“Só a antropofagia nos une”
Missa dos Quilombos a partir de
uma (est)ética antropofágica
“Só a antropofagia nos une”
Missa dos Quilombos from an
anthropophagic (est) ethics
*Sebastião Lindoberg da Silva Campos
*Doutor em
Literatura, Cultura e
Contemporaneidade pela
Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Mestre em Literatura
Portuguesa pela UERJ.
Possui graduação em
Letras pela Universidade
Veiga de Almeida (2011).
Pós-graduado (lato sensu)
em Filosofia Moderna
e Contemporânea
pela Faculdade de
São Bento do Rio de
Janeiro (2012). Contato:
lindoberg_pe@hotmail.com
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Resumo
Já no Modernismo brasileiro Oswald de
Andrade colocou o desafio de se pensar uma
ontologia nacional a partir de uma leitura antropofágica da realidade histórica. A sua tese
fincava raízes no reconhecimento traumático
do contato civilizacional dos povos e na aceitação substancial da herança antropológica
dos povos originários. Para além de um devaneio poético ou estética literária, o tema da
antropofagia requer o corpo como elemento
em que a história se faz e se realiza. Se é
verdade a assertiva que “só a antropofagia
nos une”, então nos colocamos diante de um
“olhar o mundo” a partir da perspectiva dos
corpos que se encontram e se rechaçam
mutuamente. Sendo a compreensão da história nacional baseada no embate de forças
das relações de poder e subordinação, a
tese oswaldiana pode se dirigir à conclusão
de encontrar na antropofagia uma mediação
para um entendimento substancial da questão humana. Nessa perspectiva e tendo em
consideração o desafio de reavaliar uma epistemologia a partir destas questões, poderíamos interrogar que acontecimentos históricos
poderiam apontar para a realização de sua
tese? Um caminho proposto, que conjuga a
substancialização dos elementos históricos herdados do encontro traumático seria a famosa, e não menos polêmica, Missa
dos Quilombos. Sendo uma síntese do encontro entre o corpo colonizador e o
corpo colonizado, a Missa converte-se num campo de possibilidades que mergulha profundamente em nossas raízes culturais e extrai daí sua matéria de
reavaliação. Sob o signo do chicote, açoite e sangue derramado que marcam
a nossa herança a partir da escrita dos corpos no tempo histórico, a Missa
dos Quilombos nos convida a um novo olhar sobre o humano e nossa própria
história. Revivendo na carne do povo negro os dramas históricos, a Missa dos
Quilombos celebrava uma utopia que extrapolava os limites de uma estética
ritualística e se efetivava numa ética humana. Revisitar esse ritual nos permite lançar luzes sobre o conceito oswaldiano de antropofagia e sua “existência
palpável da vida”, ressignificando, desta forma, a própria concepção cristã de
alteridade, a qual requer, obrigatoriamente, o corpo em sua constituição.
Palavras chave:Missa dos Quilombos; Antropofagia; Modernismo.
Abstract
In Brazilian Modernism, Oswald de Andrade posed the challenge of thinking
about a national ontology based on an anthropophagic reading of historical reality. His thesis was rooted in the traumatic recognition of the civilizational contact
of peoples and in the substantial acceptance of the anthropological heritage of
the original peoples. going beyond the conception of a poetic reverie or literary
aesthetics, the theme of anthropophagy requires the body as an element in which
history is made and realized. If the statement that “only anthropophagy unites us”
is true, then we are faced with a “look at the world” from the perspective of bodies
that meet and refuse each other. Since the understanding of national history is
based on the clash of forces of power and subordination relations, the Oswaldian
thesis can address the conclusion of finding in anthropophagy a mediation for a
substantial understanding of the human question. In this perspective and considering the challenge of reevaluating an epistemology based on these questions,
could we ask what historical events could point to the realization of your thesis? A
proposed path, which combines the substantialization of historical elements inherited from the traumatic encounter, would be the famous, and no less controversial,
Missa dos Quilombos. Being a synthesis of the encounter between the colonizing
body and the colonized body, the Mass becomes a field of possibilities that delves
deeply into our cultural roots and extracts its matter of reevaluation. Under the sign
of the whip, whip and spilled blood that mark our heritage from the writing of bodies
in historical time, the Missa dos Quilombos invites us to a new look at the human
and our own history. Reviving historical dramas in the flesh of the black people, the
Missa dos Quilombos celebrated a utopia that went beyond the limits of a ritualistic
aesthetic and was carried out in a human ethic. Revisiting this ritual allows us to
shed light on the Oswaldian concept of anthropophagy and its “palpable existence
in life”, thus re-signifying the very Christian conception of otherness, which necessarily requires the body in its constitution.
Keywords:Missa dos Quilombos; Anthropophagy; Modernism.
Questões iniciais
Já se tornou assente no meio intelectual brasileiro o conhecimento profundo acerca dos rituais de antropofagia celebrada por certas tribos indígenas do litoral brasileiro quando do início do processo de colonização europeia. Pululam os relatos de viajantes que toparam com tribos aguerridas que faziam de seus prisioneiros de batalha troféus a serem devorados em rituais e cerimônias que arrepiavam o espírito e atiçavam a curiosidade dos europeus ditos civilizados.
Talvez o relato mais vívido e conhecido pela sua reprodução ao longo dos anos seja o do alemão Hans Staden que foi prisioneiro de indígenas antropófagos em duas ocasiões. Outro relato, mais envolto numa observação profunda dos rituais antropofágicos, deve-se ao francês Jean de Lery, que compôs a missão francesa no Rio de Janeiro ao lado do comandante Nicolas Durand de Villegagnon.
Em que pese as diferenças acerca das observações dessas duas testemunhas do contato com os povos originários, o que emerge de seus relatos é o espanto e (in)capacidade no conhecimento da alteridade. Deixando de lado todas as questões históricas acerca do contato dos povos, o que nos interessa sobremaneira é entender a antropofagia indígena dentro da sua dinâmica de organização do espaço social das tribos e sua estrutura mantenedora de uma percepção de mundo. Essa avaliação devemos não aos colonizadores do século XVI, mas aos estudos culturais e antropológicos que se desenvolveram com mais força no século XX, ainda que nos próprios relatos de Jean de Lery apareça de forma evidente um olhar mais apurado à capacidade de fazer-se outro e de penetrar em seu universo para compreendê-lo a partir de sua realidade.
Se, como afirmava Oswald de Andrade, expoente do Modernismo, é verdade que o Humanismo europeu deve muito ao contato com os povos americanos, não menos verdade é que a concepção humanística nasce num solo marcado pela violência, exploração e intolerância mútuos. A incapacidade europeia de percepção da alteridade enquanto fundamento relacional para com os povos originários é marcadamente presente no relato de Jean de Lery que, sendo presbítero da Igreja Reformada de Genebra, possuía a missão de conversão dos povos originários ao cristianismo1 . É com o missionário francês que uma reavaliação das práticas exploratórias dos europeus sofre fortes, ainda que infrutíferos e insuficientes, críticas. Em diversos momentos em que relata as práticas indígenas, em que pese o ritual antropofágico desconhecido em sua ontologia pelos europeus, Lery adverte para a necessidade de compreensão da percepção indígena e exibe exemplos diversos em que os europeus praticaram atos odiosos e indefensáveis contra seus semelhantes.
De modo geral, o ritual antropofágico indígena buscava um mergulho profundo na essência do outro. O prisioneiro era levado a participar da vida em comunidade indígena ao ponto de ter filhos na comunidade. A vida em comum, em tudo partilhada, só era interrompida quando do acontecimento do ritual em que acreditava-se que a força, dinamismo e potência do inimigo seriam absorvidos pela tribo executora.
Distante das questões morais provindas desse ato, o que importa na maneira como interpretamos a antropofagia contemporaneamente em seu ritual (est)ético é como a reavaliação proposta por Oswald pode nos comunicar novas possibilidades e perspectivas no tempo atual.
A partir desta tônica e à maneira de um narrador euclidiano2 que se lança para o passado na busca de descortinar fatos que contemporaneamente possuem novo significado, também aqui, lançamo-nos o desafio de perscrutar a execução de Missa dos Quilombos, nos longínquos idos de 1981 na mesma praça em que a cabeça do líder quilombola, Zumbi, havia sido exposta séculos antes, para descobrir o encontro antropofágico da cultura iluminista colonizadora e da animista colonizada.
Diante de tal evento, cabe a pergunta: qual significado para nós, leitores contemporâneos, que se apresenta quando nos debruçamos sobre a “épica” Missa dos Quilombos de Pedro Tierra e Pedro Casaldáliga? Despersonalizando-a de seu caráter primevo eminentemente religioso – de celebração pascal que o próprio Casaldáliga havia indicado: “a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição de Cristo” (MQ3 2, p. 16) –, pode-se apreender da referida missa um caráter que extrapola seus limites estritamente teológicos e se fragmenta dispersando-se em aspectos estéticos-políticos inúmeros, num impactante fenômeno de tensão cultural que forjou as relações étnico-sociais brasileira.
Na perspectiva de um olhar oswaldiano sobre a Missa dos Quilombos poderíamos refletir: seria possível perceber um movimento antropofágico que, ao longo do tempo, sedimentando seu substrato “de rebeldia individual, [dirigindo-se] contra os seus interditos e tabus” (NUNES, 1970, p. xxvi), revolve o substrato dominante em seu próprio território hegemônico, o rito religioso, proporcionando, desta forma, se não uma cisão profunda, ao menos uma reavaliação das relações de poderes estabelecidos entre grupos étnico-sociais não apenas na formação cultural, mas nos rumos da condução da política nacional de direitos sociais?
Se tomarmos como verídico o fato de que a “sociedade brasileira surge aos olhos de Oswald de Andrade através das oposições que dividiram, polarizando a sua religião a sua moral e o seu direito” (NUNES, 1970, p. xxvii), não é menos verdade que a realização da Missa dos Quilombos é carregada de um simbolismo ímpar naquilo que ele entende pela “reversão cultural”. Ao menos isso é aquilo que se pode entrever não apenas nas rubricas de Pedro Casaldáliga: “Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles, o Sinai Negro de Palmares, e nasceu de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi” (MQ, p. 16); e na histórica, incisiva e contundente homilia de Dom José Maria Pires, Arcebispo de João Pessoa-PB, que se pode substancializar na fórmula “amaldiçoar o pelourinho e abençoar o quilombo”: “Chegou o tempo de tanto sangue [negro] ser semente, de tanta semente germinar” (MQ, Homilia, p. 27); mas sobremaneira na apresentação da celebração que, além de letras denunciantes e anunciantes de uma nova aurora, traziam em seu bojo a característica melodia dos atabaques africanos, aliada ao canto monótono de indígenas e rezadeiras nordestinas, prefigurando, desta forma, os elementos constitutivos de uma identidade nacional híbrida.
Nesse ponto torna-se imperativo o esclarecimento de alguns pontos. Tomar a Missa dos Quilombos sob uma perspectiva de uma antropofagia oswaldiana não requer, no entanto, compreender o alcance da Missa estritamente nos moldes da antropofagia. Aliás, o próprio conceito de antropofagia aplicado aqui, como salientado anteriormente, difere muito das práticas antropofágicas dos indígenas tupinambás, tão bem documentadas nos livros de Jean de Léry e de Hans Staden. Até mesmo sua aplicabilidade difere daquele pensamento oswaldiano que se propunha a pensar a antropofagia como modelo próprio de ser-estar-no-mundo que rompe definitivamente como um modelo ontológico europeu. Mas o que se presta aqui é justamente verificar em que medidas esse encontro/choque cultural se intercambiam e geram novas possibilidades de apresentação ritualística, operam novos dinamismos no reconhecimento da herança escrava na formação da identidade nacional e requerem a conquista de direitos sociais sempre negados.
Apontamentos sobre questões históricas do contato entre culturas
Apesar das reavaliações históricas acerca do contributo histórico das culturas menorizadas no processo de construção nacional, tornou-se natural afirmar que aquilo que se convencionou chamarmos de Brasil nasceu sob o signo da fé cristã apoiada pela expansão ultramarina. Fé e Império tornaram-se símbolos indissociáveis de um processo de configuração do pensamento ocidental. Baseado na elaboração de uma subordinação hierárquica de concepção de mundo e de formas religiosas, a Europa cristã, pondo-se no ápice da hierarquia, subjugou outras formas de pensamento e explorou um sistemático processo de remodelamento epistemológico dos povos. No caso do contato com as terras brasileiras, herdamos o processo de conversão das mitologias em modelo racional cartesiano. Desta forma, as celebrações culturais nas quais os corpos fossem elemento de destaque, foram paulatinamente menorizadas. O próprio conceito germinal de dignidade humana trazido pelo cristianismo, enxergou na antropofagia estrutural indígena, um fator de loucura e escândalo para com seu semelhante.
É exatamente nesse ponto que Jean de Lery4 , sendo cristão, aponta para a ferida dura pretérita do cristianismo: operou com violência a dizimação dos povos originários, abandonando o conceito de valorização do processo civilizatório cultural e do poder do humano em intervir de forma positiva no decurso histórico. O ritual antropofágico, em sua concepção interna de alteridade (não poderíamos falar em conceito de semelhante porque não se sabe se possuem conceito análogo) via na deglutição de seu inimigo o modo pelo qual havia o encontro mútuo de suas heranças e potências criativas do porvir. O pertencer ao inimigo, mediante um processo de guerra tribal, é sinônimo de valentia e bravura. E essa mesma valentia e bravura retroalimentava o desejo recíproco das tribos.
Nessa seara de concepções epistemológicas distintas, houve o choque entre culturas. É Jean de Lery quem observa o primeiro sinal de uma concepção de alteridade na cosmogonia indígena por meio do ritual antropofágico. Lery narra com longos exemplos nos quais os indígenas se mostravam receptivos ao contato com o outro. Há também os relatos jesuíticos; neles encontramos que a tarefa de ensinamento do cristianismo era bem recebida pelos povos autóctones que se atentavam aos gestos de ensinamento ao ponto de reproduzi-los, mas alertavam os escritos jesuíticos que ao fim dos ensinamentos e lições os povos voltavam às práticas antigas, demonstrando que a abertura ao outro, nesse aspecto específico, era apenas um mimetismo imediato. No entanto, o respeito, ainda que inconsciente, por parte dos indígenas, já apontava, segundo os jesuítas, ao senso de posse da visão da luz da verdade ao longe, que era naquele momento a mensagem salvífica cristã.
Se para o cristianismo a racionalidade era ponto indissociável para experenciação da fé, para as religiões ameríndias e africanas a divindade requer o corpo. O próprio cristianismo necessitava do corpo na presença do verbo que se encarna e atua na história humana. Mas no cristianismo o corpo já havia sido saneado. Prevalecia no século XVI a primazia da razão. Corpo saneado, divindade interditada. No contato com a cultura e religiosidade afro-americana, o cristianismo, para garantir sua permanência sobretudo na estrutura das organizações estatais, teve que operar um forte interdito e permanente censura de tais manifestações.
Nesse ponto vale a própria máxima oswaldiana: “O espírito recusa- -se a conceber o espírito sem o corpo”. A antropofagia era uma instituição do corpo; só o guerreiro capturado em combate era deglutinado pela tribo; a força de seus ancestrais e seus deuses se faziam pertencentes a todos nesse momento. Ao negro, também é no corpo que a divindade se exulta; e mais grave, no corpo interditado por uma instituição jurídica que o escraviza e o esvazia de sua humanidade. A história se inscreve e se escreve no corpo material que conjuga as ações históricas. A antropofagia enquanto rito ou modelo racional de conjugação de atos se realiza na substancialização da materialidade do corpo. Esse mesmo corpo executa ações sociais de integração e alijamento. Nessa perspectiva, dentro do panorama da Missa dos Quilombos, é inconteste o lugar do corpo negro na formação cultural brasileira. Sofrendo interditos ritualísticos e científicos5 , o seu lugar estava demarcado até a apoteose da Missa dos Quilombos que, ainda que não se possa falar de uma rebeldia inversa, não deixa de ter suas implicações práticas na elaboração de modelos sociais posteriores: o deus da apreensão racional, agora é louvado e experenciado no corpo negro flagelado e periférico.
O lugar do corpo negro
As teorias evolucionistas contemporâneas afirmam que o processo de expansão humana pelo mundo se iniciou em África. Ainda que as provas arqueológicas disponíveis sejam irrefutáveis, a aceitação de uma herança genética mundial pertencer ao continente mais explorado pelo racionalismo europeu torna-se um entrave difícil de se contornar. Percebe-se que, na seara moral e religiosa, essa região ainda é vítima de um processo estrutural de negação e eclipsamento de seu protagonismo; basta lembrar da pretensa maldição de Cam que fundamentou (e em alguns casos contemporâneos ainda é base validadora de certas ações depreciativas) a exploração e subjugamento da raça negra.
Apesar de odiosa e condenável, a escravidão dos negros vigorou sob a tutela do Ocidente cristão por aproximadamente quatro séculos. Os relatos de cenas da inumanidade com que os negros foram tratados nos famosos navios tumbeiros é por todos conhecidos. Em sua obra poética Castro Alves denuncia, quase em tom épico e sombrio, a escravidão como uma nódoa social grave. Navio negreiro possui uma sonoridade denunciativa retumbante no qual ecoam o apelo final: “Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!”. As cenas pintadas no referido poema dão ideia do tom lúgubre e pesado com que os corpos negros eram tratados durante a viagem: “tinir de ferros... estalar de açoites.../ Legiões de homens negros como a noite/ Horrendos a dançar.../ Negras mulheres, suspendendo às tetas/ Magras crianças, cujas bocas pretas/ Rega o sangue das mães (...)” (ALVES, 2013, p. 20). Amontoados de corpos empilhados e quase sem alimentação, chegavam ao fim da viagem esqueléticos e quase sem vida. Aos que por sorte sobreviviam, eram-lhes aguardado o cerceamento da liberdade e escravidão certa em mercados que comerciavam seus corpos como produto comum e mensurável; aos que morriam durante o percurso, esperavam-lhes a cova rasa ou o silêncio das águas do oceano.
Embora Castro Alves levantasse a voz já em 1868, e mesmo após a denúncia tardia de Euclides da Cunha em 1902, é apenas com o trabalho sistemático de inúmeras personalidades jurídicas e políticas que a questão do negro toma vulto no Segundo Reinado e no processo de redemocratização do país na década de 80 do século XX e passam a ocupar as agendas de debate acerca da necessidade de abolição, no primeiro caso, e de reparação histórica, no segundo.
O estadista Joaquim Nabuco já alertara para a necessidade de valorização da herança negra na constituição do corpo social brasileiro, no entanto, tal defesa parece estar mais atrelada a uma perspectiva de preocupação de ordem econômica, política e diplomática que efetivamente um reconhecimento e valorização daquilo que o negro trazia como costumes, língua, forma de pensar e apreender o mundo que se manifesta concretamente na nossa cultura. Em análise mais detida, a própria percepção da literatura que tomava a questão da escravidão como tema estava muito distante de um debate amplo e profundo sobre as reais necessidades de abolição, seja numa perspectiva humana ou moral. No poema de Castro Alves a ênfase repousa na repulsa subjetiva das cenas dantescas dos castigos corporais; ao objeto, escravidão, o tema pouco importava.
Mesmo envolto numa densa névoa de interesses político-econômicos, a denúncia de Joaquim Nabuco, e seu levante abolicionista de reconhecimento da necessidade de resgate da influência africana no processo de constituição da nacionalidade – “a africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe-pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua, e na única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar” (NABUCO, 2011, p. 27) –, parece ter repercutido pouco ou quase nada no meio intelectual brasileiro que, influenciado por um cientificismo cada vez mais patológico, caminhava para aquela política de gabinetismo e academicismo já apontado, ao ponto de Braz de Souza Arruda (apud SCHWARCZ, 1993, p. 188) afirmar que “no Brasil o indivíduo sempre foi letra morta”.
A pouca preocupação efetiva com aquilo que em breve se nomearia direitos humanos e dignidade da pessoa humana é bem refletida na elaboração dos estudos etnográficos que se implantaram no Brasil entre 1870 e 1930, “profundamente vinculados aos parâmetros biológicos de investigação e a modelos evolucionistas de análise” (SCHWARCZ, 1993, p. 67), os quais não consideravam em suas análises questões de ordem subjetiva, apenas considerando em suas pesquisas esquemas estritamente mensuráveis, relegando a segundo plano, minorizando ou desconsiderando em sua totalidade, elementos que fugissem a essa perspectiva empirista, caso, por exemplo, da religiosidade africana e indígena que, distante de uma concepção racionalista do qual o cristianismo em certa medida gozava, é valorada apenas através do prisma científico, como no emblemático caso analisado por Nina Rodrigues acerca do famoso evento de Canudos, interior da Bahia:
Na fase sociológica que atravessam as populações nômades e guerreiras dos nossos sertões, a crise social e religiosa por que elas passam se há de escavacar o segredo dessa crença inabalável, dessa fé de eras priscas em que a preocupação mística da salvação da alma torna suportáveis todas as privações, deleitáveis todos os sacrifícios, gloriosos todos os sofrimentos, ambicionáveis todos os martírios. Ainda a ela há de vir pedir o futuro, o segredo desse prestígio moral que desbanca, a ligeiro aceno, toda influência espiritual do clero católico, assim como dessa bravura espartana que faz quebrarem-se de encontro à resistência de algumas centenas rústicos campônios à tática, o valor e os esforços de um exército regular e experimentado (RODRIGUES, 2000, p. 145).
A análise de Nina guiava-se por princípios de ordem pretensamente objetiva que desconsiderava o valor das manifestações religiosas já em processo de sincretismo como valor positivo. Se considerarmos que grande parte da população do interior brasileiro, caso de Canudos, era formada por homens negros livres ou descendentes de escravos, compreendemos por que era preciso criar um arcabouço científico que diminuísse o valor ético dessa manifestação religiosa, colocando-a numa escala de primitivismo dentro de um panorama evolucionista. Por um lado, a moralidade religiosa rebaixava a manifestação das divindades africanas, por outro, a ciência empirista validava tal inferiorização calcando suas manifestações religiosas e culturais num complexo sistema de avaliações em que o corpo era tido como primitivo numa escala ascendente. Mas se a ciência ignorava tais pressupostos, o mesmo não pode se dizer de uma parcela da literatura que, indiferente ao academicismo, seguia resistindo e tornando-se único elemento denunciador de tais atrocidades. Como afirmado, é o caso de Castro Alves que foi lembrado por Nabuco (2011, p. 16) ao afirmar que “na sua Tragédia do mar não pintou senão a realidade do suplício dantesco, ou antes romano, a que o tombadilho dos navios negreiros servia de arena, e o porão de subterrâneo”. Como não se compadecer da situação humilhante de humanos que eram escravizados e tinham seus corpos marcados com o chicote e açoite? Como passar incólume à profunda herança trazida por esses povos?
O fato é que o negro sofreu interditos imensos na composição da cultura brasileira, inclusive após o processo de abolição quando foram substituídos pela mão-de-obra, e consequentemente, cultura europeia. É sabido de todos o arcabouço jurídico e político montado no período pós-abolição que ampliava a rejeição à cultura negra. Para efeito de exemplificação, à revelia da lei de abolição da escravatura (Lei 3.353/1888) que trazia apenas dois artigos e nenhuma forma de amortização do impacto gerado pela sua aplicabilidade, o Decreto 528/1890 que regulamentava a imigração no Brasil proibia a entrada de pessoas originárias da África e ainda dava aos imigrantes permitidos a entrar no território nacional uma ajuda governamental pelo período de seis meses. Até mesmo no período em que vicejou a escravidão havia um complexo sistema jurídico que reificava o negro e validava seu status de escravo. Rejeitados no Romantismo, saneados no cientificismo, adormecidos no Modernismo, esquecidos no processo de industrialização, a revolução cultural negra só desponta na Missa dos Quilombos timidamente a partir da década de 1980, e para tanto, diferentemente do sincretismo que necessitou passar na Colonização para sobrevivência, na Missa dos Quilombos parece ter surgido com mais vigor e de fato “deglutinou”, para utilizar uma linguagem oswaldina, a cultura hegemônica de seu colonizador ao se apropriar de seu rito religioso subvertendo-o.
Mas a sistemática operação de inferiorização da cultura negra na constituição do panorama brasileiro nem sempre logrou o êxito pretendido. É bem ilustrativo o pensamento de Joaquim Nabuco (2011, p. 25) sobre esse tópico. O que ele chamou de “vingança das vítimas” pode ser interpretado pelo modo de adaptação sob forte regime de vigilância e censura e pela forma com que os negros penetravam na intimidade da casa grande senhorial a “educar” as gerações patronais. Torna-se óbvio que essa interpretação, mais condizente com uma avaliação das relações étnico-raciais herdeiras de uma hermenêutica de Gilberto Freyre, possui seus pontos fracos e superficiais que desconsideram toda relação traumática e de subordinação. Mas ainda assim seria salutar perceber dentro da dinâmica da Missa dos Quilombos uma busca ou desejo de reparação dos problemas crônicos a partir do interior da celebração religiosa hegemônica?
Dificilmente, se de fato houver o intuito de reparação, ela partirá de um movimento estrutural e amplo, mas o posicionamento dos atores religiosos Pedro Casaldáliga, Helder Câmara e José Maria Pires como mentes que capitaneiam tal ação, demonstram o compromisso ético e de reparação que são protagonizados na elaboração da Missa. Torna-se óbvio, no entanto, que essa leitura deve ser uma hermenêutica exógena e que não se substancializa plenamente no intuito da elaboração da Missa, mas pode ser compreendida a partir de suas consequências culturais. Desde esta perspectiva, o anúncio revolucionário de “Trancados na noite” implica naquilo que Oswald nomeara de totemização do tabu, pois propõe, a priori, possivelmente numa leitura imediata, uma inversão daquilo que se tornara efetivamente a referência da cultura nacional, “o gabinetismo, o academicismo (...) a mania das citações” (NUNES, 1970, p. xxi); contrariando um debate de cunho cientificista que se instala no Brasil sobremaneira a partir de 1870 e que leva adiante uma discussão estritamente empirista sobre a população brasileira. Se a miscigenação do povo brasileiro se tornara uma questão de importância maior nesse período, o modo como foi tratado não reflete uma preocupação com o bem-estar e a valorização da mistura de raças, mas sim uma tentativa, sob viés evolucionista científico, de tentar explicar tais razões e as perspectivas negativas que referida miscigenação daria no seio da nacionalidade.
Tancados na noite6 , uma espécie de prelúdio da Missa, afirma que depois de adormecidos seus valores humanos e culturais no panorama histórico mundial, é chegado o momento da valorização negra na construção desse mesmo empreendimento civilizacional. Uma metáfora acerca dos conceitos universais dos Direitos Humanos e da proposição cristã de amor universal. Se a noite representa essa força crepuscular em que jazeu adormecida a potência de construção do braço escravo, é na força da revolução que se apresenta a aurora do novo tempo e de um novo dia. A rebeldia não se torna gratuita e de força reativa, mas construtiva; a “só Casa Grande do Pai” não é mais o símbolo do chicote, açoite, punição e diferenças sociais, mas o espaço de congregação e união dos povos, uma espécie de nova utopia em que todos se equivalem num diálogo humano e fraterno.
No entanto, e em que pese a sua colocação no tempo, Missa dos Quilombos foi produto de uma sensibilidade da intelectualidade eclesiástica, e parece, contemporaneamente não ter produzidos os frutos necessários devido sua precariedade de concepção. Precariedade não no sentido substancial de suas letras, melodias e ritmos que provam sua força étnica e poética; precária porque, semelhante ao modo como o negro foi introduzido e tratado por séculos no Brasil – como bem denota as palavras de Nabuco e a ação de Euclides no interior da Bahia –, não nasce no núcleo da Igreja nas práticas das Comunidades Eclesiais de Base como foi a Missa da Terra-sem-males e a política indigenista; aqui estabelece-se a profunda diferença entre as duas Missas. O indígena, aliás, tão martirizado quanto o negro, gozou, em certa medida, de políticas reparadoras na aplicabilidade jurídica e vislumbrou no Modernismo um agente que se apossou de parte de sua concepção de mundo ao apresentar ao universo estético e político novas formas de encarar a arte; fato semelhante não ocorreu com a questão negra que, usurpados de sua terra, “deportados como ‘peças’ da ancestral Aruanda” (MQ, p. 16), esperaram ainda anos para ver sua cultura ser conjugada com a hegemônica cultura branca por meio de seu maior rito religioso, a missa.
Missa do Quilombos: uma (est)ética antropofágica?
Não se pode entender a história do continente latino-americano desconsiderando os choques traumáticos dos primeiros encontros dos povos. É ali que se configura, a partir da concepção de mundo e sua estrutura do conhecimento, todo o arcabouço jurídico do Estado que valida e define as normas de relações sociais. Talvez só o Modernismo tenha colocado o choque traumático como ponto nevrálgico a ser considerado numa avaliação substancial de nossa constituição cultural. Mas ele o toma apenas a partir de uma volta às origens, do mesmo modo que havia ocorrido no Romantismo. Apesar de mergulhos distintos, ambos momentos históricos (para não dizer apenas estético) não se aprofundaram no drama da escravidão como base essencial para se pensar a questão em perspectiva ampla.
Muitos pontos poderiam se levantar acerca da aproximação da tese oswaldiana da antropofagia com a Missa dos Quilombos. Mas seria escuso apontar tais problemáticas, importa apenas a sua máxima definida na emblemática frase: “só a antropofagia nos une”, para avaliarmos sob esse prisma toda o panorama histórico nacional. De imediato, a concepção acerca dessa aproximação ou acercamento de possibilidades protagonizado pela densidade de tal assertiva nos leva a refletir e questionar: sendo missa/ritual, qual a sua efetividade política? Ora, a própria ação de proibição de sua execução pública como ritual religioso católico nos leva a perceber de um lado sua “perniciosidade” interna e sua potência externa quando se transubstancia em ato político (ético) e teatral (estético).
O “levante”, que tardiamente se apresenta, proclamado em apocalípticas palavras ao som de atabaques africanos: “Trancados na noite, milênios a fora/forçamos agora/as portas do dia./Faremos um povo de igual rebeldia/Faremos um povo de bantus iguais” (MQ, Abertura-Trancados na noite), se conjuga ao canto denunciativo de “Á de Ó” que, nas palavras de Dom José Maria Pires, é o “recolhimento do sangue de Zumbi, símbolo da resistência de nossos antepassados [que] fala, clama; e seu clamor começa a ser ouvido” (MQ, Homilia, p. 24). À semelhança da tradição religiosa católica que elege e constrói seus mártires, aqui também se opera fator similar, mas, diferentemente de figuras distantes, importadas de outras plagas, forja-se mártires provindos do mesmo local, de histórias que se conjugam no mesmo espaço, provocando assim uma identificação própria, nativa.
O clamor que começa a ser ouvido, como bem salientou Dom José, é aquele que provém “do exílio da vida/ das Minas da noite/ da carne vendida/ da lei do açoite/ (...) do alto dos morros/ dos trens dos subúrbios” (MQ, Á de Ó) e, conjugados à revolução Caraíba, “maior que a Revolução Francesa” (ANDRADE, 1970, p. 14), traduzem a reversão dos dogmas e figuras incólumes de nossa cultura intelectual, fazendo de Vieira, Anchieta, Goethe e D. João VI meros emblemas caducos e fadados ao ostracismo e esquecimento que se contrapõem aos mitos culturais nativos. Notemos que o clamor negro provém justamente da base social, do braço motor que construiu economicamente a nação. É do chão da oficina que emerge a revolução porque é do povo, o mesmo que teve seus direitos negados durante séculos, que nasce o poder.
Tomados em paralelo comparativo, o Manifesto antropófago de Oswald e a Missa dos Quilombos, ambos trazem em suas letras uma capacidade de conjugação histórica periférica. Uma força centrípeta que traz ao centro do debate figuras marginalizadas e anônimas, mas imprescindíveis à constituição de uma identidade coletiva. No Manifesto, estes mitos culturais nativos, sobretudo os indígenas, satiricamente, numa operação antropofágica, zombam de sua própria apropriação que os domesticara no Romantismo ao apresentarem-no com costumes europeus. A entrega do segredo da Jurema7 que Iracema havia operado ao colonizador lusitano, se reveste, dentro da antropofagia oswaldiana, na revolução Caraíba que afirma que “o que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior” (ANDRADE, 1970, p. 14), o racionalismo que a tudo coordena e dirige e se separa de uma experiência sensorial imprescindível ao conhecimento humano.
Na Missa dos Quilombos, a poética extrapola os próprios limites da atualidade se configurando numa ação que se presentifica, se realiza, na reivindicação negra que, forçando as barreiras da minoridade e sujeição, metaforizadas/condensadas nas estrofes que indicam uma ação coletiva dos “negros da África, os afros da América, os negros do mundo” (MQ, Entrada), têm, nesta confederação global, a proposta de reverter o drama histórico e a cisão cultural brasileira da casa grande e senzala. O panorama que se avizinha é o mesmo que apontara Oswald ao contrapor as instituições nativas e estrangeiras, as portas que se abrem são para formação de um povo antropofágico, ou de “igual rebeldia, de bantus iguais na só Casa Grande do Pai” (MQ, Entrada).
A senzala é suprimida, ou na melhor hipótese oswaldiana, invade a casa grande, “[n]a imersão de tudo, [n]a invasão de tudo” e protagoniza “uma língua sem arcaísmos, sem erudição” (ANDRADE, 1970, p. 6), apropriando-se das referências colonizadoras e apresentando a “poesia [que] existe nos fatos”; sacralizando o profano e profanando o sagrado, fazendo do “carnaval do Rio um acontecimento religioso da raça” (ANDRADE, 1970, p. 5) e rompendo com um estatuto jurídico escravagista e validador de diferenças sociais assentadas.
Missa dos Quilombos se constitui numa odisseia antropofágica oswaldiana porque não carrega em si a pureza autóctone indígena pré- -cabralina, nem a política extrativista lusitana, mas é a simbiose do espírito capitalista europeu dos “trabalhadores assalariados, peões de fazendas, pé de boia-fria, artista varrido” (MQ, Rito penitencial – Kyrie) que emergem do “chão da oficina, dos trens dos subúrbios” para lembrarem, chorarem, gritarem, clamarem e, por fim, lutarem por seus direitos sociais e protagonismo histórico-cultural
A acompanhar o pensamento de Oswald (1970, p. 149), as utopias que apontam no horizonte um mundo moderno e humanista, fruto de “uma consequência da descoberta do Novo Mundo e, sobretudo, do novo homem”, conhecem seu crepúsculo precoce com a exploração inumana dos negros africanos. Os lusitanos rasgaram os tratados humanistas que a Europa vislumbrou com o contato com os povos originários americanos e arrancou da África a mão de obra que sustentaria por séculos sua política econômica. Para a África não valia a máxima de expandir a fé e o Império na mesma proporção. Só o último prevaleceu, e a fé foi despida da caridade cristã que não encontrou em peito negro o “tornar-se o outro” do evangelho.
A Missa dos Quilombos ao se espraiar e romper os grilhões da celebração eucarística religiosa, traz Deus à baila e concretiza aquilo que Oswald (1970, p. 153) preconizara n’A marcha das utopias:
Nós, brasileiros, [somos] campeões da miscigenação tanto da raça como da cultura, somos a Contra-Reforma, mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte. Somos a Caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a Bandeira estacada na fazenda. O que precisamos é nos identificar e consolidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais e históricos.
Essa identificação de que fala Oswald talvez tenha sido um dos maiores problemas enfrentados ao longo da nossa história. De onde provêm nossa identificação? De além-mar? Na Europa? Na África? No próprio território? O sentido último da antropofagia parece ser o reconhecimento de todas essas possibilidades em convívio. Aliás, a própria concepção de utopia, para Oswald, dificilmente seria correlata absoluta das utopias clássicas, senão como aceitação das tensões; convivências de possibilidades em si que não pretendem nem aspiram a uma absolutização. Todavia, a rejeição ao interior do Brasil como elemento constitutivo parece ser o grande entrave desde o processo de interiorização. O fato é que o momento histórico que precede o movimento Modernista está totalmente imbuído de um mergulho numa cultura estrangeira em detrimento da interiorana. Poder-se-ia interpretar num grito do interiorano que busca reconhecimento de seu valor em pé de igualdade do exógeno, uma solicitação, em outros termos, de direito à integração.
O próprio fato da viagem de Mário de Andrade, outro nome indissociável do Modernismo, pelo interior do Brasil “recolhendo” a diversidade cultural que compõe a nação é em si um movimento contrário à hegemônica cultura de direcionamento para o mar; ainda que a necessidade e importância de um mergulho na vida interiorana já tenha sido alertada por Nabuco e Euclides. A viagem de Mário é o despertar da intelectualidade brasileira para os valores antropológicos dos povos periféricos que durante séculos construíram sua cultura e modo de viver e experenciar próprios. Aliás, a mistura de ritmos e cores que alegram e enfeitam a Missa dos Quilombos é apenas uma pequena parcela desse multifacetado espectro cultural que compõe o Brasil em que cantos de incelenças de origem indígena e atabaques africanos louvam de forma igualitária a divindade. Não sem grandes razões, a Missa dos Quilombos se constitui numa ferida narcísica na tão buscada brasilidade, porque reafirma, e acima de tudo reivindica, o papel do negro na formação da nação. Cobra o papel humanista europeu nascido com os indígenas e rasgado com a África. A Missa dos Quilombos profana o espírito religioso europeu do até então incólume deus judaico-cristão e sacraliza o corpo na celebração da vida. Ali se realiza o verdadeiro encontro do corpo com a alma; o corpo dolente e aguerrido do africano, o corpo rasgado e sangrado na África com o recato peculiar e indolente do europeu, com a alma transcendente europeia, com sua virtude de contemplação colonizadora.
Na Missa dos Quilombos a Europa permite de fato se encontrar com a África numa relação que não impunha hegemonia, prevalência ou supremacia étnica. Abre o quintal de sua celebração religiosa máxima para, como fizera no passado em África e América, ser “invadida”, tomada pelo delirium do corpo africano embevecido no êxtase dos seus ancestrais que, do fundo da terra, se apresentam aos seus vizinhos desconhecidos. Uma ação que lembra a peculiaridade da proposta oswaldiana no Manifesto: “O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores” (ANDRADE, 1970, p. 15).
efêmera resistência indígena, denotam a permanência daqueles no espírito formativo da mentalidade brasileira, e mesmo mundial. Essa resistência, à revelia de uma perspectiva saneadora da cultura colonizadora, não atinge sua maturidade sem antes causar grande alvoroço e dano a um projeto “civilizador” e doutrinador da cultura hegemônica. A consubstancialização da cultura negra no rito religioso por meio de fortes expressões poéticas, musicais e denunciativas (como nas apresentações dos bispos Câmara e Pires) também rompem com a imagem assentada no imaginário coletivo do senhor bondoso e do escravo submisso e intelectualmente inferior. Ainda que, como falado anteriormente, a Missa seja fruto de uma intelectualidade eclesiástica, sua força estética provém da completa cultura africana.
Por isso, pode falar com autoridade Casaldáliga (MQ, p. 16): vindos “do fundo da terra”, “da carne do açoite”, “do exílio da vida”, os Negros resolveram forçar “os novos Albores” e reconquistar Palmares e voltar à Aruanda. E estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões – em casa, na rua, no trabalho, na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Esperança”.
Mas o que a Missa dos Quilombos parece apontar não é para um movimento de gesta como ocorrera com o mito indígena no Romantismo. É, no entanto, perigo, rebeldia, transvaloração; é o submundo dos subjugados, dos “marginalizados, nos cais, nas favelas” que do “fundo da terra, do ventre da noite, da carne do açoite” (MQ, Á de Ó) emergem, num panorama dantesco castriano ao revés, para incomodar a ordem social assentada e estabelecida de uma nação que se julga eminentemente branca, neoeuropeia.
Em certa medida, Missa dos Quilombos reacende uma questão identitária nacional anos depois da vanguarda modernista, abrindo mais uma vez a ferida narcísica que assola o Brasil desde o contato do “civilizado” e do nativo. Mas é interessante se notar o longo tempo que a construção (utópica ou não) dos “novos Palmares” permaneceu adormecida, só despertando tardiamente nos anos da década de 1980. O longo processo de rejeição do negro como pedra basilar da nacionalidade passa pelas disputas econômicas-políticas da Abolição e do processo de embranquecimento protagonizado logo depois no bojo dos avanços cientificistas eugenistas que aportaram no solo brasileiro.
A convicção, ou ademais, o desejo de uma sociedade igualitária final, tipicamente característica das utopias renascentistas, ainda que interessante, não parece ser a pretensão última da Missa, que tende a inclinar-se para uma concepção e entendimento não totalizante da história. A Missa exprime uma utopia simultaneamente de volta ao passado, isto é, mesmo envolto numa névoa densa de preconceitos e negação de existência, o passado da vida quilombola representa a existência real da resistência e exemplo de vida comunitária que, atualizada, converte-se num exemplo de “igual rebeldia” agora acalentada pela liberdade plena.
A utopia negra de que fala a Missa traz consigo o mesmo problema com que o Manifesto havia se encontrado, ser universal sem renegar sua singularidade, ser regional sem rejeitar o contato com o outro, fazer do choque e do trauma arena de novas possibilidades que não renega sua herança, ainda que não a acolha em sua integridade. A conjugação fraternal proposta na Missa pinta de cores particulares sua utopia. Baseada na concepção clássica lança-se no futuro, mirando e trazendo no corpo as marcas do passado, assentado sobre o presente de conquistas e lutas. Apropriando-se, numa tarefa antropofágica, da celebração eucarística católica, Missa dos Quilombos converte o paraíso edênico no quilombo negro, o canto angelical na capoeira escrava, abole a senzala, apossasse da casa grande e carnavaliza a festa final: “braços erguidos, os Povos unidos, (...) sendo Negro o Negro, sendo índio o índio (...), Zumbis, construtores dos novos QUILOMBOS queridos” (MQ, Marcha Final-De banzo e de esperança).
A construção da utopia negra de Palmares se concretiza com o direito de usufruto da terra sempre negado. Os frutos da terra, plantados e colhidos pelo braço escravo num sistema de divisão de classes validado por um Estado não são mais frutos usados como produtos de enriquecimento de uns, mas sim frutos de um trabalho coletivo que surge para manutenção de uma vida em comunidade. Na palma da mão trazemos o milho, a cana cortada, o branco algodão, o fumo-resgate, a pinga- -refúgio, da carne da terra moldamos os potes que guardam a água, a flor do alecrim, no cheiro de incenso, erguemos o fruto do nosso trabalho, Senhor! Olorum! (MQ, Ofertório). É interessante notar que a Missa também é característica de uma época na história do Brasil em que as lutas sociais marcam as reinvindicações populares pelo fim do regime ditatorial
O messianismo que brota de Missa dos Quilombos é apenas aparente, sua vertente estritamente utópica não apresenta um discurso reflexivo-crítico com sua delimitação de pressupostos e problemas, mas, à maneira oswaldiana, busca numa cadeia complexa poética e de imagens construir uma densidade filosófica de pura criação artística, trazendo aos problemas sociais históricos, soluções novas que não as velhas questões debatidas na história do pensamento social.
O possível anacronismo no qual Missa dos Quilombos emerge não é de todo absurdo. O próprio empreendimento de Mário de Andrade, citado anteriormente, pelos “sertões”, descobrindo os brasis que formam um caleidoscópio cultural ímpar, aponta para uma perspectiva de desconhecimento, ou mesmo empreendimento dirigido de recusa, da cultura interiorana na cultura brasileira. Vide o caso de Euclides que só forçosamente, após o contato no teatro de operações, reconhece o valor e importância dos “sertões” – entendendo-se, aqui, o termo no sentido de povo e território – ao denunciar a campanha militar: “aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime.” (CUNHA, 2005, p. 28) –; não sem antes revelar a total indiferença pelo interior, contrapondo o litoral “civilizado” e o sertão retardatário: “A civilização avançará nos sertões (..) no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.” (CUNHA, 2005, p. 27).
O descaso com o interior e seu povo, aliado à política eugenista posterior sobremaneira à década de 1930 são apenas traços singulares que explicam a eclosão “tardiamente” de Missa dos Quilombos já num solo cultural apto para tal, não sem sofrer fortes censuras eclesiásticas e até mesmo políticas. Resta saber, como bem pontuou Eduardo Hoornaert em janeiro de 1982 na Revista Tempo e Presença, se a inserção do negro na celebração religiosa católica, ainda possui algum significado de reverência a sua cultura, demonstrando o valor intrínseco do encontro entre as culturas, ou se, depois de tantos séculos de indiferença, sufocamento e choques, tal iniciativa não tem mais nenhum significado profundo, tornando-se mera apresentação estética que não alcança o cerne da questão étnica e cultural primordial dessa relação há séculos conflitantes.
De todo modo, Missa dos Quilombos extrapola os limites da sacralidade religiosa e de seu rito, fala “em nome do Deus de todos os nomes, Javé, Obatalá, Olorum, Oió” que “faz toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue” (MQ, Em nome do Deus) e conjuga a herança multiétnica e cultural de todos os povos que aportaram nesse território, sem, entretanto, esquecer de referenciar a dívida humana para com a raça negra, denunciando sempre, através do “negro embranquecido pra sobreviver. (Branco enegrecido para gozação). Negro embranquecido morto mansamente pela integração” (MQ, Rito penitencia l - Kyrie), todo um sistema de apagamento da memória e herança suas.
Reflexões finais
A racionalidade europeia trouxe profundas transformações positivas ao gênero humano; é por meio dela que nasce o preceito da dignidade humana que nos brindou desde o tempo da Revolução francesa e do liberalismo inglês, pontos importantes a serem refletidos, ponderados e postos em prática como acordo comum de pacificação entre os povos. No entanto, essa mesma racionalidade mostrou sua faceta patológica ao elaborar uma complexa teia de dominação e subjulgamento de povos tidos como inferiores, seja numa escala moral ou pretensamente científica. Desde o tempo das grandes navegações, a razão que elaborou máquinas capazes de desafiar a natureza hostil, também foi capaz de dizimar completamente populações indígenas e de escravizar milhões de corpos negros africanos, reduzindo-os à mera objetificação.
Se o clamor de uma reestruturação do pensamento ocidental passa por um processo de revisionismo histórico e de valorização cultural, então podemos perceber que o processo de choque cultural deve caminhar numa perspectiva de câmbios mútuos. Nesta perspectiva, Missa dos Quilombos, assim como a Missa da Terra-sem-males, poderia ser uma cantata, um poema, mas nasceu como missa, e não poderia ser diferente. Sendo missa torna-se ação antropofágica. Mergulha no passado escravizado, no presente de luta e resistência para empunhar as armas do futuro recolhidas no contato com o outro, o colonizador. A Missa dos Quilombos é uma missa de memória, remorso, denúncia e compromisso. Após terem suas culturas interditadas, e até mesmo dizimadas, pela cultura hegemônica do colonizador, suas culturas emergem não de forma original e cândida, também não pudera após o contato, mas num movimento de contágio, choque e apropriação mútuos transformam-se e oferecem, contemporaneamente, um novo sentido no qual o outro se faz presente no eu coletivo, mas esse eu coletivo original sobrevive no outro.
Missa dos Quilombos, por fim, pode (e deve) ser entendida como esse movimento, da Igreja na América Latina ou não, que se volta para a necessidade de conjugar a prática social de reparação de um Brasil que insiste em se voltar para uma Europa e renegar a própria cultura e heranças de diversos povos que, ao longo de intermináveis 500 anos, constituíram esse espectro multiétnico-cultural. Em outros termos, é o despojamento de um iluminismo pretensamente universal e o reconhecimento de igualdade num mundo de equivalências.
O movimento antropofágico requer necessariamente um encontro com o outro, e mais ainda, obriga, num movimento de globalização cada vez mais acentuado e irreversível, a sobrevivência através das apropriações e renúncias comuns a todos. Desta forma, Palmares se constitui nesse lugar comum de todos, renovando Utópos, Cocanha, Parságada, Terra sem Males; mitos, crenças e convicções de distintos povos que deságuam na mesma perspectiva, um lugar de convivência senão pacífica, ao menos fraterna, neste ou noutro além.
O canto final de Missa dos Quilombos, atrelado ao manifesto/conclame famoso do Arcebispo Dom Hélder Câmara, Invocação à Mariama, completam esse arcabouço étnico ímpar da cultura negra que, impossibilitado de um retorno ao primitivismo cultural originário, abraça uma antropofagia necessária e une-se ao desejo ocidental-europeu de uma utopia renovada. Utopia essa, que do sonho do Eldorado lançam as brancas velas por mares nunca dantes navegados, pintam-na de rubro com o sangue negro e esperam, na contemporaneidade, fazer uma nova utopia, “a negra utopia do novo Palmares”.
Referências
ALVES, Castro. Navio negreiro e vozes d’África. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013.
ANDRADE, Oswald de. Obras completas: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Lacerda editores, 2005.
MISSA dos Quilombos – 1982. São Paulo: Abril, 2012. 48p.: Il.; 14cm + CD – (Coleção Milton Nascimento; v. 17).
NABUCO, Joaquim. Que é o abolicionismo? Seleção de Evaldo Cabal de Mello. – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald de. Obras completas: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
RODRIGUES, Nina. A loucura epidêmica de Canudos. Antonio Conselheiro e os jagunços. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. III, num. 2, 2000, pp 145-157.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870- 1930. 10ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Notas
[1]Indubitavelmente a farta troca de correspondência jesuítica acerca dos costumes dos povos locais e do processo de conversão constitui uma melhor fonte de informação comparada ao relato isolado de Jean de Lery; mas a insistência nesse último como fonte de informação mais usada aqui, refere-se apenas por ser ele quem melhor documenta as questões antropofágicas.
[2]Refere-se à Euclides da Cunha quando escreveu sobre a Guerra de Canudos e, distante temporalmente dos fatos, lançou-se no desafio de revisitar os acontecimentos com crítica mais apurada e pretensamente mais imparcial.
[3]Nesse aspecto, as aspecto, as ações de personagens como Vieira na América lusitana e Bartolomeu de las Casas na América espanhola, configuram o exemplo católico pela compreensão da alteridade dos indígenas.
[4]Nesse aspecto, as aspecto, as ações de personagens como Vieira na América lusitana e Bartolomeu de las Casas na América espanhola, configuram o exemplo católico pela compreensão da alteridade dos indígenas.
[5]A questão do saneamento do corpo negro dentro de uma perspectiva científica é interessante e exibe os limites da racionalidade europeia em sua pretensão de universalidade. Mesmo rivalizando com a religião em seus pressupostos epistemológicos internos, o cientificismo ainda bebe da racionalidade que configurou a religião no Ocidente. Claro seria que trouxesse algumas heranças, sobremaneira na sua vigilância pela hierarquização dos saberes. Para a Ciência, o corpo negro também era inferior, agora numa escala evolucionista e não criacionista.
[6]“Trancados na noite, milênios afora/ forçamos agora/ as portas do dia/ Faremos um povo de igual rebeldia/ Faremos um povo de bantus iguais/ na só Casa Grande do Pai/ Os Negros da África/ os Afros da América/ os Negros do Mundo/ na aliança com todos os Povos da Terra”
[7]Metáfora presente em Iracema de José de Alencar que representa a força nativa brasileira que se doa e se entrega ao domínio “civilizador” do europeu.