Henrique Mata de Vasconcelos*
*Doutorando em Teologia Sistemática, como bolsista CAPES, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Contato: henriquemata97@hotmail.com
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Resumo:
O presente artigo tem como objetivo analisar, breve e sinteticamente, de qual maneira a imagética e imaginário do inferno surgiu e desenvolveu-se na cultura e no pensamento judaico-cristão. Para tal, buscaremos descrever o desenrolar da ideia, delimitando- -nos ao não-futuro e ao sheol judaico (Antigo Testamento), ao tema do além-mundo na contemporaneidade de Jesus (Novo Testamento) e em alguns apocalipses apócrifos posteriores, assim como procuraremos compreender a influência das ideias religiosas sobre tal na interculturação do povo judaico com os seus circunvizinhos, especialmente com os persas e com os gregos. Por fim, analisaremos as imagens do lugar infernal no Apocalipse de Paulo (Visio Pauli) e na Divina Comédia de Dante Alighieri, bem como apontaremos algumas imagens que aparecem no primeiro e que se repetem no segundo texto. Com este percurso, temos em mão uma pequena síntese genealógica da aparição e da evolução deste lugar mitológico que ainda permeia o imaginário cristão.
Palavras chave: inferno; além-mundo; literatura apocalíptica.
Abstract
This article has how objective to analyze, briefly and synthetically, in which way the imagetic and the imaginary of the hell came up was and grow up in the Christian thought. For that, we will seek to describe the process of the theme, delimiting our work to the non-future and the Judaic sheol (Old Testament), to the theme of the beyond-world in the contemporary of Jesus (New Testament) and on some further apocryphal apocalypses, as well as we will pursue to comprehend the influence of the religious idea about it in the intercultural relationship of the Judaic people with their neighbors, especially with the Persians and with the Greeks. Finally, we will examine the imagens of the infernal place in the Apocalypse of Paul (Visio Pauli) and in the Divine Comedy of Dante Alighieri, as well as we will point out some images that are in the first one as the second one. Thorough this path we will be able to see a short genealogical synthesis of the rise up and the evolution of this mythological place that still is in the Christian imaginary.
Keywords: hell; beyond-world; apocalyptic literature.
Simon Blackburn, ao definir a palavra genealogia no campo da filosofia, em seu The Oxford Dictionary of Philosophy, destaca que ela é especialmente relacionada a Friedrich Nietzsche e à sua obra Genealogia da Moral (2005, p. 148). Conforme Blackburn,
genealogia é, por um lado, uma reconstrução histórica da maneira em que certos conceitos vieram a ter a forma que eles têm e, por outro lado, uma ‘reconstrução racional’ ou história sobre a função que eles exercem, que pode ou não corresponder à evolução histórica. Nas mãos do próprio Nietzsche e daqueles influenciados por esse como Foucault, genealogias tendem a ser subversivas e desconstrutivas, minando qualquer apego para com os conceitos considerados. Porém, histórias similares em torno da evolução da lei ou sociedade, convenções e outras instituições, podem ser bem reconfortantes, sublinhando as funções adaptativas que tais desenvolvimentos exerceram (BLACKBURN, 2005, p. 148, tradução nossa).
Ressaltamos que em nossa presente genealogia não temos como fim subverter ou minar a crença cristã quanto ao inferno – apesar de vermos tal lugar como um imaginário mítico-religioso –, tampouco reafirmá- -la ou demostrar o seu papel religioso, comunitário e/ou social – embora consideramos que algum papel essa crença tenha. Esses pontos podem ser objetos de estudos futuros. Aqui, o nosso método bibliográfico e genealógico está circunscrito à busca pela origem e pelo desenvolvimento do imaginário mitológico do inferno na literatura cristã, seja apócrifa ou canônica, como também o seu desenvolvimento alcançado na literatura dantesca. Certamente, conforme vemos o desenvolvimento imagético do inferno de obras anteriores a posteriores, também poderemos vislumbrar a recepção de uma obra anterior pela posterior, como é o caso da Visio Pauli na Divina Comédia.
Compartilhamos do sentimento de curiosidade de Nietzsche sobre a origem, de como e de onde concepções contemporâneas nasceram, desenvolveram-se e transformaram-se – ele, em relação aos preconceitos morais e juízos de valor, o bem e o mal, o mau e o bom; nós, acerca da imagética do inferno. Entretanto, aqui, não compartilhamos do seu objetivo de realizar um julgamento de valor da concepção imagética que investigaremos, como ele tinha quanto aos valores morais.2
Entrando no cerne investigação, sublinhamos que nenhuma ideia religiosa subiu pronta do inferno, e nem caiu do céu. A palavra inferno tem suas raízes no latim infernus, que se refere ao situado mais abaixo, mais ao sul, o subterrâneo, o submundo (GLARE, 2016, p. 985). Este local, como ainda visto e pensado na contemporaneidade por alguns cristãos, também teve diversas formulações, evoluções e mutações.
O teólogo Hans Schwarz, ao escrever a respeito do inferno no The Cambridge dictionary of Christian theology, afirma que a palavra inglesa hell deriva-se do antigo islandês Hel, que se refere ao submundo da mitologia nórdica e à sua governante. O teólogo defende que o conceito de inferno é encontrado quase que em todas as religiões, como um local de castigo, sendo não especificamente judaico ou cristão. Além disso, diz que geralmente essas religiões supõem que esse esteja localizado em algum lugar abaixo da terra. Relativo aos textos mais antigos do Antigo Testamento, como no Salmo 89,48, Schwarz alega que encontramos com o Sheol, que se refere a existência sombria da alienação na morte (SCHWARZ, 2011, p. 208).
Para traçarmos uma genealogia do inferno3 , devemos percorrer um trajeto. Primeiramente, teremos como delimitação o Israel antigo e seus vizinhos mais influentes, Canaã, Pérsia e a Grécia. Por intercâmbios culturais, as ideias religiosas e populares de diferentes crenças se dialogam, influenciando umas às outras. Passaremos pelo Novo Testamento e por alguns apocalipses, a viagem ao inferno nos Atos de Felipe, no Apocalipse de Pedro e, sobretudo, no de Paulo. Posteriormente, discorreremos a respeito do inferno da Divina Comédia de Dante. Comecemos, antes de avançarmos no desenvolvimento do imaginário acerca do Sheol judaico, por olhar o tópico do além da vida nos vizinhos mais próximos dos judeus, os cananeus.
A civilização cananéia, juntamente com sua religião no findar da Idade do Bronze, por volta de 1365 a 1175 antes da Era Comum, tem como representante a cidade de Ugarit, local em que características climáticas transformaram-se em mitos sobre deuses. Os deuses e as deusas mais importantes desse panteão eram El, o deus supremo, e sua esposa Asherah, juntamente com Ba’al, ligado à agricultura, aos rebanhos e as chuvas, e sua esposa ’Anat. Nessa mitologia, há embates tanto entre El e Ba’al quanto com seus opositores. Em um conto, Ba’al enfrenta Mot, deus da seca e da morte, descendente de El, juntamente com seu aliado Lothan (o animal que se retorce, cognato do Leviatã hebraico). “Ba’al, que aceita o convite de Mot para ir até o Mundo Inferior, morre. ’Anat sepulta- -o e vai ao encontro de Mot, a quem [...] pulveriza.” Posteriormente, Ba’al ressuscita; em algumas versões por intermédio de ‘Anat, que o traz a vida depois de encontrar seu corpo, em outras ele mesmo vence Mot sozinho e volta ao seu reino. Mas os seres humanos, diferentemente dos deuses, não podiam voltar do mundo dos mortos. Para os canaanitas, o elemento vital deixava o corpo depois da morte. Entretanto, a vida, não cessando completamente, continuava de alguma maneira no reino de Mot. Nessa tradição, mesmo que algumas transformações dos mortos pudessem ser realizadas por meio de rituais, não há evidência de que havia recompensas ou julgamentos (SOARES, 2006, p. 28-31).
No judaísmo antigo, por volta de 960 e 587 antes da Era Comum, denominado como do Primeiro Templo, parece que não há uma expectativa de uma existência após a morte. Elizangela Soares afirma que, “para os judeus de então, a morte representava o fim de tudo, das relações sociais, interpessoais e com a divindade, um destino comum para toda pessoa, do qual não se podia fugir e para além do qual nada deveria ser esperado” (cf. Jó 14,7-12). Contudo, da palavra Sheol pode ser deduzido “a presença de uma noção de ‘mundo dos mortos’” no pensamento judaico (SOARES, 2006, p. 31-32). A teóloga ainda afirma que,
tratando-se do destino do morto, nos textos mais antigos da Bíblia Hebraica não existem noções de céu e inferno, nenhum julgamento óbvio e punição para os pecadores, nem recompensas para os virtuosos. Em James D. Tabor, a morte é o grande nivelador. Mesmo o mais famoso termo para a morada dos mortos na Bíblia, o Gê’ Hinnôm ou Gê’ Ben-Hinnôn (Geena), no período do Primeiro Templo não está associado com inferno ou pós-morte, mas a um espaço geográfico específico na terra, literalmente o Vale de Hinnom. Sua associação com um lugar de punição e sofrimento só virá muito mais tarde. O destino dos mortos, quer tivessem sido justos ou maus enquanto vivos, era um só: o Sheol, palavra de etimologia incerta, mas normalmente traduzida por “sepultura”, “cova” e correlatos (SOARES, 2006, p. 37).
O sheol é o grande nivelador porque é o destino de todos, ricos e pobres, sábios e tolos, entre outros – independentemente de como foi a sua vida. É nele que se é esquecido, em que literalmente deixa-se de viver e de existir
O exegeta Thomas Römer, no seu livro The invention of God, em que explica o desenvolvimento do pensamento a respeito de Yhwh, desenvolve um pouco a respeito do Sheol. O autor afirma que, assim como em Ugarit Baal tinha como dois grandes inimigos o Mar (Yammu) e a Morte (Motu), algo similar ocorria em relação a Yhwh, conforme alguns textos bíblicos indicam. A Morte (Motu), assim como o Mar, era um inimigo de Yhwh que, por sua vez, não tinha o controle sobre o seu domínio, sobre o seu reino. Esse era um lugar chamado sheol, local onde o morto continuava existindo em um estado meramente vegetativo. Etimologicamente, não há certezas a respeito da palavra. Uma possibilidade é que a palavra esteja conectada com a raiz šʾl (perguntar), sendo o local em que alguém poderia questionar os que morreram. Outra é que a origem da palavra possui uma raiz semítica expressando a ideia do deserto. Seja como for, o termo é encontrado fora da bíblia apenas uma vez, em um texto de Elefantina durante o primeiro milênio. Dentro da Bíblia, a palavra é usada sempre como um nome próprio, podendo designar ou um deus ou a personificação do mundo inferior. A “vida no sheol é concebida como se o cadáver tivesse ido viver no submundo, por assim dizer, na sepultura subterrânea da família, em um lugar frio, molhado e sombrio” (RÖMER, 2015, p. 138-139, tradução nossa).
Segundo Römer, encontrar-se no sheol significava estar em uma separação total de Yhwh. Esse domínio não fora criado por ele e escapava de seu poder. No Salmo 30 vemos, a partir da compressão de seu autor, que Yhwh não podia intervir no reino da Morte, possuindo apenas o poder para curar. Aqui, a doença é a sala em que se passa antes de achegar-se a morte e, nesse destino, não é possível adorar a Yhwh (cf. Sl 6). Já em Isaías 28 (cf. 14-15) temos uma acusação à alguns aristocratas de Jerusalém de terem sido tentados a fazerem uma aliança com Sheol, um deus que, para eles, parecia ser mais poderoso que Yhwh. Contudo, alguns textos mais recentes refletem a transformação religiosa que ocorrera nos séculos VIII e VII. Eles expressam tanto a força superior de Yhwh sobre a morte quanto a esperança de que ele será capaz de tirar o morto do reinado do Sheol (Sl 49,16). Em um grafito de Khirbet el- -Qom, encontrado na porta de uma tumba e datado próximo do tardar do oitavo século, há um desejo que Yhwh e sua Asherá abençoe Uriyahu, assim como já havia feito (em vida). Devido ao seu local, sabe-se que aqui Yhwh foi pensado tendo o poder para abençoar até mesmo depois da morte, assim como durante a vida. Já nas tumbas de Ketef Hinom, foram encontrados amuletos de prata enterrados com os mortos, com a intenção de protegê-los no reino da Morte. “Nesses amuletos está inscrito uma benção de Yhwh sobre a morte, uma benção que foi posteriormente transferida aos vivos na forma da benção sacerdotal de Números 6,20-24” (RÖMER, 2015, p. 139-140).
Em Judá Yhwh tornou-se a principal divindade, o deus da dinastia davídica e o deus nacional, durante os séculos IX e VIII. Ele absorveu a funções do deus sol e combinou as funções de mais dois tipos de deuses, El e Baal. O Templo de Jerusalém veio a ser o centro do reinado de Yhwh, embora também haviam outros santuários yahwísticos, e, particularmente no interior, especialmente em bamôt. No final do século VII Yhwh começou reivindicar sua superioridade sobre o deus do submundo (RÖMER, 2015, p. 140, tradução nossa).
Mais posteriormente, conforme Schwarz, pode ser que, com a influência pós-exílica do parsismo, o “Sheol veio a ser compreendido como temporário, a ser substituído por um duplo resultado da história” (cf. Dn 12,2) (SCHWARZ, 2011, p. 208, tradução nossa). O império Persa foi fundado por Ciro no século VI antes da Era Comum, se estendia desde rio Indo até o Egito e ao Mediterrâneo e exerceu uma hegemonia no Oriente Médio por vários períodos da Antiguidade. Por volta do ano 539 antes da Era Comum, conquistou a Babilônia e, consequentemente, os povos que ela dominara. Para conquistar a lealdade de seus vassalos, o imperador respeitava as tradições religiosas nacionais, inclusive a dos judeus (2 Cr 36,22-23; Ed 1.1-5). “Foi por essa ocasião que o legendário cativeiro babilônico dos judeus chegou ao fim e Ciro permitiu a volta deles a Jerusalém, bem como a reconstrução do Templo no ano 538 aEC.” Em um primeiro momento, os persas eram politeísta e adoravam o Sol, a Lua e a Terra. Faziam parte do culto desta religião o sacrifício de animais e o uso de uma bebida alucinógena chamada haoma, que se consistia da urina eliminada após a ingestão de uma droga. No entanto, a religião de Zaratrusta/Zoroastro mudou, principalmente relativo à morte, o imaginário religioso da Pérsia. Com a sua chegada, talvez por volta de 1200 a 1000 antes da Era Comum, realizou-se uma grande reforma na antiga religião persa. “Num primeiro plano, esta reforma se opunha à forma violenta e orgiástica [da] antiga religião, [...] num segundo plano, a pregação do reformador propunha uma reformulação do panteão, que passava a se tornar monoteísta” (SOARES, 2006, p. 45-47).
No Zoroatrismo4 , há um dualismo entre dois princípios que estavam sempre em conflito. Segundo Zaratustra, o bem e o mal são os filhos gêmeos de Ahura Mazda: o Espírito Benfazejo (Spenta Mainyu) e o Espírito Negador (Angra Mainyu). A partir daqui temos o dualismo ético e prático da vida no mundo, uma tensão entre o certo e o errado. Deveria se escolher, em pensamentos, palavras e atos bons ou maus, a ordem da verdade (asha) ou a da mentira (druj). Isso resultaria na recompensa transcendente na “Casa do Bom Pensamento”, com o Deus Ahura Mazda, dos que preservaram asha, ou no destino dos mentirosos, que optaram por druj, na “Casa da Mentira” ou “Casa do Mau Pensamento”. Após três dias próxima do cadáver, a alma partia em busca da sua recompensa. No caminho, ela encontrava Daena, “uma bela moça, personificação das qualidades morais de uma pessoa, que a conduzia sobre a Chinvat ou ‘Ponte do Julgamento’”. Ao atravessar essa ponte que leva ao paraíso, as almas dos mentirosos eram empurradas e despachadas para a “Casa da Mentira”, sendo conduzidos pelo demônio Vizaresha (SOARES, 2006, p. 47-49).
Na Grécia Antiga, se acreditava que era necessário funerais adequados para que os mortos tomassem residência eterna no Hades, uma vez que o contrário traria os seus espíritos de volta. Também era necessário realizar celebrações para que a memória continuasse viva e socializada na família e as comidas e bebidas oferecidas mantinham os mortos no submundo. Assim, os espíritos vingativos ficavam afastados. No funeral ocorria o preparo do corpo, o seu transporte ao local para cremação ou enterro e a deposição dos restos. Realizavam, às divindades do submundo, orações para que recebessem bem o morto. Já no período homérico, entre os séculos XII-VIII antes da Era Comum, era predominante que o lugar dos mortos, um reino escuro e subterrâneo, pertencia ao deus Hades. Posteriormente, Hermes era o guia dos mortos que migravam para o local e pequenas moedas (oboles) eram requeridos para que a travessia fosse custeada, sendo essas deixadas na boca dos cadáveres. Diferentemente, na descrição de Homero, o Hades é apenas para onde a alma (psyche) vai quando o corpo da pessoa morre. Quando surgiram as escolas filosóficas, diversas e conflitantes visões passaram a existir conjuntamente com as antigas (SOARES, 2006, p. 50-53).
Com a interação com essas culturas, o Judaísmo do Segundo Templo assume compreensões diferentes da época pré-exílica. Influenciados, sobretudo, pelas ideias de ressurreição (Ez 37,1-10; Is 24-27; cf. Dn 12 e principalmente 2 Mc 7) dos persas e da imortalidade (4 Mc 9,21-22; 14,5; 16,13; 17,12; 4 Es 7; Sb 3,1-4; Fílon) da filosofia grega, sobretudo de Platão. Em 2 Macabeus 7, no contexto em que judeus, por não abrirem a mão da fé, eram mortos, situação que levou a Guerra dos Macabeus contra Antíoco, há uma forte perspectiva a respeito da ressureição diante do terrível sofrimento dos justos. Além disso, o castigo dos opressores de Israel é forte na literatura da época (AsMoisés 10; Dn 12; Jb 23,29- 31; 4 Mc 17,1-18). Em 1 En 103,3-8, encontramos com as almas dos “pecadores sendo julgadas no Sheol, não mais visto como um lugar de repouso eterno e letargia, mas como uma espécie de inferno, cheio de trevas, armadilhas e chamas ardentes” (SOARES, 2006, p. 55-73). Em um ambiente de perseguição e sofrimento, os judeus só podiam crer que o seu Deus os recompensaria e julgaria os opressores, os maus, sobretudo no contexto dos Macabeus e de Daniel.
Como não havia no Antigo Israel julgamento depois da morte, os judeus no exilio babilônico e em diante esperavam um juízo, o dia do Senhor. Essa tradição se enraizou em Israel e esse povo, por volta do século VIII aEC, esperava uma manifestação trágica e grandiosa para exaltá-los, um evento de guerra e de fenômenos extraordinários. Com os profetas, o acontecimento toma proporções cósmicas, “uma transformação de todo o universo,” desde as “alturas celestes até as profundezas do próprio Sheol”. O infiel sofreria a ruína em vida. “Em escritos mais tardios, emergirá [...] uma divisão entre justos e ímpios” no dia do Senhor. Lá, “os fiéis receberiam sua recompensa, enquanto os injustos seriam eternamente destruídos no fogo de Ge-hinnom (Gegenna). Uma visão tão radical, medonha e eterna certamente exigia um julgamento solene.” Assim, esse julgamento toma uma nova forma no pensamento apocalítico judaico, ganhando um tom transcendente. Se a justiça não era alcançada no mundo presente, eles ansiaram pelo fim dos tempos, o estabelecimento de um novo reino/cosmos, um novo aeon, com a presença dos justos e com a exclusão dos ímpios. Os escritores apocalípticos esperavam “pelo triunfo final, eterno e completo da justiça, com recompensas e castigos ao longo da eternidade” e, tendo como exemplo Dn 12.1-3, encorajavam os oprimidos com a eminente ressureição dos justos e o julgamento dos injustos (SOARES, 2006, p. 81-85).
O destino dos pecadores é a destruição (Salmos de Salomão 13,11) e suas iniquidades os perseguiriam até o Sheol/Hades (SlSa14,9; 15,10- 12). Tudo o que eles devem esperar é a destruição. “No Apocalipse dos Animais, após Deus estabelecer um trono para o propósito de julgamento, todas as ovelhas cegas – ou judeus apóstatas – serão julgadas, condenadas, lançadas no abismo de fogo sobre a terra e queimadas (1 En 90,26-27).” Em 2 Baruque, no julgamento final que acompanhará a aparição do Messias (30,1-5), os maus receberam a sua punição por meio do fogo (44,15; 48,39.43; 59,2; 64,7; 85,13) (SOARES, 2006, p. 86-89). Assim começa a nascer dois lados da mesma esperança, a recompensa transcendente dos juntos, seja ressureição e/ou imortalidade, e a punição transcendente dos injustos. Nesse ambiente vital surge a necessidade da retribuição dos justos e da punição pecadores e, aqui, começam a brotar as ideias que darão forma ao inferno cristão. Uma vez sendo traçado essas linhas a respeito do além-mundo no pensamento antigo, passemos ao Novo Testamento e aos apocalipses posteriores.
Após o percurso realizado até aqui, nos deparamos com um judaísmo mais tardio e mais elaborado, no ambiente vital em que surgiu o Novo Testamento. A expectativa escatológica/apocalíptica é nítida e intensa nesse período, motivo pelo pessoas como João Batista e Jesus de Nazaré são figuras tão significativas e controvérsias.
No judaísmo tardio e no NT, Gehenna é um reino ardente onde os iníquos recebem justiça. O nome deriva do vale de Hinom aos pés do Monte Sião, um local que servia como o lixão da cidade. A perpetua queima de lixo gradualmente tornou o vale sinônimo de angústia eterna no fogo. Gehenna pressupõem ressureição e julgamento final: a pessoa inteiramente será torturada, resultando em “choro e ranger de dentes” (Mt 13,50). Diferente da literatura apocalíptica, o NT raramente fornece uma descrição gráfica do inferno; quando fornece, a intenção é despertar a consciência dos ouvintes (por exemplo, Mt 10,28) (SCHWARZ, 2011, p. 208, tradução nossa).
Com o tão esperado dia do Senhor, no qual o povo oprimido de Israel seria vingado, para os injustos só poderia restar um castigo infernal. Em Mateus 13 (41-43; 49-50), as parábolas nos mostram uma expectativa que parecem já serem parte da tradição contemporânea, a consumação dos séculos, o julgamento final. Todavia, não há aqui nem o relato nem a pressuposição de uma ressureição. Em Mateus 10,28, aquele que seria o autor de um dia crítico deveria ser temido, pois poderia jogar inteiramente alguns em um local em que o fogo queimava constantemente. Esses dois textos não falam de um outro local além do terrestre Vale de Hinom, em que os injustos e pecadores deveriam ser jogados. Devemos tomar cuidado, conforme afirma Edd Rowell (1990, p. 319), para não lermos nesse termo a ideia do inferno bem desenvolvida posteriormente. Gehenna, embora traduzida por várias traduções como inferno, possui um significado menos elaborado.
O vale de Hinom, Gehenna, o vale localizado ao oeste e sul de Jerusalém, foi parte da fronteira tribal entre Judá e Benjamim (Js 15,8; 18, 16; Ne 11,30), local em que reis de Judá também sacrificaram humanos por meio do fogo (2 Cr 28,3; 33,6; Je 7,31; 32,35). Segundo a profecia do profeta Jeremias, o vale tornar-se-ia um vale da matança para os apostatas (Je 7,32; 19,6.11.13; Is 66,24). Tanto na literatura judaica extracanônica quanto no Novo Testamento, o termo é utilizado para designar o local/estado de tormento do ímpio. Nesse último, ocorre doze vezes, onze nos sinóticos e uma em Tiago. É qualificado por “de fogo” duas vezes (Mt 5,22; 18,9) e tem como paralelo o fogo inextinguível (Mc 9,43). A ideia de Gehenna é simplesmente entendida e aceita no Novo Testamento. Nos sinóticos, ocorre apenas nos ensinos de Jesus e, aparentemente, ele assumiu que seus ouvintes entenderiam ao que ele estava se referindo. Nesses ensinamentos de Jesus, podemos notar que “as imagens tradicionais de Gehenna são notáveis: profundo, ou um local/estado no qual alguém pode ser lançado (Mt 5,29; Mc 9,45; Lc 12,5); fogo (inextinguível) (Mt 5,22; 18,9); e destruição (profana) (Mt 10,28; cf. ‘O verme’ em Mc 9,48).” Apesar de que algumas traduções simplesmente traduzem Gehenna e Hades no Novo Testamento como inferno, ambas devem ser distinguidas. No entanto, há uma fluidez nessas terminologias e a distinção entre elas não é sempre desenhada claramente. A título de exemplo, o local de fogo, o Gehenna, aparece como um compartimento do Hades na parábola do rico e de Lázaro5 (Lc 16,19-31) (ROWELL, 1990, p. 319).
O desenvolvimento do vale de Hinom como uma designação metafórica no NT do estado (final) de tormento para os perversos pode ser traçado apenas na literatura extracanônica. Primeiro Enoque relata uma visão da “Montanha Santa” rodeada por vales e se concentra no “vale amaldiçoado”, um lugar de julgamento em que nos “últimos dias” o tormento dos maus seria um espetáculo diante dos justos para sempre (capítulos 26-27; cf. Is 66,24). A literatura judaica posterior relê no AT uma ideia desenvolvida de Gehenna. O Talmud lista Gehenna entre as sete coisas criadas antes do mundo (Pesh 54a). Embora um certo desenvolvimento da ideia de Gehenna é discernível em fontes extracanônicas, aspectos centrais da idéia são ideias antigas do AT. A profundeza nebulosa (SHEOL, Dt 32,22; Am 9,2), o fogo do julgamento (Gn 19,24; Ex 9,24), e a destruição/assassínio como punição pela perversidade (especialmente apostasia: Nm 25,5; Dt 13,10) são encontrados no AT. Essas ideias de profundeza, fogo e destruição (profana) são todas localizadas e concretizadas no maldito vale de Hinom (ROWELL, 1990, p. 319, tradução nossa).
Todavia, é essencial notar que os castigos presentes no AT, assim como no Gehenna, são punições em vida. Não há nenhum traço da noção de um inferno geográfico do pós-vida aqui. No máximo, podemos falar de raízes que serão muito bem desenvolvidas posteriormente.
Já a irônica narrativa parabólica de Lc 16,19-31, assim como todo o capítulo e toda a narrativa do caminho (9,51-19,27), contém o elemento da inversão, como também do protesto contra a injustiça dos ricos e o chamado ao arrependimento. Ela é dirigida por Jesus aos fariseus amigos do dinheiro, que são ironizados e representados com o rico, e apresenta uma realidade ficcional. O seu enredo é “a inversão das situações expostas da vida e representadas no pós-morte” sendo demostrada com “a felicidade eterna do pobre Lázaro e a infelicidade eterna do rico”, que não cumpriu o seu papel para com o pobre, sendo injusto diante da lei e dos profetas (CAMPOS, 2014, p. 13-65). Portanto, essa parábola não busca prover um mapa do inferno, mas uma assertiva mensagem. No entanto, nela estão elementos do imaginário do ambiente cultural em que Lucas se encontra: a esperança apocalíptica, o sheol e o Gehenna judaico, como também o Hades grego. Conforme Rafael Campos (2014, p. 117), para que a cena fosse aceitável em seu ambiente, o narrador lucano usufruí dos modelos enraizados em sua cultura para criar o seu Hades.
Ainda sobre Jesus e o Hades, há outra compreensão que precisa ser esclarecida. Conforme destaca Gerhard Barth, no seu livro em que analisou as diversas compreensões a respeito da morte de Jesus no Novo Testamento, “é dito ou pressuposto que Jesus esteve no Hades entre a sexta-feira da paixão e a Páscoa (Mt 12,40; At 2,24.27; Rm 10,7; 1 Pe 3,19; 4,6)” (BARTH, 1997, p. 101). Em alguns casos tal concepção significa que Jesus venceu o poder da morte com a sua, como em Mt 27,51b-53; Hb 2,14; Ap 1,18. Em outras já há uma conotação mais modificada para o lado gnóstico, como em Hb 6,19s.; 9,24; 10,19s. A questão é que essa ideia – esse(s) mito(s) –, agora retomado pelos cristãos, era bem comum no mundo circundante da época. Na virada do milênio, em diversas formas e tonalidades, seja no Ocidente ou no Oriente, a luta no inferno estava bem enraizada no imaginário das pessoas. Não é possível identificar de forma exata em qual lugar tal ideia surgiu. Porém, certamente tal ideia foi avançando no Ocidente a partir do babilônios, que a já conheciam e que a receberam dos sumérios. Além disso, também era conhecida no Egito e na Grécia. No pensamento grego, lutando contra a morte, contra os poderes do Hades e penetrando neste, o herói mostra e prova a sua coragem e força extraordinárias (BARTH, 1997, p. 101-102).
Curiosamente Israel falta nesta frente. Israel não assumiu o mito do Deus que desce até o Hades e novamente sobe dele. Mas ele conhecia o Hades, a Sheol, e falou em fórmulas antitéticas que Deus faz descer ao Hades e novamente tira de lá (1 Sm 2,6; Tob 13,2; Sab 16,13). Mais tarde, no período israelita tardio, é possível observar melhor a influência do mito do descenso, pois então a morte é entendida como um poder inimigo de Deus e a superação da morte e de seu reino está entre as mais importantes obras salvíficas do tempo final (Is 25,8; 4 Ed 7,31; 8,52ss.; BarSir 21,22ss.; TestLev 4,1). Com isso estava criada a base para a recepção do motivo do descenso no Novo Testamento. Portanto, trata-se de concepções conhecidas em toda parte e familiares às pessoas daquele tempo. Elas foram retomadas para expressar o que a morte de Jesus significa: ela significa o fim do senhorio da morte, traz a dádiva da vida. E Mt 27,51ss. mostra que esta interpretação da morte de Jesus também podia acarretar dificuldades e, por sua vez, precisou ser corrigida. [...] Portanto, essa concepção não deve ser vista como o conteúdo propriamente dito, como o principal; ela é, antes, apenas um recurso para expressar o significado da morte de Deus, um recurso que tem seus limites (BARTH, 1997, p. 102-103).
Dessa forma, os cristãos, buscando entender a morte de Jesus, retomam um mito bem difundido, moldando e dando o seu significado a este: que Jesus tem poder e venceu a morte. Sobre as considerações de Barth, destacamos que o Hades e o Sheol são distintos, cada qual a versão de um povo a respeito da morte. Já discorremos brevemente a respeito destes. Além disso, podemos ver um desenvolvimento na força de Yhwh sobre a morte, como também já tratamos anteriormente. Em um primeiro momento ele não possui poder sobre a morte, o que vai mudando com o passar do tempo e, em Jesus, a sua vitória é mostrada de forma exponencial. Mas, novamente, não há uma noção de inferno como nas outras culturas. Apenas utilizações do imaginário popular a sua maneira, com imagens precursoras do que viria surgir posteriormente.
Finalmente, é na literatura apocalíptica cristã apócrifa que acha-se o imaginário do inferno da cultura cristã, sobretudo na viagem ao inferno que se encontra nos Atos de Felipe, como também no Apocalipse de Pedro e no de Paulo. Conforme notaremos no decorrer da exposição desses e assim como afirma Carlos Mattos (2016, p. 103), “as narrativas de viagens ao Inferno e especificamente os castigos possuem precedentes em fontes gregas e na literatura apocalíptica.” Todavia, antes de entrarmos em contato com esses textos, é necessário compreender alguns pontos a respeito da literatura apocalíptica.
A imaginação apocalíptica é protagonista no judaísmo contemporâneo aos primórdios do cristianismo e, igualmente, no próprio. O gênero apocalipse, que é uma classificação moderna, é composto por corpus de textos de caráter revelatório, com um ser revelador que desvela uma outra realidade, podendo ser tanto temporal quanto espacial. Nessas estruturas podem ser encontradas “visões e jornadas sobrenaturais, suplementadas por diálogos e ocasionalmente por um livro celestial. Um elemento constante é a presença de um anjo que interpreta a visão ou serve de guia na jornada sobrenatural”, o que demonstra a necessidade de auxílio sobrenatural para a compreensão da revelação. Nos judaicos, o receptor humano é sempre uma figura importante dos tempos longínquos. Além da tradição bíblica, há elementos de folclores babilônicos e de ideias persas e helenísticas nessa literatura (MATTOS, 2017, p. 10-13).
Mattos realiza um panorama a respeito dos três textos em questão. Nos Atos de Felipe, narra-se que o apóstolo, ao partir da Galileia, encontra-se com uma viúva em prantos pela perda de seu filho. Ao perguntá- -la sobre o motivo da sua situação, ela o responde que estaria sendo castigada por deuses para quais ela havia feito e cumprido votos em favor do seu filho, citando os deuses do panteão greco-romano em que ela confiara e que permitiram a morte de seu filho. No fim da conversa ela afirma que viverá, para se manter pura para Deus, em castidade e em abstenção de carne. Posteriormente, o apóstolo se vira ao jovem e ordena que esse volte a viver. Então, o jovem narra o que havia visto durante a sua morte, “contando sobre a visão do Inferno, uma jornada guiada por anjos (ora, Miguel, ora outro sem identidade clara, que foram lhe explicando as penas dos condenados, os castigos e esclarecendo o que ele via).” As cenas desses castigos são bem grotescas. A título de exemplo, em um dos castigos está Cérbero, o cachorro de três cabeças, devorando as entranhas de uma mulher e de um homem que estão presos entre as suas patas. Segundo a visão desse jovem, essa punição é o destino dos que “blasfemam contra as lideranças religiosas” (MATTOS, 2016, p. 100-101).
Dentro do corpus literário do Cristianismo Primitivo, o texto mais antigo em que se é descrito o Inferno é o Apocalipse de Pedro. As punições e os sofrimentos dos condenados são descritos nele. Há duas versões da obra, uma grega e uma etíope e, assim como “é difícil datar e localizar cultural e geograficamente a maioria dos textos de viagens ao Inferno”, não existe uma datação certeira e específica dela. Esse apocalipse é a revelação realizada por Jesus a Pedro e também aos outros discípulos, no Monte das Oliveiras (Mt 24). Assentados ali, os seus discípulos o indagam a respeito dos sinais do final dos tempos. Ele os adverte a respeito dos falsos Messias que surgiriam e que levaria muitos ao martírio (MATTOS, 2016, p. 101). Então Jesus
mostra a Pedro, na palma de sua mão direita, a imagem do que se cumprirá no último dia: o Inferno se abrirá e ocorrerá uma ressurreição generalizada. A terra será consumida pelo fogo e coberta de trevas. Ele virá numa nuvem e a punição eterna começará. Em seguida vem a descrição das punições: alguns pecadores são pendurados por membros específicos de seus corpos, como línguas, pés etc.; outros são imersos em abismos e torturados por bestas; e alguns recebem chamas de fogo. Pedro tem um vislumbre do futuro dos santos que irão testemunhar o castigo dos pecadores e são transpor tados para Acherúsia (Acherúsia é um lago da mitologia grega de ligação com o mundo inferior), identificado como os Campos Eliseos. A cena final do Apocalipse de Pedro é a de Jesus com seus discípulos no monte santo quando eles veem Moisés e Elias com Jesus. Temse aqui, uma versão da transfiguração dos evangelhos (MATTOS, 2016, p. 101-102).
Na literatura apócrifa de Paulo, há dois apocalipses, inspirados no seu arrebatamento ao céu (2 Co 12,2). O primeiro é uma obra gnóstica, que se encontra no Nag Hammadi e se originou, provavelmente, no século II. O segundo, que se tornou o apocalipse cristão extracanônico mais popular, é o Apocalipse de Paulo. Foi composto em grego, do qual só resta uma versão mais antiga, porém há outras mais primitivas em outras línguas antigas, como no latim, armênio e siríaco. Uma série de redações, abreviações, adaptações e ampliações latinas foram feitas no começo da Idade Média, sendo uma delas fonte da Divina comédia. Por haver várias traduções na maior parte das línguas europeias da época medieval, sabemos que a obra teve, em continuidade, uma imensa popularidade no período. “É difícil superestimar a influência exercida pelo Apocalipse de Paulo na imagem da vida após a morte, em especial do inferno, na imaginação e na arte” (BAUCKHAM, 2008, p. 807-808). Mattos (2016, p. 102) afirma que esse apocalipse, também denominado Visio Pauli, é o mais influente entre as viagens ao Inferno. Sobre sua datação, afirma que se é aceito que o texto se originou no começo do século III. Diferente de Bauckham, Mattos afirma que a sua tradução ao grego ocorreu entre o findar do século IV e o início do VI, a partir da qual se originaram redações latinas no período medieval. A sua influência foi tão ampla que “muitos textos de viagens ao Inferno se devem ao Apocalipse de Paulo ou usaram-no como referência” (MATTOS, 2016, p. 102).
Theodore Silverstein (2010, p. 110) ratifica a data do original de Mattos, ao certificar que “foi escrito originalmente no Egito, antes da metade do terceiro século, e, depois, em uma segunda edição, que continha um novo prefácio que lhe situava a gênese em Tarso, a obra circulou no império romano oriental durante o terceiro ou quarto decênio do quinto século”. Entretanto, o medievalista defende que esse original do Egito, do século III, fora escrito em grego.
Há uma introdução na versão primitiva mais conservada, um extenso texto latino, em que se relata a descoberta da obra em 388, em uma casa de Tarso. Embora essa introdução aparentemente a data ao fim do século IV, existem motivos para crer que essa introdução é apenas um acréscimo a uma forma bem mais primitiva. Certamente, a obra foi bem influenciada por fontes e tradições apocalípticas mais tardias, algumas de procedência judaica. Além disso, há uma proximidade com o Apocalipse de Pedro, dos primórdios do século II. Pode ser que haja uma fonte comum entre ambos. De qualquer jeito, “o Apocalipse de Pedro era o relato mais popular do destino dos justos e dos ímpios após a morte, até que o Apocalipse de Paulo o suplantou.” (BAUCKHAM, 2008, p. 808).
O texto é ligado a menção de Paulo a respeito da sua ida ao terceiro céu (2 Co 12, 2-4), no qual presenciou mistérios impronunciáveis. Após a introdução, a natureza reclama diante de Deus a respeito da maldade do ser humano e os anjos relatam sobre os problemas dos justos. Ao ser levado ao terceiro céu, o apóstolo “vê a saída das almas dos justos e dos pecadores dos seus corpos na hora da morte: as dos justos são recebidas com alegria por um coral de bons anjos, já as dos malvados caem nas mãos dos anjos maus.” Então Paulo, nesse mesmo céu, visita o paraíso e se encontra com Enoque e Elias. Parece que a seguir, deixando o céu, o apóstolo e seu guia angelical vão visitar a terra da promessa, a morada dos justos no milênio, “um lugar descrito como belo e fértil”. Logo, ele vê o Lago Acherúsia e navega, por meio de um barco de ouro, à Cidade de Cristo, que encontra as suas margens. Então, “Paulo viaja pelos quatro rios da cidade do Cristo e encontra os justos que foram resgatados ao longo deles, incluindo heróis da Bíblia Hebraica. Essa viagem é seguida pela descrição da cidade do Messias e o altar no meio, onde Davi está cantando” (MATTOS, 2016, p. 102).
Paulo é então guiado ao lugar de tormentos. O inferno [...] é descrito com mais detalhes do que [no] Apocalipse de Pedro: há mais grupos de pecadores, além de poços contendo rios de fogo, tem mais calor, feras e anjos de tormentos e em maior número do que o Apocalipse de Pedro. Enforcamento ou pecadores pendurados são menos proeminentes do que no Apocalipse de Pedro, apesar de não totalmente ausentes. Ao fim da jornada, Paulo chora e suspira que melhor seria para aqueles pecadores que nunca tivessem nascido. Paulo e o arcanjo Miguel ajudam os pecadores implorando a Deus por misericórdia. Finalmente Cristo aparece e repreende os pecadores, mas lhes oferece uma trégua [...] por um domingo. Paulo retorna ao paraíso, onde é recebido pelos justos, incluindo a Virgem Maria, os patriarcas, Moisés, os profetas, João Batista e Adão. A versão copta descreve ainda outra visita ao paraíso e finalmente transporta Paulo ao Monte das Oliveiras com os discípulos, como Pedro no Apocalipse de Pedro. Há menções de hábitos e também de monges e freiras (MATTOS, 2016, p. 102-103).
No quadro a seguir, podemos vislumbrar os castigos e notar quais são os pecadores e os seus pecados descritos no Apocalipse de Paulo.
Como podemos perceber, todos os três possuem imagens grotescas e terríveis. Porém, certamente, entre os três é o Apocalipse de Paulo que se torna a obra que mais influenciou o imaginário popular cristão ao longo dos séculos. Provavelmente, devido a sua conotação eclesial e o interesse do poder eclesiástico de manter o terror, o poder, o controle e a supremacia sobre o povo. Se Bauckham está correto em dizer que uma de suas versões serviu como fonte da Divina Comédia, isso amplia ainda mais a influência desse Apocalipse. Podemos afirmar aqui que, essas duas obras, são as mais influentes na imagem que os cristãos possuem do Inferno.6 Por causa disso, no nosso terceiro e último tópico, após introduzirmos a obra de Dante, descrevermos a relação entre castigo e pecadores entre ambos os textos, buscando ver a interimagética entre eles.
Carmelo Distante, no prefácio da tradução da Editora 34, afirma que o poema de Dante Alighieri foi denominado por ele de apenas Comédia, sendo que o título Divina é um acréscimo de seus editores a partir do século XVI. Segundo Distante, Dante é um homem síntese da época e da cultural medieval, na qual a cultura clássica e a cristã medieval se conectam. Em sua ecléticidade, Dante usufrui de todas as correntes de pensamento que o precederam e que se encontravam vivas em sua contemporaneidade. Dante se vê dentre os grandes poetas, juntamente com Homero, Ovídio, Lucano e Virgílio, o seu guia. O poeta também coloca no Limbo várias figuras da idade clássica e do mundo árabe, aqueles que não eram cristãos mais que foram importantes para a cultura medieval (ALIGHIERI, 2019, p. 7-8). Além disso, utiliza várias figuras da mitologia grega, como Minos e o Cérbero, assim como imagens bíblicas, como a estátua semelhante à de Daniel e as feras (os animais).
Na realidade, a poesia épica de Dante possui traços da literatura apocalíptica, como se fosse uma poesia apocalíptica. Como um guia importante, uma figura do passado, para revelar coisas ocultas durante uma viagem em um espaço além do qual os seres humanos habitam com imagens simbólicas, e a descrição do que está sendo visto pelo guia durante a viagem.
A Comédia é o relado da viagem que Dante empreende para visitar os três reinos do outro mundo: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. [...] Tudo na Comédia é subdivido e organizado com lógica consequência: os pecadores e a respectiva punição eterna e terrificante são progressivamente representados e descritos no “Inferno” [, sendo que cada qual é regulada] pela rigorosa Lei de Talião, quer dizer, correspondência entre a pena a que as almas danadas são submetidas eternamente no “Inferno” e o pecado cometido durante a vida terrena [...]. A razão da viagem está no fato de ele, com a Comédia, propor uma redenção moral da humanidade, que via submetida ao apego aos bens terrenos e às paixões mundanas e, portanto, destinada à perdição eterna (ALIGHIERI, 2019, p. 12-13).
Da mesma maneira que o Apocalipse de Paulo separa uma parte significante para denunciar os malfeitos daqueles que faziam parte da igreja, Dante se sente livre para colocar figuras importantes e até mesmo Papas no inferno, assim como figuras políticas e outras, acusando-os de seus pecados. No quadro que se segue, podemos ver os pecadores e os contrapassos, assim como a localização deles dentro dos círculos do Inferno.
Nesses círculos decrescentes do inferno de Dante, quanto mais baixo, pior é o pecado. Conforme destaca Helder da Rocha, há uma lógica por de trás das classes de pecados, sendo do 2º círculo ao 5º os de incontinência e do 7º ao 9º os de malícia, sendo o 7 por meio da violência e os 8 e 9 através da fraude (ALIGHIERI, 1999, p. 34, n. 11.5). Da Rocha afirma que
a alma incontinente tem culpa, mas a culpa é menos grave que o dolo, a vontade de pecar. Esta vontade, quando surge de ocasião, como manifestação da natureza animal é ainda menos grave que aquele pecado que é cometido de forma arquitetada, premeditada, usando a inteligência própria do ser humano a serviço do mal. Ainda assim, é menos grave um indivíduo arquitetar e executar um crime contra um desconhecido, que pode se defender de um estranho que o ameaça, que ele fazer o mesmo com alguém que confia nele, e por isto está indefeso e desarmado. A traição, portanto, recebe a justa punição máxima, nas profundezas mais profundas do inferno (ALIGHIERI, 1999, p. 34, n. 11.5).
A “interimagética” entre o Apocalipse de Paulo e da Divina Comédia pode ser vista ao longo de todo os textos. Contudo, especificamente nos castigos, podemos destacar a mutilação por anjos malignos no Visio Pauli e a realizada por diabos no Malebolge da Divina Comédia. A submersão no rio de fogo no Visio Pauli e os que estão submersos no Rio Flegetonte, um rio de sangue fervente. Para os piores pecadores, a imagem que temos de seus castigos são o frio extremo e a neve no oeste do fosso do Inferno, no Visio Pauli. Já na Divina Comédia, estão no congelado Lago Cócito, que é formado pelos rios do inferno e pelas lágrimas de Lúcifer.
Conforme Silverstein (1932, p. 397, 399; p. 399, n. 5), a familiaridade de Dante em relação ao Visio Pauli é amplamente assumida por acadêmicos desde Antoine Frédéric Ozanam. Apesar de Francesco D’Ovidio discordar que tal referência aponte para o conhecimento de Dante da obra, a base principal dessa teoria é a passagem em que Dante aponta Paulo como predecessor em relação à sua viagem (II, 28-33). Contudo, Silverstein afirma não conhecer nenhum autor que tenha apresentado qualquer detalhe comum entre ambos que não possa ser encontrado em outras literaturas. Para ele, uma clara evidência do uso de Dante do Visio Pauli apenas pode ser encontrada, caso não seja uma coincidência, na extrema similaridade da passagem em que Paulo e Miguel chegam ao poço do apocalipse com a que Dante e Virgílio aproximam-se do abismo fétido, caminho ao sétimo círculo.
“Dante pode ter encontrado uma marcante sugestão para essas linhas no Visio Pauli, cujas versões medievais tardias – tanto em latim quanto nos vernáculos – eram amplamente atuais em sua época” (SILVERSTEIN, 1932, p. 397). Em ambos os casos, os guias e os guiados estão próximos de uma abertura extremamente fétida, caminho para verem os maiores tormentos. Segue-se as ambas as passagens em que as semelhanças gerais aparecem, com suas respectivas traduções, bem como destacado – em negrito – dois detalhes em que, segundo o medievalista, uma lembra a outra em uma maneira mais particular:
Como podemos perceber, o primeiro detalhe é a referência às maiores penas no primeiro e ao mais duro/cruel no segundo. O segundo é em relação ao afastamento do fedor e a busca por uma maneira de suportar o mesmo. Silverstein (1932, p. 397) ainda sublinha a afinidade de ambos as passagens quanto aos incrédulos, uma vez que o poço do Visio Pauli é o lugar em que esses são torturados e, na Divina Comédia, é diante do “exemplo mais chocante de incredulidade, um papa herético”, que Dante para.
Encontramos, aqui, além de nos castigos outrora destacados, a impressionante e encantadora interimagética entre esses dois infernos7 , que trazem “imagens” não apenas visuais, mas também olfativas.
Certamente, há acadêmicos que discordam que haja alguma influência do apocalipse paulino ao poema dantesco, que Dante tenha usado ou sido influenciado pelo Visio Pauli.8 Porém, seja por grande consciência ou por alguma influência, não dá para negar a semelhança e reminiscência das imagens de um no outro, da interimagética. De qualquer maneira, é bastante significativa, e é o que nos importa aqui, a recorrência dessas imagens e mesmo o desenvolvimento e modificações que elas obtiveram ao longo do tempo na literatura. A imagética cristã acerca do inferno, encontrada ainda hoje, foi se desenvolvendo, expandindo e até obtendo mutações ao longo do tempo, estando bem distante de suas origens e raízes, dos “infernos” que encontramos nos Evangelhos e do sheol judaico.
Com este artigo deixamos uma breve síntese do surgimento e das evoluções mitológicas do inferno judaico-cristão na literatura, tanto canônica quanto extracanônica ao cristianismo. Na nossa breve Genealogia do Inferno pudemos perceber como o imaginário cristão a respeito do mesmo foi se desenvolvimento ao longo do tempo, desde o sheol, o não- -futuro israelita, até os macabros infernos do Apocalipse de Paulo (Visio Pauli) e da Divina Comédia de Dante. Também fomos capazes de perceber que a imagética desse lugar teve um desenvolvimento tanto interno quanto externo, mas foi principalmente externamente que, no intercâmbio cultural com outros povos e culturas, como a persa e a grega, que a imagética do inferno fora construída, atingindo seu desenvolvimento final, o seu nascimento, na literatura apocalíptica. Na poesia “apocalíptica” de Dante, temos uma imagem bem mais elaborada, que possui uma interimagética com o Apocalipse de Paulo.
Talvez por suas fortes imagens e pelo medo humano, pela realidade infernal que enfrentamos pela vida, e pelo grande interesse eclesiástico de deter controle e poder sobre os povos, o tema do inferno alcançou uma popularidade maior do que o paraíso. É nítido na abrangência alcançada pelo Apocalipse o interesse e a força eclesial na popularização deste lugar mítico como forma de controle. De maneira interessante, o fogo aparece repetidamente nas descrições do inferno. Pode ser que pelo fascínio que o ser humano tem pelo mesmo, ou pelo seu poder para ferir, “purificar” e, desde os primórdios da civilização humana, gerar calor e energia.
Enfim, certamente há inúmeros outros textos, outras construções a respeito do inferno que não pudemos esquadrinhar no nosso breve trabalho. Aliás, a imagética do lugar infernal continuou e ainda continua a ser devolvida na literatura, na oralidade e até mesmo na cinematografia – e, talvez seja esse último o meio mais influente da imagética atual sobre o inferno. Logo, o(s) inferno(s) e suas imagéticas são um campo fecundo para novas pesquisas. Um dos caminhos propícios para uma pesquisa mais extensa é o maior aprofundamento sobre a existência ou não de uma relatividade entre o Apocalipse de Paulo e o Inferno de Dante. Um outro caminho interessante é investigar as motivações, sejam psicológicas, sociais e/ou religiosas, da crença – e a força dessa – no inferno.
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—
[1] “A primeira versão desse artigo foi apresentada como Trabalho de Conclusão de uma PósGraduação em Profetismo e Apocalíptica pela Universidade Metodista de São Paulo, no ano de 2020”.
[2] O sentimento de curiosidade e escrúpulo de Nietzsche, bem como a sua intenção de realizar uma crítica e valoração dos valores morais, está presente no prólogo da sua Genealogia da Moral, especialmente nos parágrafos 2, 3 e 6 (NIETZSCHE, 2009, p. 7-14).
[3] É essencial destacar que não temos a pretensão de desenvolvermos a genealogia do inferno, o que não caberia apenas em um artigo, mas uma genealogia deste. Isto é, temos como objetivo uma síntese de como a ideia deste lugar surgiu e começou a desenvolver-se. Além disso, a compreensão e teologia dos pais da igreja a respeito do assunto também não se encontram dentro da nossa delimitação.
[4] Já no iluminismo o filósofo francês Voltaire afirmou que ideias fundamentais ao cristianismo, como um deus, um diabo, uma ressureição, um paraíso e um inferno, originaram- -se com os Parsis, com o Zoroastrismo. Ainda em 1961 o professor de religiões orientais de Oxford, Robert Zaehner, afirmou que as similaridades entre as ideias do zoroatrismo e a da tradição judaico-cristã são enormes e que, o contexto histórico de ambas foi tão perfeitamente apropriado para que tivesse ocorrido essa influência que até o ceticismo deveria ir longe demais para recusar-se à óbvias conclusões. Assim, os “conceitos cristãos de recompensa e castigo, céu e inferno, são dependentes das ideais zoroastrianas” (STAUSBERG, 2009, p. 217-218).
[5] Na parábola também é expressa, simbólica e dramaturgamente, com a expressão “seio de Abraão”, uma compreensão judaica sobre a morte. Essa é uma “expressão judaica que corresponde à antiga locução bíblica “reunir-se a seus pais”, isto é, aos patriarcas (Jz 2,10; cf. Gn 15,15; 47,30; Dt 31,16). A imagem exprime intimidade (Jo 1,18) e proximidade com Abraão no banquete messiânico (cf. 13,23; Mt 8,11+)” (BÍBLIA de Jerusalém, 2019, p. 1818, n. g).
[6] Não estamos sozinhos nesta afirmação. Discorrendo sobre difusão do Visio Pauli em diversas línguas, Silverstein afirma que, “seria de se esperar que um livro de tão ampla difusão tenha exercido uma influência significativa sobre a concepção escatológica; e, de fato, não há outra obra, que tenha contribuído para formar tais concepções, na cultura cristã europeia e meridional, quanto o Apocalipse de São João, pelo menos até o século XV. A partir deste momento, é a influência da Divina Comédia que toma pé substituindo- -a, e se pode dizer que, pelo menos no ocidente, o Apocalipse de São Paulo já estivesse extinto no século XVI. Mas não completamente. A esperança de fazê-lo ressuscitar projetou-se no século XVIII [...]” (SILVERSTEIN, 2010, p. 101-102).
[7] Há interimagéticas para além da região do inferno nas duas obras. Contudo, analisá- -las ultrapassa a nossa delimitação. À título de exemplo, citamos dois exemplos dados por Silverstein (2010, p. 105): “a versão latina longa preserva dois que estão presentes somente no Apocalipse e que tem alguma relação com a Divina Comédia, como procurei demonstrar noutro lugar: o primeiro descreve como as almas abençoadas, sobre um barco dourado empurrado por anjos que cantam hinos, passam através do purificante lago Acheruso para chegar à cidade de Cristo: o todo é muito similar à passagem das almas ao Purgatório narrado em Dante. O segundo episódio descreve um grupo de tronos vazios colocados próximos ao centro da cidade de Cristo; sobre cada um deles há uma coroa. Estes são os tronos e as coroas daqueles que se demonstraram pobres de espírito por amor ao Senhor: esses não conheciam nem as sagradas escrituras nem muitos salmos, mas, recordando somente um dos preceitos do Senhor, o seguiram diligentemente e tiveram boa intenção em relação ao Senhor. Tudo isto é similar ao episódio dos tronos vazios e as respectivas coroas no Paradiso de Dante, e, entre aqueles tronos, está o reservado ao imperador Arrigo”.
[8] Por exemplo, Giorgio Petrocchi defende que qualquer influência significativa entre as obras é improvável. Para V. Stanley Benfell, o argumento de Petrocchi é persuasivo. Esse se encontra no livro Dante e la Bibbia, editado por Giovanni Barblan, no capítulo San Paolo in Dante, p. 235-248 (BENFELL, 2011, p. 221, n. 4). Infelizmente, não tivemos acesso ao mesmo e, assim, nada podemos deliberar sobre o argumento de Petrocchi.