Tecnocracia como ordem política antinatural no romance O Fruto do vosso ventre, de Herberto Sales
Technocracy as an antinatural political order in the novel O Fruto do vosso ventre by Herberto Sales

*Fabrício Tavares Moraes
*Doutor pelo programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora, com doutorado sanduíche (bolsista CAPES) em Queen Mary University of London (Inglaterra). Professor Adjunto A do Curso de Licenciatura de Linguagens e Códigos da Universidade Federal do Maranhão. Contato: fabricio.tavares@ufma.br
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Resumo
O presente artigo analisa o modo como o romance O fruto do vosso ventre, de Herberto Sales, publicado originalmente em 1976, representa esteticamente a estrutura e ações de uma tecnocracia autoritária num mundo distópico. A obra, dividida em três partes com estilos e formas diferentes, demonstra, de certo modo, como a gestão autoritária de uma sociedade serve-se da própria corrupção e empobrecimento da linguagem. Por meio disso, o romance narra uma gradual alienação coletiva, que se pauta tanto na usurpação das potencialidades comunicativas do ser humano quanto numa dinâmica social de desumanização. Em contraposição a essa alienação, porém, surge uma narrativa teológica, de fundo messiânico, que transporta o ideal querigmático para um cenário moderno. Desse modo, busca-se investigar como o autor, a partir de suas experiências empíricas e políticas numa ditadura tecnocrática, transpõe para o plano estético as relações entre linguagem, autoritarismo, messianismo e teologia.

Palavras chave:Literatura brasileira; tecnocracia; Evangelhos; linguagem; modernidade.

 

Abstract
This paper attempts to analyze the aesthetical representation of the structure and actions of an authoritarian technocracy in the dystopic novel O fruto do vosso ventre, by Herberto Sales, which was originally published in 1976. This book is divided into three parts each one written in a different prose style and form. The author shows throughout the plot how the authoritarian sway is based upon the corruption and impoverishment of the language. Therewith, in the narrative, it is described as a collective alienation of a society which obliterates the human ability to efficiently communicate and promotes a real and gradual process of dehumanization. Further down, the author nonetheless tackles that same alienation by a theological and messianic-like narrative which has brought and applied a kerygmatic ideal to a modern setting. Thus, this paper aims to describe how the author, himself living in a real technocratic dictatorship at that time, has transposed to the aesthetical domain the relationships between language, authoritarianism, messianism, and theology.

Keywords: Brazilian literature; technocracy; Gospels; language; modernity.

Introdução

Nas obras que constituem o que os críticos literários denominam distopia, não é rara a presença de uma autoridade cujos centros de atuação são difusos (e por isso intangíveis), porém interligados numa coesão impecavelmente racional. Essa forma de poder que atua regida por uma força lógica que despreza toda nuance história, social e emocional, reduzindo os indivíduos sob seu domínio como entidades puramente racionais, é também comumente designada de tecnocracia.

Ora, exemplos dessa forma de governo não faltam na literatura distópica, cuja gestão não só dos recursos, mas da própria natureza humana é pautada nos rigores silogísticos de uma concepção racionalista da sociedade: desde os célebres 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, até a obras recentes, como Infomocracy, de Malka Older. No Brasil, também tivemos autores que apresentaram em suas obras um mundo distópico regido por tecnocracias; por exemplo: Adaptação do funcionário Ruam, de Mauro Chaves; Não Verás País Nenhum, de Ignácio Loyola Brandão e O Fruto do Vosso Ventre, de Herberto Sales.

Neste último, que abordaremos aqui, a tecnocracia é não somente um governo desumano (já que, partindo de uma concepção antropológica equivocada e reducionista, termina sufocando as demais dimensões do ser humano), mas também, segundo a estrutura e o próprio título do livro (quando confrontado com a narrativa) indicam, antinatural.

Dito de outro modo, nessa obra de Sales, a tecnocracia, conforme julgamos, é primariamente uma caricatura da providência divina, que exalta as capacidades governamentais de administração de todas as necessidades e funções humanas (no livro, isto inclui a função reprodutora), e que parte do pressuposto do domínio total, por meio dos saberes científicos, sobre a totalidade da natureza. Nesse sentido, mais que uma distorção política que resulta da exacerbação de certas funções do Estado, a tecnocracia, no romance em questão, é um projeto antinatural, diríamos mesmo anticriacional. Nas três seções que se seguem, analisaremos detidamente o modo como os entes (materiais e imateriais) do universo humano são desfigurados, deformados e eventualmente anulados pelas medidas antinaturais da tecnocracia, demonstrando, ao menos provisoriamente, como a obra de Sales, inserindo-se numa tradição especulativa, apresenta o projeto tecnocrático moderno como uma política contrária à natureza e bem-estar de todos os indivíduos.

A parábola invertida: primeira parte do Romance

Publicada em 1976, em pleno “milagre econômico” da ditadura militar brasileira, o romance de Sales, integrando sob certos aspectos a produção nacional de obras de ficção científica, trabalha, sob linhas ficcionais, as realidades duras percebidas e impostas sobre os vários segmentos sociais do país de então.

No entanto, sob a forma de ficção científica, que é frequentemente vista (de modo um tanto equívoco) como especulação ou tentativas de divinação, Sales lançou-se à crítica do funcionamento e gestão do Estado autoritário que se mantinha, numa falsa e frágil legitimidade, por meio de suas promessas de crescimento econômico e expansão do bem-estar da população. Foge ao nosso presente interesse uma análise mais detida sobre a relação entre ficção científica, especulação e teorização; no entanto, para que se evite os lugares-comuns que muitas vezes se sobrepõem ou mesmo impedem uma análise mais criteriosa de obras de ficção científica, recomenda-se uma leitura das propostas de autores como Kodwo Eshun, Mark Fisher e outros, conhecidos como teóricos do “capitalismo tardio”, para quem a ficção científica tem hoje no mundo um papel mais teórico que especulativo, visto que seria a forma mais apropriada de percepção e apreensão das realidades aceleradas, dinâmicas e mutáveis deste momento histórico regido sobretudo por recolha e manipulação de dados.

O romance O Fruto do Vosso Ventre é dividido em três partes, tendo sido cada uma delas escrita com um estilo e formato diferentes. A primeira, em tom parabólico, narra como a Ilha (que, conforme veremos, é uma metáfora não só do próprio Brasil, mas de toda a modernidade) viu-se ameaçada pela escassez e penúria em razão da multiplicação acelerada de coelhos, que, desequilibrando o ecossistema, destruíam e consumiam as hortas e alimentos dos seres humanos. O primeiro parágrafo da obra já nos lança, media res, num estado social e ecológico quase calamitoso:

E, um pouco mais adiante no relato:

Então, um belo dia, os homens começaram a temer que os coelhos, depois de comerem todas as hortaliças, invadissem em massa a cidade, disputassem aos homens os outros alimentos, nos armazéns e dentro de suas próprias casas. A população tomou-se de pavor: se os coelhos invadissem a cidade, acabariam deixando os homens sem os outros alimentos, como já os haviam deixado sem as suas hortaliças (SALES, 1976, p. 10).

Como dito, Sales nos apresenta, por meio de uma espécie de parábola, uma crise ecológica, econômica e social da Ilha, que será, por sua vez, o cenário de todo o romance. Ora, não é de desconhecimento geral que as ilhas, dada sua própria configuração geográfica, serviram de símbolo para toda sorte de relato utópico: seja a ilha paradigmática da Utopia de Morus, a da obra Cidade do sol, de Campanella, ou mesmo, ironicamente, a ilha voadora de Laputa, de Swift, onde viviam intelectuais nefelibatas, deslocados de toda a realidade e imersos em reflexões tão abstratas ao ponto de se tornarem fantasias.

Sendo uma parábola, ao menos no modelo que se tornou comum com a difusão das narrativa bíblica, “uma metáfora estendida, isto é, [uma] narrativa de pessoas e eventos comuns que são o contexto para uma percepção e entendimento do estranho e do extraordinário”, segundo a definição de Sallie Mcfague Teselle (1974, p. 630), temos, nessa obra de Sales, não só a inversão irônica do gênero utópico (trata-se de uma distopia que se passa justamente num cenário comum às utopias), mas também uma sinalização para o tom bíblico, diríamos mesmo profético, que perpassa todo o livro, mas que culmina na terceira parte (veremos adiante).

De pronto, a imagem de coelhos pululando e ameaçando toda a ordem social não é nova: para além dos relatos das religiões monoteístas, para as quais gafanhotos, anfíbios e roedores são flagelos, sinais da ira divina contra um povo, já que destroem rapidamente suas colheitas e seus meios de subsistência, havia, na Idade Média, em especial por meio de gravuras e representações, essa estranha imagem de “coelhos algozes” e lebres que caçavam humanos. Senão vejamos nas figuras abaixo:

Sem deter-nos nessas considerações iconográficas, digamos, em resumo, que duas possíveis explicações são aventadas para a dinâmica representada nesses quadros. Primeiramente, trata-se de uma inversão da própria ordem natural, isto é, as presas frágeis tornam-se os predadores; as pequenas vítimas dominadas pelos homens são agora sua maior ameaça. Em segundo lugar, e não muito distante da primeira acepção, temos perante nós uma espécie de perversão das fontes de vida: animais conhecidos por sua fertilidade transformam-se em agentes de morticínio, e a expansão da vida dá lugar à extinção dos homens.

Tais como as pragas do mundo antigo (gafanhotos e roedores), que em geral manifestavam a ira divina, os coelhos agora ameaçam o mundo dos homens, tanto a ordem social (mais frágil) quanto sua própria subsistência física. A solução para esse flagelo, conforme os homens do romance conceberam, foi o extermínio atômico:

Um dia, os homens sobrevoaram de helicóptero os campos da Ilha e, durante uma semana, bombardearam todos os lugares onde se achavam concentrados os coelhos. Milhares e milhares de coelhos fugiram para as praias, em desespero. Mas, conhecido o medo que os coelhos têm da água, medo somente comparável ao que eles descobriram ter das bombas, nenhum deles se aventurou a entrar no mar. Assim, foram igualmente bombardeados nas praias, até voar pelos ares o último deles. E com isto se acabaram os coelhos (SALES, 1976, p. 10).

A primeira parte da obra conta com pouco mais de cinco páginas, e nela já se apresenta a ideia do Dirigente da Ilha, que vendo simultaneamente o sucesso do “controle populacional” dos coelhos e o crescimento posterior e surpreendente dos homens, e orientado por um ideal malthusiano, propõe também um rígido controle de natalidade à Ilha. Isso nos leva ainda a duas observações.

Em primeiro lugar, por meio desse relato de extermínio animal, que revela e antecipa na obra a crueldade das ações da tecnocracia instalada na Ilha, a obra nos permite uma análise do que hoje críticos literários (Pieter Vermeulen e Eric Santner, por exemplo) e autores como J.M. Coetzee e Olga Tokarczuk (ambos premiados pelo Nobel) chamam de “vida criatural” ou ainda “vulnerabilidade criatural”. Segundo Santner, esse conceito.

Significa um modo de exposição que distingue seres humanos de outras formas de vida: não simples exposição aos elementos ou à fragilidade e precariedade de nossas vidas mortais, finitas, mas sim a uma ausência derradeira de fundamento para as formas históricas de vida que distinguem a comunidade humana [...] Poderíamos dizer que a precariedade, a fragilidade – a “nudez” – da vida biológica é potencializada, amplificada, por meio da exposição à contingência radical das formas de vida que constituem o espaço de sentido dentro do qual a vida humana se desdobra, e que é somente por meio dessa “potencialização” que assumimos a carne da vida criatural. A criaturalidade é, pois, uma dimensão não tanto da vulnerabilidade biológica quanto da ontológica, uma vulnerabilidade que permeia o ser humano enquanto ser cuja essência é existir em formas de vida que são, por sua vez, contingentes, frágeis, suscetíveis à ruína (SANTNER, 2011, p. 5–6).

Partindo desse conceito, Vermeulen, analisando a literatura moderna e contemporânea, afirma que “quando a hierarquia estabelecida entre os domínios divino, humano e animal se tornaram inoperantes, essas diferentes ordens do ser se encontram em proximidade criatural” (VERMEULEN, 2015, p. 58). Isso não implica que esses domínios – em especial, o humano e o animal – se equivalem ou se anulam nas narrativas contemporâneas. Mais precisamente, a vida criatural implica uma “forma de vida que está inextrincavelmente ligada (embora não seja redutível) à vida animal” (p. 49), o que não significa que, “de algum modo, deixam de ser humanos e tornam-se animais; afinal, é um aspecto crucial de sua condição o fato de permanecerem vinculados às formas culturais que não mais os defendem de sua vulnerabilidade” (p. 55). É por essa razão, em suma, que em romances como os de Coetzee, Tokarczuk e, no presente caso, de Sales, vemos uma “forma de sofrimento criatural, e não animal: não apenas as dores físicas da vida biológica, mas também um sentimento de vulnerabilidade e precariedade que advém da fragilidade das formas que davam sentido à vida humana” (VERMEULEN, 2015, p. 65-66).

Os personagens permanecem sendo humanos, mas participam da “criaturalidade” (vulnerabilidade) de toda a vida biológica (em O Fruto do Vosso Ventre, especificamente os coelhos), já que os complexos industriais e militares não apenas ameaçam a existência dos entes, mas também produz, por seus efeitos, alterações na própria estrutura terrestre (antropoceno). Assim, o sofrimento dos animais exterminados, bem como a saturação dos recursos da Ilha, são, no romance de Sales, prenúncios do destino dos habitantes e espasmos da ordem natural como um todo.

Em segundo lugar, a gestão antinatalista do Dirigente da Ilha guarda semelhanças tanto com o relato do genocídio de bebês masculinos, ordenado por Faraó, segundo narrativa do livro bíblico de Êxodo, quanto a morte de crianças menores de dois anos, levada a cabo pelos homens de Herodes, no relato natalício do evangelho de Mateus. Com relação a essas narrativas bíblicas, além da natureza anticriacional, em desacordo com a ordenança edênica do “crescei e multiplicai-vos”, ambos os governantes (Faraó e Herodes), conscientes ou não, se opunham ao surgimento de um libertador: Moisés e Jesus Cristo, respectivamente. É o que se dará igualmente na segunda parte do romance de Sales, e mais intensamente na terceira, quando os agentes do regime tecnocrático perseguem um casal, José e Maria, que, em desobediência à lei, preserva a gestação da criança.

Como no caso de Faraó, contra quem pragas ecológicas foram lançadas em parte devido às suas políticas anticriacionais (como se a ordem natural, violada até certo ponto, por fim se tornasse um instrumento de castigo pela mão divina), a tecnocracia da Ilha terá seu julgamento precisamente em razão de sua governança artificialista e contrária à exuberância da existência humana. Tendo em mente essa comparação, cabe talvez, neste ponto, a intuição de Terence E. Fretheim, num artigo intitulado “The Plagues as Ecological Signs of Historical Disaster” [As pragas como sinais ecológicos de desastre histórico], em que demonstra como a narrativa das chamadas pragas do Egito traz em seu bojo uma analogia entre as catástrofes na natureza (operadas pela Divindade) e os desastres históricos ocasionados pela tirania de um governante. Nesse sentido, as crises ambientais estariam intimamente relacionadas à infração da ordem moral por parte de Faraó, de modo que, convergindo-se, levariam ao colapso da ordem social. Dessa maneira, segundo Fretheim:

A esfera cósmica na qual as pragas atuam correlaciona- -se diretamente com os pecados criacionais de Faraó, que são centrais na narrativa. Faraó esteve a subverter a obra criacional de Deus, de modo que as consequências são opressivas, pervasivas, públicas, prolongadas, desumanizantes, desoladoras e cósmicas, porque foram o efeito dos pecados do Egito sobre Israel – aliás, sobre a terra –, conforme sugere a recorrente linguagem acerca “[d]a terra”. Nesses exemplos em que Deus remove a praga, a linguagem apropriada é a da re-criação. Deus vence o caos e faz com que os elementos da ordem natural voltem a assemelhar-se mais estreitamente a seu escopo e intensidade originais (FRETHEIM, 1991, p.394-395).

Vemos também no romance essa mesma dinâmica que vai de uma origem divina harmônica, passando pelo caos implementado pela húbris humana e que termina com a restauração integral daquilo que se perdera por “políticas anticriacionais”. Essa analogia talvez lance mais luzes sobre a estrutura da obra, que imita o texto bíblico em sua conjugação moral e indissociável dos domínios do homem, da natureza e da transcendência.

O logos deformado da burocracia

A segunda parte do romance, a mais extensa, é, de modo geral, um grande exercício estilístico de Herberto Sales, por meio do qual leva literalmente à exaustão o jargão burocrático e tecnocrático das instituições modernas. Como já definiu Max Weber (2012), uma das características mais nítidas da época moderna é precisamente a substituição da autoridade carismática pela autoridade burocrática nos centros de poder do Estado moderno.1 Com efeito, nessa obra de Sales, temos toda a sintaxe labiríntica e tautológica, bem como as frases de efeitos, palavras de ordem e cacoetes das entranhas dessa nova força de legitimidade.

Ora, a comparação a Kafka é aqui quase imperativa, e de fato a maioria, quando não a totalidade, das obras literárias modernas que fazem referência ao caráter tortuoso da burocracia – tanto sua típica linguagem quanto suas fontes difusas de poder – partem obrigatoriamente de Kafka, ainda que para negá-lo. O que nos interessa presentemente, porém, é uma intuição visível em O Castelo, e que John M. Ellis apresentou recentemente, num artigo intitulado “How to read Kafka” (2018), como uma chave de leitura possível para várias obras do autor. Para Ellis, trata-se de um equívoco ou ao menos reducionismo lermos O Castelo como uma sátira à burocracia, somente. É claro, em outras obras do escritor tcheco, assim como de outros autores, há sempre a crítica ao conjunto já familiar de temas antiburocráticos: “sua [da burocracia] ineficiência, sua mediocridade, seu egoísmo, sua visão limitada, sua obtusidade e inércia” (ELLIS, 2018). A questão, porém, é outra nesse romance de Kafka. Ainda segundo Ellis:

O Castelo trata de algo totalmente diferente: o conflito entre nossa aceitação das instituições como uma parte normal da vida e a realidade de que elas são entes estranhos que exigem que ajamos como se fossem algo que não são. Acreditamos nelas, embora não possamos vê-las, ouvi-las ou tocá-las realmente. Atribuímos-lhes motivos, personalidades, desejos e mesmo um caráter moral. Confundimos suas locações físicas visíveis com aquilo que são: o castelo e o Castelo. Mas mesmo a mais simples questão nos coloca em problemas: quem fala pelo Castelo? Instituições são agregados de pessoas, mas nenhuma delas é essencial para sua existência [...] O Castelo de Kafka pode parecer-nos uma caricatura de uma instituição, mas qualquer um que escreva uma carta irada a uma grande organização percebe, mais cedo ou mais tarde, que não está escrevendo de fato para alguém. No mundo moderno, as respostas geradas por computadores somente tornam esse ponto ainda mais óbvio, mas não o muda realmente (ELLIS, 2018).

Portanto, de modo semelhante ao Castelo em Kafka, a instituição torna-se uma divindade plenipotenciária que se crê autossuficiente e que impõe sua vontade sobre a natureza, sobre a ordem da própria realidade. E em O Fruto do Vosso Ventre nos deparamos com um embate “mitológico” (e portanto fundante) entre a tecnocracia e o fluxo da vida manifesto nas gerações humanas; pois, metaforicamente falando, “uma instituição é antes semelhante a uma criatura mítica na qual concordamos em crer. Os pensadores iluministas desaprovavam a crença em mitos, mas o tipo de criaturas míticas invisíveis e inaudíveis que tinham em mente jamais teve qualquer influência real em nossas vidas, ao passo que o Castelo de Kafka é uma força poderosíssima” (ELLIS, 2018).

Para além das teses malthusianas (ou neomalthusianas) ocultas no pensamento dos tecnocratas da obra de Sales, e que seriam expressas em outras obras dos anos 1970 (o controverso Le camp des saints, de Jean Raspail, seria o melhor exemplo, já que mostra um mundo exaurido por imigrações colossais e predatórias), vemos uma espécie de teologia invertida da criação, pois as ideias propostas e aplicadas pela tecnocracia são sim assertivas (já que têm efeito imediato sobre o real) porém inférteis, pois desmantelam a ordem natural. Nesse sentido, a própria linguagem burocrática, na qual Sales se exercita quase ao ponto da virtuose, é em si mesma um elemento castrador, que legitima e acompanha os processos esterilizantes implementados pelo governo da Ilha.

Se, na primeira parte do romance, a tecnologia esteve a serviço do homem para salvá-lo da carestia por meio da extinção dos coelhos, na segunda parte da obra, por seu turno, além evidentemente de todo o aparato do Estado (que é, grosso modo, uma técnica), a própria linguagem propositalmente enfadonha e narcotizante serve de dispositivo tecnológico de controle e coerção. Por exemplo, numa sugestiva passagem sobre a “nova” acepção da natureza da linguagem na tecnocracia, vê-se a irônica dissociação entre palavra e subjetividade. Diz assim o técnico em comunicação visual:

Em outros tempos, a produção de textos, no que diz respeito ao estabelecimento da comunicação mediante o consumo específico e direto da leitura, era uma atividade exercida pelos escritores – indivíduos que dela se locupletavam para incutir na massa sentimentos dissociativos, sob o disfarce de narrativas fantasiosas, de cunho personalista. Na tecnocracia, essa atividade foi substituída pela comunicação audioescrita, que elevou a palavra, como meio de expressão intercomunicativo, a um plano usuário estrito, em função do interesse informático. O que quer dizer que a palavra, na tecnocracia, foi libertada de todo e qualquer relacionamento com as fontes de ansiedade e angústia exploradas pelos antigos escritores, mediante o emprego deformado e abusivo que dela faziam. Assim, a palavra passou a significar apenas aquilo que especificamente significa ou deve significar, em seu uso e consumo, como meio de produzir – comunicativamente falando – uma determinada informação (SALES, 1976, p. 90).

Esse adelgaçamento da palavra – a redução a um suposto conteúdo puramente informático e operacional –, de certo modo, antecipa a crescente informatização da vida humana, que hoje se vê em quase todas as nações, tanto nos seus procedimentos e protocolos internos quanto nas dinâmicas e tensões sociais.2 Curiosamente, porém, os tecnocratas julgam que, com essa redução das potencialidades da linguagem, estavam antes elevando-a, já que, eliminando as ambiguidades e evocações poéticas, realizavam mais eficazmente o propósito comunicativo. Dito de outra forma, todas as chaves interpretativas são reduzidas à pura referencialidade, e o imperativo torna-se o único modo verbal.

Semelhantemente, na obra, essa pauperização da linguagem caminha lado a lado com a despersonalização dos indivíduos. É por isso que Fernanda Pereira Soares, em sua tese intitulada “Autoritarismo, tecnocracia e natureza: representações da pátria brasileira em O Fruto do Vosso Ventre, de Herberto Sales (1976)”, chama-nos a atenção para vários “aspectos” dos personagens do romance, nomeadamente:

[...] a despersonalização – pois nenhum dos técnicos possui nomes próprios –, a profissionalização – pois todos os burocratas são chamados pelas suas especialidades, ou seja, o técnico em comunicação, o técnico em métodos contraceptivos, o técnico em biblioteconomia etc. O apego aos regulamentos pode ser evidenciado também no número de decretos e regulamentações elaboradas pelos tecnocratas em suas reuniões fechadas e extensas. Stephanou comenta que esse tipo de administração está longe de ser neutra, e constitui-se como uma forma de dominação, e este mesmo sistema foi incorporado pelos militares [brasileiros] em 1964 (SOARES, 2013, p. 45).

Como se sabe, há uma linha dentro dos estudos sociolinguísticos que trata das relações entre a corrupção da linguagem e os totalitarismos; provavelmente a obra mais conhecida (ou ao menos a seminal) que versa sobre essa relação é Lti: A Linguagem do Terceiro Reich (2009), de Victor Klemperer, um filólogo judeu que sofreu a perseguição nazista no período aludido no próprio título. Munido do instrumental próprio de sua ciência, aliado a uma sensibilidade quase artística, Klemperer relatou na obra todo o processo de embrutecimento da linguagem, que aparentemente tornou parte também de uma “corrida armamentista” e militarização da sociedade alemã. A desumanização dos judeus por parte dos nazistas, como é evidente pelos relatos históricos, deu-se por um processo paulatino, mas intenso, em que a palavra – em segmentos da academia, da imprensa e da religião – servia essencialmente para o ataque e instilação de um pathos virulento e ressentido sobre os receptores.

Trazendo essa intuição central para o romance de Sales, vemos, na tecnocracia ali descrita, um análogo àquilo que o escritor inglês Tom McCarthy (2015) denomina de “regime de sinais”, isto é, ordens e comando sucessivos, por vezes simultâneos, impede ou desordena a articulação da subjetividade humana com a realidade. As atualizações recorrentes transmitem a (falsa) impressão de que se está em coordenação com a dinâmica do real; só que o custo desse acompanhamento das mudanças e das novas contingências é a perda das nuances, das reentrâncias e rugosidades da tessitura do real. Nesse regime, o mundo se apresenta, pois, como uma platina fluida, uma superfície cristalina mutável, e não mais como uma realidade sólida, com recônditos que exigem uma percepção também profunda.

Assim, os tecnocratas da Ilha imaginam que, destruindo a capacidade evocativa da linguagem, serão capazes de uma administração mais otimizada da sociedade e de uma solução mais rápida dos eventuais problemas. É por isso que, complementando sua fala categórica e depreciativa sobre os artistas, dizem:

Quando se diz, por exemplo, “doce”, a palavra “doce” não deve visar a produzir um estímulo sinonímico de “mansidão”, como queriam os escritores, mas, unicamente, o estímulo informático que lhe é natural. Isto é: o estímulo gustativo, como informação objetiva de uma coisa adoçada mediante o emprego de uma substância “doce”. Afinal, doce é aquilo que é doce ou tem sabor doce. Por conseguinte, a palavra “verde” não deve significar outra coisa senão o que significa – ou exprime – como informação de uma determinada cor. Em suma: a cor verde nada mais é que a projeção visual da palavra “verde” (SALES, 1976, p. 90).

Ignorando a coerência que há entre os vários estratos da realidade, a tecnocracia fecha os olhos para as analogias e semelhanças que existem dentro do escopo da experiência humana. Com seu afã classificador (e, portanto, diferenciador), reduzem a linguagem à sua simples função crítica de separação. Com isso, a pluralidade do real se desfaz, e as associações entre os diversos entes, tão comuns na consciência humana, são homogeneizadas numa linguagem monista e monolítica.

Com isso em mente, a tecnocracia, confundindo otimização com progresso, conjuga sua engenharia social com uma espécie de engenharia linguística, castrando (ou tentando fazê-lo) as palavras de suas ressonâncias simbólicas. Sem a “aura” de associações ou analogias possíveis entre as coisas deste mundo, a tecnocracia da Ilha se propõe como a fonte de legitimidade social; como um centro biopolítico (um polo que governa inclusive seu ecossistema); e, por fim, como uma segunda palavra fundante, como um verbo emanante que, nas palavras de Martin Heidegger (2012), busca um “desvelamento do ser”.

Obviamente, porém, como vimos, o logos da tecnocracia, reduzindo a palavra à simples razão, ao seu aspecto puramente referencial (e funcional), esteriliza tanto a criação simbólica quanto a reprodução da vida.

O Evangelho de Sales

A terceira e última parte do romance inicia-se com uma epígrafe retirada do livro bíblico de Eclesiastes: “Não há nada novo debaixo do sol”. Não somente o conteúdo desta parte do livro faz eco – por vezes cifrado, por vezes explícito – ao relato dos Evangelhos, mas também sua própria forma (linguagem) e diagramação (em versos e capítulos) mimetizam os livros das escrituras cristãs.

Em poucas páginas, o enredo nos conta como Maria e seu esposo José, transgredindo as ordens do governo da Ilha, combinam uma fuga pela madrugada, na intenção de salvar a vida da criança ainda no ventre. Cruzando as montanhas sobre um jumento, e indo em direção ao mar, buscam refúgio, como no relato de Natividade, num casebre que encontram pelo caminho. Coincidentemente, se tratava da morada de um ex-sacerdote, de quem provavelmente esperaríamos uma maior sensibilidade para com a situação desamparada do jovem casal; o homem, no entanto, lhes nega auxílio e lhes dirige um pequeno discurso antiteísta (voltaremos a isso). Depois dessa cena, o casal, por fim, chega à praia, refugia-se numa caverna, onde José improvisa uma marcenaria para construir um barco para a fuga. Durante um temporal, um pequeno boi veio abrigar-se também na caverna; condoídos do animal, o casal o acolhe, pois “era, como o jumento, um animal manso” (SALES, 1976, p. 191).

Enquanto isso, a Chefia da Guarda, o órgão da Ilha responsável pela sanção dos transgressores (no caso, aqueles que não obedeciam às restrições reprodutivas do governo tecnocrata), tendo descoberto a fuga do jovem casal, envia dois homens para persegui-lo e derradeiramente matá-lo. Nessa perseguição, deparam-se também com a casa do velho sacerdote, que por sua vez informa aos guardas o possível caminho tomado pelos “transgressores”. Curiosamente, porém, o padre justifica sua insensível delação apelando à lei: “E o antigo padre respondeu: Sois homens da lei. E os homens não podem viver sem leis; e por isto as fazem. Que se cumpra, pois, a lei” (SALES, 1976, p. 191).

Os guardas, em recompensa, lhe dão três moedas e, seguindo sua orientação, partem em direção aos montes. De imediato, porém, vemos o que aparentemente é o primeiro indício de uma ação sobrenatural num mundo até então dominado pelo mecanicismo burocrático:

Mas, nem bem tinham andado alguns metros, ouviram atrás de si um grande ruído, e se voltaram. E ficaram espantados com o que viram: a casa do antigo padre, que já estava parcialmente destruída, acabara de desabar de uma vez, sepultando-o sob os seus escombros. No lugar dela, havia agora um monte de tijolos e telhas quebradas, em meio a uma nuvem de pós, sob um grande silêncio. E um dos guardas disse ao outro: Ainda bem que, antes de morrer, ele teve tempo de praticar uma boa ação, contando-nos o que sabia acerca da transgressora. E os dois retomaram a caminhada (SALES, 1976, p. 192).

O que parece uma nota final irônica revela, antes, a insensibilidade e a inversão axiológica promovida pela lei e práticas inumanas da tecnocracia da Ilha. A denúncia por parte do ex-padre (personagem que, em outras condições, e segundo as expectativas gerais, teria provavelmente auxiliado o casal) é um resultado natural de um mundo que eliminou (ou tentou fazê-lo) os afetos e dinâmicas dos relacionamentos humanos, entregando nas mãos de tecnocratas e legistas todo o domínio das escolhas morais.

Ademais, a menção à recompensa (“três moedas”) remete, talvez prontamente, ao relato da traição de Judas, que entregou Jesus Cristo, segundo os relatos dos Evangelhos, por trintas moedas de prata. A casa subitamente derruída é uma alusão tanto aos julgamentos divinos imediatos e destrutivos sobre cidades e nações (Egito, Gomorra, Babilônia) quanto aos hábitos semita e canaanita de maldição sobre casas (que em geral é uma forma antiga de designação de famílias e sua continuidade geracional).3

Os homens, por fim, chegam à gruta onde estavam a família e seus animais, e deparam-se com uma cena de Natividade:

[...] viram, então, o que nunca haviam imaginado ver: deitada sobre umas palhas estava uma criancinha, sacudindo os braços, e sorrindo; e de um lado havia um boi, e do outro, um jumento; e, curvados sobre a criancinha, um homem e uma mulher a olhavam tão embevecidos, que não os viram entrar (SALES, 1976, p. 193).

A descrição dos animais presentes ao nascimento da criança, dentro de uma gruta, é uma reprodução deliberada dos ícones ortodoxos (cuja tradição crê que o nascimento do Cristo se deu não num presépio, mas numa manjedoura improvisada numa gruta). Um dos guardas diz de imediato à mulher: “Fizeste-nos perder um bom tempo buscando-te. Mas, nem tudo está perdido, pois te encontramos. És acusada de transgressão da lei. Trago comigo o documento, que terás de assinar antes da execução. Porque tenho ordem de executar-te, e a teu filho” (SALES, 1976, p. 193). Segue-se um diálogo dramático em que Maria e, em seguida, José dispõem-se ao sacrifício de si mesmos para que o filho seja salvo. Um dos guardas, porém, “tendo-se apiedado da criança, disse ao companheiro: Não faças esta desgraça!” (p. 193), ao que o outro retruca: “estás do lado deles ou do lado da lei?”

Assim, pela primeira vez na narrativa, um agente da tecnocracia é tomado por um dilema; esse despertamento da sensibilidade conduz a um “ato de traição” de sua parte, pois, para salvar a criança, mata o colega com um disparo no coração. Assim, aquele que até então perseguia o casal passa a ajudá-los na fuga; descobre, em seguida, o barco que José já havia terminado e ocultado na gruta, bem como o plano do casal, que “esperava apenas a criança completar um mês, para fugir[em] pelo mar” (p. 194). Aturdido com esse plano incauto, o guarda repreende o casal, e, por meio de sua fala, nos mostra que possivelmente aquela distopia se valia também da crença de que a Ilha era única porção sobrevivente de todo um mundo anteriormente transtornado por eventos apocalípticos:

Como podes ter alimentado tão insensato plano? Desde os grandes terremotos, que acabaram com o mundo, o mundo ficou circunscrito à Ilha. Não há mais nada do outro lado do mar. E, fugindo pelo mar, estarás condenado a perecer com tua mulher e teu filho, pois não encontrarás nenhum sítio onde aportar (SALES, 1976, p. 194).

Ao que José, manifestando, também pela primeira vez na narrativa, a percepção de um poder outro que não a tecnocracia, responde:

Não importa se viermos a perecer juntos no mar, porque pereceremos longe daqui. E isto é o que importa. Porque há uma força superior, que desde o começo nos impele para o desconhecido. E será ao desconhecido que daremos testemunho da iniquidade que reina na Ilha (SALES, 1976, p. 194).

Tendo lançado o barco ao mar, carregado de provisões concedidas pelo próprio guarda, José e sua família partem e ouvem ao longe somente o estampido do tiro com que se matara aquele que antes lhes perseguia. O romance se conclui com o “sexto capítulo” dessas escrituras, que narra como, trinta anos depois da partida de barco, toda uma multidão seminua que se banhava na praia testemunhou uma súbita luz que, vinda do mar, “tomou então uma forma humana”: mais especificamente, “um homem [que] vestia uma túnica branca, e tinha barba e cabelos compridos”, que caminhava sobre o mar. Dirigindo-se ao meio da praça da Ilha, disse, com uma voz que rolou, como trovão, por toda a ilha: “Vinde a mim as criancinhas”. A narrativa assim prossegue:

11 E sucedeu que, no mesmo instante, toda a Ilha tremeu. E desabaram os edifícios da praça, onde se achavam instaladas as altas autoridades. E ruíram as chaminés das grandes fábricas, e todas as suas instalações. 12 E dos escombros, como se saíssem de cascas de ovos, começaram a sair crianças (SALES, 1976, p. 195).

Essa cena pitoresca conjuga o julgamento da Ilha e o nascimento de um novo mundo. Os adultos que sobreviveram ao terremoto fugiram para os montes. No entanto, sobrenaturalmente, um tremor de terra fez com que os fugitivos desaparecessem no mar, restando apenas “duas ou três centenas deles. E [estes] viveram para testificar a iniquidade de que haviam participado, e que naquele dia teve fim” (SALES, 1976, p. 196). É-nos também dito que, a partir daquele dia, “foi instaurado na Ilha o governo das crianças”. O homem luminoso que operara aqueles feitos retorna ao mar e sobe aos céus, envolto por um círculo de nuvens, perante os olhares das crianças.

Três elementos mencionados anteriormente nos são importantes para uma compreensão devida da crítica de Herberto Sales à natureza da tecnocracia, e especialmente, à tecnocracia do regime militar brasileiro na época da publicação da obra. Trataremos desses elementos, porém, em linhas gerais. Primeiramente, como já aludido, o discurso do ex-padre nos mostra uma posição não simplesmente secularizada; antes, como demonstra pela sua fala, a autoridade divina havia sido transferida para a instituição centralizadora da Ilha: “E disse-lhe o ancião: Em verdade, fui um servo de Deus. Mas, o tempo do governo de Deus passou. Em lugar do governo de Deus, instituiu-se a administração dos homens. E nem por estar velho posso eu deixar de ser um homem do meu tempo. Porque meu tempo é o tempo que eu vivo” (SALES, 1976, p. 190). Na percepção desse homem, a tecnocracia transformara-se numa espécie de providência imanente, que tinha soberania até mesmo sobre os aspectos biológicos dos cidadãos da Ilha. Note-se que as palavras são cuidadosamente escolhidas: de governo passa-se à administração, isto é, de um mundo que antes estivera sob uma regência pautada pela justiça e ordem, os homens e mulheres da Ilha passara para (e foram submetidos a) uma simples gestão e manejo, como se fossem recursos escassos. Como o velho ex-sacerdote, foram integrados ao novo tempo, regido fundamentalmente por relações economicistas.

Em segundo lugar, a construção do barco por José (o marceneiro) é também uma alusão à célebre narrativa bíblica da arca de Noé, que se tornou a salvação de uma nova humanidade que se havia afastado da corrupção e violência generalizadas na terra. A referência é ainda mais significativa na medida em que, segundo o relato do guardião (possivelmente uma ficção ou “revisionismo histórico” realizado pelos tecnocratas da Ilha), não havia mais terra fora ou além daquela região. Nesse sentido, assim como Noé inaugura uma nova raça humana que se manteve fiel e afastada da iniquidade reinante dos povos, José, Maria e o menino são a semente de uma nova criação que se recusa a submeter-se às injustiças da Ilha. A criança no ventre é o rebento de um novo mundo, marcado pelo amor: “O que em ti [Maria] está gerado, não devia estar; e se gerado está, eu o tomo como sinal. Porque este é um sinal de que o amor pode mais que a iniquidade” (SALES, 1976, p. 183). O contraste aqui entre o velho mundo da Ilha e o novo mundo de um Messias é pautado pela oposição entre a “iniquidade da lei” (as políticas de extermínio e gestão da vida humana na Ilha) e o “amor”. Sintomaticamente, o ultimato, a desesperada lei promulgada para o controle dos cidadãos e consequente extermínio das crianças havia sido denominada “A Medida Final”, que, como se percebe, guarda claros ecos com “A Solução Final” dos nazistas.

Em terceiro e último lugar, a manifestação messiânica, trinta anos após a fuga do casal, além de uma evidente referência a Jesus Cristo (seja pela idade em que inicia sua pregação apocalíptica, seja pela reprodução exata de seu chamamento às crianças), é um jogo entre uma visão utópica e uma visão profética, pois, na simbologia de um Isaías ou de um Jeremias, o mundo restabelecido pelo Messias seria tão seguro, que crianças e idosos poderiam explorá-lo sem quaisquer receios, pois toda forma de hostilidade teria cessado. Acrescente-se ainda que, nesses mesmos profetas, há promessas de um rebento, um infante ou um novo broto que, saindo do tronco geracional do povo de Israel, traria restauração e reestabelecimento de um governo pacífico e justo [nota]. Assim, os eventos finais são uma forma de cumprimento da segunda parte da fala do Cristo citada acima, isto é, “pois a elas [crianças] pertencem o Reino de Deus”. O governo das crianças marca, portanto, a instalação do reino do fim dos tempos, da completude da história.

Em certo sentido, essas crianças talvez ressuscitadas dos escombros da tecnocracia, sejam a afirmação política de Sales (que vivia os horrores da ditadura), embora apresentada em chave cifrada, de que a inauguração de um novo mundo só pode dar-se com o retorno dos que se perderam ou foram apagados no antigo mundo da tecnocracia.

Considerações finais

Conforme vimos ao longo desta breve abordagem, Sales, trabalhando rigorosamente a forma do romance, mostra, por meio de três gêneros e estilos diferentes, não só a estrutura política, mas principalmente a estrutura linguística da tecnocracia. Acreditamos que as intuições de Sales podem aplicar-se, de modo geral, a toda forma de governo que acredita ou propõe a redutibilidade da vida e personalidade humanas a uma de suas funções (qualquer que seja ela), e o perigo, em especial aos literatos, da utilização também tecnocrática da linguagem.

Evidentemente, com isso não afirmamos que a obra é uma simples transposição alegórica de conceitos políticos para a estrutura literária (o que possivelmente inviabilizaria a obra como testemunho estético). Antes, limitamo-nos à perspectiva de que, como várias outras distopias literárias, o romance O Fruto do Vosso Ventre demonstra como tecnocracias (um fenômeno essencialmente moderno) autoritárias ou totalitárias necessariamente distorcem a linguagem, e, ao fazê-lo, atentam contra a dignidade e natureza do homem como ser também simbólico.

É talvez por isso que, no romance analisado, Sales, um escritor reconhecido por seu uso competente, experimental e inovador da linguagem, valha-se sequencialmente da parábola (linguagem em chave moral), da linguagem estamental burocrática (em estilo irônico) e da linguagem bíblica-apocalíptica (num espírito “visionário” e esperançoso) – insuflando assim um sopro de criatividade numa língua que, se deixada ao contento de iniciativas propagandistas, publicitárias e burocráticas, tende a esvair-se.

Como já disse Amóz Oz (2015), escritor recentemente falecido, os escritores são uma espécie de bombeiros da linguagem, ou seu “detector de fumaça”, que alertam e denunciam, por meio de seu grito, a presença da linguagem corrompida, que é um possível sinal da subsequente desumanização de certos grupos. À vista da crescente dessensibilização e mesmo truculência do debate público nas democracias atuais, cremos que o romance de Sales não só nos oferece intuições, mas principalmente contribui para a formação de uma sensibilidade estética, moral e política.

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Notas

[1]Obviamente isso não implica que a autoridade ou apelo carismático tenha desaparecido de todo nas relações e dinâmicas sociopolíticas da modernidade; pelo contrário, muitos já levantaram a objeção de que os totalitarismos europeus, assim como os populismos e autocracias latinos, se deverem, em parte, ao menos num primeiro momento, ao apelo carismático, “místico” e sacro de seus líderes. No entanto, também é lícita a contraposição de que Weber está tratando de uma dinâmica histórica geral, e não de exceções que justamente corroboram sua intuição da natureza da autoridade no Estado moderno.

[2]Talvez a situação se torne mais clara se lembramos da etimologia da palavra “cibernética”, isto é, o termo grego kybernus, cujo significado original é “governo”. Os proponentes iniciais da cibernética entendiam-na justamente como um sistema operacional (portanto enclausurado em si mesmo) de transmissão de ordem e recebimento de comandos, como se vê na obra seminal de Norbert Wiener, Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. Ademais, embora fuja ao recorte deste artigo, na obra Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política, de Evgeny Morozov, há intuições valiosas sobre a relação do império e “ciência” dos dados (o chamado Big Data) e o fim das formas políticas como conhecemos e praticávamos ao menos desde a ascensão do Estado-nação.

[3]Exemplos disso são a aliança feita à casa de Davi, uma metonímia que designava, como o próprio rei deixa claro, a dinastia davídica (livro de 2 Samuel, capítulo 7, verso 11). De igual modo, quando, muito posteriormente, os apóstolos decidem por sortes um homem que substitua o ministério apostólico de Judas, amaldiçoam a memória de Judas citando um trecho de um salmo: “Fique deserta a sua morada; e não haja quem nela habite” (livro de Atos, capítulo 1, versículo 20).