Paulo Abe
Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: pauloaltro@hotmail.com
Resumo: O artigo procura analisar a exposição de Abraão pelo pseudônimo de Kierkegaard, Johannes de Silentio, em Temor e Tremor. Neste percurso, procuraremos expor as características do indivíduo no estágio religioso em seu movimento em direção à fé e sua relação com o mundo, o ético. De modo que fique claro o que o pseudônimo quer mostrar inicialmente ao leitor, adentrando, ao fim, numa análise mais profunda de qual conclusão ou que consciência ele quer trazer ao leitor.
Palavras-chave: Abraão; ódio; fé; amor
Abstract: On this paper, we seek to analyze Kierkegaard’s exposition of Abraham as the pseudonym, Johannes de Silentio, in Fear and Trembling. We will show the characteristics of the individual on the religious stage in its movement towards faith and in relation to the world, the ethical. So that it’s clear that the pseudonym is looking to showing one idea at the beginning to the reader in order to change that view at end with a deeper analysis raising the reader’s consciousness.
Keywords: Abraham; hatred; faith; love
Kierkegaard foi um filósofo dinamarquês do século XIX, que escreveu dezenas de livros entre 1840 e 1850. Seus textos discutiam diversos assuntos, filosofia, psicologia, crítica social e religião. Dentre estes, está o que talvez seja o seu livro mais famoso, Temor e Tremor, no qual critica hegelianos, pastores e sua época. Nele, o pseudônimo de Kierkegaard, Johannes de Silentio, procura mostrar perspectivas de interpretações para a história de Abraão e Isaque, conhecida como aqedah.
No entanto, neste processo, para além de analisar seu objeto, Johannes de Silentio se expõe também enquanto pseudônimo ou ponto de vista. O problema deste método é que o autor, apesar de acreditar no que diz, confessa não o praticar. Ou melhor, não conseguir praticá-lo. Neste âmbito, nosso objetivo é expor e analisar o que Johannes de Silentio escreve sobre o episódio de Abraão, mas nos focando sobre sua relação com o que escreve. Isto é, sua admiração em relação ao objeto; seu poetizar de seu herói, Abraão. Neste trajeto, procuraremos colocar sua exposição do “dever” (ter fé) em colisão com o seu amor pelo herói da fé, à contraluz do tema do amor e ódio[1] de Lucas 14:26 que atravessa este livro e Obras do amor – obra que foi assinada com o próprio nome de Kierkegaard.
Assim, a fim de analisar esta questão, nos debruçamos sobre esses temas na seguinte ordem: 1) as caraterísticas de Abraão; 2) a resignação infinita e a fé; 3) Singular x Universal; 4) Dever e ódio em Lucas 14:26; 5) o problema da admiração poética.
Johannes de Silentio em Temor e Tremor procura mostrar a dupla perspectiva da esfera ética e religiosa do teste espiritual de Abraão dado por Deus. Para o religioso, Abraão foi sacrificar Isaque; para o ético, ele foi assassiná-lo. Isso, pois, se Abraão não tem um dever para com Deus, então para com o filho o tem. Enquanto sua relação puder ser compreendida e julgada, ainda estará no campo ético, ou seja, no universal.
De uma mesma maneira, o assassinato é algo que qualquer um poderia cometer, dado que esse ato é compreendido por todos, seja por qualquer paixão sem relação com Deus. A imitação do ato, como visto também em Ou-Ou Parte II, tira sua importância. Por outro lado, o sacrifício, que contrapõe o assassinato, não deve ser algo fácil de ser feito, pelo contrário, deve ser algo difícil, estressante e angustiante. Dessa forma, só a singularidade – e de alguma forma a “impossibilidade” – desse ato que mostraria sua “grandiosidade”.
No ético, Abraão tem um dever com a vida de seu filho e com a sociedade na qual está inserido, de modo que assassiná-lo seria, ainda que reproduzível, condenável. Isso ocorre, pois, nesse contexto, Abraão ainda estaria no universal, âmbito em que a morte de Isaac se relacionaria com a sociedade. Todavia, ele opera um sacrifício e, para tanto, é preciso se relacionar com Deus por virtude do absurdo tanto da missão que lhe foi dada: sacrificar o único filho e ainda ter tantos descendentes quanto as estrelas; quanto de que, apesar de sua missão ser a morte de seu filho, Deus não lhe exigisse seu filho no fim. Pelos três dias até o monte Moriá andou só, ainda que acompanhado de Isaac, por três razões: 1) estava em relação com Deus e, nessas condições, se está sempre em solitude; 2) sua situação era incompreensível a qualquer um, pois não estava mais na esfera do universal e do cívico. O próprio movimento que operava excluía o cálculo e a reflexão humana; 3) estava em silêncio e em segredo: ninguém sabia de sua missão, tendo dito a seu filho, absurdamente e apenas, que Deus proveria um carneiro para o sacrifício.
Abraão não pode ser compreendido fora do universal, por isso sua solitude é grande. Não se encontra com outros com a mesma missão, pois eles próprios, assim como ele, não podem ser reconhecidos na multidão. Tal é sua alienação do mundo em seu interior. O mesmo já não ocorre com o ético, pois está mergulhado na sociedade, que é o universal, e não compreende por que Abraão faz o que faz, podendo apenas considerá-lo louco e homicida. Dessa forma, se mantém na dor como porto seguro ao não desejar instruir, inutilmente, outros de sua verdade. Além do mais, a loucura mostra não apenas sua incapacidade de comunicar, mas que o movimento que opera está fora do reino da razão e da reflexão; isto é, se encontra na ignorância. Não em vão Johannes enfatiza seu papel para o último passo em direção à relação com Deus (KIERKEGAARD, 1983, pp. 32 e 69, tradução nossa), já que com a reflexão vem a dúvida e nesse estádio é preciso, antes tudo, de uma certeza passional.
Outra questão que se apresenta em sua incompreensão é o silêncio de Abraão. Este é o tema da Problemata III, de Temor e Tremor, a saber, se foi eticamente defensável ocultar a verdade de seus familiares, Sara e Isaque, assim como de Eliezer. Para de Silentio, como vimos até agora, o ético está para o universal, de maneira que tudo o que estiver oculto e ainda estiver sob as categorias do ético terá de se revelar. O segredo e o silêncio no estádio ético têm de encontrar seu repouso no ouvido social. Tal é a tarefa ética: “Toda vez que ele deseja permanecer oculto, ele ultrapassa e está imerso num teste espiritual, do qual ele pode emergir apenas ao revelar a si mesmo” (KIERKEGAARD, 1983, p. 82, tradução nossa). De alguma forma, seu revelar ao mundo o que estava antes oculto é sua forma de respirar. Apesar de ter já uma vida interior incipiente, o segredo é demais para si, pois também se encontra diante de algo que nunca encontrou antes: o teste espiritual (Anfægtelse), que é “o esforço e a angústia envolvidos em se aventurar além das capacidades esperadas de alguém” (KIERKEGAARD, 1983, p. 343, tradução nossa). Poder-se-ia dizer que a pessoa ética renega a segurança da dor em seu interior – que conforta de alguma maneira Abraão – já que precisamente essa dor seria a comprovação constante de sua própria interioridade.
O ético falha no teste espiritual e estagna-se no universal, no qual tem uma espécie de segurança. Não está mais em solitude ou silêncio, pelo contrário acha conforto na massa e se esconde no barulho. A tensão-criadora do ocultamento é solta antes do ponto necessário e nenhum movimento é feito. Na tragédia grega, o ocultamento é, segundo Johannes de Silentio: “Um resquício épico baseado num destino o qual a ação dramática desaparece e no qual há uma fonte obscura e misteriosa [...] Portanto, é preciso certa abstração para ser influenciado por ela propriamente” (KIERKEGAARD, 1983, p. 84, tradução nossa). No entanto, não há destino no drama moderno, o indivíduo se encontra emancipado por sua consciência. A revelação do segredo, assim como seu ocultamento, é um ato livre e, dessa forma, uma responsabilidade, não mais obra do destino ou de forças inomináveis.
O indivíduo, como centro de suas ações, precisa refletir sobre essa tensão, ter dúvidas, se estressar, se angustiar para ter um ato livre quanto à sua escolha. O estético premia aqueles que conseguem ocultar algo dos outros, mas se depara com contradições assim que põe isso em prática. Por isso, a ética demanda a revelação e pune o ocultamento. Isso pesa na balança do indivíduo ético, porque sempre procurará expressar o universal, e o silêncio é responsabilidade demais para si. Mesmo que esteja no estádio em que a própria responsabilidade adquira vida, frente a esse teste, encontra outro, de outra categoria: a responsabilidade religiosa ou espiritual. E aqui depara-se com um muro.
No entanto, ainda que chegue à revelação ética para o universal, o segredo e o silêncio são características de um despertar da interioridade do indivíduo. Como Silentio coloca, o ético é puramente humano, mas o religioso alcança o divino, assim como demoníaco:
Quando deixa Psiquê, Eros lhe diz: você terá uma criança que será divina se permanecer em silêncio, mas será humana se trair este segredo. O herói trágico, que é o favorito da ética, é puramente humano; ele eu posso entender, e todas as suas ações estão abertas no mundo. Se eu for além, sempre me encontro com o paradoxo, o divino e o demoníaco, pois o silêncio é ambos. O silêncio é a armadilha do demônio, e quanto mais silencioso é, mais terrível o demônio, mas o silêncio é também o mútuo entendimento da divindade com o indivíduo singular (KIERKEGAARD, 1983, p. 88, tradução nossa).
A ética demanda esse duplo movimento: o interior e o exterior, que é, em suma, um movimento humano. Para tanto, o ser humano precisa falar e assim lhe é exigido. Todavia, para além do ético, no campo do divino e na armadilha do demônio, reina outra comunicação, o silêncio. À primeira vista, o silêncio seria a própria ausência de comunicação e de alguma maneira também o é, mas apenas quanto ao universal. No silêncio, o demoníaco e o divino, tendo a mesma qualidade (KIERKEGAARD, 1983, p. 97, tradução nossa), se expressam, e o indivíduo, em vez de falar, se cala – e ouve – na sua absoluta relação com o absoluto.
No silêncio, reside o estresse e a angústia. Tudo o que atormenta um indivíduo poderia ser expulso de si no universal se pudesse falar, mas precisamente disso é o que Abraão é incapaz. Ou ainda: “Ele pode dizer tudo, mas uma coisa não pode dizer, e se não pode dizer isso – isto é, dizer de tal maneira que possa ser compreendido por alguém – então, ele não está dizendo” (KIERKEGAARD, 1983, p. 113, tradução nossa). Dessa forma, seu silêncio se deve por uma via dupla de incompreensão: 1) ele não pode transmitir de maneira acessível; 2) os outros não o podem acessar. Johannes de Silentio afirma: “Ele não fala uma língua humana. E mesmo se falasse todas as línguas do mundo, […] ainda não poderia falar – ele fala numa língua divina, ele fala em línguas” (KIERKEGAARD, 1983, p. 114, tradução nossa). Dessa forma, silêncio e “falar em línguas” são paradoxalmente o mesmo, pois são a língua divina na relação com Deus, fora do ético.
Assim, frente ao teste espiritual, se fosse falar, Abraão sairia do encontro com o paradoxo – conceito que exploraremos adiante – e o que o indivíduo no estádio religioso procura é mergulhar nele. De uma mesma maneira em que o ético se encontrou numa posição inédita ao escolher, o religioso se vê, como que logo após Babel, falando uma língua completamente nova e incompreensível, a saber, a do segredo, do silêncio e da solitude. Todavia, nesse perder-se do “falar em línguas”, para o universal, é também o silêncio e, em vez de ter a torre derrubada, na calada do espírito se alcança os céus.
Retomando o ato de Abraão no monte Moriá, muitos não chegam a esse ponto do sacrifício, pois ainda estão enraizados demais na ética. E precisamente esse guarda-corpo do estádio ético para o religioso é a resignação (Resignation): “Um movimento (não uma aceitação apática), pressupondo uma concentração da pessoa em uma escolha integrante de um objetivo ou meta abrangentes” (KIERKEGAARD, 1983, p. 344, tradução nossa). Este movimento único é um movimento infinito, isto é, esta resignação é infinita. Assim, Kierkegaard chama os éticos que se movimentam desta forma de cavaleiros da resignação infinita.
Estes cavaleiros são muitos – ou ao menos é possível que sejam –, pois podem ser reproduzidos, assim como no exemplo do assassinato. Estão na categoria ética, no universal. O próprio Abraão poderia ser reproduzível, todavia sua grandiosidade reside em ir além da resignação. Cessar-se-ia toda discussão se apenas operasse o movimento do infinito, mas, ao contrário do cavaleiro da resignação, ele retoma a finitude. Isto, pois o movimento que Abraão opera é o salto da fé.
A resignação infinita é o último estágio antes da fé, então qualquer um que não tenha feito este movimento não tem fé, porque apenas em resignação infinita eu me torno consciente de minha validade eterna, e apenas assim alguém pode falar de alcançar a existência em virtude da fé (KIERKEGAARD, 1983, p. 46, tradução nossa).
Aqui nos é indicado que apenas com consciência, ou ainda, a consciência da validade eterna de si, que se pode alcançar essa última paixão, a fé. Ou seja, para de Silentio, não há fé sem consciência, sem eternidade e sem o movimento infinito da resignação. A resignação infinita é a renúncia da própria finitude, mas não no sentido de descartá-la, pois o universal ainda está no indivíduo, e sim que, como no estádio ético, há uma inversão copernicana dentro do próprio espírito humano. Em outras palavras, os elementos até então tratados continuam a residir no religioso, no homem de fé, todavia sua organização é transformada, invertida. Onde havia apenas contradição e negação do oposto no estádio estético e a consciência do paradoxo da existência não contraditória de uma dualidade de opostos no universal do ético, há, no estádio religioso, um retorno outro para os elementos do indivíduo singular, mas na relação com Deus. Isto é, no inteiramente Outro, mergulha-se para dentro de si, retomada da finitude. Nesse e em outros momentos, observaremos mais esse movimento dialético kierkegaardiano dentro do paradoxo.
Desde Ou-Ou Parte II, sabemos que o amor e a gratidão por Deus já fazem parte da vida do ser ético, pois ele tem alguma consciência sobre si e de sua eternidade. Todavia, em Temor e Tremor, vemos que ele não pode ir além da resignação infinita, que é um movimento filosófico e ético, pois renunciar infinitamente é uma dor e alienação que tirará o ético do seio do universal. Isso, pois a fé só pode nascer no âmago da incompreensão, da solitude, do silêncio, da fraqueza – como veremos adiante – e do absurdo no paradoxo, para além da consciência eterna adquirida na resignação.
Em seu caminho, Abraão precisa se relacionar com Deus por virtude do absurdo não da missão que lhe foi dada, que é a própria resignação, sacrificar Isaque, mas precisamente de que no fim Deus não lhe exigisse seu filho, isto é, o receberia de volta. Esse é o duplo movimento na alma de Abraão: agir de uma maneira, esperando que o resultado fosse além dessa direção. No absurdo do segundo movimento, a saber, o da fé, Abraão não diz uma mentira ao dizer que Deus proveria um carneiro para o sacrifício, pois estava “falando numa língua estranha” (KIERKEGAARD, 1983, p. 119, tradução nossa).
[Abraão] tem feito e a cada momento está fazendo o movimento do infinito. Ele drena a profunda tristeza da vida na resignação infinita, ele conhece a benção do infinito, já sentiu a dor de renunciar tudo, a coisa mais preciosa no mundo, e, ainda assim, o finito tem o gosto tão bom a ele quanto aquele que nunca soube de nada superior [...] Ele renunciou a tudo infinitamente, e então alcançou tudo de novo por virtude do absurdo. Ele está continuamente fazendo o movimento do infinito, mas o faz com tanta precisão e segurança que continuamente ganha a finitude disso [...] (KIERKEGAARD, 1983, pp. 40-41, tradução nossa).
Da mesma maneira que em Ou-Ou Parte II, em que se nasce novamente em vida, aqui se adquire tudo de novo: o mesmo de antes e, ainda assim, outra coisa. Como esclarece Johannes: “Por meio desse duplo-movimento ele atingiu sua primeira condição e assim recebeu Isaque ainda mais alegre do que da primeira vez”(KIERKEGAARD, 1983, p. 36, tradução nossa). Em Abraão, se cumpre tanto o dever divino quanto o desejo do indivíduo singular que, no fundo, é o universal “não mate”, o “ame o próximo”, mas fundado pela fé. Onde a ordem de Deus cessa, se inicia o impossível e, na sua relação, se dá o absurdo. Foi preciso que Deus ordenasse a resignação infinita para que Abraão conseguisse a finitude em virtude do absurdo pela fé. E, neste, Isaque nasce novamente. Dessa forma, se reafirma aqui o que Daniel W. Conway escreve em seu artigo Abraham’s final word (MOONEY, 2008, p. 188, tradução nossa), isto é, de que seria mais impressionante que o Deus do “tudo é possível” trouxesse Isaque de fato do reino dos mortos. Contudo, é isso realmente o que acontece, só que não fisicamente. De forma análoga, no estádio ético, vimos que a escolha absoluta por si é uma gênese tanto da escolha quanto de si; um dá à luz ao outro. Aqui o movimento da fé, que está além da resignação por virtude do absurdo, dá nova vida com efeito a Isaque, mas uma nova vida para Abraão. Nesse instante, pousa novamente no finito.
É supostamente a mais difícil proeza para um bailarino pular numa postura específica de tal maneira que ele nunca se torça para fora dela, mas no próprio salto assuma tal forma. Talvez não haja bailarino que possa fazê-lo – mas esse cavaleiro o pode [...] os cavaleiros da infinitude são bailarinos e têm elevação. Ele fazem um movimento ascendente e descem novamente, e isso também não é uma distração infeliz, não é desagradável de se ver. Mas toda vez que descem, eles são incapazes de assumir a postura imediatamente, eles vacilam por um momento, e essa hesitação mostra que são alienados no mundo [...] Uma pessoa não precisa vê-los no ar, mas apenas no instante em que partem e pousam no solo – e então é possível reconhecê-los. Contudo, para conseguir descer de tal forma que instantaneamente um pareça se erguer e andar, mudar do salto para a vida até o andar, absolutamente expressando o sublime no pedestre – apenas esse cavaleiro pode fazê-lo, e essa é a única maravilha (KIERKEGAARD, 1983, p. 41, tradução nossa).
O movimento no ar de fato não é possível ver, pois não faz parte do universal, não é passível de compreensão. Apenas na quietude e solitude é possível fazê-lo, concentrando “a conclusão de todo seu pensamento em um ato de consciência” (KIERKEGAARD, 1983, p. 43, tradução nossa), ou seja, de alguma maneira o salto é para dentro de si mesmo. A expressão da cavalaria em Temor e Tremor aparenta indicar essa elevação do infinito, ou ainda, essa resignação. À primeira vista, não faria sentido existir também um cavaleiro da fé, uma vez que ele está no chão, na finitude, mas o indivíduo é um indivíduo histórico e chega à fé apenas perpassando a resignação infinita. Assim, nas palavras de Johannes de Silentio: “O cavaleiro não cancela sua resignação, ele mantém seu amor tão jovem quanto foi no primeiro momento; ele nunca o perde simplesmente porque ele fez o movimento infinitamente”(KIERKEGAARD, 1983, p. 44, tradução nossa). Ainda que pousando na finitude e constantemente ganhando-a no movimento infinito de resignação, não há retorno histórico desse ponto. Ao contrário das duas partes de Ou-Ou, em que há um levitar entre estádios, em Temor e Tremor, há o que se poderia facilmente chamar de “retorno”, mas que em realidade vai adiante na história, na consciência e na própria imediaticidade do indivíduo – que agora é a fé –, pois, dentre tantas razões, o toque da relação com Deus é transformador – do ético e estético – e inextinguível.
Ainda que para o movimento infinito de resignação sejam necessárias dor, força, energia e liberdade espiritual, Johannes de Silentio as coloca nessa posição, pois, pela própria força, o indivíduo é incapaz de alcançar o impossível. Assim, a estratégia é gastar todas as energias no possível, na última ação possível, a renúncia. Ou, no caso de Abraão, “assassinar” seu próprio filho. A fé se apresenta apenas na fraqueza, na exaustão de toda sua força e de alguma forma na relação com Deus, pois aí o absurdo e o impossível residem.
Em seu interior, o salto ocorre no fim da resignação infinita exterior, isto é, só então se expressa espiritualmente, e esse paradoxo, mesmo que não ocorra simultaneamente, exige que, para receber, seja preciso abnegar. Sobretudo porque a impossibilidade só encontra vazão para existir e se tornar possível fora do mundo factual, ou melhor, no interior da vida do indivíduo. Somente aí Isaque pode ser recebido de volta pelo absurdo.
Nesse caminho, Johannes de Silentio assume a paixão acima da reflexão. Só ela pode ir além da resignação. O movimento da fé não exige o entendimento e a reflexão – a não ser para serem superados –, pois não se pode estar em relação com Deus por meio de algo, mediado; antes, a relação é imediata, apaixonada e, ainda, ignorante.
Todo movimento de infinitude é carregado por meio da paixão, e nenhuma reflexão pode produzir movimento. Isso é um salto contínuo na existência que explica o movimento, enquanto a mediação é uma quimera, a qual em Hegel supostamente explicaria tudo e a qual é a única coisa que nunca tentou explicar. Apenas para fazer a célebre distinção socrática entre o que alguém entende e o que não, é necessário paixão; e, ainda mais, claro, [paixão é necessária para] fazer o autêntico movimento socrático, o movimento da ignorância (KIERKEGAARD, 1983, p. 42, tradução nossa).
Desta forma, não é por meio da reflexão ou da filosofia que o indivíduo se relaciona com Deus, mas eles são, sim, necessários para chegar até o ponto de saltar. É preciso da reflexão para certo despertar incipiente interior, contudo isso ocorre na completa imobilidade. Por outro lado, o movimento infinito de resignação aqui se configura como essa ignorância, em que se esvazia o indivíduo para ter fé, que é a última paixão. Em outras palavras, o vazio no indivíduo se dá apenas por um movimento infinito da renúncia – resignação – e esse terreno é onde se pode saltar apaixonadamente. Só no vazio a relação com Deus se apresenta, pois aí a dúvida – a reflexão – não tem raízes.
Concomitantemente a isso, ainda que a paixão em questão, a fé, se dê na solitude com Deus, paradoxalmente é ela que também “une toda a vida humana” (KIERKEGAARD, 1983, p. 67, tradução nossa)[2]. Apenas na relação com o absoluto que tal união é possível. Antes, no ético, havia uma relação com o universal, ou seja, no social, nas relações horizontais, mas, nesse instante de fé, o indivíduo religioso se une ao universal ao mesmo tempo em que também se torna um indivíduo singular na relação com Deus.
Johannes de Silentio inaugura com esta frase o capítulo da Problemata I: “Há uma suspensão [Suspension] teleológica do ético?” (KIERKEGAARD, 1983, p. 54, tradução nossa). Aqui ele procura mostrar os limites e as características do ético, que se aplica a todos e a qualquer tempo; que é o próprio τέλος (telos) de tudo que é exterior. Antes de ter o propósito fora, tudo o que está fora tem por propósito o universal. E continua:
O indivíduo singular, sensitiva e fisicamente qualificado na imediaticidade, é o indivíduo que tem seu τέλος no universal, e é sua tarefa ética continuamente expressar-se nele visando anular sua singularidade para então se tornar o universal. Assim que o indivíduo singular afirma a si mesmo em sua singularidade ante o universal, ele peca, e apenas ao reconhecer isso ele pode se reconciliar com o universal. Toda vez que o indivíduo singular, depois de ter entrado no universal, sente um impulso de afirmar a si mesmo como indivíduo singular, ele está num teste espiritual [Anfægtelse], no qual ele pode trabalhar si mesmo apenas ao se arrepender e se entregar como indivíduo singular no universal (KIERKEGAARD, 1983, p. 54, tradução nossa).
Aqui é possível que de Silentio nos indicasse a passagem do estético para o ético, no qual o τέλος de fato se concentraria no universal, uma vez que o universal está ausente no esteta. O universal é um ir adiante. Contudo, nesse processo, em que o eixo da vida se concentra no universal, há uma anulação da singularidade. Metaforicamente, seria o geocentrismo do espírito. Nessa segunda frase, a singularidade pode se reencontrar diante do universal, e a reconciliação com este só pode ser adquirida por meio de uma ascensão consciencial. No entanto, quando a singularidade é exigida do indivíduo mais uma vez, mesmo que inserido no universal, ele está diante de um teste espiritual. Aqui, em vez de negar o universal, nossa interpretação é que o ressignifica, colocando-o numa posição superior à anterior, que é, afinal, o seu τέλος. Isto é, nessa parte, nos utilizamos do ambíguo sentido da palavra suspensão [Suspension] que Johannes de Silentio usa. Para tanto, a suspensão teleológica da ética é tanto um afastamento – temporário –, quanto uma elevação, pois apenas na fé, ou seja, no abandono do universal que se pode possuí-lo de forma mais elevada. É este, segundo nossa visão, o porquê do retorno de Isaque. Em outras palavras, o pouso de Abraão no universal.
Kierkegaard constantemente ressalta a importância, como visto até então, dessa paradoxal segunda vida ou segundo nascer em vida, além da primeira morte, antes da própria morte física, representada pela primeira ordem de Deus a Abraão, a resignação infinita. Nesse trajeto, divergimos de alguma maneira da perspectiva de Levinas e de Daniel W. Conway em seu artigo supracitado. Isso, pois pensamos que não houve uma falta de determinação que fez com que Abraão desobedecesse ou mesmo se acovardasse, e por sua própria vontade abortasse a missão dada pelo próprio Deus. Uma interpretação talvez mais coerente não seria que a segunda ordem dada por um anjo – e não por Deus – contradissesse a primeira – esta dada por Deus –, mas que a história interior do indivíduo tivesse que, sim, perpassar por ambas as ordens. Aliás, é possível ainda que seja por isso que a segunda ordem, a qual retorna o universal a Abraão numa segunda vida e como τέλος, dada publicamente tenha sido feita por um anjo, interlocutor entre Deus e o homem – perspectiva que Conway ignora –, já que, uma vez depois de pousar após o salto, o indivíduo se encontra com o ético. E, tendo vislumbrado o religioso, agora com outros olhos suspende-o. Desse modo, não há duas ordens contraditórias, pois se encontram no tempo consecutivamente, e o paradoxo da fé está em Abraão visar não o ético simultaneamente ao religioso, mas que, ali, ao pé do monte Moriá já tenha em seu horizonte o ético elevado posterior. O produto disso é, portanto, o universal, incluído ainda na vida do indivíduo singular, todavia não mais sendo seu eixo, possibilitando outra relação em seu interior: uma inversão copernicana do espírito, que Mooney chama de deslocação-gestáltica. Ou seja, uma ética inferior[3] é destronada para que uma ética mais complexa e transcendente se instale (MOONEY apud DAVENPORT, 2008, p. 199, tradução nossa), uma que tenha Deus como seu fundamento.
Não há, como com o Juiz William, um encontro com Deus por meio do casamento ou de um outro humano. Aqui a inversão se dá por se encontrar o universal por “meio” de Deus, ainda que de forma apaixonada e imediata. Dito de outra maneira, o eu se dá apenas sob a reconfiguração do ético através das lentes do religioso.
Para conseguir, porém, com que a singularidade do indivíduo tenha a gravidade suficiente para que o universal opere seu movimento ao seu redor, é preciso que essa singularidade também se modifique. Como visto em outros estádios, o “retorno” nunca é o mesmo quando no interior do indivíduo. Ou ainda, como diz John J. Davenport em seu artigo Faith as eschatological trust in Fear and Trembling: “Os ideais éticos não são rejeitados […] mas sim preservados dentro [da religiosidade] e complementados pela esperança religiosa” (DAVENPORT, 2008, p. 209, tradução nossa). Esse é precisamente o paradoxo o qual enfrenta aquele no estádio religioso, pois há aqui uma “segunda ética”, isto é, uma ética paradoxal que Kierkegaard formula também em Conceito de Angústia. Ela se origina, na visão de Derrida, “do fato que o homem falhou com suas aspirações éticas” (DERRIDA apud LLEVADOT In: DAVENPORT, 2008, p. 212, tradução nossa). Assim, é aí que o indivíduo se relaciona com o que está morto, resignado e suspenso. Complementado pelo religioso, a ética se expressa transformada. Ou seja, a fé existe nesse paradoxo em que o indivíduo singular é maior do que o universal inédito. E isso só pode ocorrer, pois ser superior ao universal é também estar em relação com Deus, ou seja, em absoluta relação com o absoluto.
O fato de o indivíduo singular ser superior ao universal é algo que não pode ser mediado, como visto anteriormente, já que qualquer mediação é feita por virtude do universal. Deste modo, o paradoxo do singular ser superior ao universal é impossível de ser compreendido e está aquém de qualquer pensamento. Além do mais: “É e permanece por toda eternidade um paradoxo” (KIERKEGAARD, 1983, p. 56, tradução nossa), contrariamente à expressão ética e universal de “por todos os tempos”. Entretanto, como Abraão opera essa inversão da balança entre singular e universal? Para tanto, Johannes de Silentio diz:
A diferença entre o herói trágico e Abraão é bem óbvia. O herói trágico está ainda dentro do ético. Ele permite uma expressão do ético ter seu τέλος numa expressão superior do ético; [ao mesmo tempo] ele diminui o peso da relação ética entre pai e filho [...] para uma sensação que tem sua dialética em sua relação para a ideia de conduta moral. Aqui não pode haver dúvidas quanto a uma suspensão teleológica do próprio ético.
A situação de Abraão é diferente. Pela sua ação ele transgride o [estádio] ético inteiramente e teve um τέλος superior fora dele [o ético], em relação com o qual ele [Abraão] o suspendeu.(KIERKEGAARD, 1983, p. 59, grifo do autor, tradução nossa)
O herói trágico, diante do teste espiritual, se traduz por ter seu τέλος na singularidade. Isso, para nós, possivelmente seria “a expressão superior do ético”. Nessa parte, claramente há uma divisão e desequilíbrio do ético em dois, na balança no interior do indivíduo. Sobretudo, porque eleva-se o universal e o próprio τέλος na nova leveza do ético que se encontrava, até então, nivelado ou equilibrado. Não mais se vê isso, dado a queda da moralidade para uma “sensação”. Diferente do que muitos comentadores acreditam, concordamos com Davenport em a suspensão não ser uma expulsão ou negação do ético, e sim, como repetidamente faz Kierkegaard, a transfiguração de seus elementos. De fato, há uma negação de alguma maneira dessa ética inferior. Mas a superior se torna o τέλος de uma ética superada pela fé.
Com efeito, o salto da fé só pode ser feito com a ausência de reflexão e do universal, mas essa suspensão não é uma eliminação do ético da vida humana. Nesse ponto, a suspensão é, também, elevação. A finalidade, que antes residia no universal, se eleva a um novo estágio, o da singularidade e do estádio religioso. É preciso reconfigurar o ético para que o religioso possa se dar. Esta é a inversão copernicana do espírito ou a deslocação-gestáltica, que, como na citação acima, pode ser vista no câmbio de pesos na expressão do ético. Todavia, isso só pode ocorrer com essa transgressão que Abraão pratica não em virtude do universal, mas, contrariamente, do absurdo.
Esse movimento absurdo só pode ser operado em seu interior – e aqui vamos de encontro com Davenport –, pois, apesar do comando divino de sacrifício, ou seja, de que Deus seja misteriosamente seu próprio obstáculo, Abraão tem a expectativa e fé de que seu Criador é fonte de todas as possibilidades e que, assim, pode no fim lhe trazer uma eucatástrofe[4](TOLKIEN apud DAVENPORT In: MOONEY, 2008, p. 203, tradução nossa) ética. Isto é, ainda que o assassinato seja autorizado por Deus e a própria morte de Isaque necessária na forma de sacrifício, que é a resignação infinita, de uma forma da qual Abraão é totalmente ignorante – sem reflexão –, ele teria seu filho de volta para cumprir a promessa inicial de Deus: que seu filho teria filhos que constituiriam uma grande nação. O “retorno” de Isaque é o τέλος escatológico absolutamente prometido, a negação da “derrota final do universal” (TOLKIEN apud DAVENPORT In: MOONEY, 2008, p. 218, tradução nossa), pois é refundado na fé.
Dessa maneira, a transgressão é nada menos que a superação do teste espiritual, da tentação, ou melhor, do próprio ético. No caminho para o indivíduo singular, o ético é o obstáculo que deve ser superado. De outra perspectiva, o ético é a tentação contra o dever do homem, que é a expressão da vontade de Deus. Do contrário, Abraão continuaria no universal, e não haveria mais segredo ou solitude; ele seria compreendido por todos, poderia falar; e se tornaria um assassino. Assim, para que Abraão não esteja perdido, ele precisa existir como indivíduo singular em contraste com o universal, mas, ainda assim, com este último superior à sua constituição anterior em seu interior. Quando puxar a faca, portanto, será um sacrifício e não um assassinato; será um carneiro e não Isaac; será o paradoxo imediato da fé.
Até aqui expusemos e analisamos extensamente os conceitos centrais na obra Temor e Tremor, a saber, o conceito de resignação infinita e de fé. Há a possibilidade de um indivíduo nem chegar a este ponto – e de fato é o que acontece com a maioria –, mas, para aquele que busca ir mais longe na sua própria existência – ou passar a existir –, antes da fé, deparar-se-á com a resignação infinita. Assim, Johannes de Silentio apresenta, enquanto escritor, suas ideias sobre como existir, tendo em vista a história e vida de fé de seu herói, Abraão.
No entanto, como acontece com muitos pseudônimos de Kierkegaard, há uma espécie de virada em sua narrativa. Em alguns casos, seu argumento é usado contra o próprio pseudônimo ou o leitor. De maneira que a hipocrisia de ambos é exposta. Neste ponto do artigo, contudo, iremos expor sua ideia sobre o amor e o ódio, que é brevemente mostrado em Temor e Tremor, mas que encontra mais espaço em outras obras de Kierkegaard[5]. Neste caminho, criaremos a ponte entre este tema que entra em colisão com a admiração “cega” de Johannes de Silentio, expondo sua hipocrisia.
Em Temor e Tremor e em outros textos de Kierkegaard, o tema do amor e ódio tem como norte esta passagem bíblica:
Lucas 14:26 oferece um notável ensinamento sobre o absoluto dever para com Deus: “Se alguém vier a mim e não odiar seu próprio pai, mãe, esposa, filhos, irmãos e irmãs, sim, e mesmo sua própria vida, ele não pode ser meu discípulo”. [...] Mas como odiá-los? [...] se eu tomar a questão como um paradoxo, então eu entendo – isto é, eu a entendo na maneira como alguém pode entender um paradoxo (KIERKEGAARD, 1983, pp. 72 e 74, tradução nossa).
Nessa passagem do Novo Testamento, Johannes de Silentio procura afastar o indivíduo do universal ao odiar tudo aquilo que está ao alcance exterior e, inclusive, a própria vida. No entanto, seu sentido não se encontra tanto no ódio, mas no não amar absolutamente, pois absolutamente apenas a Deus; aí se busca ser Seu “discípulo”. Quanto ao amor, continua presente em ambos os estádios ético e religioso, não podendo ser diferente, pois, do contrário, o paradoxo não existiria:
Uma vez que Deus clama Isaque, [Abraão] deve, se possível, amá-lo ainda mais, e apenas então pode sacrificá-lo, pois é de fato seu amor por Isaque que faz seu ato um sacrifício pelo seu contraste paradoxal com seu amor por Deus. Mas o estresse e a angústia no paradoxo é que ele, humanamente falando, é completamente incapaz de fazer a si mesmo compreensível. Somente no momento quando seu ato está em absoluta contradição com seus sentimentos, somente então ele pode sacrificar Isaque […] (KIERKEGAARD, 1983, p. 74, tradução nossa)
Apenas quando Isaque, por meio do amor de Abraão, se torna seu tesouro mais precioso, pode ser sacrificado. Como objeto da resignação infinita do universal e, por meio da fé e do absurdo, ele pode nascer novamente. Johannes indica ao indivíduo que redirecione seu amor para Deus acima de tudo, pois só por meio Dele se ganha o universal de fato, ou seja, Isaque. De alguma maneira, o paradoxo está em o amor mais forte e mais recompensador ser o amor indireto – do universal, de si mesmo – e, ainda assim, imediato – com Deus.
A inversão copernicana do espírito também se dá nesse jogo de ódio e amor. Para suspender o ético, é preciso que se resigne da esposa, do filho, e mesmo do Estado e da Igreja. Isto é, o caminho do indivíduo no estádio religioso é solitário, não se expressa no universal, como o herói trágico o faz. É importante notar que mesmo a própria vida é posta em segundo lugar, uma vez que é preciso “se odiar” ou “amar-se menos” para amar Deus absolutamente e, a partir daí, amar de fato. Até mesmo Johannes de Silentio de alguma maneira tem dificuldade em seguir sua própria explicação do homem de fé, fato que trataremos na conclusão.
Nesta última parte acima, expomos como Johannes de Silentio entende a questão do amor e ódio na história e vida de seu herói, Abraão. Mas como isso se reflete na vida do próprio pseudônimo? Com Johannes de Silentio, observamos uma estratégia literária na abordagem de Temor e Tremor. Esta reside em, como Sócrates, “uma pessoa poder enganar outra em direção à verdade” (KIERKEGAARD apud MCCOMBS, 1992, p. 1, tradução nossa). Entre tantas razões para Kierkegaard usar de sua nobre enganação com seu leitor, abordaremos uma da qual trata Richard McCombs em The Paradoxical Rationality of Søren Kierkegaard, em que acusa Johannes de Silentio de comunicar o que ele próprio não faz.
Temor e Tremor inicia falando sobre a grandeza da fé e de Abraão. Johannes consegue descrever os movimentos da fé, ainda que ele mesmo não os possa fazer. Tais movimentos são subjetivos, secretos e ele próprio dirá que não é possível distinguir aquele que saltou dentro da multidão. Assim, além de Abraão, não há como saber se outro ser humano já teve fé, ou ainda, se alguém já se tornou um indivíduo singular em toda a história. Uma grande contradição começa a brotar daí.
No máximo, Johannes de Silentio justifica que é possível entender o que seja um paradoxo. No entanto, a fé, como paradoxo, para ele, é impossível. Nesse trajeto, cria desculpas pelas quais ele próprio não pode fazer o movimento da fé. Em última instância, seria porque é um movimento de paixão e ele se paralisou na resignação infinita. Nem mesmo o limite do ético ele experimentou, tal a vertigem diante do silêncio, da solitude e do vazio. Além do mais, ainda que se deparasse com um homem de fé, de nada lhe adiantaria, pois ele fala outra língua e a própria fé deve ser adquirida numa relação privada com Deus, não mediada por um fiel – Abraão.
[Assim] suas afirmações de que praticaria a fé se apenas encontrasse um cavaleiro da fé são basicamente uma confissão oblíqua em que ele não tem nenhuma intenção de tentar os movimentos da fé, muito obrigado (KIERKEGAARD apud MCCOMBS, 1992, p. 25, tradução nossa).
O que ocorre a partir de então, uma vez que o leitor entende que Johannes apenas engrandece a fé e Abraão pela distância vertical que coloca entre ele e si próprio, é que a máscara de Johannes cai. Todavia, o leitor atento também perceberá algo mais: que sua própria máscara também encontra o chão. Desta maneira, Kierkegaard encontrou uma forma de usar a hipocrisia de sua época em seu pseudônimo para revelar ela mesma em seu leitor.
Nesse movimento de enganação em direção à verdade, McCombs parafraseia A Doença para a Morte: “’Poetizar’ a fé ‘em vez de ser’ fiel é talvez a principal maneira pela qual Silentio evade a fé” (KIERKEGAARD apud MCCOMBS, 1992, p. 25, tradução nossa). O que McCombs não expõe, porém, é que Johannes de Silentio, que se considera um filósofo – ou ao menos “deixa-se guiar pela dialética” –, de alguma maneira levita em direção ao estético ao admirar um homem, assim como o pseudônimo esteta A o fez em Ou-Ou Parte I. Não há mais um elogio do universal. Sim, ele descreve toda a suspensão teleológica deste, mas, quanto a Abraão, ali ele é um esteta. Não em vão o que opera é justamente uma “admiração poética”. O engrandecimento por meio do qual tem sua relação com Abraão é tanto um distanciamento do pai da fé de si, quanto de si mesmo. Sua lente não o faz passível de qualquer reprodução. Pelo contrário, a cada elogio e engrandecimento, está mais longe da resignação e da fé, ainda que em partes afirme que Abraão não precisa “de lágrimas nem de admiração” (KIERKEGAARD, 1983, p. 120, tradução nossa). E, portanto, confirma a cada instante a impossibilidade do salto.
Nesse Abraão fora de foco, Johannes de Silentio não encontra absurdo ou qualquer sombra de que, para si, o impossível, na relação com Deus, possa se tornar possível. Esse pseudônimo de Kierkegaard é um homem sem a paixão necessária para o salto, ainda que o conceba. Como muitos de sua época, Abraão é um longínquo reflexo da fé e nada lhe pode fazer pé de igualdade. Ao não crer ser reproduzível para si em sua própria subjetividade, a história de Abraão e Isaque não passa de um conto de fadas. Uma ainda em que há, para sua época, uma idolatria – o que McCombs falha em denotar. Em suma, multiplicam-se os admiradores e sua distância, não havendo ninguém que ouse imitação ou, melhor dizendo, uma criação particular de sua relação íntima com Deus[6].
Dessa maneira, o que o leitor testemunha é o desespero de Johannes de Silentio, que é também até certo ponto o que Kierkegaard procura mostrar no próprio leitor. Diante de toda a fórmula para a fé e o indivíduo singular, Johannes busca de qualquer forma justificar sua incapacidade de ser si mesmo, ou ainda, sua própria escolha por si. Aqui, sua consciência o alerta: você não quer ser si mesmo. E “querer” é a ênfase do desespero. Talvez seja possível fazer um paralelo com a existência de poeta que Anti-Climacus descreve em A Doença para a Morte: “O pecado de poetizar em vez de ser; de se relacionar com o bom e o verdadeiro por meio da imaginação em vez de ser ambos – isto é, existencialmente se esforçar nessa direção” (KIERKEGAARD, 1983, p. 77, tradução nossa). A razão para tal autossabotagem pela imaginação talvez se encontre na mesma página.
Ele ama Deus acima de tudo. Deus que é apenas consolo em sua angústia secreta, e, ainda assim, ele ama a angústia e não vai desistir dela. Ele gostaria tanto de ser si mesmo diante de Deus, mas com exceção do ponto exato onde o eu sofre; aí, em desespero, ele não quer ser si mesmo (KIERKEGAARD, 1983, p. 77, tradução nossa).
Assim, observa-se que Johannes de Silentio – assim como seu leitor – não sai de seu lugar, não toma a derradeira escolha por si mesmo pela qualidade da angústia que possui, a saber, de uma simpatia antipática e de uma antipatia simpática (KIERKEGAARD, 1980, p. 42, tradução nossa). Em outro livro, como Vigilius Haufniensis, Kierkegaard aprofunda a definição.
[...] angústia é um poder alienígena que agarra o indivíduo, do qual este não pode se livrar, mas também não o quer, pois uma pessoa tem medo, mas só se tem medo do que se deseja. A angústia torna o indivíduo impotente, e o primeiro pecado sempre ocorre na fraqueza. Dessa forma, aparentemente carece de responsabilidade, mas é essa carência que é a verdadeira armadilha (KIERKEGAARD, 1980, p. 42, tradução nossa).
Johannes de Silentio se ilude de que, em vã contradição, encontraria um homem de fé, ainda que achá-lo, em suas próprias palavras, seja uma impossibilidade. Mas o que toda sua abordagem procura mostrar ao leitor é essa contradição em seu discurso, pois procura fora, em Abraão, o que só pode encontrar dentro e com Deus; procura na Palavra o que só pode encontrar no silêncio. Enquanto o olhar se voltar para fora em direção de um exemplo, o indivíduo não se colocará a si como um exemplo da fé. Eis a distância segura a qual se submete. Assim, seguindo o encadeamento lógico, o que lhe falta para o próximo passo não é tanto algo afirmativo, mas negativo, ou seja, retirar dele esse obstáculo e afastamento antes de ter a coragem para fazer o movimento da fé.
Paralelamente, vale-nos trazer o livro Obras do amor de forma oportuna aqui. Neste livro, assinado pelo próprio Kierkegaard, ele escreve que “um homem não se encontra essencialmente acima do outro”(KIERKEGAARD, 2018, p. 140), e observamos que nem mesmo Abraão. Assim, para não cair na admiração idólatra de um homem comum, ainda que o próprio pai da fé, é preciso seguir seu exemplo, inclusive com ele próprio. Ou seja, colocar Deus acima de tudo, inclusive de quem se ama. Nas suas palavras, é preciso “por amor odiar a pessoa amada, por amor odiar a amada e nesta medida odiar a si mesmo, por amor odiar aqueles que convivem conosco e nesta medida odiar nossa própria vida” (KIERKEGAARD, 2018, p. 133). Desta forma, quando Johannes de Silentio diz que “Abraão foi o mais grandioso de todos (...) grande pelo amor que é o ódio por alguém” (KIERKEGAARD, 1983, pp. 16-7, tradução nossa), ele procura ensinar ao leitor que é preciso saber odiar também, todo homem e mulher, pois só pelo ódio generalizado, que é uma aparência e uma forma de amor não eterna, se pode amá-los por meio de Deus – eternamente. Em outras palavras, o que falta ao leitor e ao próprio Johannes de Silentio é a concepção de que é preciso odiar também Abraão.
CONWAY, Daniel W. Abraham’s final word. In: MOONEY, E. F. (Ed.). Ethics, Love, and Faith in Kierkegaard. Bloomington: Indiana University Press, 2008.
DAVENPORT, J. J. Faith as eschatological trust in Fear and Trembling. In: MOONEY, E. F. (ed.). Ethics, Love, and Faith in Kierkegaard. Bloomington: Indiana University Press, 2008.
KIERKEGAARD, S. As obras do amor. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.
KIERKEGAARD, S. The concept of anxiety. New Jersey: Princeton University Press, 1980.
KIERKEGAARD, S. Fear and Trembling. New Jersey: Princeton University Press, 1983.
LLEVADOT, L. Kierkegaard, Levinas, Derrida: The death of the Other. In: MOONEY, E. F. (ed.). Ethics, Love, and Faith in Kierkegaard. Bloomington: Indiana University Press, 2008
MCCOMBS, R. The Paradoxical Rationality of Søren Kierkegaard (Indiana Series in the Philosophy of Religion). Indiana: Indiana University Press, 1992.
------------
[1] Ver também KIERKEGAARD, S. Práticas do Cristianismo. Londrina: Penkal, 2021, p. 110, 201.
[2] Relação em que Lessing (1729-81) similarmente também acredita.
[3] Que se poderia afirmar ser a Sittlichkeit.
[4] Um final feliz inesperado no meio de um aparente desastre.
[5] KIERKEGAARD, S. Práticas do Cristianismo. Londrina: Penkal, 2021, p. 201. KIERKEGAARD, S. Obras do amor. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 133. KIERKEGAARD, S. O Instante. São Paulo: Liber Ars, 2019, pp. 142, 273.
[6] Para mais sobre o assunto, ver Práticas do Cristianismo.