“Ó flor que é impossível ver”: a associação metonímica como princípio de continuidade em Toda a Terra, de Ruy Belo
“O flower that is impossible to see”: metonymic association as a principle of continuity in the whole Earth, by Ruy Belo

*Helder Moreira
* Universidade Católica Portuguesa- UCP. Contato: martinhosoares@gmail.com
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Resumo
Reconhecida pela torrencialidade discursiva, a poesia de Ruy Belo assume em Toda a Terra, de 1976, os seus traços mais excêntricos. O presente artigo analisará o contributo da associação metonímica para o desenvolvimento da obra em questão, partindo da hipótese de que este tropo assume uma dimensão matricial na poética de Ruy Belo. A metonímia funciona, então, não apenas como figura de retórica, mas como processo cognitivo que orienta o sentido anagógico subjacente a toda a escrita beliana e que, em Toda a Terra, atinge o grau máximo de concretização. À insuficiência da linguagem para chegar a uma transcendência ou a uma totalidade por si própria anunciada, a poesia de Ruy Belo contrapõe um excesso de palavras — uma excentricidade contínua alimentada por um princípio gerador estável — na busca de uma palavra-total simbolizada pela “flor”.

Palavras chave:: tropo, metonímia, catacrese, Toda a Terra, Ruy Belo

 

Abstract
Well-known for its discursive torrentiality, Ruy Belo’s poetry displays its most eccentric features in Toda da Terra, in 1976. The present paper will analyse the importance of the metonymic association in this book. It will be suggested that this trope plays a key role in Ruy Belo’s poetics. Metonymy works, then, not only as a rhetorical figure, but also as a cognitive process that guides the anagogical meaning underlying Belo’s writing. This process reaches its height in Toda a Terra. Ruy Belo’s poetry exhibits a surplus of words – a continuous eccentricity fed by a stable generating principle – in search for an absolute-word symbolized by the “flower”. This poetry tries, therefore, to challenge the inability of human language to transcend a totality triggered by its own existence.

Keywords:trope, metonymy, catachresis, Toda a Terra, Ruy Belo

Introdução

Este artigo incide sobre uma obra particular de Ruy Belo, mas também, implicitamente, sobre Jorge de Sena, cujo centenário de nascimento se celebrou no passado dia 2 de novembro1 . No final da primeira parte de “Ensaio de uma Tipologia Literária”, publicado primordialmente na Revista Letras, em 1960, Sena perguntava como se poderia lançar, na confusão terminológica que percorre a História da Literatura, “alguma luz que supere ao mesmo tempo as limitações das várias posições críticas”, de modo que se tornasse viável “uma espécie de tipologia literária”2 . O autor propunha uma perspetiva “tipológica” (em oposição a histórica) da literatura, em torno de “certas atitudes fundamentais no que se refere aos limites do conhecimento, à sua origem, à sua natureza, aos seus modos”3. Tratava-se de evidenciar, na matriz do discurso poético, arquétipos epistemológicos que orientam a escrita de um determinado poeta, ou, por outras palavras, de estabelecer uma “organização teorética da multiplicidade de virtualidades probabilísticas do conhecimento”4, que se manifestam num determinado contexto histórico- -sociológico. Segundo esta perspetiva, é possível poetas de diferentes períodos literários terem afinidades de atitude, assim como poetas pertencentes ao mesmo período divergirem neste plano. Um poeta que historicamente se situe no modernismo poderá adotar uma atitude clássica; um poeta do século XVI pode, por esta lógica, manifestar uma atitude modernista.

Ora, seguindo o raciocínio de Jorge de Sena, parto, então, para uma pergunta: seria possível elaborar uma história da literatura a partir, não de atitudes (como propõe Sena), mas de tropos fundamentais? Mutlu Konuk Blasing, ensaísta norte-americana, numa obra de 1987, tentou redefinir a tradição poética americana, traçando estratégias retóricas fundamentais na génese dessa tradição5 . Neste sistema imaginário, cada tropo corresponde a um processo cognitivo que se impõe na relação do “eu” com a linguagem e da linguagem com o mundo. Esse processo funciona como ponto de partida para a escrita, numa perspetiva essencialista da génese do discurso poético6.

Nesta história potencial, em que posição do sistema colocaríamos, então, Ruy Belo? A que tropo o associaríamos? A poesia de Ruy Belo é “uma aventura de linguagem”7 que, nas palavras de Luís Adriano Carlos, se manifesta pelo “desejo de perpetuar a vivência estética do estado poético em altas “temperaturas”8 . A meu ver, a esponja e o vórtice são imagens que poderiam representar esta poesia: enquanto a esponja aponta para a capacidade (no sentido volumétrico) de apreensão do poema, que tudo agrega e absorve, o vórtice remete para o equilíbrio de semelhanças e diferenças que a linguagem necessariamente impõe sempre que um sujeito nela se (in)screve9 . É por essa razão que o verso beliano traz em si a impressão de torrencialidade e fluência, sem deixar de ser carregada de elevada “temperatura” (rimas, aliterações, anáfora,...)10. Na verdade, “Ruy Belo procura a manifestação simultânea, no coração latejante do discurso poético, da conceção e da execução, da inventio e da dispositio.”11

Assim, considero que a poesia de Ruy Belo tem como princípio cognitivo estruturante a metonímia, ou seja, a associação pela proximidade, já que a escrita aponta para além de si própria para as circunstâncias que a constituíram, absorvendo a própria circunstância que a criou12. O texto interroga o mundo, mas sobretudo integra-o, elidindo as fronteiras entre o texto e o real, de tal maneira que o real passa a ser texto e o texto substitui-se à realidade. Vários poemas incluem referências ao seu momento de criação, que é, desse modo, absorvido pela linguagem que o evoca, na procura de uma totalidade sempre em excesso em relação a si própria. Os poemas são “formas deslizantes”13 na busca eterna de um sentido que é eternamente adiado.

Como figura de retórica, a metonímia constitui um desvio de sentido ou de referência. É uma tentativa de alargamento do campo semântico de uma palavra, pela substituição de um nome por outro. Através da metonímia, designa-se uma realidade por um termo cujo significado aponta para outra realidade que lhe é próxima ou contígua14. Segundo Halliday, estamos perante a metonímia quando “uma palavra é usada para se referir a alguma realidade relacionada com a aquilo a que normalmente se refere.”15 Por metonímia, entendemos todas as relações associativas que não são baseadas na similaridade, mas na contiguidade. Desta forma, é importante distinguir a metonímia da metáfora. De um ponto de vista cognitivo, são processos conceptuais distintos, em que a noção de domínio desempenha um papel crucial. Enquanto a metáfora associa conceitos de domínios diferentes, o mapeamento metonímico ocorre dentro de um único domínio conceptual. A metonímia constitui, por isso, uma translação de sentido pela proximidade de ideias, uma transferência de denominação, que corresponde a um deslocamento de referência. Segundo Jakobson, a metonímia, como a figura privilegiada da literatura realista (enquanto a metáfora estaria associada à literatura romântica e simbolista), permite-nos apreender a visão particular através da qual um autor apreende o universo real16. Assim, a metonímia constitui um movimento da linguagem do particular para o universal – uma deslocação dos limites em direção ao todo. Kenneth Burke reforça esta perspetiva ao considerar que a metonímia (ou mudança de nome) constitui uma estratégia de redução do intangível ao tangível, do imaterial ao material17. Neste sentido, é um tropo integrativo, na medida em que tem origem numa perceção desviante do sujeito, a qual se expande pelo emprego de uma palavra para além do seu campo semântico específico (em relações de proximidade). A mudança de nome das coisas desloca a sua referência. Em diacronia, a maior parte das alterações de significado de um lexema ocorre pela lexicalização de uma modificação metonímica. Desta forma, a metonímia constitui um desvio no que toca às relações históricas conhecidas entre as palavras.

Segundo Pedro Serra, numa visão holística da poética de Ruy Belo, “se na produção da década de 1960 temos uma dicção poética subsumida por todos orgânicos, a década de 1970 significará a opção por unidades bem mais excêntricas”18. Na minha perspetiva, é no volume de poemas Toda a Terra, de 1976, que essa excentricidade assume maior expressão. O livro contém trinta e um poemas, divididos em duas partes: a primeira, “Areias de Portugal”, contém vinte poemas; a segunda, “Terras de Espanha”, contém onze poemas. Na totalidade, a obra é constituída por mais de 5000 versos, sendo que na segunda parte predominam os poemas longos, nenhum baixando a fasquia dos cem versos. O poema “A Sombra o sol”, que encerra o volume, aproxima-se dos mil versos. O único sinal de pontuação utlizado é o ponto de interrogação; em “Terras de Espanha”, a estrofe, enquanto unidade rítmica, é praticamente eliminada (as exceções são “Agora o verão passado” e “A sombra o sol”). Como nota Gastão Cruz, se é verdade que o poeta ensaiara noutras obras o poema longo, uma parte substancial dos poemas Toda a Terra assume de forma plena este estatuto: as estratégias de continuidade postas em prática elevam-nos para além da mera colagem de segmentos19. Ou seja, os poemas longos de Toda a Terra são dificilmente subdivisíveis em unidades menores.

Para além da unidade-poema, poder-se-ia falar da unidade-livro. O título, desde logo, remete para a ideia de absoluto, não só pela utilização do quantificador universal (“Toda”), mas também pela aliteração. A decomposição do título nos subtítulos ao nível do significado tem uma correspondência estrutural, já que as três palavras seguem a sequência nome + preposição + topónimo. Em Toda a Terra, a metamorfose pelo significante sobrepõe-se, como princípio desenvolvimento, à equivalência metafórica pelo significado; a metonímia guia o método de composição da obra, como se a associação de significantes permitisse guiar a descoberta do significado. Gastão Cruz refere-se ao “exuberante tratamento que, em Toda a Terra, o poeta dá ao estrato fónico dos textos”20, de forma bem mais acentuada do que em qualquer dos livros anteriores ou de qualquer autor seu contemporâneo. Nas palavras do autor de Campânula, a estratégia utilizada por Belo consiste em “infletir constantemente o discurso em direções imprevisíveis para o leitor, numa incessante aventura linguística, que o poeta dá a impressão de controlar minuciosamente”21. Toda a Terra é, pois, o ápice da violência formal e técnica que Ruy Belo reivindicava para a poesia; uma espécie de incisão no corpo adormecido da linguagem do dia a dia, na busca de uma elevada “temperatura” do poema. Como explica Luís Adriano Carlos, esta “metáfora termodinâmica [...] constitui uma descrição naturalista do entusiasmo que preside ao ato criador”22, uma “energia sensual e emocional” provocada pelo texto. Em Toda a Terra, este caminhar pela linguagem na procura de uma “fixação móvel” é transmitida pela metáfora dos passos: “Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos/ onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias” (“Como se Estivesse em Agosto”)23; “era a convivência contente das flores bravias um momento despertas no descampado vasto dos nossos passos” (“Esse Dia no Miradouro da Boca do Inferno”)24. É a deambulação do poeta por “toda a terra” da linguagem, numa aventura sem limites, que levará à descoberta (ou nascimento) da “flor que é impossível de ver” (“Nem Sequer Não”)25.

O “Toda” do título remete, por isso, para a busca de uma totalidade que abarque a desordem: acidente e desígnio, forme e informe são absorvidos numa unidade estável, que procura assegurar a metamorfose, em continuidade. Essa estabilidade é assegurada por um princípio de agregação metonímico, alicerçado sintaticamente na anáfora gradativa. A repetição de lexemas como “vento”, “flor”, “árvore”, “crianças”, de nomes de meses (como “agosto” ou “setembro”), de expressões como “Tu estás aqui”, de formas verbais como “éramos” ou “havia”, servem como “molas” que asseguram o desenvolvimento do texto, impulsionando-o numa ascensão controlada

O livro abre com uma dedicatória — “À melhor das mães” — que aponta para o nascimento, ideia retomada na epígrafe, transcrita do Sermão de Santo António, de 1670, de Padre António Vieira: “Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal; para morrer, todo o mundo”. As ideias de universalização, de totalidade e de absoluto encontram-se, desde logo, no momento de abertura, situando o percurso da obra entre o nascimento e o pó da sepultura. O paralelismo contrastivo da epígrafe (“nascer”, “morrer”) encontra também paralelo nos títulos das duas partes (“areias”/ “terra”; “Portugal”/ “Espanha”), retirados do romance tradicional “Nau Catrineta”.

O poema de abertura, “Em Louvor do Vento”, constitui uma introdução ao canto. O texto joga semanticamente com a coincidência fonológica entre “vento” e “invento”, retomando a etimologia da palavra. Em latim, a forma “ventus” refere-se não só a “vento”, mas também à ideia de “chegada”, “vinda”. Esta coincidência é explorada pelo poema, que (con) funde a inspiração poética e a inspiração de ar pelos pulmões. O processo metonímico do texto é introduzido pela referência a “uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou um brilho nos olhos de uma mulher / que passa”26. Esta simples dor no “dedo mínimo de um pé” assume-se como o centro de rotação que abre o vórtice metonímico da linguagem. A sua força giratória rapidamente se transformará num “canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu”, “dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem”27. O texto desenvolve-se numa intensificação progressiva conduzida por associação, segundo a semelhança fonética ou gráfica (por pares mínimos28), à qual corresponde um deslocamento de referência denotativa. Assiste-se a uma (pro)vocação do acaso fonético, na busca de novos sentidos.

Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos de uma mulher que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente essa mão inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e transparentes e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo da sua altura e da sua idade na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples ampulheta ou clépsidra29.

O tema da ascensão é representado, simultaneamente, por uma imagem e pela elevação da “temperatura” da linguagem: “[...] o vento que roda lá fora [...] e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde/ [...] até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo da sua altura e da sua idade [...]”30. É por isso que o poema cresce em extensão e intensidade, ao mesmo tempo que o poeta sente que “as pontas dos pés me chegam cada vez mais longe”31. O mecanismo que dirige a ascensão anagógica do sujeito poético32 culmina no desejo de extinção no final ou de fusão entre o poeta e o canto: “até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe / talvez de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra do vento”33. Tornando indistintos canto e poeta, o “eu” funciona como uma caixa de ressonância, aceitando o que as circunstâncias do vento proporcionam.

Como proposição e invocação de Toda a Terra, “Em Louvor do vento” introduz outro tópico fundamental da obra: a ideia de “distração”. A dor no dedo mínimo do pé e/ou a mulher que passa distraem o poeta do vento: “sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente / distraem-me do vento que roda lá fora”3434. A referência à distração é uma estratégia metonímica de tornar o exterior, interior; uma forma de incluir o lado-de-fora-do-texto. A impossibilidade de a palavra deixar de ser texto, para passar a ser mundo, é transformada em referência no poema às circunstâncias da sua produção.

Irene Ramalho Santos, tendo por base Maurice Blanchot, usa o termo “interrupção” para se referir a esta fronteira do texto que nunca é ultrapassada, mas que aponta para a sua transposição35. A poesia de Ruy Belo constitui, então, uma experiência de extensão de limites, na medida em que o texto denota o momento em que o poeta se distrai ou em que o discurso é interrompido. Ao incluir no poema algo que lhe seria exterior, o poeta parece tomar consciência de que a palavra não representa o mundo (e de que, paradoxalmente, a representação do mundo só pode ser feita de palavras), a poesia de Belo aproxima-se da de Fernando Pessoa, quando transporta para o texto a dualidade sentir/pensar: “Que lastro a consciência impõe ao pensamento / não o posso pensar sem logo perturbar / a inocência líquida de olhar” (“Discurso Branco sobre Fundo Negro”)36. O poeta sabe que “um olhar interroga um olhar duvida talvez um olhar é coisa de tempo / é a mais funda fala de quem num momento se sente bem / se despede de si mesmo de todos se isola cortante como uma proa na vida”, porque não tenta repelir, ao contrário do Beneficiado Faustino das Neves, “as mãos coercivas do transcendente” (“O Beneficiado Faustino das Neves”)37. A estratégia poética da interrupção corresponde ao reconhecimento de que a linguagem inclui em si a consciência reflexiva da sua existência. Desta forma, os poemas exibem a tensão que resulta da consciência de que nenhuma palavra pode transpor a fronteira entre o texto e o mundo, entre o dito e o não-dito.

Desta forma, são vários os momentos de Toda a Terra em que o poeta aponta para as circunstâncias em torno da escrita do poema. Sem querer exaustivo, podemos apontar alguns exemplos: “Eu estou deitado e então sinto a ponta dos pés nos lençóis recém-mudados / sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis / e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de Haendel / e abre assim um espaço que não é do meu quarto mas sim o da catedral / de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes nos fins de maio” (“Em Louvor do Vento”)38; “enquanto nesta manhã como aliás nas demais manhãs nos dias de praia / vou lendo atento o jornal e aqui sentado com o mar ao fundo” (“A Guerra Começou Há Trinta e Quatro Anos”)39; “Lavo os dentes e descubro imensas coisas enquanto os lavo e decerto / lavaria muitas vezes os dentes ao dia se antecipadamente soubesse que descobriria / tantas coisas como agora descubro e não são os dentes nem as gengivas / nem qualquer destas coisas das quais aliás falo só por falar / através de palavras que deito para trás das costas como a vida que vivi / e se perderão para mim exatamente como essa vida palavras que nem mesmo conseguirei / ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes / ou pelo menos os lava como uma forma de estar à tarde sozinho em casa / e se sente bem sozinho e gosta moderadamente de estar em casa” (“Ao Lavar os Dentes”)40; “Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto / sentado à mesa de um café envolvo no manto de múltiplas vozes” (“Como se Estivesse em Agosto”)41; “Seria outra manhã esta manhã / se sentado num banco eu que sentado penso / se eu que aqui me sento aqui me sinto / mais à margem da vida do que à beira da avenida / a não sentisse tão sensivelmente eu/abrir como uma flor e ser o espaço / que há nesse regaço tutelar do céu” (“Meditação Anciã”)42.

Este apontar do texto para as circunstâncias da sua criação inclui referências à materialidade da escrita e à circunstância de composição: “livros lápis folhas”, “papéis escritos”, “reúno papéis diversos”, “mas hoje não há os papéis / há voltas a dar”. Aliás, um dos aspetos mais visíveis de Toda a Terra é a utilização quase obsessiva de deíticos43. “Aqui”, “agora”, “hoje” “este(a)” são palavras que ancoram o texto no momento de enunciação. Ao apontar para o contexto situacional da sua criação, o poema constata a efemeridade da circunstância que o gerou. A materialidade do texto substitui essa circunstância, ocupa o espaço deixado vazio pelo passar do tempo e consequente diluição do instante. O texto reatualiza (substitui, embora não se identifique) o momento, ao reinstituir as coordenadas de enunciação — eu/aqui/agora. O poema toma o lugar da circunstância que o gerou e transforma-se num emblema (uma palavra-coisa) que ocupa um espaço cujo tempo deixaria esquecido, inominado (teria existido sem a linguagem?). Na verdade, significante e significado coincidem numa identidade apocalíptica: a linguagem coincide com as estruturas do universo: o texto revela e é, (con)funde-se com o mundo. Que as palavras podem criar o mundo, afirmara Belo no ensaio Na Senda da Poesia: “não há bem mais humano que a palavra (...) Ela ajuda a criar, e participa da história do homem. Daí que pô-la em jogo seja movimentar o universo.”44 A dúvida instalada sobre se as coisas realmente aconteceram ou se a palavra as criou é uma constante ao longo de Toda a Terra: “para num barco atravessarmos o rio do fim o rio hades / sem que voltemos sequer a cabeça para esta terra terra de dias e de sol / onde nem mesmo tenhamos talvez um só dia estado / para logo a seguir esquecermos tudo o que tínhamos talvez um vasto passado” (“A Sombra o Sol”)45. Por essa razão, em “Nem Sequer Não”, o poeta afirma: “Não parto de uma ideia mas talvez chegue a uma ideia / ao real à verdade terra a céu aberto”46. Perante a morte, a inexorabilidade do tempo, e inevitabilidade do esquecimento, restam os poemas-coisas, na sua materialidade:

Como dizer-lhe que tudo é esta terra
que outra terra que houver é desta terra
que há gestos inúteis nas melhores das mãos
que nada tem no fundo algum sentido
que é escusado que não há saída
que se qualquer sentido tem a nossa vida
é só no fundo ver passar o tempo
pensar alguma coisa olhar as folhas
enquanto a noite súbita não desce47.

Dessa forma, o poema aspira a uma “perfeita transparência”48, a uma identificação total com o presente, onde se encontra o verdadeiro nome das coisas, porque “é tudo como atravessar o longo corredor da noite / num comboio comprido que a perfura.”49 Como o poeta afirma em “Tu estás aqui”:

Que ninguém conheça este meu nome este verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro nome embora no mesmo nome este nome de terra de dor de paredes este nome doméstico [...] prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente50.

Um dos momentos mais significativos do livro acontece no poema “Nem Sequer Não”, quando o poeta invoca a “flor de olhar profundo do princípio do mundo”, numa enumeração que se estende por mais de cem versos:

e tu mulher por tuas próprias mãos enclausurada
em clausura maior és essa flor
esse óbvio eflúvio com que donatária és o doador
flor de cativa cor que vi um dia
flor singular em que toquei só pelo aroma que cheirei
flor que cortei levei para casa e se tornou minha casa
flor murcha um dia na marcha do tempo
flor com que me deitei fora quando a deitei fora
flor faladora e leve aérea como a ave
(...)
flor de sonho e silêncio alta como um vício
flor que ao certo não sei se existe ou se a criei
flor que ou chorou ou a manhã a orvalhou
e como a parca flor perdida em dunas ergue
a haste que lhe base nas hostis areias
flor parca ameaçada pelas parcas
que antes de conhecer já conhecia
[...]
flor que não maculasse um só olhar
que fosse a minha única forma de lhe tocar
flor de um momento anterior ao esquecimento
absoluto reinado sempre ameaçado
[...]
flor a que chamo flor para a poder chamar
para neste verão a nomear e ela deixar de estar distante
e ficando distante ficar nesta praia ao alcance da minha mão51

A flor que o poeta invoca52 é um equivalente da palavra-total, do absoluto que Toda a Terra procura — um espaço [o paradoxo] anterior à palavra e ao sentido, inexistente senão pela palavra e pelo sentido. A “flor” invocada constitui um excesso de sentido em relação ao poema que é transportado para o próprio texto: “Só tu vias ó flor que é impossível ver / mas vias se possível o impossível / sabias insolúvel a questão desta vida”53. Assim, o poema torna-se, simbolicamente, a referência a uma palavra nova, nunca antes dita, tornando-se agente de nomeação — uma catacrese. Manuel Gusmão sublinhou que a catacrese “assinala, ao mesmo tempo, a insuficiência da linguagem e a natureza violenta da correção”54. Trata-se do emprego de uma expressão imprópria, por falta de um termo adequado para o que se quer dizer. Esta perspetiva é confirmada por Lausberg: “A necessidade (…) que leva à catacrese, é um fenómeno de pobreza (inopia) do sistema linguístico, que é falho de um corpo de palavras para a coisa que necessita de designação”55.

A “flor”, neste contexto, poderá representar a palavra-total — o “símil da lábil criança”56 de Boca Bilingue. Simboliza, também, um pacto com o leitor e com a circunstância que deu origem ao poema, mas que nunca será acessível (ao poeta e o leitor). Neste pacto, está implícito que a flor nomeada pelo poema designa uma falha de linguagem. Desta forma, o poema (e a flor) representam um excesso de sentido que resulta de uma ausência de nomeação. “Nem Sequer Não” provoca, pois, um movimento da linguagem, ou seja, um deslocamento metonímico face à ausência de um nome para aquilo que se designa 57. Os poemas constituem formas de totalidade que se excedem: ao mesmo tempo que esticam a linguagem até à realidade, deslocam os limites de referência para além deles próprios e tornam-se formas de designação para esse excesso de sentido. O poema é o resultado do movimento do vórtice, num poema- -esponja: uma palavra-total no lugar da circunstância que a gerou.

Neste sentido, será possível ver na poesia de Ruy Belo a mesma aspiração que Jorge de Sena reconhecia na sua própria poesia, no prefácio da coletânea Poesia III: “Reclusa a vida em poesia, não para tirá-la da Vida, mas para encerrá-la dentro do mundo da transfiguração poética, o único capaz de abarcar inteiramente tudo, compreendendo tudo, fitando tudo, aceitando tudo, menos aquilo que diminua a liberdade de criação, que o mesmo é dizer a liberdade do ser humano [...]”58. Jorge de Sena, tal como T.S. Eliot59, é uma referência para Ruy Belo relativamente à forma como encara o discurso poético. Na variação de formas poéticas que Sena ensaia de livro para livro, não se poderá ver o mesmo impulso em direção ao todo que encontramos na poesia de Belo? “Em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir umas coisas das outras”, diz o poeta em “Tu estás aqui”60. O deslocamento de referência provocado pela metonímia poderá “desenha[r] passos inaugurais no princípio do mundo”61 (“Esse Dia no Miradouro da Boca do Inferno”). Deles nascerá (ou neles se descobrirá) um nome para a “flor que é impossível ver.”62

Referências

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Notas

[1]O Colóquio Internacional Teotopias teve no lugar no dia 8 e 9 de novembro de 2019.

[2]SENA, Jorge de. Dialéticas da Literatura. Lisboa: Edições 70, 1973, p. 22

[3]SENA, Jorge de. Dialéticas da Literatura, p. 22

[4]SENA, Jorge de. Dialéticas da Literatura, p. 23

[5]BLASING, Mutlu Konuk. American Poetry. The Rhetoric of Its Forms. New Haven & London: Yale University Press, 1987. O modelo proposto por Blasing tem por base o artigo “Four Master Tropes”, de Kenneth Burke, publicado em 1941. BURKE, Kenneth — “Four Master Tropes”. The Kenyon Review, vol. 3, No. 4 (Autumn). Gambier, Ohio. 1941, pp. 421-438

[6]Se a poesia – os “instrumentos do fogo”, como escreveu Daniel Faria em Homens que São Como Lugares Mal Situados – começa com um confronto com a linguagem do passado, na leitura de outros poetas, a vantagem de uma leitura sincrónica da História Literária encontra-se na possibilidade de se observar a manifestação e a evolução de um determinado tropo em diacronia, o que permite a análise de uma forma específica de encarar a relação entre o “eu” e a linguagem, e entre a linguagem e o mundo (“atitudes”, no léxico de Sena).

[7]Ruy Belo, Obra Poética, Volume 3. Lisboa: Editorial Presença, 1984: “Para mim, mais uma vez o digo, a poesia é a forma por excelência do exercício da linguagem, é uma aventura de linguagem.”, p. 248. Ver também: “Mas só se poderá compreender devidamente aquela [poesia] que seja fundamentalmente uma aventura de linguagem e isso sempre o fim”, p. 22.

[8]CARLOS, Luís Adriano. Poética do Génio e Estética do Sublime em Ruy Belo. Porto: Edição do Autor, 2005, p. 10

[9] Para a associação da poesia à metáfora da esponja, veja-se o capítulo II de HERD, David - John Ashbery and the American Poetry. Manchester University Press: Manchester, 2003. Nesta obra, o autor analisa as primeiras obras de John Ashbery a partir desta metáfora, associando-a à poesia de Boris Parternak. Para exemplo da possível aplicação da metáfora do vórtice à poesia de Ruy Belo, propomos a leitura da sequência de sonetos “O Jogador do Pião”, de Boca Bilingue.

[10]A propósito desta questão, veja-se o artigo “Ruy Belo: torrencialidade, lirismo e ironia”, de Vasco Graça Moura, in Literatura Explicativa. Ensaios sobre Ruy Belo, org. Manaíra Aires Athayde. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, pp. 127-143.

[11]CARLOS, Luís Adriano. Poética do Génio e Estética do Sublime em Ruy Belo. Porto: Edição do Autor, 2005, p. 8

[12]Roberto Acílezo de Souza cita Bühler, que estabelece a distinção entre nomear («nennen») e mostrar («zeigen»), duas formas básicas e complementares da significação linguística, o que reforça a especificidade da significação deítica. Torna-se, então, evidente a coexistência de signos designativos («Zeigzeichen») e signos conceptuais («Nennwörter») nas línguas naturais. SOUZA, Roberto Acílezo: s.v. “Dêixis”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, , consultado em 4-11-2019.Neste artigo, tentaremos chamar a atenção para o carácter designativo da poesia de Ruy Belo em Toda a Terra.

[13]A expressão é de Eduardo Prado Coelho. Apud FRIAS, Joana — Repto, Rapto (Alguns Ensaios). Porto: Edições Afrontamento e Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP), 2014, p.46

[14]PINTO, Sílvia Regina: s.v. “Metonímia”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, , consultado em 4-11-2019

[15]Apud GOOSSENS, Louis. “Metaphtonymy: The Interaction of Metaphor and Metonymy in Figurative Expressions for Linguistic Action”, in By Word of Mouth. Metaphor, Metonymy in Linguistic Action in a Cognitive Approach. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1995, p. 160

[16]PINTO, Sílvia Regina: s.v. “Metonímia”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, , consultado em 4-11-2019

[17]Apud BLASING, Mutlu Konuk. American Poetry. The Rhetoric of Its Forms. New Haven & London: Yale University Press, 1987, pp. 4-5

[18]SERRA, Pedro.“Ruy Belo e o Estilo Tardio”, in Literatura Explicativa — Ensaios sobre Ruy Belo, org. Manaíra Aires Athayde. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 244

[19]“Mas esses poemas longos, sobretudo os de O Problema da Habitação, organizavam-se como uma espécie de colagem de segmentos, cada um dos quais possuindo alguma autonomia. [...] Nos poemas de Toda a Terra [...] não é bem disso que se trata, [...]”. CRUZ, Gastão — “Introdução” a Toda a Terra. Presença: Lisboa, 1999, p. 12

[20]Idem, p. 15

[21]Idem, p. 12

[22]CARLOS, Luís Adriano. Poética do Génio e Estética do Sublime em Ruy Belo. Porto: Edição do Autor, 2005, p. 9

[23]BELO, Ruy. Toda a Terra. Lisboa: Editorial Presença, 2000 [1976], p. 69

[24]Idem, p. 57

[25]Idem, p. 106

[26]Idem, p. 27

[27]Idem, p. 28

[28]Segundo Maria Helena Mira Mateus, “[o] método dos pares mínimos foi desenvolvido pela linguística estrutural mas é utilizado por outras teorias porque permite determinar, de forma objetiva os segmentos que os falantes reconhecem como elementos do sistema fonológico.” AA.VV. — Gramática da Língua Portuguesa. 7.ª Edição. Lisboa: Caminho, 2006, p. 991. O método consiste em agregar, aos pares, palavras isoladas que se distinguem apenas num som e que têm um significado diferente. A partir desse método, faz-se o levantamento de todas as vogais e de todas as consoantes da língua (em posição inicial, medial ou final). Sem querer entrar por caminhos biografistas, convém lembrar que Ruy Belo foi estudioso da linguística, particularmente da fonologia.

[29]BELO, Ruy. Toda a Terra, p. 27

[30]Idem, ibidem

[31]Idem

[32]No sentido em que o poema propõe uma coincidência entre a experiência textual e a experiência existencial, entre o literal e o figurativo, o formal e orgânico, numa tentativa de superação dicotomias. Sobre o conceito de poetas anagógicos, veja-se BLASING, Mutlu Konuk. American Poetry. The Rhetoric of Its Forms. New Haven & London: Yale University Press, 1987, p. 9

[33]BELO, Ruy. Toda a Terra, p. 33.

[34]BELO, Ruy. Toda a Terra, p. 27.

[35] SANTOS, Irene Ramalho. Atlantic Poets. Fernando Pessoa’s Turn in Anglo-American Modernism. Hanover and London: University Press of New England, 2003. Para esta reflexão, importa, sobretudo, o Capítulo 7, “Poetic Interruption: A Pessoan Concept for Reading the Lyric”: “[…] I see no other way of dealing with poetic language than to acknowledge its capacity […] to go on imposing self-reflective interruptions on itself. No poem is worthy of the name […] if it does not include, however, unobtrusively, anxiety about the gaps between the saying, the said, and the unsaid.” Irene Ramalho Santos acrescenta que nada disto tem a ver com o conceito de inefabilidade ou com o silêncio, mas com as propridades da linguagem, aproximando-se com a noção derridiana de “différance”: “[…] it has everything to do with the power of language to unsay what it says in the very act of saying it”, p. 230

[36] BELO, RUY. Toda a Terra, p. 119. Veja-se também o tão pessoano verso “Quanto mais sentes tanto mais tu mentes”, de “Nem Sequer Não”, p. 99. Lembre-se que Ruy Belo teorizou, como Pessoa, a questão do fingimento poético em dois textos de Na Senda da Poesia: “Os Dois Fingimentos” e “Ficção e Significação: o Carácter Metafórico da Palavra Poética”. BELO, Ruy – Obra Poética, Volume 3. Lisboa: Editorial Presença, 1984, pp. 64-66

[37]Idem, pp. 92-93

[38]Idem, p. 28

[39]Idem, p. 50

[40]Idem, p. 66

[41]Idem, p. 68

[42]Idem, p. 126

[43] Vejam-se alguns exemplos, meramente ilustrativos: “Agora nestes finais de agosto”; “Neste momento sou apenas sou”; “a manhã de hoje é horizontal e lisa”; “Mais ou menos aqui havia há pouco umas crianças / três ou quatro crianças mais ou menos ali / Devia haver crianças há este sítio do sol / aqui onde o vento vitima às vezes o verão / ... Há aqui este cabeço estavam estariam aqui”; “Setembro meus amigos foi aqui / eu cá aqui se fui setembro fui / aqui que o sol se põe como aliás em toda a parte / sem precisar enfim de mim para se pôr / Aqui não sei mais do que isso chove chove como então”; ou até nos títulos dos poemas “Esse dia no miradouro da boca do inferno” ou “Tu estás aqui”. Segundo Isabel Hub Faria, “as expressões deíticas têm como função “apontar”, indicar referentes no interior da situação ou contexto onde são usadas e, por essa razão, ficam dependentes desse mesmo contexto para a interpretação plena das referências pessoais, espaciais e temporais que comportam”. AA.VV. — Gramática da Língua Portuguesa. 7.ª edição. Lisboa: Caminho, pp. 61-62

[44]BELO, Ruy. Obra Poética, Volume 3. Lisboa: Editorial Presença, 1984

[45]BELO, RUY. Toda a Terra, pp. 217-218

[46]Idem, p. 100

[47]“Meditação Anciã”, Idem, p. 136

[48]A expressão encontra-se num dos diários de Walt Whitman. Apud BLASING, Mutlu Konuk — American Poetry. The Rhetoric of Its Forms. New Haven & London: Yale University Press, 1987, p. 9

[49]“Meditação Anciã”, Toda a Terra, p. 133

[50]Idem, p. 63

[51]BELO, RUY. Toda a Terra, pp. 103 a 106

[52]Veja-se: “ó flor de olhar profundo do princípio do mundo”; “ó flor que é impossível ver”; “ó flor humilde, ó mulher imensa”. Idem, p. 106

[53]“Nem Sequer Não”, Idem, p. 106.

[54]Apud ROWLAND, Clara. “Conspiração de Folhas: Ruy Belo e o Livro de Poesia”, in Literatura Explicativa. Ensaios sobre Ruy Belo, org. Manaíra Aires Athayde. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015

[55]LAUSBERG, Heinrich. Elementos de Retórica Literária. 2.ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 145

[56]BELO, Ruy. “Ce Funeste Langage”, Boca Bilingue. Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 27

[57]Encontro, no excerto de “Nem Sequer Não” semelhanças com a sequência de poemas “Voyages”, do poeta norte-americano Hart Crane, no que se refere ao uso da “flor” como símbolo do poema resistente à paráfrase, ou seja, uma forma de catacrese. No sexto poema, a “flor flutuante” transforma-se na palavra encarnada, que não pode ser traída: “The imaged Word, it is, that holds/ Hushed willows anchored in its glow/ It is the unbetrayable reply/ Whose accent no farwell can know.” CRANE, Hart — The Complete Poems of Hard Crane. The Centennial Edition. New York & London: Liveright, 2001 58. SENA, Jorge.“Prefácio”, Poesia III. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 15

[58]SENA, Jorge.“Prefácio”, Poesia III. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 15

[59]Veja-se o capítulo “Da Extravagância (Hagiográfica. Ruy Belo e a Crítica)”, de Um Nome para Isto, de Pedro Serra: “Ruy Belo foi um leitor assumido e assíduo de Eliot, sendo que na verdade a lição eliotiana se dilui e dissemina tanto na sua poesia como na sua poética.” A conclusão de Serra tem por base as inúmeras referências a T. S. Eliot nos ensaios de Ruy Belo, em particular em “Na Senda da Poesia”, e o reconhecimento do próprio poeta da influência do autor norte-americano.

[60]BELO, Ruy. “Nem Sequer Não”, Toda a Terra, p. 63

[61]Idem, p. 57

[62]Idem, p. 106