O ESPANTO DA LUZ E A INOCÊNCIA
DA CARNE - (a poesia de Sophia de
Mello Breyner e de Adélia Prado)
THE SPANTS OF LIGHT AND THE
INNOCENCE OF THE FLESH -
(the poetry of Sophia de Mello
Breyner and Adélia Prado)
*Maria Clara Lucchetti Bingemer
*Doutorado em Teologia
Sistemática pela Pontifícia
Universidade Gregoriana
(1989). Atualmente
é professora titular
no Departamento de
Teologia da PUC-Rio.
Contato: agape@puc-rio.br
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Resumo
Este texto procura aproximar e, mais
ainda, fazer dialogar a poesia da portuguesa
Sophia de Mello Breyner Andresen com a da
brasileira Adélia Prado. Ambas são mulheres,
casadas e mães de família. Ambas escrevem
em língua portuguesa, uma em Portugal e
outra no Brasil. Ambas levam em sua poesia a marca inegável da Transcendência e da
aliança entre divino e humano. Sua experiência vital feita poesia, porém tem pontos de diferenciação estilística importante. Enquanto
Sophia é iluminada por um permanente deslumbramento com a beleza da criação e do
mundo que a rodeia, Adélia é alguém cuja poesia reflete a consciência profunda da corporeidade, da carne. A poética de Sophia é impregnada de natureza, sentimentos, odores,
mitos. A de Adélia de desejo sexual, corporeidade gozosa ou ferida, dureza pontiaguda da
luta pela vida.
Palavras chave:Sophia de Mello Breyner, Adélia Prado, poesia, gênero, Deus, teopoética
Abstract
This text seeks to bring the poetry of the Portuguese Sophia de Mello
Breyner Andresen closer to that of the Brazilian Adélia Prado. Both are women,
married and family mothers. Both write in Portuguese, one in Portugal and one
in Brazil. Both carry in their poetry the undeniable mark of Transcendence and
the alliance between divine and human. His vital poetry experience, however,
has points of important stylistic differentiation. While Sophia is illuminated by a
permanent dazzle with the beauty of creation and the world around her, Adélia
is someone whose poetry reflects the profound awareness of corporeality, of
the flesh. Sophia’s poetics is steeped in nature, feelings, smells, myths. Adélia’s
sexual desire, joyous or wounded corporeality, sharp hardness of the struggle
for life.
Keywords:Sophia de Mello Breyner, Adélia Prado, poetry, gender, God, theopoetics.
Nossa intenção neste texto é aproximar e, mais ainda, procurar fazer dialogar a poesia da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen com a da brasileira Adélia Prado. Ambas são mulheres, casadas e mães de família. Ambas escrevem em língua portuguesa, uma em Portugal e outra no Brasil. Enquanto uma pertencia à aristocracia portuguesa, a outra nasceu no interior de Minas Gerais de uma família de classe média. Enquanto uma estudou Filologia Clássica, a outra estudou Filosofia e trabalhou como professora e catequista. Ambas levam em sua poesia a marca inegável da Transcendência e da aliança entre divino e humano. Sua experiência vital feita poesia, porém tem pontos de diferenciação estilística importante.
Enquanto Sophia é iluminada por um permanente deslumbramento com a beleza da criação e do mundo que a rodeia, Adélia é alguém cuja poesia reflete a consciência profunda da corporeidade, da carne. Participou Sofia de movimentos e lutas pela liberdade e a justiça. Adélia vislumbra horizontes simbólicos a partir do cotidiano miúdo da vida interiorana brasileira. A poética de Sophia é impregnada de natureza, sentimentos, odores, mitos. A de Adélia de desejo sexual, corporeidade gozosa ou ferida, dureza pontiaguda da luta pela vida.
Sophia de Melo Breyner: o thauma e a poesia
Sophia de Melo Breyner traz em sua poesia um perpétuo canto à criação. Seus olhos encantados pelo mundo fazem nascer e jorrar poesia que celebra cada uma das coisas que vê e sente. Por isso alguns elementos dessa criação são recorrentes em seus poemas, cantados, escritos e pronunciados em sua infindável busca da beleza.
A luz é a condição de possibilidade de que esse ver espantado e deslumbrado aconteça e a contemplação se faça poesia através da pessoa da poeta que diante de tudo se surpreende e maravilha. É essa intimidade contemplativa com o cosmos que parece ser a fonte e o nascedouro de sua poesia, toda ela banhada e iluminada pela luz primordial do universo. Sophia demonstra ao longo de toda a sua obra poética uma relação ao mesmo tempo respeitosa e admirativa, extasiada com a beleza do mundo expressa de muitas maneiras e em vários tons e acordes.
Incansável buscadora da beleza, Sophia de Mello Breyner sofre o espanto inaugural ao contemplar a inquietante luz que mostra e revela as coisas que um dia não foram e hoje são. Para os pensadores gregos, a origem do pensar é o thauma entendido como espanto, perplexidade. A descoberta da beleza provoca o pensar e o faz acontecer. Ousaríamos dizer que também para a criação literária e o fazer poético esse espanto, esse thauma se aplica. É a poeta mesma que confessa seu espanto ao dar-se conta que a luz levanta o véu do mistério sobre o real e gesta o pensar e a poesia na humana criatura, finita e, no entanto, aberta ao infinito, em contínua auto transcendência.1 Em Epidauro, poema inspirado a partir de sua profunda relação com a Grécia, lemos: “O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é trazida à luz, trazida à liberdade da luz, trazida ao espanto da luz.”2
Chama a atenção a descrição criacional das coisas que despertam para ser viventes sob a luz que as faz nascer: o cardo, o figo, a flor e o fruto. E a partir delas de toda a criação caem os véus e acontece a revelação. A contemplação do mundo se torna espanto luminoso e maravilhado. Essa luz reveste a poeta, que se narra “vestida de sol e de silêncio” e a quem é dada voz e palavra para gritar e destruir o Minotauro que ameaça devorar o que existe e a ela mesma.
Chama a atenção igualmente a voz passiva do verbo na declaração das coisas que são. Nada se inventa nem se funda nem se imagina. Tampouco nada se gera a si mesmo. Tudo é “trazido” como num parto. Cada coisa é trazida, à luz, ao espanto. Tudo é posterior. Posterior à iluminação primordial, à centelha original que põe em marcha o reconhecimento da presença, da verdade, do mundo e da poesia.
A obra poética de Sophia parece toda ela atravessada deste espanto inicial, de alguém que é surpreendida permanentemente pela criação e pela beleza do mundo. E sua poesia lhe vai ser dada e “imposta” de forma que a mesma Sophia vai espantar-se novamente ao perceber que aconteceu o poema, que ela julgava existir independente de seu autor, não sendo feito por pessoa humana.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si. No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia em silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização. Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.3
Como o confirma Epidauro 62: “Oiço a voz subir os últimos degraus/ Oiço a palavra alada impessoal/ Que reconheço por não ser já minha”.4
Sophia descobre, em meio ao espanto da luz, que a Palavra tem origem misteriosa e não sabida, que os poemas precedem inclusive a consciência da existência da literatura enquanto arte da palavra. E que são paridos no silencio atento do qual apenas o Criador, origem sem origem, detém o segredo da existência.
Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.5
No entanto, essa revelação poética misteriosa e com raízes na eternidade antes de desvelar-se no tempo cresce e dá toda a sua medida em diálogo com o mundo. A poesia transcendente de Sophia de Mello Breyner não a afasta do mundo, mas ao contrário a faz entrar em profundo diálogo com ele:
[...] a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. [...] É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética.6
Nesse mundo que é objeto do amor de Sophia e o lugar por excelência de seu encontro com o absoluto, com a verdade, com o infinito, com Deus enfim, o mar se destaca como lugar de pertença amorosa e gozosa e catalisador da inspiração poética.
O mar: sacramento poético
Não seria Sophia a primeira poeta portuguesa a exibir em sua poesia essa paixão pelo mar. Como diz Maria do Céu Fialho:
Para um país cujas fronteiras são predominantemente marítimas, situado no extremo ocidental da Europa, confinado, por terra, à presença próxima de um só país vizinho, interposto entre nós e a garganta estreita e escarpada que representa as portas para o centro do velho continente europeu, a vastidão do mar abre-se, desde sempre, como espaço de temores, espaço de evasão e liberdade, ou de invasão e ameaça, de interrogação, mistério, fascínio, rebeldia. O mar, olhado de mais perto, representa o trabalho, com as suas compensações e a sua fatalidade, a que a escrita neo-realista tão expressivamente dá voz, o limite que confina com a solidez da terra, a voz da distância sussurrante aos pés, o puro prazer sensual ou o gesto ritual do banho transfigurador, elo com um outro mar do Ser absoluto, da Grécia-poesia, como para Sophia de Mello Breyner. É prisão que confina ou possibilidade de libertação para outros mundos e outras rotas.7
Já Fernando Pessoa, em seu mundialmente conhecido poema, Mar Português, vai igualmente aproximar o mar do infinito e da Transcendência com seus imortais versos:
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu 8
Para Sophia, no entanto, além de fascinar como porta aberta de seu país ao “descobrimento” do que está além dele, o mar seduz mais do que tudo por ser mediação para a união com o mistério, o absoluto, o divino
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento, à lua 9
E é ela mesma quem dirá ainda que “quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar”.10 Este mar é para a poeta o elo com outro mar: o do Ser absoluto. O universo poético de Sophia é essencialmente marcado por uma procura feita através dos sentidos, numa paisagem onde eles são fortemente interpelados. Pelos sentidos passa a inspiração que será feita poesia pelo espírito. Assim, analogamente, o mar é chave de interpretação do mundo e o mundo remete ao mar como sacramento do Absoluto, como “locus theologicus” de importância primordial no tempo da vida guiada pelo espanto da luz. Sofia afirma não trazer Deus em si, mas procurá-lo no mundo. O mar é sacramento dessa procura e desse encontro.
Poema
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada11
A paixão “batizada” pela Grécia
Se o mundo, o cosmos é para Sophia o lugar de encontro com Deus, dentro deste mundo a Grécia é “locus” privilegiado deste encontro. A poeta ama a Grécia e em seu território experimenta grandes epifanias, assim como significativos encontros com a beleza que tanto busca.
Não se trata, porém de uma experiência a-religiosa, como ela mesma escreve ao amigo Jorge de Sena
[...] não pense que vim da Grécia paganizada. Aliás o paganismo ali não é ‘nada do que se conta’! Voltei sim mais apta a compreender o Evangelho que S. Paulo pregou em frente da Acrópole. Mais apta a compreender toda a vital necessidade de ligação, de religação”. 12
A aproximação entre a Grécia e o Evangelho não é feita apenas por Sophia. Como ela, outra mulher, a filósofa e mística francesa Simone Weil, refletiu longa e profundamente como a Grécia representava uma fonte inesgotável para a civilização ocidental e cristã e como o pensamento e a mitologia gregos estavam prenhes de intuições pré-cristãs. 13
Ao viajar pela Grécia, o que encanta Sophia é perceber a presença dos deuses no ambiente, no ar, nos cheiros e em tudo aquilo que fala aos sentidos.
No Golfo de Corinto
A respiração dos deuses é visível:
É um arco um halo uma nuvem
Em redor das montanhas e das ilhas
Como um céu mais intenso e deslumbrado
E também o cheiro dos deuses invade as estradas
É um cheiro a resina a mel e a fruta
Onde se desenham grandes corpos lisos e brilhantes
Sem dor sem suor sem pranto
Sem a menor ruga de tempo
E uma luz cor de amora no poente se espalha
É o sangue dos deuses imortal e secreto
Que se une ao nosso sangue e com ele batalha 14
É um poema elucidativo da ligação de Sophia à Grécia, como sítio primordial em que deuses, natureza e humanidade se unem e fundem. Essa identificação dos deuses com a natureza e com os homens é sublinhada pela anáfora de “É” nas três estrofes do poema.15 Da mesma forma a impressiona e atrai a relação dos gregos com a corporeidade humana
Em seu Diário da Grécia, Sophia afirma que:
[...] os gregos são os únicos homens que mostraram os corpos sem os deformar. Porque neles os corpos não são signo de outra coisa. Os corpos têm uma divindade que lhes é própria que lhes é não transcendente, mas imanente. Tal como os deuses não são transcendentes à natureza, mas sim imanentes. Também eles mostram a eternidade que é própria às coisas. Os materiais dos gregos são o mármore, o bronze e a palavra: os materiais que resistem ao tempo. Neles o imediato e a transcendência estão unidos.16
Na Acrópole também relata sua impressão da extrema religiosidade dos gregos: “Estive sentada no templo da Atena Niké. A impressão de religiosidade é a mais forte que tenho visto. É a impressão dominante do Partenon e de toda a Acrópole e de toda a Grécia. Este país deslumbrante é um lugar de exaltação e não de gozo.”17
Nesta viagem amorosa pela Grécia que se torna para ela, mais do que antes, irrefutável referência, há que reafirmar a pertença cristã católica de Sophia. Porém, como diz Bruno da Costa e Silva 18, talvez
toda a sua poesia seja uma metáfora, ou sombra, de uma fé nesta Igreja e nos seus ensinamentos, que ela não diz claramente por não haver palavras que a consigam dizer com justiça. Aquilo que a poesia por ela deixada evidência, no entanto, é um catolicismo que, fiel ao sentido primitivo desta palavra, - universal – se caracteriza pela sua amplitude e abertura, preocupando-se pouco ou nada com doutrinas ou dogmas. A sua poesia – dirá o autor, citando Richard Zenith - é essencialmente liturgia, culto, oração, profecia, sendo as palavras que as compõem elos, anéis, instrumentos de religação com o reino do ser humano, o qual foi criado, segundo alguns creem, à imagem de Deus.19
Poesia e política
Ainda, porém, que a poesia de Sophia não seja explicitamente católica em conteúdo, pode-se identificar nela algo muito afinado com o cristianismo, como a fome e sede de justiça.
Não é possível distinguir em Sophia a poeta e a cidadã. Sophia de Mello Breyner foi exemplarmente as duas coisas. E a coragem foi uma das marcas do seu percurso humano. Em 1958, seu livro “Mar Novo” foi um grito de revolta contra a decisão do poder de não respeitar o resultado do concurso realizado em 1956, não se construindo “o monumento que devia ser construído em Sagres”, concebido pelo arquiteto João Andresen (seu irmão), com esculturas de Barata Feyo e painéis pintados por Júlio Resende. E foi a propósito destes painéis que a poeta disse: “Do Lusíada que parte para o universo puro / Sem nenhum peso morto sem nenhum obscuro / Prenúncio de traição sob os seus passos”.20
No poema “Catarina Eufémia”21 está igualmente presente a fome e sede de justiça de Sophia e a luta para que ela se implante e subsista na terra e entre os seres humanos. A composição abre e conclui com a referência à procura da justiça. O primeiro verso sublinha o fato dessa virtude ser o primeiro tema de reflexão entre os Gregos; o último proclama que “a busca da justiça continua” ainda hoje. E os dois enquadram a oposição heroica de Catarina Eufémia, jovem grávida assassinada pela violência do regime salazarista. O seu ato de coragem aparece irmanado à firmeza de Antígona que pousa a mão sobre o seu ombro no momento em que morre. E Sophia diz isso num verso anormalmente longo em relação aos demais,
Catarina Eufémia22
O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente
Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método obíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos
Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que
morreste
E a busca da justiça continua
Apaixonada pelo mar e a natureza, sedenta de Transcendência, permanentemente “espantada “pela beleza e pela luz, Sophia de Mello Breyner é essa poeta que faz jus ao seu tempo. Embora de olhos bem abertos para as realidades terrestres, conserva uma marca espiritual em tudo que escreve, seja um diário de viagem, um canto de louvor às belezas naturais, ou um grito de indignação ética e clamor por justiça.
Em sua poesia, pode-se perceber essa luz que a espanta e põe em marcha a inspiração que gera os versos abundantes e belos com que marcou a história não apenas da poesia portuguesa, mas de toda a literatura universal.
Adélia Prado: transcendência e corporeidade
Em poucos poetas e escritores da atualidade pode-se notar uma intimidade e uma proximidade tão explícitas com o mistério divino como em Adélia Prado, essa mineira de Divinópolis, esposa de José e mãe de cinco filhos, professora e formada em filosofia, catequista e católica praticante, devota e entusiasta da espiritualidade franciscana.
A poesia adeliana, sendo como é exercício espiritual, está permanentemente em contato estreito e tangibilidade concreta e incessante com a corporeidade humana. O corpo é o território onde o espírito é provado e o sagrado experienciado. E disso é feita a poesia. E no caso de Adélia este corpo é seu corpo feminino, de mulher, com todas as consequências e características biológicas que isso implica. Aí neste corpo é o lugar onde a epifania divina acontece e se dá. Por isso mesmo em Adélia — poeta e mística — o erótico e o místico não são terrenos separados e antagônicos, mas, pelo contrário, se tocam em harmoniosa síntese.
O texto poético, materno-teologal de Adélia Prado é, portanto, texto revelado e aderido na fé que, feito poesia, traduz em linguagem artística e estética, literária, os mistérios escondidos e revelados desde a fundação do mundo.
Antes do nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o
“que”, esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror23.
Ler Adélia Prado é como adentrar-se nas origens misteriosas da experiência de Deus do povo da Bíblia, que experimentou a presença do Eterno como Palavra. Palavra que desde o silêncio eterno foi livremente pronunciada no tempo e na história, penetrou os ouvidos humanos e fez cair os véus que velavam aos olhos interiores o dinamismo existencial sobrenatural que os habitava. Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que ouviram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Mas se sabe e se declara que fala porque existe um ouvinte que escutou e fala daquilo que ouviu.
A linguagem humana, na medida em que toma consciência de si mesma, perceberá que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos. Se físicos e cientistas se debatem com a pergunta sobre o porquê de existir algo em vez de nada, o poeta, pelo contrário, em sua inspiração, “sabe” o porquê, porque o apalpa em sua povoada ignorância que o faz dizer o que não diria porque não sabia, mas que sabe porque lhe é ensinado gratuita e amorosamente.
No poema “Antes do nome” está, pois, parece-nos, uma chave primordial para a trajetória de Deus na poesia adeliana. Para Adélia, Deus é mistério santo reservado e revelado. Que se entrega na mesma medida em que se esconde. Inapreensível pela indústria humana, pronuncia sobre o “esplêndido caos” primigênio a Palavra assistida pelo sopro do Espírito, fazendo emergir as coisas que não são para que sejam.
Adélia “sabe” porque lhe foi dado saber. E este saber doado é a fonte de sua poesia, da palavra que chama com nomes menores, “corriqueira”, “muleta”, pois na verdade é derivada da única e fundamental substantiva Palavra divina que cria e gera vida ali onde antes só havia o nada. A inspiração poética adeliana é, pois, consciente e assumidamente, inspiração divina. Antes do nome está o Nome que a tudo nomeia e por nada nem ninguém pode ser nomeado. “Coisa grave e surda, inventada para ser calada.” Nome existente no silêncio e nele eloquente como dom amoroso que se experimenta indizível e inexprimivelmente. Nome impronunciável pelos lábios humanos, mas que misericordiosamente se faz acessível à carne perecível e mortal capaz de Deus, destinada à morte e transpassada de finitude.
Místicos, profetas e poetas, ao longo da história da humanidade, têm expressado essa dignidade da condição humana de ser “confidente” privilegiada do misterioso e “esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros” onde nascem as preposições, os advérbios, os nomes próprios e comuns. São esses e essas, eleitos e apaixonados confidentes, os que padecem os silêncios da Palavra que é Silêncio recolhido e imanipulável; mas são esses igualmente os gozosos interlocutores que “em momentos de graça infrequentíssimos podem apanhar esta Palavra.
Humana e poeta, em gozo fruído e paixão padecida, a mineira de Divinópolis Adélia Prado conhece este mecanismo revelador. E em meio a ele, padece e chora silêncios, mas também exulta ao colher com a mão palavras que se dão e se deixam captar como iridescentes coisas prateadas para que poesia sejam.24 E por isso, em seu corpo sujeito às necessidades básicas tão comezinhas e prosaicas, reconhece o Espírito de Deus a quem chama de misericordioso, e a quem pede que dela deserte para que possa descansar e que a deixe dormir ou desesperar.25
Porque entende a linguagem, Adélia entende Deus, cujo Filho é Verbo. E morre porque entende, “morre quem entendeu” essa linguagem divina que se fez carne e habitou entre nós e tornou visível e palpável o Deus que ninguém poderia ver e continuar vivo.26 Morre a si mesma para ser mais plenamente si mesma. E da vida do Outro que lhe é injetada sob forma de inspiração, vive. Para que vida haja desde si para outros, para todos, em versos que são, mas não são seus. Como no poema:
Direitos humanos
Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
Sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha27
Morada de Deus se sabe Adélia e seu destino é o de todo ser humano: ser o espaço onde Deus habita à vontade como em sua casa; e o laboratório onde faz experiências como sua retorta alquímica; e os dois olhos com que vê o mundo em diafaneidade penetrada pelo Espírito de vida e santidade. E a letra humana que traduz no tempo e no espaço a Palavra pronunciada antes que tudo fosse nomeado será a “transcrição” teografada28 dessa Palavra que era “no princípio”, quando só existia “o caos esplêndido”. Palavra que um dia “se fez carne e habitou entre nós”. Verbo Encarnado.
Corpo: território do poético
Centrado no mistério da encarnação, o cristianismo não menospreza o corpo, mas o inclui em sua reflexão e em seu discurso e o situa em lugar proeminente ao refletir e falar sobre o mistério do divino. A experiência da Transcendência no Cristianismo é a experiência de um Deus encarnado. Portanto, é experiência que passa pela corporeidade. Fora deste dado central e indispensável não há cristianismo.29
Desde sempre, para o cristianismo, não havendo encarnação, não existe igualmente a possibilidade de a Transcendência assumir todas as coisas em seu interior e viver a história passo a passo, por assim dizer “na contramão” de sua eternidade. Não havendo encarnação da Transcendência — mistério que a humanidade não pode alcançar por suas próprias forças, mas que a Revelação cristã atesta haver sucedido na pessoa humana de Jesus de Nazaré — não é possível haver aliança entre a carne e o Espírito. A Transcendência ficaria, pois, para sempre banida das possibilidades do pensar e do falar humanos.
No entanto, “o Verbo se fez carne”, proclama o poema-prólogo que abre o evangelho de João. Desse Verbo, Palavra Transcendental e primeira, o evangelista dirá igualmente que “habitou entre nós”, não somente no sentido histórico de Deus que se manifestou na pessoa de Jesus de Nazaré, mas também na dimensão da profundeza com que atinge a natureza humana: nosso ser é habitado pelo divino e se diviniza na mesma proporção em que se humaniza. A terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, habita em nós e em nós geme, reza e clama. Nada do que é humano, portanto, é estranho ao divino segundo o cristianismo, e toda nova descoberta e toda nova ênfase do pensar e do falar cristãos em termos de humanidade vêm não ameaçar sua identidade, mas, pelo contrário, alimentá-la, nutri-la, fazê-la mais verdadeira. Ao contrário, toda tentativa de minimizar a corporeidade e a carne e delas escapar é tentação que descaracteriza a fé cristã, em sua dinâmica histórica e encarnatória.
Confessar que o Verbo se fez carne e o Espírito foi derramado sobre toda carne implica, pois, buscar a experiência e a união com a Transcendência que assim se comunica com a humanidade através desta carne e desta corporeidade, a partir da qual somente é possível experimentá-la.
A partir desta convicção central cristã de que o corpo humano é condição de possibilidade da encarnação e, sobretudo, da experiência do divino, a poesia de Adélia Prado adquire, aos olhos da teologia, uma luminosidade toda especial. Acreditamos mesmo que aí se encontra o eixo central que rege toda a sua obra, seja em poesia ou em prosa. Possuída pela convicção profunda de que “Deus não a fez da cintura para cima para o diabo fazer o resto”30, Adélia não cessa de redimir e louvar o corpo humano, em sua busca incessante da comunhão com Deus: “É inútil o batismo para o corpo.../O corpo não tem desvãos,/Só inocência e beleza/Tanta que Deus nos imita/E quer casar com sua Igreja”.31
O cristianismo é por excelência a religião da economia dos corpos, pois no Batismo nosso corpo é lavado no Sangue de Cristo. Na Eucaristia, ele se nutre do Corpo de Deus. No matrimônio, “numa só carne” os corpos se fundem no amor que transubstancia o carinho em liturgia e a sexualidade em fonte prazerosa de vida.32 E Adélia proclama sem cessar, de uma maneira ou de outra, a identidade humana que é a sua de ser espírito encarnado.33 Essa tensão dolorosa e atribulada, mas não menos fecunda, é a de um espírito que deseja a comunhão com o divino habitando uma carne que não é impedimento, mas mediação para essa comunhão. Carne que, no entanto, ao mesmo tempo, relembra cruelmente os limites e os obstáculos da finitude humana, que atravessa todas as páginas da obra adeliana.
A corporeidade própria (e também a alheia) está no centro de toda a poesia e de toda a prosa de Adélia Prado, seja quando a autora critica acerbamente aqueles que por sua soberba ou fatuidade querem fugir da condição carnal e suas implicações34, seja ao comentar sem cessar suas próprias dificuldades corpóreas, como a comida e o jejum, por exemplo.35 As dificuldades de lidar com a fome (ou mesmo a gula), que a instigam sem cessar, fazem-na experimentar ao mesmo tempo a bênção que é ter um corpo, ser um corpo e poder alimentá-lo, deleitar-se no gozo sensível que ele lhe proporciona ou curvá-lo na oração.36 Igualmente a faz perceber sua importância até mesmo para os mais ascéticos santos, como São Francisco37, e regalar-se com a imagem do Reino de Deus na Bíblia descrito com a metáfora de um grande banquete38 e com a maneira de Jesus comunicar-se, que é dando seu corpo em alimento.39
Buscando a via para seu estar no mundo e aí encontrar e construir seu estar com e em Deus, Adélia encontra sempre seu corpo em altos e baixos, com seu desejo ardente e sua crucificaçãozinha particular, que segundo ela, é boa para baixar o orgulho. E ao encontrar seu corpo humano e mortal, encontra o corpo do Senhor encarnado, vivo, morto e ressuscitado e dado eucaristicamente em alimento ao povo.
A poesia adeliana toca aí no coração da mística cristã, inseparável da corporeidade vulnerável e mortal que o próprio Jesus Cristo tomou em sua encarnação. A Epifania da Transcendência se dá — em desejo doloroso e gozoso ao mesmo tempo — ao apalpar os limites da carne mortal e caduca. Nesta fraqueza é que brilham sua força e sua beleza. Neste limite se dá a presença Santíssima. Nesta condição humana finita e mortal acontece a kenosis do Verbo que tinha a condição divina, mas a ela não se aferrou.
A beleza da Encarnação do Verbo que habitou entre nós é sentida no corpo da mulher Adélia Prado. Beleza e corpo que têm gênero. Gênero feminino.
O corpo da “outra”: sede da mística e da poética
Ao mesmo tempo em que se dá conta das vicissitudes de ser humana, de ser corpórea, de ser mulher, Adélia se revela alguém plenamente reconciliada com seu corpo feminino, incluídos aí seus ciclos e particularidades. Ao perceber o ciclo menstrual que chega, sente o alívio da mulher que sabe que entra em seu melhor período do mês, que a calma vai vir agora por um tempo até que o corpo dê novamente seus femininos sinais. 40 Ri inclusive da própria ira e do próprio ardor por perceber que muito se trata de um fenômeno biológico que a medicina porá no lugar. Essas coisinhas, esse destino miúdo, caquinho de vidro na poeira41, ao contrário de abatê-la e asqueá-la, vão aproximá-la mais ainda de Deus, que segundo ela é o único que, “com sua paciência e seu amor estranhíssimo, permanece alto, fiel, incorruptível e tentador como um diamante”. 42
A católica Adélia toca aí num delicado ponto da teologia e da vida eclesial. Escreve dentro de uma Igreja onde as mulheres ainda se situam à sombra e onde o sistema vigente é claramente patriarcal. E a maior discriminação contra as mesmas parece dizer respeito a algo mais profundo e muito mais sério do que simplesmente a força física, a formação intelectual ou a capacidade de trabalho. A Igreja ainda é muito fortemente configurada pelo padrão secular do patriarcalismo, tão presente na tradição judaico-cristã. O patriarcalismo sublinha a superioridade do homem não apenas por um viés intelectual ou prático, mas pelo que chamaríamos um viés ontológico.
Ao longo da história da Igreja, a mulher foi mantida a uma prudente distância do sagrado e de tudo aquilo que o cerca, assim como a liturgia e os objetos rituais, e da mediação direta com Deus. Tudo isso, evidentemente, requer um corpo “puro”, e é grande a desconfiança de se a mulher realmente o tem. Apesar de todos os avanços e progressos que têm sido feitos na participação feminina em muitos níveis da vida eclesial, ainda continua pesando sobre ela o estigma de ser a sedutora inspiradora de medo, fonte de pecado para a castidade do homem e o celibato do clero. Entre a mulher e o mistério, difícil e raramente se reconheceu e legitimou uma sintonia em termos da “alta” mística, das experiências mais profundas de Deus, restando-lhe mais o campo das devoções menores e de menor importância.
A poesia adeliana, ainda que sem uma intencionalidade explícita, questiona frontalmente tal concepção da corporeidade feminina. O Espírito buscado e experimentado na carne é uma constante na poesia de Adélia, assim como o é em toda a sua prosa. A origem dessa convicção é simples e cristalina: Deus não rejeita a obra de suas mãos. Simplesmente não é possível que nos haja criado para rejeitar-nos depois e condenar como coisa pecaminosa e impura o corpo que criou e nos deu com seu próprio e criativo amor.
Deus não rejeita a obra de suas mãos
É inútil o batismo para o corpo,
O esforço da doutrina para ungir-nos,
Não coma, não beba, mantenha os quadris imóveis.
Porque estes não são pecados do corpo.
À alma sim, a esta batizai, crismai,
Escrevei para ela a Imitação de Cristo.
O corpo não tem desvãos,
Só inocência e beleza,
Tanta que Deus nos imita
E quer casar com sua Igreja
E declara que os peitos de sua amada
São como os filhotes gêmeos da gazela.
É inútil o Batismo para o corpo.
O que tem suas leis as cumprirá.
Os olhos verão a Deus. 43
Denunciando o embuste que situou no corpo da mulher a sede do pecado sexual, Adélia faz poesia contemplando o corpo do Crucificado:
Festa do corpo de Deus
Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão:
“O crux ave, spes unica
O passiones tempore.”
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus. É próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.44
Denunciando a falácia que fez tantas gerações de cristãos pensarem
que deviam ignorar o próprio corpo para aproximar-se de Deus, Adélia
canta ao Crucificado na Festa do Corpo de Deus:
E teu corpo na cruz suspenso
E teu corpo na cruz, sem panos:
Olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
Que apaixonadamente me revelas
A inocência da carne
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo
amor45
É esse Deus que a toma por inteiro — corpo e alma — Aquele que vai se transformar em seu objeto de desejo por excelência, a ponto de ela reconhecer não poder falar de outra coisa46 e revelar que Ele a leva até os esponsais místicos, ao amor sem jejum de sentimento47, fazendo- -a exprimir o desejo da santidade em sua condição de santa casada poetisa. Nesse desejo de santidade Adélia vai declarar não querer ser “Alter Clara” ou “Alter Teresa” — numa evidente referência a Santa Clara de Assis e a Santa Teresa de Ávila —, mas sim “Alter Francisco”, Francisco de Assis, o santo de sua predileção, o qual na verdade queria ser Cristo. E Adélia, no seu encalço, percebe que a santidade é, na verdade, uma identidade crística, uma identificação sempre mais perfeita e completa com o Cristo, que é o que buscam todos os santos48
Por tudo isso Adélia vai declarar que seria a pessoa mais infeliz do mundo se não houvesse ressurreição da carne.49 Essa carne inocente e sem desvãos, por ela tão cantada em sua poesia; essa carne que Deus mesmo assumiu, vivendo e morrendo na cruz, imitando-nos para casar com sua Igreja; essa carne será resgatada, proclama Adélia, e isso comprova que “ser santo é tarefa humana”. 50. As considerações sobre esse dogma da fé cristã e católica — a ressurreição da carne —, ela as faz com abundância em toda a sua obra, onde comenta também com requintes de evidência inspirada a graça de ser mulher e ter um corpo terreno, que ressuscitará direto como uma estrela apaga e acende51
Tal como para Sophia de Mello Breyner, para Adélia Prado, a poesia é um dom, algo divino. Mas enquanto a primeira concebe essa transcendência como uma elevação a partir das coisas, para Adélia, trata-se de algo que acontece em meio à corporeidade e ao cotidiano. E aí se revela como caminho de salvação. A poesia para Adélia Prado na verdade é outro nome para Deus. Ela ousa afirmá-lo, descobrindo assim o modo poético de salvação. Escreve para não morrer, para não acabar, para salvar-se e poder encontrar Deus, o outro nome da poesia que dela jorra. 52 Poesia que é como gestação e parturição, recebida e sofrida na passividade da inspiração da Palavra pronunciada antes do nome e gerada no esplêndido caos de suas entranhas pelo Espírito que a possui por inteiro. Parir o poema não é sem dor, como o parto dos filhos reais. Mas é salvação.
Sendo salvação, para a devota católica Adélia, poesia é também missão. E se a salva, também a cansa essa missão, a ela que não é “matrona, mãe dos Gracos, Cornélia”, mas sim “mulher do povo, mãe de filhos, Adélia”53 E por isso algumas vezes se queixa ao Criador, lamentando-se como uma Santa Teresa de Ávila54:
O poeta ficou cansado
Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
[...]
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha [...]
Quando o cansaço da exigência da missão de poeta sobre ela se abate, o corpo de mulher, corpo semelhante a suas vizinhas e companheiras, mulheres mineiras de Divinópolis, se insurge e clama pelas funções miúdas, cotidianas e não menos nobres: trabalhar na cozinha. A poeta não quer mais carregar o fardo da inspiração, não quer mais ser possuída pelo Espírito que a deixa bamba de tanto criar. Quer cozinhar para os seus, bater o osso no prato para chamar o cachorro e atirar os restos. Porém, a rebelião da carne dura pouco. A obediência triunfará sobre o cansaço e o medo, pois se trata da sedução divina e não de outra. E a salvação sua e da humanidade está aí implicada. A Palavra divina se fará ouvir e reorganizará o caos esplendido da poesia:
...Filha, diz-me o Senhor, Eu só como palavras.55
Conclusão: Sophia e Adélia, Atenas e Jerusalém
É José Tolentino Mendonça quem usa a metáfora do jardim e do jardineiro para evocar a Sophia, a partir do profeta Jeremias, quando este diz que “a alma será um jardim bem irrigado”.56 O cardeal poeta faz aí uma analogia entre um jardim bem provido de água, que vive e floresce e a alma humana quando tocada pela graça e a beleza do Criador.57 O profeta anuncia a Israel os tempos da libertação quando todos os jardins florescerão, bem irrigados pela benção do Senhor, Deus de Israel.
Sophia de Mello Breyner afirmava de si própria: Em todos os jardins hei-de florir.58 Já Adélia Prado também dizia em verso: O mundo é um jardim. Uma luz banha o mundo.59 E ambas as poetas proclamam sua vocação e missão: ajudar a florescer, regar o solo, cuidar das flores, de sua beleza, de seus cheiros. Ainda é Tolentino que afirma ser “esse ofício de ajudar a florescer (o que) leva o poeta a lembrar o caminho da leitura dos mestres judeus, tão semelhante ao do jardineiro: sentido simples, alusão, interpretação e segredo.”60
Aparentemente tão diferentes, Sophia e Adélia mergulham suas raízes nas duas civilizações que fundamentam a cultura ocidental: grega Sophia, hebraica Adélia. Uma deslumbrada com a beleza silenciosa e hierática de Atenas. Outra mergulhada na prática cotidiana e cheia de ritualidade de Jerusalém, onde cada atitude e cada pensamento evoca o Criador e onde a finitude remete sem cessar à Infinitude amorosa da qual tudo provém.
Mulheres ambas. Seres desdobráveis e múltiplos. Diferentes engendrando diferenças encarnadas na fecunda e plural maternidade. Porém, em suas diferenças, ambas se encontram no jardim da poesia. Ambas concebem a poesia como inspiração que vem de mais além de si mesmas e anteriormente a sua particular origem. Antes do nome vem a Palavra Criadora, antes da literatura vêm os poemas que têm vida independente e existem em si mesmos.
Ambas chegam ao sagrado que experimentam e buscam em sua poesia através da mediação da beleza do mundo e da carne, condição criatural que só tem inocência e beleza e desperta o desejo de imitação do próprio Criador. Por isso a poesia em ambas vai de mãos dadas com o compromisso que luta pela justiça e pela verdade, enfrentando armas e desmascarando embustes.
Assim, as duas poetas da lusofonia com sua poesia salvífica, anunciam a boa nova de que a beleza salvará o mundo.
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Referências
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FIALHO, Maria do Céu. O mar na poesia portuguesa contemporânea. A escrita de Fiama Hasse Pais Brandao, Imprensa da Universidade de Coimbra, URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38360, em 20 de outubro de 2019, Coimbra, Pombalina, 2006.
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PRADO, Adélia. Poesia reunida, 8ª ed., São Paulo, Siciliano, 1999.
PRADO, Adélia. Prosa Reunida, São Paulo, Record, 2002.
RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. São Paulo, Paulinas, 1989.
SILVA, Bruno da Costa. Sophia de Mello Breyner e a história por João Cabral contada. Revista do CESP – v. 31, n. 46 – jul.-dez. 2011.
WEIL, Simone. La source grecque, Paris, Gallimard, 1953.
WEIL, Simone. Intuitions pré-chrétiennes, Paris, Gallimard, 1951.
ZENITH, Richard. Uma cruz em Creta: a salvação sophiana. Revista Colóquio/Letras, Lisboa, n. 176, jan. /jun. 2011.
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Notas
[1]Cf. Karl Rahner, sobre o ser humano como ser em contínua auto transcendência, em Curso Fundamental da Fé, SP, Paulinas, 1989.
[2]Sophia de Mello Breyner, Obra Poética, Porto, Assírio e Alvim, 2015, p 551(OP).
[3]Arte Poética V, OP p. 898 (lido na Sorbonne, em Paris, em dezembro de 1988, por ocasião do encontro intitulado Les Belles Étrangères).
[4]Epidauro 62, OP p. 757.
[5]Arte Poética IV, OP p. 895.
[6]Arte Poética II, OP p. 891.
[7]FIALHO, Maria do Céu. O mar na poesia portuguesa contemporânea. A escrita de Fiama Hasse Pais Brandao, Imprensa da Universidade de Coimbra, URI:http://hdl.handle. net/10316.2/38360, em 20 de outubro de 2019, Coimbra, Pombalina, 2006, pp. 397-415.
[8]Mar Português é um dos poemas mais famosos de Fernando Pessoa. O poema debruça-se sobre a época das grandes navegações, sendo os interlocutores o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães.
[9]Mar, OP p. 65.
[10]Inscrição, OP p. 464.
[11]OP p. 575.
[12]BREYNER, Sophia de Mello. Jorge de Sena, Correspondência, 1958-1978 Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2006, p. 64-68.
[13]Cf. Simone Weil, La source grecque, Paris, Gallimard, 1953 ; Intuitions pré-chrétiennes, Paris, Gallimard, 1951. Diz Simone Weil em seu texto « L´Illiade ou le poème de la force” que “apenas o Evangelho pode ser considerado como a última e maravilhosa expressão do genio grego, tendo a primeira sido a Ilíada.” (seul l’Évangile peut être considéré comme la dernière et merveilleuse expression du génie grec, l’Iliade étant la première) in http://teuwissen.ch/imlift/wp-content/uploads/2013/07/Weil-L_Iliade_ou_le_poeme_de_la_force.pdf acessado em 5/12/2019, publicado originalmente em Cahiers du Sud,(Marseille) Décembre 1940-Janvier 1941.
[14]OP, p. 548.
[15]É um arco...É um cheiro.... É o sangue
[16] Fragmentos do diário manuscrito da primeira viagem à Grécia, 14 de setembro de 1963 in http://purl.pt/19841/1/1960/galeria/f2/diario.html acessado em 5/12/2019.
[17]Ibid dia 16 de setembro.
[18]SILVA, Bruno da Costa e, Sophia de Mello Breyner e a história por João Cabral contada, Revista do CESP – v. 31, n. 46 – jul.-dez. 2011, p. 118.
[19]ZENITH, Richard. Uma cruz em Creta: a salvação sophiana. Revista Colóquio/ Letras, Lisboa, n. 176, p. 38-45, jan. /jun. 2011 p 44 apud Bruno da Costa e Silva, art. Cit.
[20]OP, p. 394-395.
[21]Ibid. p. 644.
[22]Catarina Efigénia Sabino Eufémia (1928 – 1954) completaria hoje oitenta e nove anos. Em Maio próximo passarão sessenta e três anos sobre o seu assassinato por um oficial da guarda republicana, quando protestava contra os salários de miséria e fome que ela e as suas camaradas ceifeiras auferiam. A sua memória será preservada para sempre, como símbolo da luta pelos direitos e da dignidade. Vários poetas a recordaram para a posteridade. Entre eles, Sophia de Mello Breyner Andresen colocou-a no lugar devido, no panteão dos imortais, junto a Antígona, a heroína de Sófocles, símbolo maior da luta pelos direitos humanos em todos os tempos.
[23]PRADO, Adélia. Bagagem [1976], in Poesia reunida, 8ª ed., São Paulo, Siciliano, 1999, p. 22
[24]Cf. o poema Casamento em Poesia Reunida, SP, Siciliano, 1991(PR), p. 210.
[25]Sedução, in Poesia Reunida, op. cit., p. 60: “...também sou filho de Deus/ me deixa desesperar...”
[26]Ex 33,20.
[27]PRADO, Adélia. Oráculos de maio,em PR, p. 69.
[28] Tomamos a palavra “teografia” do professor padre Ulpiano Vázquez, SJ, que em belíssimo texto publicado na coleção Ignatiana (A orientação espiritual: mistagogia e teografia, São Paulo, Loyola, 2001) a usa para significar a “escrita” de Deus nos corações humanos, inspirado em 2 Coríntios 3,3.
[29]BINGEMER, Maria Clara, Luxúria, in E. Yunes, M. C. Bingemer (org.), Pecados, Rio de Janeiro/São Paulo, Ed. PUC/Loyola, 2001, p. 117-129.
[30]PRADO, Adélia. Os componentes da banda, in Prosa reunida, São Paulo, Siciliano, 2001 (PR1), p. 199.
[31]PRADO, Adélia. O pelicano [1987], in PRa, p. 320.
[32]Frei Betto, A economia dos corpos, O Globo, 22 jun. 2000 (Festa de Corpus Christi)
[33]Cf. seu livro de prosa. Solte os cachorros, in PR1a, SP, Siciliano, 1999, p. 22 ss.
[34]Ibid. p. 19
[35]Ibid p. 21-22.
[36]Ibid. p. 23.
[37]Ibid.
[38]Ibid., p. 22 (citando Mt 22,4 ss.)
[39]Ibid. p. 21.
[40]Solte os cachorros, in PR1, p. 33.
[41]Ibid. p. 32.
[42]Ibid. p 33.
[43]O pelicano, in PR, p. 320.
[44]Festa do corpo de Deus, in Terra de Santa Cruz [1981] (PR p. 281).
[45]Ibid.
[46]Solte os cachorros, in PR1, p. 44.
[47]Cf. sobre isto nosso texto: Transcendência e corporeidade. Experiência de Deus segundo Adélia Prado, Gragoatá, Niterói, UFF, v. 8, n. 14 (2003) 89-107.
[48]Solte os cachorros, in PR1, p. 48-49.
[49]Ibid. p. 65.
[50]p.67.
[51]Ibid. p. 69.
[52]Ibid. p. 17.
[53]Grande desejo, in Bagagem (PR, p. 12).
[54]Oráculos de maio, PR p. 9. Comparamos aqui a poetisa de Divinópolis com a santa de Ávila devido à conhecida e saborosa história de que Santa Teresa em diálogo com Deus, teria dito: Senhor, se estou cumprindo Tuas Ordens, por que tenho tantas dificuldades no caminho? Deus respondeu: — Teresa, não sabes que é assim que trato os meus amigos? Teresa, honrando seu sangue espanhol, respondeu: — Ah, Senhor, então é por isto que tens tão poucos amigos! Cf. in http://paxprofundis.org/livros/teresaavila/ta.htm acessado em 5/12/2019.
[55]Oráculos de maio, PR., p 12
[56]Jer. 31,12: Assim que virão, e exultarão no alto de Sião, e correrão aos bens do Senhor, ao trigo, e ao mosto, e ao azeite, e aos cordeiros e bezerros; e a sua alma será como um jardim regado, e nunca mais andarão tristes.
[57] MENDONÇA, José Tolentino. Evocação de Sophia, in https://www.snpcultura.org/id_evocacao_sophia.html acesso em 5/12/2019.
[58]PR, p. 104.
[59]Graça, em PR, p. 75.
[60]Ibid.