sagrado. Assim, pode-se dizer que o mundo de sentido é, desde o início, captado pela reflexão filosófica como algo genética e estruturalmente “religioso”, e essa experiência do sagrado na medida em que desvenda o ser e a verdade e capta o sentido em meio a um mundo desconhecido e caótico, acaba por delinear o caminho para o pensamento sistemático (ELIADE, 1989, p. 10).
Em terceiro lugar, há de se estabelecer uma distinção entre sagrado e profano, mas, não ao modo de uma lógica dualista, afinal, esta pressupõe que os termos da relação se coloquem de forma hierarquizada e excludente, em que uma das dimensões representadas sempre se legitima em detrimento da outra. A lógica dualista, nesse sentido, sempre exigirá uma relação essencialista, a partir da qual categorias, como sagrado e profano, tornam-se fixas e permanentes. Por outro lado, assumir a relação entre sagrado e profano numa perspectiva alternativa — dialética, por assim dizer — é significativo para se compreender alguns temas em Geni e o Zepelim. A lógica dialética está amparada no pressuposto de que os termos da relação, conquanto distintos, não se hierarquizam. A relação entre sagrado e profano, numa perspectiva dialética, evoca a interdependência entre essas realidades, no sentido de uma coexistência paradoxal. Ou seja, sagrado e profano conquanto mantenham-se em sua alteridade, relacionam-se de tal maneira que o profano, sem perder sua identidade, manifesta o sagrado, enquanto o sagrado dissimula-se no profano.
É em sentido dialético que Eliade propõe a irredutibilidade do sagrado, ou seja, o sagrado como qualitativamente distinto do profano ou — acompanhando Rudolf Otto — como ganz andere, como realidade “totalmente outra” (OTTO, 2007; ELIADE, 2001, p. 18). Há uma dissociação no real, provocada pela experiência com o sagrado, que permite qualificar o profano como aquela realidade carente de sentido, enquanto o sagrado se mostra como realidade significativa. Para Eliade, “Um mundo com sentido — e o Homem não pode viver no ‘caos’ — é o resultado de um processo dialético a que se pode chamar manifestação do sagrado” (ELIADE, 1989, p. 10). Nesse sentido, embora o sagrado seja radicalmente oposto ao profano — sobretudo quando considerado o sentido que lhe é inerente e que o destaca de seus pares —, manifesta- -se, contudo, numa realidade distinta de si mesmo, quer dizer, em pessoas, objetos, tempos e lugares do mundo natural e profano. Na verdade, a irrupção do sagrado no mundo humano é constitutivo de sua natureza, já que seu absoluto encobrimento implicaria em nada significar, o que inevitavelmente comprometeria também sua condição de sagrado. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que o sagrado se mostra irredutível, para que seja dotado de sentido é preciso manifestar-se no profano.
É no contexto desse movimento dialético que Eliade nos sugere o fenômeno da camuflagem do sagrado, afinal, sua manifestação não se dá de forma escancarada. Ao contrário, à semelhança da concepção heideggeriana do ser, há de se assumir sua condição “pouco evidente” e “discreta”. Em Heráclito, Heidegger traduz duas estórias supostamente atribuídas ao pensador éfésio que podem lançar luz ao fenômeno da camuflagem do sagrado. Eis a primeira estória:
Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele encorajou os visitantes espantados a entrar, pronunciando as seguintes palavras: “Mesmo aqui, os deuses também estão presentes” (HEIDEGGER, 2002, p. 36).
A segunda estória diz:
Ele se dirigiu ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as crianças; dirigindo-se aos efésios (seus conterrâneos), que estavam de pé ao seu redor, exclamou: “Seus infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo agora do que cuidar da πόλις junto com vocês? (HEIDEGGER, 2002, p. 37).
“Forno” e “jogo” indicam, concomitantemente, a transgressão de fronteiras entre sagrado e profano. A primeira estória, caracterizada pelo “forno”, mostra-nos um lugar cotidiano onde os deuses supostamente também se fazem presentes. A segunda, ao contrário, mostra-nos um lugar sagrado (o santuário de Ártemis), mas, precisamente aí há “descontração e serenidade”, “o balanço e a liberdade”, próprios do jogo que revela uma profanidade em meio à sacralidade (Heidegger, 2002, p. 38). Nas duas estórias somos expostos ao contrário do que poderíamos esperar. “No forno decepcionamo-nos. No santuário espantamo- -nos” (Heidegger, 2002, p. 37). Heidegger nos convida, por meio dessas estórias, a abandonar o olhar curioso das pessoas que vê apenas o que aparece de imediato. Para ele, o olhar da multidão não consegue perceber aquilo que se mostra para além do claro e evidente; são cegos para os sinais e se atêm ao simplesmente dado2 . A multidão reclama os seus lugares fixos, previamente chancelados pela razão, mas, faz parte do modo de ser do sagrado subverter esses loci e sinalizar àqueles que possuem um olhar atento.
Sagrado e profano, portanto, não o são desde sempre! Não se mantêm em sua univocidade! Não se trata de concebê-los de modo substancial, como dissemos anteriormente, mas, de compreender o caráter constitutivo do sagrado em sua vocação de camuflar-se no profano. A Modernidade Ocidental, que se construiu sobre uma razão deveras inflacionada, celebrou muito apressadamente a expatriação da religião dos espaços profanos da cultura. A necessidade de distinguir e seccionar, características da razão instrumental, também trouxe a ilusão de uma secularização plenamente capaz de dessacralizar o mundo. Entretanto, o contestável exílio do sagrado era apenas uma característica de seu modo de ser, afinal, mesmo em culturas radicalmente secularizadas é possível perceber o seu vigor, ainda que latente e camuflado. Eliade indica a necessidade de se recuperar o sagrado em meio aos fenômenos culturais aparentemente não religiosos:
Nas sociedades mais radicalmente secularizadas e entre os movimentos de juventude contemporâneos mais iconoclastas (como o movimento “hippie”, por exemplo), existe uma série de fenômenos aparentemente não religiosos nos quais se podem decifrar novas e originais recuperações do sagrado — se bem que não sejam confessadamente reconhecíveis como tal de uma perspectiva judaico-cristã. Não me refiro à “religiosidade” evidente em tantos movimentos sociais e políticos, tais como os direitos cívicos, as manifestações contra a guerra, etc. Mais significativas são as estruturas religiosas e os valores religiosos (por enquanto inconscientes) da arte moderna, de alguns filmes importantes e extremamente populares, de uma série de fenômenos relacionados com a cultura dos jovens, em especial a recuperação das dimensões religiosas de uma “existência humana no Cosmos” autêntica e cheia de sentido (a redescoberta da Natureza, os costumes sexuais desinibidos, a ênfase dada ao “viver no presente” e a ausência de “projetos” e ambições sociais, etc.) (ELIADE, 1989, p. 11)
Pode-se dizer que essa recorrente necessidade de “lotear os espaços” deriva dos nossos vícios da razão, essa faculdade que possibilita que as coisas sejam tiradas do indiferenciado e ganhem uma identidade. Por ela, somos sempre expostos ao cenário das diferenças, afinal, é da distinção que se nutrem as abstrações e conceitos, perímetros no seio dos quais significamos o mundo e nos manifestamos como humanos. “Sob os olhos da razão nunca se poderiam reunir num mesmo ser Deus e homem, santos e pecadores, bondade e maldade, força e fraqueza, nobreza e vileza, sagrado e profano” (ROCHA, 2019, p. 122). Conquanto a razão também nos caracterize como humanos, sua operação pode ser violenta quando ignora a plasticidade da vida. Embora a razão circunscreva, adestre e estereotipe, as identidades, mais cedo ou mais tarde, entregam-se às mais variadas metamorfoses, porquanto são carentes de fidelidade e memória. A vida sempre encontra um jeito! Como disse Michel Maffesoli, necessário se faz “submeter a razão à plasticidade do que é vivo” (MAFFESOLI, 2007, p. 28.).
A instrumentalização violenta da razão se presta à colonização dos espaços e à autoctonização dos sujeitos, mas, de um modo a vinculá-los de forma injustificada a certos lugares. Não falamos aqui da legitimidade dos contextos e lugares de sentido, capazes de prover novas e criativas formas de conhecimento. Falamos do caráter inautêntico desse modo de ser. Falamos da possibilidade, sempre à espreita, de uma espécie de absolutização do próprio lugar, capaz de nos seduzir a hierarquizar o mundo e deslegitimar os vários loci de sentido. A exacerbação da condição de pátrios sempre nos leva à deslegitimação de outras paragens, de modo que o outro paulatinamente se transfigura em mal. Reclamamnos continuamente esses lugares aconchegantes, convenientes e ao mesmo tempo entorpecentes — onde se cultivam determinados valores, costumes e doutrinas —, mas, também, é deles que frequentemente somos desinstalados por alguns textos e autores que nos escandalizam por abruptamente nos lançarem em lugares inóspitos, onde os mapas possuem pouca ou nenhuma relevância. Esse é o efeito que Geni e o Zepelim produz em todos nós, na medida em que nos provoca uma perturbação e instabilidade derivadas de se ver migrar para ambientes desconhecidos aqueles elementos que foram cultivados em nossa própria casa ou, ao contrário, de lidar com a presença sempre ameaçadora e temida do outro em nosso próprio território. Felizmente, entretanto, a confusão e perplexidade para a qual somos permanentemente arrastados por Chico Buarque em canções como Geni e o Zepelim são, na verdade, manifestações da vida. Trata-se de pulsações que nos convocam às releituras e ressignificações.
Geni e o Zepelim é um terreno estranho à religião, onde os limites que separam o sagrado do profano são indiscerníveis. A canção nos convida a compreender o fenômeno da camuflagem, na medida em que somos capazes de abrir mão do dualismo que compartimentaliza pessoas, coisas, tempos e lugares. Nesse sentido, rejeitar o dualismo também significa superar a compreensão segunda a qual o profano supostamente deveria ser compreendido pejorativamente. Na perspectiva eliadiana, o profano é tão somente um modo de ser no mundo, uma categoria que designa o mundo natural, humano, cotidiano, ordinário e que, nesse sentido, contrapõe-se ao sagrado, densamente dotado de sentido por sua condição extraordinária. Por outro lado, a hierofania é constitutiva do sagrado, o que significa “a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ — de uma realidade que não pertence ao nosso mundo — em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano” (ELIADE, 2001, p. 17). Assim como para Eliade o ser humano ocidental moderno é acometido de um mal-estar sempre que se vê diante da multiplicidade de manifestações do sagrado, o que o desinstala de seu lugar, como vimos há pouco, o mesmo se dirá das supostas manifestações do sagrado em Geni e o Zepelim. Há um paradoxo que constitui toda manifestação do sagrado, na perspectiva do fenomenólogo romeno, e que devemos manter à vista a fim de compreendermos o sagrado que se camufla na canção buarqueana:
Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania (ELIADE, 2001, p. 18).
Uma puta bondade! A bondade camuflada e as chancelas da religião
Normalmente aquilo que se manifesta de forma explícita também se incorpora naturalmente ao conjunto de saberes que se mobilizam de modo involuntário e, assim, ajuda a consolidar nossa visão de mundo. Mas, como temos visto aqui, o fato de ser constitutivo do sagrado a sua hierofania em estruturas profanas, não estamos lidando com manifestações explícitas, escancaradas. Ao contrário, falamos de algo que se mostra com certo pudor, com certa dissimulação e ironia, e esse modo de ser nos convida permanentemente à perscrutação. O fato de o sagrado se camuflar também explica os constantes tropeços, sobretudo quando o profano é considerado em sentido pejorativo, como algo espúrio, previamente relegado a um estado de indigência, instância na qual já sabemos exatamente o que encontrar.
Em Geni e o Zepelim muitas são as marcas que mostram a falta de nitidez com respeito às zonas que distinguem sagrado e profano. Como vimos na primeira parte deste artigo, isso pode ser notado até na linguagem a partir da qual a canção é construída. Tais dimensões se entremeiam e se aproximam na escrita. A linguagem profana, por exemplo, é percebida em alguns versos e expressões, tanto no comum propriamente dito quanto no vulgar em sentido pejorativo. Com respeito à Geni, somos informados que “O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes”; “dá-se assim desde menina”; “É a rainha dos detentos”; ela “dá pra qualquer um”, mas, por outro lado, também é descrita como uma “formosa dama”. A linguagem profana, refém de uma razão sempre impaciente e interessada em separar, distinguir, avaliar, facilmente justificaria a classificação da canção como indecente, imoral e grosseira. Mas, Chico Buarque mistura à linguagem profana palavras e expressões de caráter flagrantemente religioso, operação que certamente confunde aqueles que são seduzidos a precipitadamente classificar seres e não- -seres, lugares e não-lugares. Senão, vejamos: na canção, Geni é tanto “bendita” quanto “maldita”; a cidade está entregue à “iniquidade”; o asco de Geni pelo comandante é interpretado pelo povo como “heresia”, o que justifica o bispo e a cidade “em romaria” ir “beijar a sua mão”; a cidade clama por “salvação” e “redenção”, o que, incompreensivelmente, está nas mãos de Geni.
Chico Buarque também celebra a ambiguidade e ironia na linguagem, fazendo ecoar reminiscências de textos sagrados, e isso nos facilita caracterizar a relação entre sagrado e profano na peça literária. “Jogar pedra na Geni” é tanto uma ação profana quanto religiosa, sobretudo quando somos remetidos à imagem da mulher adúltera trazida a Jesus para o apedrejamento (Jo 8,1-11). Geni também é reputada como “singela” e “coitada”, ironia que relativiza sua suposta devassidão ao mesmo tempo em que nos remete à ideia de coito. A profanidade de Geni não impede que diante dela flagremos “o prefeito de joelhos” e “o bispo de olhos vermelhos”; também os impropérios iniciais contra Geni em razão de “dar pra qualquer um”, numa alusão à sua depravação, agora cedem lugar a uma desesperada súplica pela “salvação” que pode vir de sua abnegação, altruísmo e bondade que derivam do fato de “dar pra qualquer um”.
Em termos de linguagem, ainda se destaca o modo como um vocabulário aparentemente profano pode revelar significações de fundo religioso. É o que acontece com as diversas instâncias representadas na canção: militar (o comandante), social (a cidade), política (o prefeito) e religiosa (o bispo). Nesse sentido, não se pode ignorar a motivação do comandante em destruir a cidade, motivado por sua percepção do “horror e iniquidade” que lá grassava, além de reclamar pela “absolvição” de Geni, já que se vê momentaneamente prisioneiro de seus encantos. A linguagem também escamoteia o sagrado nas ações e expectativas de um povo que tanto “condena” Geni quanto anseia por “expiação”. Deparamo-nos com uma religião que rapidamente é evocada pelo prefeito quando o flagramos “de joelhos”, arquétipo de todos aqueles que possuem relações meramente políticas com a religião. Esta também se encontra inequívoca — mas, não menos interesseira e individualista —, na figura do bispo. De modo geral, Chico Buarque nos expõe à ambiguidade e ironia a partir das quais personagens se reúnem tanto nos interditos e preconceito da religião — representados nos estereótipos e na exclusão da protagonista —, quanto no inesperado anseio por sua bondade controversa.
Subsidiados pela percepção eliadiana, segunda a qual o sagrado se camufla no profano, identificamos na canção de Chico Buarque uma bondade dificilmente reconhecida nos espaços chancelados da religião. A face profana e escandalosa da canção Geni e o Zepelim facilmente faria tropeçar um religioso de raiz, comprometido com a prática zelosa e com a complexidade simbólica de sua religião, bem como com o seu próprio lócus. Afinal, ecoando a pergunta retórica de Natanael no Evangelho de João (Jo 1,46)3 , semelhantemente poderíamos perguntar: de alguém classificada como puta, poderia vir algo de bom? Notadamente a pergunta, implícita na peça literária, perde de vista o humano e sua suposta integridade que se esconde nos estereótipos sociais e religiosos.
Deparamo-nos com uma bondade que se encontra sepultada na vulgaridade e libertinagem que caracterizam a protagonista. Para além do claro e evidente, que normalmente surge de imediato aos olhos da multidão, como nos advertiu Heidegger, a canção de Chico Buarque denuncia que nos espaços autorizados da religião não basta que a bondade seja simplesmente boa, não basta que surja do simples altruísmo humano; é preciso chancelas. Nesse caso, a religião entra em cena como um distintivo que autoriza ações, define valores e protege conteúdos. A religião, na medida em que coloniza determinados temas, como bondade e expiação, transforma-se em foro definidor do bem e do mal, ao sugerir que mesmo a bondade precisa estar no lugar certo, nas pessoas certas. Mais do que isso, a canção sugere que mesmo maldade e perversão se sacralizam e se legitimam quando se encontram nos limites de espaços sagrados chancelados. Nessa perspectiva, os não-lugares e os não-seres nunca seriam instâncias no interior dos quais o sagrado se manifestaria. O “puto”, então, transforma-se numa categoria que designa a camada de material estranho, capaz de esconder os vestígios do divino ignorados pela mente seduzida pelos “modelos da satisfação”, na acepção de Lévinas. Nesse tribunal, onde Geni é julgada e sumariamente condenada, normalmente não se avança para além da mobília cultural e social, dos estereótipos que impedem que o humano seja desnudado e o seu valor reconhecido.
Certamente estamos diante de uma crítica contundente às versões violentas da religião que se sustentam sobre o falso pressuposto de que as virtudes humanas precisam de autorização da própria religião para terem alguma validade. Embora a violência não seja uma propriedade intrínseca e constitutiva da religião, pode por ela ser instrumentalizada (Cf. ROCHA; ROSA, 2019). No mundo dos espetáculos e do sôfrego consumismo, a religião certamente se tornou mais poderosa e determinante do que a própria divindade que a anima. Em muitos casos, esta acaba chegando muito tarde no mundo da religião e — diante da oferta de bens de consumo — isso contribui para que se arrefeça toda subversão que supostamente carreia. Legitimar a bondade de Geni exigiria uma nova religião; uma que estivesse disposta a abandonar a segurança e conforto de seu “lugar sagrado” e se aventurasse pelos meandros não higienizados da natureza humana, numa busca incessante e sincera pelos vestígios do divino que se camuflam no profano.
Pode-se dizer que em Geni e o Zepelim encontramos uma bondade profundamente libertadora, mas, que antecede o sentido religioso. A canção nos faz lembrar que, antes de ser cooptada pela religião, toda experiência de libertação é profundamente humana, o que significa que o sentido religioso é ato segundo, afinal, como muito lucidamente afirma Edward Schillebeeckx, “Fatos só se tornam história dentro de um quadro de sentido, numa tradição de fatos interpretados”. Ou seja, a libertação humana, na medida em que se realiza e se experimenta, é o primeiro nível de sentido. No contexto de uma tradição religiosa de experiência da fé, a mesma libertação humana é interpretada em segundo nível de sentido (SCHILLEBEECKX, 2012, p. 23.). Ou seja, a libertação é um processo mundano, humanamente relevante porquanto libertador de seres humanos, que se transforma em história da salvação no contexto de uma tradição de fé, mas que, no entanto, não depende desta para ser atribuída a Deus (“etsi Deus non daretur”). Isso também significa que professar uma religião não torna pessoas religiosas mais humanas que outras. E é por isso que nesse contexto é sempre imprudente falar muito cedo sobre Deus, sob o risco de se falar amparado por uma imagem envelhecida da divindade (SCHILLEBEECKX, 2012, p. 24.). É nesse sentido que se poderia dizer que a expiação resultante da bondade de Geni não depende da autorização de uma sociedade religiosa altamente moralista e desumana.
Chico Buarque certamente exige de todos nós uma capacidade hermenêutica capaz de recuperar a bondade de Geni ao preço de se atravessar muitas camadas de estereótipos e interditos. Mesmo os de boa vontade facilmente poderiam tropeçar nessa busca, visto que aquilo que se busca se confunde com o próprio material do qual é constituído essas camadas. Afinal, a bondade de Geni, muito distante das virtudes que são celebradas em espaços sagrados, revela-se no ato repugnante de se deitar com os proscritos e desclassificados. Em outras palavras, a bondade se deixa entrever na própria “coitada”, posto que “o seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada!”. A bondade de Geni não se faz notar nos templos sagrados, mas, “na garagem, na cantina, atrás do tanque ou no mato”. Embora não seja amada pelos religiosos, é “a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos e dos moleques do internato”. Quando retornamos à metáfora de Kant, chegamos à conclusão que é tão impossível separar a bondade de Geni daquilo que a torna bondosa quanto seria separar o ar que constitui resistência ao voo da pomba da própria possibilidade do seu voo. A bondade de Geni, portanto, revela-se naquilo que mais abominamos, o que nos choca profundamente.
Certamente aqueles e aquelas que se sentem importantes apenas na medida em que satisfazem a sofreguidão de uma sociedade consumista, egoísta e violenta, prontamente se identificariam com Geni:
O coro que manifesta a excitação coletiva em busca de um bode expiatório se inicia no impropério: “Joga pedra na Geni! / Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir! / Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni!”; avança para a manifestação de uma radical perplexidade: “Essa dama era Geni! / Mas não pode ser Geni! / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni!”; tem o seu clímax na total rendição da cidade à redenção de Geni diante do perigo iminente: “Vai com ele, vai, Geni! / Vai com ele, vai, Geni! /Você pode nos salvar / Você vai nos redimir / Você dá pra qualquer um / Bendita Geni!”; entretanto, termina mais ou menos onde começou, mas, com um requinte de crueldade ainda maior: “Joga pedra na Geni! / Joga bosta na Geni! / Ela é feita pra apanhar! / Ela é boa de cuspir! / Ela dá pra qualquer um! / Maldita Geni!” (ROCHA, 2019, p. 128).
A canção de Chico Buarque sugere que ainda que muitos religiosos não aceitem o fato de que o sagrado seja uma operação do olhar, são recorrentemente surpreendidos por sua própria arrogância todas as vezes que negociam seus princípios em função dos próprios interesses. Em Geni e o Zepelim percebemos que conceitos teológicos, como os de bênção e maldição — tão caros a algumas religiões —, frequentemente acabam se definindo mais por critérios pragmáticos ou ideológicos do que propriamente por critérios puramente teológicos. A maldição que parece ser um princípio absoluto na boca daqueles que se reúnem na primeira manifestação de execração da Geni, estranhamente transfigura- -se (adultera-se?) em benção, num claro movimento de manutenção do próprio bem-estar. Os olhos da multidão (lembremo-nos de Heidegger), incapazes que são de entrever o caráter instável do sagrado e do profano, não titubeiam em sacralizar aquilo que mais repudiam quando o que está em jogo é a própria vida.
O profano é esse terreno comum onde os humanos — crentes e não crentes — se reconhecem como tais, e para onde todos temos que retornar quando o sagrado se torna opressor, para uma vez mais reconstruir o sentido, postular o sagrado libertador. Em Geni e o Zepelim somos convidados a procurar nos escombros da profanidade aquela bondade extremamente simples, muitas vezes ausente dos recantos complexos da religião. Tal bondade é subversiva, escandalosa — por vezes, atrapalha a religião —, mas, extremamente fecunda quando consideramos a urgência de uma religião humanizadora e libertadora. A bondade pulsa como pulsa a vida, mesmo que sua potência se manifeste em páthos, misericórdia, entrega. Embora temporariamente tenha todos em suas mãos — o comandante que se inclina à sua beleza e mesmo a cidade que a reverência por sua expiação —, Geni bondosamente faz pouco caso de seu poder e se entrega aos seus algozes. Uma vez mais será usada, amaldiçoada e finalmente descartada. Mas, a vida, mesmo em sua profanidade, sempre encontra um jeito!
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Referências
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Notas
[1]Para Heidegger, diferente dos animais que apenas findam, os seres humanos morrem e por isso podem ser chamados de mortais, desde que morrer significa saber a morte como morte. “Chamamos aqui de mortais os mortais — não por chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque eles sabem a morte, como morte. Os homens são mortais antes de findar sua vida” (HEIDEGGER, 2002, p. 156).
[2]Ecos de Lucas 11, 29-30 poderiam ser inferidos das palavras de Heidegger. Segundo o texto bíblico, assim teria dito Jesus quando diante da multidão em busca de um sinal: “Essa geração é geração má; procura um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal de Jonas. Pois assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também o Filho do Homem será um sinal para esta geração” (Bíblia de Jerusalém)
[3]Perguntou-lhe Natanael: “De Nazaré pode sair algo de bom?” Filipe lhe disse: “Vem e vê (Bíblia de Jerusalém).