Literatura e religiosidade entre alteridades e intertextualidades

João Leonel
Marcos Lopes
Antônio Manzatto
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No Ocidente contemporâneo, a religião é um fenômeno que suscita debates acalorados por sua expansão e diversidade nas principais esferas da vida social. Sensíveis ao impacto moral, político e, mais precisamente, às formas de produção da subjetividade moderna e das identidades pessoais e coletivas, as humanidades fazem da religiosidade um dos seus focos de pesquisa, construindo no ambiente acadêmico certa acumulação crítica, que se traduz na constância de alguns núcleos temáticos e na estabilidade de um aparato conceitual para a análise do fenômeno.

No século XX, com a suposta autonomia de um campo específico dos estudos literários, alguns críticos e intelectuais sededicaram à compreensão do fenômeno religioso na sua interface com os diversos gêneros literários. Mas, em geral, a regra tem sido um silêncio obsequioso ou, paradoxalmente, uma tolerância à diferença sem a pesquisa vigorosa do que é irredutível e comum aos dois “objetos”. No entanto, é fato que a religião e suas expressões ocupam espaço relevante, tanto na literatura mundial, quanto nas literaturas de língua portuguesa. As raízes da própria ideia de literatura, como a conhecemos hoje, se encontram interligadas com o sagrado e a religiosidade. Assim, a mélica e a épica gregas, por exemplo, não podem ser plenamente compreendidas, se não considerarmos suas relações com o imaginário religioso em seus contextos originais de produção. Momentos importantes da história da literatura ocidental estabelecem conexões com a religiosidade: os poemas de Quevedo e Gôngora, o teatro de Shakespeare, Os Lusíadas, de Camões, a prosa de James Joyce, ou os contos de Jorge Luis Borges são alguns dos exemplos possíveis dessa relação instigante.

No caso específico da literatura brasileira, é possível percebermos o diálogo fecundo entre poesia, representação ficcional e religiosidade, que já se inicia entre nós, por exemplo, nas práticas letradas de um José de Anchieta e Gregório de Matos, perpassa o arcadismo, romantismo e a obra de Machado de Assis. Ao longo dos séculos XX e XXI, a literatura brasileira continuará esse diálogo nas obras de escritores muito diversos, como, por exemplo, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles, João Guimarães Rosa, Jorge Amado, Ariano Suassuna, Bruno Tolentino, Milton Hatoum, Adélia Prado, Hilda Hilst, Conceição Evaristo. Pode-se dizer que a tensão entre a aceitação e a recusa da experiência religiosa será a característica mais ostensiva desse diálogo, sendo que um dos exemplos emblemáticos é o poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, no qual teologia, filosofia e poesia são tensionadas em direção a um certo ceticismo. Raramente, a literatura brasileira será indiferente ao imaginário religioso ou aos dilemas éticos e morais das personagens.

Considerando o desafio teórico e crítico para a constituição de um campo interdisciplinar nas relações entre literatura e religião, procurou- -se, neste número temático da Revista Teoliterária, contemplar as seguintes questões: (1) de que modo se manifesta a experiência religiosa nas obras literárias; (2) como se estabelecem as relações intertextuais entre poesia, romance e textos religiosos; (3) em que medida as manifestações poéticas do sagrado são uma reserva semântica para a crítica à modernidade; (4) as políticas de identidade, que discutem raça e gênero, estabelecem que pactos hermenêuticos com a religião e a literatura, e, por fim, (5) qual o estatuto da memória em textos religiosos e literários.

Por fim, cumpre esclarecer que o conjunto de textos deste número temático nasceu da organização e realização do simpósio “Literatura e Religiosidade”, no âmbito de um dos eventos mais tradicionais e de alcance internacional na área dos estudos comparados de literatura e humanidades, a saber, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). O evento ocorreu em 2019, na Universidade de Brasília, e contou com pesquisadores e docentes de várias instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais. A qualidade da interlocução e o entusiasmo de jovens pós-graduandos e docentes produziram nos organizadores deste dossiê a convicção de que o estudo da literatura em interface com a religião é um imenso e promissor canteiro de obras. A imagem não é fortuita. Estamos diante de um objeto de pesquisa que solicitará, nos próximos anos, um esforço coordenado das áreas da teoria literária, teologia, história, ciências da religião, filosofia e demais campos das humanidades.

Teoliterária agradece o trabalho desenvolvido pelos professores João Leonel e Marcos Lopes para essa edição. Eles atuaram de modo intenso na organização do dossiê e revisão dos manuscritos e o fizeram com responsabilidade e qualidade, além de grande gentileza e espírito de trabalho em equipe. Por isso, a eles o nosso agradecimento especial.

O dossiê temático vem proposto em 15 textos, que se encontram divididos segundo alguns eixos ou enfoques específicos. Os primeiros textos são sobre as relações entre religião e literatura a partir do enfoque bíblico. Assim, inicialmente João Leonel trabalha em seu texto as relações entre bíblia e espiritualidade, onde a escritura desempenha um papel mediador entre o crente e a divindade. Em seguida Ana Cláudia da Silva lê o romance psicografado por Chico Xavier que acrescenta ao texto evangélico elementos que ali não se encontram originalmente presentes. Por sua vez, o rabino Ruben Gerardo Sternschein apresenta a evolução da oração judaica refletindo sobre o material litúrgico judaico em seus diversos aspectos e desdobramentos. O primeiro bloco temático se fecha com o texto de Marcos Mareano sobre os hinos do livro do Apocalipse.

Um segundo bloco apresenta textos que relacionam literatura brasileira e religiosidade. Antonio Manzatto faz um paralelo sobre a importância da palavra entre a teologia e canções de Chico Buarque. Maykol Vespucci reflete sobre poemas de Cora Coralina em sua relação religiosa com a Mãe Terra, enquanto Marília Murta de Almeida e Nilo Ribeiro Junior trabalham textos de Clarice Lispector sob enfoque ético, além de poético.

O terceiro bloco traz também a relação entre literatura e religiosidade, mas trabalhando especificamente textos de literatura portuguesa. Assim, Christiano Aguiar estuda poemas medievais, mais especificamente cantigas de amor galego-portuguesas, e a relação que estabelecem com Deus. Regis Mikail Abud Filho, por sua vez, relaciona, em interessante abordagem hagiográfica, Eça de Queiroz e Flaubert, enquanto Henrique Manoel Pereira mergulha em textos de Guerra Junqueiro em perspectiva teopoética; trabalhando em formato de referências mais próprios da maneira portuguesa de apresentação de textos acadêmicos, excepcionalmente Teoliterária aceitou tal forma de referências para respeitar, também, a dinâmica própria da elaboração do artigo.

Por fim, o último bloco do dossiê contempla textos que relacionam filosofia, literatura e religiosidade em diferentes abordagens. Cássio Oliveira Lignani aborda o antimodernismo nos romances católicos de George Bernanos. Na sequência, Juliana de Souza Topan apresenta as questões de religiosidade presentes em textos literários endereçados principalmente aos jovens e que se apresentam, frequentemente, sob o signo do fantástico, do mistério e do maravilhoso. Edvaldo Antonio de Melo relaciona a ética de Levinas e a literatura de Blanchot a partir do signo da metáfora, e Sandro Cozza Sayão apresenta o trabalho literário em relação com o pensamento de Levinas, indicando como um e outro ultrapassam as margens da percepção primária. O dossiê se encerra com o texto de Walter Moure e Fernando Genaro que, sob aspectos de psicanálise, apresenta o silêncio e a dignidade humana como aspectos do sofrimento ético no prisma de Levinas

Esse número de Teoliterária apresenta, ainda, uma série de textos de temática livre, completando a edição e lhe garantindo a qualidade habitual. Carlos Caldas apresenta, então, uma indagante angelologia na conhecida e aclamada obra de C.S. Lewis. Abdruschin Schaeffer Rocha lê uma canção de Chico Buarque, Geni e o Zepelim, descortinando ali uma camuflagem do sagrado. O jesuíta Pedro Rubens Ferreira Oliveira estuda a obra poética do cardeal José Tolentino Mendonça percebendo aspectos da revelação de Deus ali presentes, de forma que “o Verbo se faz poesia”, Já Alzirinha Rocha de Souza relaciona o significado da morte no pensamento de Ruiz de la Peña e a mesma realidade abordada no teatro da Paixão de Jesus Cristo em Nova Jerusalém.

O sentido da vida humana em sua relação com a natureza é o tema trabalhado por Elias Wolff e Luiz Tarquinio Pontes Neto quando estudam as canções de Luiz Gonzaga. Ainda no universo da música popular brasileira, Célia Regina Ribeiro, em abordagem fenomenológica-existencial, enxerga maneiras de se compreender os dramas humanos em Pelas Tabelas, de Chico Buarque. Maria José de Araújo e Ivanaldo Oliveira Santos Filho apresentam, em seu trabalho, como a literatura de cordel pode ser inserida com proveito no ensino religioso escolar, enquanto Cláudia Andréa Prata Ferreira apresenta, a partir do texto bíblico do livro de Rute, a importância de medidas socio-protetivas para as mulheres mais necessitadas. O número se encerra com o texto de Fabiano Incerti que apresenta a relação entre mística e filosofia em Francisco Rivat, o primeiro Superior Geral da Congregação dos Irmãos Maristas.

Queremos aproveitar para agradecer, ainda, o trabalho de todos os autores que, nesse ano de 2020, submeteram os textos de seus trabalhos à Teoliterária. Efetivamente esse ano de pandemia foi diferente em muitos aspectos e situações, mas não na dedicação ao trabalho acadêmico de pesquisadores que aqui partilharam suas investigações, experiências e conhecimentos. Agradecemos igualmente a todos aqueles que nos ajudaram no trabalho de avaliação dos artigos, sem o quê as edições não poderiam ter sido realizadas. A nominata apresenta o quanto de pessoas ajudaram o periódico a manter sua periodicidade e qualidade acadêmica. Por fim, um agradecimento especial à equipe de trabalho de Teoliterária que não mede esforços para que a qualidade de publicação seja assegurada.