“O transcendente, o sagrado
e o cristão na obra de Sophia
de Mello Breyner”
“The transcendent, the sacred
and the Christian in the work of
Sophia de Mello Breyner”
*Arnaldo de Pinho
* Doutor em Teologia,
professor da Universidade
Católica Portuguesa e
antigo diretor e membro
do Centro de Estudos do
Pensamento Português
da Universidade
Católica. Contato:
apinhoartigoporto.ucp.pt
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Resumo
Este breve ensaio sobre a arte poética
de Sophia, vertida não só nos seus conhecidos textos (Arte Poética) mas em toda a sua
Obra, pretende alcançar a matéria-prima sobre a qual a poeta portuense constrói o seu
olhar sobre o mundo. Nesse olhar convergem
o sagrado, o transcendente e o peculiarmente
cristão, o melhor da cultura ocidental, desde
Homero a Rilke ou Hölderlin, ou «a exactidão
da Cruz, na luz branca de Creta»
Palavras chave:Sophia, Hölderlin, sagrado, transcendência, cristianismo
Abstract
This brief essay on Sophia’s poetic art,
spilled not only in her well-known texts (Arte
Poética) but throughout her work, aims to reach the raw material on which the Porto poet
builds her gaze on the world. In this look, the
sacred, the transcendent and the peculiarly Christian converge, the best of Western culture, from Homer to Rilke or Hölderlin,
or “the accuracy of the Cross, in the white light of Crete”
Keywords:Sophia, Hölderlin, sacred, transcendence, Christianity
Introdução
Para o meu tema, se mais não fosse dada a brevidade do tempo de que disponho, não preciso de reflectir sobre Sophia, mas a partir do que ela mesma escreveu sobre o tema. De facto também aqui, parafraseando Eduardo Lourenço, a poeta foi musa de si mesma (1).
E não apenas nos cinco pequenos ensaios a que deu o nome arte poética (2), mas sobretudo num pequeno texto, que nunca vi citado, para o Jornal do Comércio em 31 de Dezembro de 1967, que foi o ano de aparição, recorde-se de Geografia, em que a autora se alarga, mais que em nenhum outro livro, à inspiração grega.
Intitula-se este pequeno texto, “Hölderlin, ou o lugar do poeta” e os versos do poeta germânico são citados segundo a tradução de Paulo Quintela. Convêm não esquecer ainda que nos primeiros livros da poeta, editados pela Ática, há sempre, no rosto, um pequeno texto de Novalis que reza assim: “A poesia é o autêntico real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro”.
Referindo-se a Hölderlin, no texto citado, desenvolve Sophia o verso do poeta romântico alemão que Heidegger também glosou, num texto comemorativo dos vinte anos da morte de Rilke em 1946, (3).
“Para quê poetas em tempos de indigência?”
“Hölderlin, escreve Sophia, era o poeta em estado puro. A poesia era nele uma forma de santidade. Era a vocação do sagrado. Por isso ele era incomparável com um mundo dessacralizado. Incompatível com tudo quanto não tivesse sentido divino”
E mais adiante continua Sophia: “Mas Hölderlin é um daqueles homens que aprendeu com os gregos e foi por isso que aprofundou e revolucionou toda a visão que a idade moderna tinha do mundo helénico. É por isso que W. Dilthey diz:
“Hölderlin, por seu lado, cantava o ponto mais fundo da concepção grega do mundo: a ideia de afinidade entre natureza, homens, heróis e deuses. Os helenos representavam para ele a nossa interior comunidade do ser com a natureza. Justamente porque é um anunciador do terrestre, o poeta não tem nenhuma conivência com o mundano. Hölderlin opõe com clareza o terrestre ao mundano. Ele sabe, desde o princípio, que será destruído pelo tempo de “indigência” do mundano”.
Depois Sophia cita uma passagem do poema Arquipélago onde se lê: “Mas aí, a nossa raça, sem divino vagueia na noite”. E comenta: “É no meio deste mundo de fúria que Hölderlin busca o seu caminho”.
Sophia para além de ter um poema intitulado Fúrias (4) tem muitas fúrias na sua obra desde “o abutre que alisa as suas penas, até Catilina que caminha “sem medo e sem mentira”, ou a Mónica “que tem tempo para tudo, excepto para a poesia, o amor e a santidade”.
No texto que estamos a comentar, escreve Sophia: “regressando ao ponto de partida dos gregos, ele (Hölderlin) dá ao terrestre um atenção religiosa. Ele é o poeta salvador do terrestre, aquele que busca o encontro com o divino no plano da criação”. E continua: “Fazer com que o terrestre não se perverta em mundano é esta uma das tarefas essenciais do poeta. Por isso ele busca o encontro inteiro, livre e criador com as coisas. É esse encontro que Hölderlin canta quando no “arquipélago” diz: “Pois a vida se encheu toda de sentido divino”. “Palavras difíceis de entender num tempo de indigência que é um compromisso ambíguo e retórico entre o mundano e a transcendência” (5).
O Poema citado de Hölderlin intitula-se: “para quê poetas em tempo de indigência”.
É esta mundividência que encontramos nos cinco pequenos textos, denominados Arte Poética, conquanto se forma menos explícita
Assim em Arte poética V, texto lido na Sorbonne, em Dezembro de 1988, Sophia lembra que teve a “sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura”: Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, que julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio”.
E conclui: “No fundo toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente” (6)
Como bem observa Eduardo Lourenço que medita sobre Sophia com o sabor e o saber do pensamento filosófico e de vasta cultura humanista, “os anos quarenta, os da sua aparição na cena cultural portuguesa, como se adivinhassem que o mundo cristão conhecia um eclipse a nenhum outro comparável, se viviam em poesia e em prosa com tempos de neopaganismo. Não eram já os sofisticados do heteronismo pessoano, Ricardo Reis, todavia mal conhecido nessa época, mas os de David H. Lawrence e de Miguel Torga, que algum eco deixaram na primeira Sophia que transfigura a sua rude e naturalista visão paga do mundo em pura música, sem conservar a sua exaltação dionisíaca, mas apenas o seu perfume. Ou melhor a sua nostalgia”.
A história, a pequena, continuo a citar Eduardo Lourenço de um país silencioso e um pouco silenciado; a grande, das tragédias do século que um dia entrarão em seus poemas, ouve-se pouco ou nada em seus primeiros livros. Como se nascesse do Imemorial. Em todo o caso do Imemorial da Poesia que em seu caso excepcional não foi uma fábula, mas uma dádiva da vida. “(…) Como se isso não bastasse, logo que soube ler, num meio excepcional como o seu, descobriu Homero e com ele o mundo grego de deuses formosos como homens e de homens formosos como deuses, que será para ela, para o mundo do divino”. (7)
Ainda que em osmose com a natureza inteira, a jovem Sophia, todavia como nota ainda, com inusitado rigor Eduardo Lourenço, nunca se entregou sem reservas aos êxtases panteístas da sua divindade suposta. Logo este lirismo dionisíaco se descobre ambíguo como Diónisos:
Príncipe estranho por quem
Chamam as horas obscuras do delírio,
Senhor dos bailes, negro lírio
A ti canto e nada mais.
Numa entrevista recente (Público, 9 de Agosto de 2018), o editor de Sophia Zeferino Coelho, que se confessava nessa mesma entrevista comunista, fazia duas afirmações que muito interessam para o meu tema.
Numa primeira, sublinha a maneira “como se insere em toda a história da poesia e as preocupações que estão por detrás da elaboração poética e da produção poética; e sobretudo uma tradição muito alemã que arranca com Novalis, e que é, no fundo a morte de Deus depois do Iluminismo, a impossibilidade de acreditar em Deus, o sentimento de perda que isso acarreta a quem isso acontece e a tentativa de através da poesia restabelecer essa unidade com o mundo. Ela teoriza isso. Há quase toda uma teologia na obra de Sophia”.
Uma segunda afirmação de Zeferino Coelho é que há em Sophia uma contradição, dado que sendo católica e seriamente católica, acredita num Deus católico que é transcendente, mas está fora dele e toda a sua poesia é exaltação do divino como inerente ao mundo material; o divino é a perfeição da curva da onda, a elegância da haste do trigo.
Quanto à primeira firmação estou inteiramente de acordo com Zeferino Coelho e até com a sua falta de pudor ao romper com uma certa tradição de falar de Deus e do sagrado na literatura. De facto Sophia é um poeta moderno do ponto de vista cultural por ter levado a sério a morte de Deus, que é o mais marcante da Modernidade. E há muitos textos na sua poesia que nos recordam este sentido nietzschiano, como o poema Exílio.
Exilamos os deuses
E fomos exilados da nossa inteireza (8)
Mas não há em Sophia, ao menos permanentemente a ideia de crise, que é típica da cultura da Modernidade sendo a meu ver, substituída pela de nostalgia (de um mundo outro, de uma sociedade outra; no limite pela ressurreição). E mau grado as suas incursões libertárias, como uma espécie de irmã gémea de Kassandra, “perdida sem saber se caminhava, entre os deuses ou entre a humanidade” (9) ou a sua simpatia por Catilina, o fora de lei, reconheceu que “há em todas as coisas o agoiro duma fantástica vinda”(10)
Quanto a haver uma contradição na obra de Sophia, ou antes na sua postura de católica, como se uma católica que admite o transcendente, não pudesse comprometer-se com a imanência, há um preconceito corrente na doutrina marxista, e também burguesa. Sophia também o sentiu. E exprimiu.
Por curiosidade lembro que havia na sua biblioteca a obra de Theilhard de Chardin Le Milieu Divin, muito sublinhada no primeiro capítulo e com algumas anotações, precisamente lá onde o jesuíta afirmava que com a Incarnação “nada é profano, aqui em baixo a quem quiser ver”.
De resto Sophia cita Teilhard. (11)
É por isso que do canto bíblico, Sophia glosará sobretudo o tema da ausência de Deus e o tema da continuidade do homem, à maneira da figura da luta entre Jacob e o Anjo
Já no Livro Sexto, quando a influência grega era ainda pletórica, qualifica a transcendência do seu Deus, muito à maneira do Antigo Testamento, de Isaías e de alguns Salmos sobretudo, nomeando-o assim.
Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinho ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente. (12)
Indo mais além nesta ausência de Deus, no conto O Homem. Sophia retrata, nos caminhos do mundo, o homem em cujo rosto “estavam inscritos a miséria, o abandono e a solidão,” e que identifica com o Cristo abandonado por Deus na Cruz. Este tema do rosto e da ausência e da cruz como ausência foi muito desenvolvido na teologia luterana e mais tarde em Hegel; o rosto como lugar do sagrado aparece no pensador judaico contemporâneo Emmanuel Lévinas que experimentou os campos de concentração. O mesmo tema aparece no filósofo judeu Elias Wiesel, a propósito da Shoah.
No conto O Homem, identificando o pobre com Cristo crucificado, perante a passividade de Deus, Sophia escreve: “Para além da dureza das traições dos homens, para além da agonia da carne, começa a prova do último suplício: o silêncio de Deus” (13)
E num poema de Mar Novo, este tema aparece numa linguagem dum salmo:
É o teu rosto que eu procuro Através do terror e da distância Para reconstrução dum mundo puro (14)
A figura da transcendência encontra uma resposta mais positiva no poema Senhora da Rocha, em que Sophia opõe uma imagem humilde duma capela perdida, à luxuriante Vitória de Samotrácia:
Tu não estás como Vitória à proa
Nem abres no extremo do promontório as tuas asas
Nem caminhas descalça nos teus pátios quadrados
Nem desdobras o teu manto na escultura do vento
Nem ofereces o teu ombro à seta da luz pura
Mas no extremo do promontório
Em tua pequena capela rouca de silêncio
Imóvel muda inclinas sobre a prece
O teu rosto de madeira e pintado como um barco
O reino dos antigos deuses não resgatou a morte
E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte
É por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo
Pois sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo
Tu sabes que para nós existe sempre
O instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas
Os deuses do mar afundam-se no mar
Homens e barcos pressentem o naufrágio (…) (15)
É também uma espécie de recolhimento no sagrado que Sophia descreve no texto “Caminho da manhã”, que retrata, a ida ao mercado em Lagos até acabar na capela, para escutar o silêncio, que não resisto a citar, em parte. Trata-se duma leitura da criação, à procura de um centro como se fosse uma demanda do Santo Graal:
Vais pela estrada que é de terra amarela quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. A tua direita verá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra e assim irás sempre com a pesada mão do sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz suavíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas (…) Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares na frente da terceira banca compra peixes: os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as guelras são encarnadas e que vejas como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente a mar (…) Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, na outra a mão do sol. Caminha até encontrares uma Igreja alta e quadrada. Lá dentro ficarás ajoelhado na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração face ao grande Deus invisível. (16)
Vivendo numa Modernidade, marcada, no seu máximo fundamento e denominador, pela chamada morte de Deus, é aí como escreve, no texto Hölderlin ou o lugar do Poeta, que inscreve a sua Poesia e seus textos em prosa, os Contos Exemplares e os Contos para Crianças.
D. António Ferreira Gomes, usou, para qualificar a sua obra, no prefácio à 3ª edição de Contos exemplares a expressão, “Pórtico sobre o aberto”, com rara felicidade.(17)
Voltando a Rilke a Hölderlin várias vezes Heidegger comentou estas temáticas (18) dando à poesia o lugar absolutamente insubstituível de casa do ser e ao poeta a função de pastor do Ser. Nessa intencionalidade percorre Sophia o divino dos gregos, a transcendência da busca do objecto perdido dos místicos e dos crentes de fé nua e, mais raramente, as representações cristãs, como no Cristo Cigano ou no poema Senhora da Rocha.
Para explorar esta temática até ao fim, seria necessário comparar os tempos de Sophia com os tempos do mundo em que viveu, desde a jovem portuense que lia Homero em resumos simples até às suas preocupações e compromissos políticos. De facto não cerrará os olhos à experiência humana e “ao espantoso sofrimento do mundo”. Mas se baixa a esse inferno será sempre para exorcizá-lo. Vive num tempo dividido. Mas integrou a noite sem se perder nela. E foi ao ponto, de levar a abertura à transcendência não só, na recusa do duque de Gandia perante a morte de Isabel de Portugal, mas na ressurreição como sentido do mundo e “acabamento da Grécia”:
Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer exactidão da cruz
Na luz branca de Creta. (19)
—
Referência
M. Heidegger, Caminos del Bosque Madrid 1995 Sophia de Mello Breyner Andresen, Nocturno melodia, Antologia Poética (1944-2001) Barcelona 2004
—
Notas
[1]Em Sophia de Mello Breyner Andresen, Nocturno melodia, Antologia Poética (1944-2001) Barcelona 2004,7
[2]Em Obra Poética (OP 889-898) Assírio e Alvim, Lisboa 2015
[3]Texto em M. Heidegger, Caminos del Bosque Madrid 1995, 199 e s.
[4]OP 814.
[5]Jornal do Comércio. Cit.
[6]Arte Poética, V, OP, cit., 898.
[7]E. Lourenço, cit, 7-8
[8]Em O Nome das Coisas OP, cit,
[9]OP, cit,. 159
[10]Apolo Musageta, OP, cit., 70, 71
[11]Arte Poética IV, em OP. cit., 894
[12]OP, cit., 454
[13](Contos Exemplares, Porto, Figueirinhas, 2004, 140
[14]OP, 356.
[15]OP, 501.
[16]Livro Sexto, OP, 443-444
[17]Contos exemplares, cit., 36
[18]Ver sobretudo: a frase de Nietzsche, Deus morreu (1943); e “para quê poetas” (1946) em Caminos del bosque, Madrid 2008. E L’homme habite em poète em Essais et Conferences. Paris, Gallimard, 1958
[19]OP cit., 447