DE PODERES ABRIR A VIDA - 1
sobre a casa na poesia de Luiza
Neto Jorge e de Daniel Faria.
OF POWERS OPEN LIFE - about
the house in the poetry of Luiza
Neto Jorge and Daniel Faria.
*Jorge Teixeira
*Doutorado em Teologia
Moral pela Pontifícia
Universidade Gregoriana,
Roma. antigo Director
Adjunto da Faculdade de
Teologia do Porto,. Contato:
jorgeteixeira81@gmail.com
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Resumo
Este artigo apresenta uma leitura do conceito de «casa» nas obras dos poetas Luiza
Neto Jorge e Daniel Faria. Para Luiza Neto
Jorge, esta casa precisa de abolir a sua imobilidade e a do mundo; o caminho é, pois, o
da liberdade. Para Daniel Faria, a casa possibilita o caminho para o céu, o qual permitirá
procurar o alto e ver o rosto de Deus.
Palavras chave:Luiza Neto Jorge; Daniel Faria; casa; liberdade; Deus.
Abstract
This article presents a reading of the concept of «home» in the works of poets Luiza
Neto Jorge and Daniel Faria. For Luiza Neto
Jorge, this home needs to abolish its immobility and that of the world; the path is, therefore, that of freedom. For Daniel Faria, the
home makes possible the way to heaven, which will allow to seek heights and
see the face of God.
Keywords:Luiza Neto Jorge; Daniel Faria; home; freedom; God.
Construirás — como se diz — a casa térrea —
Construirás a partir do fundamento2
Sophia de Mello Breyner Andersen
Falemos de casas como quem fala da sua alma, entre um incêndio3
Herberto Helder
1.
L uiza Neto Jorge nasceu a 10 de maio de 1939. Daniel Faria nasceu 32 anos depois a 10 de abril de 1971.
Luiza Neto Jorge cursou Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; foi poeta, professora e tradutora. Daniel Faria frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa — Porto; cursou, posteriormente, Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto; foi poeta, seminarista, colaborador da paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses, e noviço no Mosteiro de Singeverga.
Luiza Neto Jorge morreu a 23 de fevereiro de 1989, pouco antes de completar 50 anos. Daniel Faria morreu a 09 de junho de 1999, pouco depois de completar 28 anos.
Os dois poetas publicam os seus primeiros livros4 na casa dos 20 anos. Luiza Neto Jorge reúne a primeira parte da sua poesia em 1973 (Os sítios sitiados) e não volta a publicar até à data da sua morte; uma segunda parte da obra é reunida, postumamente, em A lume (1989). Daniel Faria publica as obras da juventude entre 1991 e 1993 e duas obras da maturidade em 1998 5 . Postumamente edita-se Legenda para uma casa habitada e Dos líquidos, ambos no ano 2000, e O livro do Joaquim em 2007.
Atualmente a obra destes dois poetas «resume-se», essencialmente, à reunião dos seus livros num único volume; não estamos, pois, a falar de obras muito extensas, mas, claramente, de obras muito intensas6.
2.
Daniel Faria, na entrevista a Francisco Duarte Mangas, afirma: «Eu não leio muita poesia, por incrível que pareça»7 . Curiosa esta alegação de Daniel assegurando que lê pouca poesia; na verdade, os amigos testemunham o quanto Daniel partilhava os poetas que ia conhecendo e amando8 . Os seus poetas de eleição eram Sophia de Mello Breyner Andresen, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Ruy Belo, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, Rilke, Kaváfis, entre outros. Mais à frente na entrevista, assegura ainda: «Gosto muito de Luiza Neto Jorge»9
Frei Bernardino conta que, na cela de Daniel, tudo está praticamente como ele deixou:
[…] a poesia de Luiza junto à cama (com o cancioneiro de Garcia de Resende, a Regra de São Bento, e manuais de literatura), a poesia de Santa Teresa d’Ávila e de São João da Cruz em cima da mesa (onde foi encontrado o manuscrito de «Dos líquidos» […].10
Constatamos que Daniel Faria, tal como refere Vera Vouga, «deixou sobre a mesa de trabalho quase, quase pronto, o livro que estava a rever e de que tinha falado a pessoas próximas»11 — Dos líquidos. A presença do livro de Luiza Neto Jorge na mesa de cabeceira e o facto de Vera Vouga afirmar que «O ciclo da magnólia [«Do ciclo das intempéries»] foi o último a ser escrito»12 mostra-nos que a obra da poeta esteve presente na vida de Daniel Faria até aos seus últimos dias.
Parece-me ainda que, efetivamente, a obra de Luiza Neto Jorge marca a de Daniel Faria, ainda que, como é o caso da «magnólia»13, por exemplo, os semantemas não evidenciem a mesma simbologia.
3.
O tema da casa é outro exemplo de um símbolo que está patente quer na obra de Daniel Faria quer na de Luiza Neto Jorge.
Partamos da entrada «casa» do Dicionário dos símbolos:
[…] a casa está no centro do mundo, é a imagem do universo. […] A casa significa o ser interior […]. A casa é também um símbolo feminino, no sentido de refúgio, de mãe, de proteção, de seio maternal […].14
Será que a casa de Daniel Faria e de Luiza Neto Jorge se enquadra nesta leitura do signo «casa» enquanto centro do mundo, lugar interior ou mãe?
4.
Na obra de Luiza Neto Jorge, importa destacar Terra imóvel (1964), em especial a secção «As casas»15. Este livro foi escrito em Paris, cidade que, em 1961, a poeta escolheu para viver durante cerca de uma década; Luiza Neto Jorge afirma: «em Paris, distante, aprendi a conhecer Portugal, […] pela distância, pela diferença, pela ausência […] e porque me sentia liberta»16. Não podemos ignorar que, neste período, em Portugal se vivia sob a capa de um regime ditatorial.
Convoco aqui as palavras de Gastão Cruz, referindo-se à poeta:
[…] politicamente muito empenhada. A opção interventiva […] não a impedia, evidentemente, de procurar uma linguagem poética que nada tinha que ver com os padrões mais convencionais da literatura de combate, principalmente os de uma espécie de segunda ou terceira gerações de neorrealistas.17
A poesia de Luiza Neto Jorge tem como um dos objetivos desassossegar o homem. Um destes poemas não pode deixar um leitor no seu estado inicial, aquele que pré-existia à leitura; nas palavras de Derrida, «não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também.»18
Os poemas de «As casas» não são, como a maioria da obra de Luiza Neto Jorge, de leitura transparente. Nesta secção de Terra imóvel, estamos perante uma referência — a casa — que concorre para a ideia de imobilidade que o título da obra transporta.
Luiza Neto Jorge apresenta-nos um quadro de exemplos de casas, o qual suscitará «seres inimigos do conformismo»19, revoltando-se contra uma visão que uniformiza todos na obediência a padrões instalados e castradores.
O poema «i» apresenta-se como prólogo das casas20:
As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir21
De manhã, de facto, são só casas; na noite fecunda e criadora, estas vivem efetivamente, quando os olhos dos que as condenam já não conseguem «ver». As casas têm corpo, são (habitadas por) seres humanos — mulheres, homens, crianças. Aquelas parecem querer recusar a inércia ou sonhar combatê-la, por isso «estendem os braços para o alto» e «vão partir»; aproveitando ainda a noite, podem mesmo fechar os olhos, porque não precisam deste sentido para percorrer «grandes distâncias»22. Conhecemos ainda outras características destas casas: mais dóceis do que as crianças, pensativas e apreciadoras da transparência do silêncio e, portanto, longe da apatia.
O erotismo e o sexo surgem, nesta secção, como elementos promotores da rutura com o institucionalizado. No poema «II», parte-se de uma promessa: «ser virgem toda a vida»23. Nesta casa, a mulher virgem está fechada sobre si mesma, alimenta-se nesse fechamento ensimesmado, como quem vive no medo. O seu corpo e o seu sexo estão do lado do encobrimento. A promessa, contudo, acaba por perder-se: «Ruiu num espasmo de verão / molhada por um sol masculino»24.
Esta «escrita erotizada»25 é característica da obra de Luiza Neto Jorge, como em poucas na poesia portuguesa, e, escandalizando, estimula a libertação sexual, sobretudo a da mulher. No poema «III», o incêndio, iniciado na essência da casa — os alicerces −, consumiu-lhe o ventre; o mesmo fogo rodeou-lhe a cintura, andando portanto junto à zona genital. A casa é humana: fala, expressa-se por palavras, canta e comunica também pelo olhar. Nesta casa, os espelhos mostram um mundo simulado, porque «sempre tiveram / portas viradas do avesso / janelas desvirtuadas»26.
Para que servem estas portas e janelas se não permitem sair ou ver o horizonte? Se só contribuem para a clausura em casa? Se só permitem ver uma verdade simulada? Contudo, é em casa que ela afirma sentir-se bem (porventura como se se tratasse de um mal menor) e foi mesmo capaz de esquecer «o ímpio corpo / dos homens»27. A casa já não fala; autocondenando-se, limita-se a esperar a morte.
A denúncia à hipocrisia vigente numa sociedade parada no tempo é tratada de forma veemente.
No poema «XI», conhecemos a sem vergonha; dela até os jornais diários deram notícia, na tentativa de impor uma moralidade; aquela «Despe-se a desoras para o amante»28, sendo, por isso, a desonra, a humilhação da comunidade.
Nestas casas, de acordo com José Ricardo Nunes, coexistem «diferentes perspetivas morais»29, mas considero que o mundo — que não é o que Luiza Neto Jorge busca — parece pouco tolerante para as aceitar
A da esquina (poema «V»), porque era louca, recebia qualquer pessoa em sua casa e a qualquer hora. Todos as pessoas lá cabiam, até prostitutas convidava:
Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens30
No poema «IV», são-nos também apresentadas as crianças. Estas «Podiam brincar aos domingos»31. Percebemos que os meninos, neste dia de deus, podiam ter esse prazer, mas tinha de ser disciplinado: «nunca atravessar-a-rua […] / bater sem força as portas»32.
A família, alicerce do Estado Novo, coopera com uma educação castradora, aqui condenada por Luiza Neto Jorge com recurso à ironia. Percebemos que, de facto, esta limitação à liberdade surge em todos os períodos da vida humana e em todas as circunstâncias da vida pessoal e social.
No poema «X», assistimos à única mulher que acompanha o morto. Querendo partir, foi impedida; mas permanece o seu grito de revolta, interpelando o leitor:
e ainda hoje clama (ouvem?) «Aqui viveu um homem ano a ano Aqui morreu sozinho»
Ela alerta: aqui viveu um homem e aqui morreu sozinho, condenado à solidão na vida e na morte; no fundo, parece perguntar também ao leitor se ele, aprisionado, quer morrer sozinho, sem viver.
Perante estes cenários, ficam ainda as perguntas da casa, as questões «de quem não quer partir sozinho, abandonado; perguntas repletas de humanidade e de angústia»33:
Quem me lavará antes da morte?
Quem perfumará meu corpo morto?
A mim casa quem me chorará?34
Luiza Neto Jorge captura a essência do ser humano, é «criadora de sentidos densos e de laços fortíssimos com o mundo, com a vida»35 e denuncia os seus males, mostrando-se absolutamente comprometida nos acontecimentos da história do seu tempo. Nestas casas, vive-se escondido de forma dissimulada. Luiza Neto Jorge vem exigir uma atitude de coragem e resistência:
Romperás a máscara tuaaammáscara ó casa dúctil de cal viva […] Perante os tijolos iguais todos miolos eles todos iguais totais dirão «o rosto da casa seu rosto reposto v e r d a d e i r o e m s a n g u e »36Romper a máscara vai exigir fazer diferente, ter uma atitude de oposição ao vigente:
Escolham para sair a hora delgada da loucura a hora fora da lei deitem fora a casa inútil morada de quem mora375.
Na obra de Daniel Faria, a casa está, materialmente, ainda mais presente do que na obra de Luiza Neto Jorge38.
O poeta traça a necessidade de, antes de mais, se conhecer o caminho para casa. O fogo é a «provisão», porque, destruindo, permite o nascimento da estrela, luz que guia o homem:
A estrela nasce da raiz carbonizada
Do caule queimado
Da roda dos bois afogueados
Quando em chamas com cornos espigados
Passam entre medas que alumiam o caminho para casa.39Mas nem sempre, ainda assim, o homem é capaz de ver este caminho. Em «Explicação da cegueira», quando o homem se vê cego e incapaz de reconhecer o caminho de casa, decide-se pela espera. Aqui a salvação só pode chegar-lhe pela mãe. José Rui Teixeira afirma que a mulher estabelece «uma relação orgânica com a casa»40. De facto, nas «Últimas explicações», a «Explicação da casa»41 não recorre uma única vez ao semantema casa, mas refere os semantemas mulher e viúva: estas são quem efetivamente faz a casa, mesmo quando os homens nem sequer o pressentem. A mulher relaciona-se visceralmente com a casa, quando a aspira «para dentro dos pulmões» e põe «a mesa / Ao redor do coração»42; aliás, ela é profunda guardiã da casa, pois se «Pudesse tocar / A fímbria ou a franja de toda a casa / Ela a sararia»43
Daniel Faria vê os homens como «sítios desviados / Do lugar»44; estes são como casas saqueadas e, por isso, apossadas da essência; são ainda como projetos de casas45, portanto homens por fazer. Sara, aliás, é o exemplo de uma vida por fazer, sentada «nos degraus das casas destruídas»46.
Este homem precisa de ser desmoronado para poder ser reconstruído. Na secção «Explicação das casas», Daniel Faria também espera a evolução a partir da casa «desabrigada / Arbusto por abrir», uma vez que «A casa vem demolir o homem»47.
Partindo da obra de São João da Cruz, o poeta de Dos líquidos mostra que, inicialmente, o homem não entende totalmente a noite; esta traz- -lhe um certo deslumbramento, mas este caminho é imprescindível para a missão de «procurar o alto»48:
A princípio as trevas alumbram. Porque no escuro
O coração para de correr. Secando a água
Secam os caminhos, perdem-se os companheiros
De viagem, perdem-se as casas dos vizinhos.
A noite a princípio é o homem sem casa, é o lugar
Em silêncio. É a humildade humedecendo
O corpo descalço e consumido49Aqui o homem caminha em solidão, porém esta permite-lhe despojar-se do excesso; este homem não tem casa, pois não chegou ainda a um lugar interior que lhe permita o adentramento. A verdade é que «A luz entra sempre de noite»50 e até por isso não pode ser a luz solar, mas sim a luz interior; esta possibilita a chegada à consciência, mas revela-se tantas vezes na forma de angústia; se antes «Não tinha nada de onde vim», agora o silêncio possibilita perceber que «Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres / O vazio que persiste à minha beira». Na cela, procurou Deus, mas ele nem sempre esteve ou antes nem sempre foi visto. José Rui Teixeira, referindo-se a Explicação das árvores e de outros animais, afirma:
[…] perpassa uma vaga tensão escatológica, o «já agora» e o «ainda não» de uma presença que, sendo esmaecida na experiência existencial, é sentida como ausência. E apesar de uma vida espiritual tão intensa, a expectativa do pleroma condenava Daniel Faria a uma insatisfação que nem primícias da vida monástica pareciam saciar.51O poema «De veres o meu lugar. De me veres só» é absolutamente revelador do que aqui se refere. Por um lado, Deus parece ser tudo e tudo preencher: «De estares à minha beira e no quarto ao lado / Vazio, no vazio búzio / De ocupares o vazio para o libertar»52.
Por outro, temos um desespero profundo de quem não corresponde a todas as graças que vêm de Deus e se vê longe do céu, bem confinado ao chão: «E de me erguer como um odor a terra — como a tempestade — / Cansado, cansado. / Sem força para ver a tua face.»53
Esta angústia existe também quando o homem se depara com a possibilidade da destruição deste lugar de encontro, de silêncio, de adentramento:
Se o fogo destruir a casa E apagar a cal que caia a casa Onde irei escrever o teu nome? […] E se o fogo destruir o homem que caia a casa E apagar o coração Como explicarei aos sem abrigo O teu auxílio?54Contudo a inquietude de Daniel Faria não é permanente nem leva a um abandono definitivo, não deixando de alertar que «É preciso portanto concluir a noite para passar / A outra noite.» A casa não é mesma do princípio. Agora «Deus / Sobe os degraus com a noite nos braços»55. Até chegarmos aqui foi preciso que o silêncio e a meditação ganhassem terreno, na linha de São João da Cruz:
Este sossego e quietude desta casa espiritual vem-no a conseguir a alma […] por meio dos atos de toques substanciais da divina união […] a alma se foi purificando, sossegando e fortalecendo e fazendo-se estável […]56.Na verdade, mesmo na humanidade repleta de imperfeições, Daniel sabe que o homem pode sempre viver de novo, pois «Naquilo que não fui vim encontrar-me / E sempre que te vi recomecei»57.
A questão central em Daniel Faria é que a casa na terra não se apresenta como morada definitiva; a casa é um espaço de encontro, mas é-o transitoriamente; por isso, como o mundo provisório, «Devo ser […] a casa posta à venda»58. «Zaqueu», por sua vez, é o melhor exemplo desta casa espaço de encontro; ele desce «para abrir a casa»59 a Deus que é aquele que nos enche «a casa como um ano bom»60.
Como Zaqueu, Daniel sabe que é preciso ser pequeno, esse é o caminho para o alto:
Queria ter a posição dos claustros
A posição do monge antigo que os varre […]
Queria
Como se tivesse
A posição da casa e alguém me visitasse61Esta pequenez surge associada à vontade de entrega ao outro na consciência da finitude: «Na minha casa sou um utensílio que se vai quebrar / Na minha casa sou alguém que vai morrer»62; e este desejo da morte vem aliado ao anseio pela luz partilhada: «Soubesse eu morrer / Iluminando»63. Este movimento ascensional para Deus, marcado pelo desconhecimento da casa, mas pelo conhecimento da própria casa64, mostra-nos como esta é uma casa ferida: «Carrego a casa como um fardo / Carrego-a como promessa»65
E se a casa, por um lado, não tem asas, não se aproxima do céu, por outro, não deixa de ser a promessa ao homem e ao povo escolhido, neste percurso de descensão e ascensão:
Portanto farei uma escada no coração. E pelos degraus subirei da minha casa Até bater com o pensamento no altíssimo. 66A casa permite encontrar(-se) e chegar a Deus; Daniel Faria nunca desconsidera o mais importante, ainda que saiba que, ao alto, pode não chegar:
Sei bem que não mereço um dia entrar no céu Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra67Em O livro do Joaquim, Daniel Faria é muito claro ao afirmar a escolha pelo caminho da esperança, mesmo quando habitou o deserto: «[…] vivi mais das possibilidades do que das certezas, das esperanças mais do que das decisões»68.
6.
Numa entrevista conduzida por Ricardo Araújo Pereira, Sophia de Mello Breyner Andresen afirma:
A poesia é das raras atividades humanas que, no tempo atual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas […] não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma — quer a essa alma chame amor, liberdade, dignidade ou beleza.69Estamos, efetivamente, perante dois poetas, duas poéticas, duas casas, mas ambos escrevendo certamente para a salvação da alma.
Luiza Neto Jorge chamará a essa «alma» liberdade. As casas de Luiza Neto Jorge não são tanto abrigo, mas prisão, porque feitas de máscaras. Só a liberdade será capaz de abolir estas casas; na sua revolta e rebelião, pretende mover a terra. Neste mundo não há Deus; estamos muito mais no plano do imanente, mas não deixa de ser um caminho com sentido na procura de um alto — a liberdade.
Daniel Faria chamará a essa «alma» caminho para o céu, amor de Deus. A casa deste poeta, sendo do mundo do concreto como a escada ou os degraus, por exemplo, faz parte de um grupo de elementos que ajudam a percorrer o caminho do sentido que possibilitará procurar o alto e ver o rosto. Contudo Daniel, reconhecendo-se «Uma espécie de anjo ferido na raiz»70, nunca perde a consciência de que «só o verá quem se aproxima pelo interior»71. Na casa, a escuta, a união espiritual com Deus é possível.
Daniel Faria viveu a afirmar: «[…] lembrar-te-ás de que existir é procurar um lugar»72, não deixando, contudo, que este lugar-dentro fosse fechado sobre si mesmo, isolado na sua casa pessoal e individual; por isso, foi mais longe e assegurou: «Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros»73.
Referências
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VOUGA, Vera — Da magnólia entre nós. In Sobre este dia precipitem as manhãs. Daniel Faria ou da tão primeira nuvem. Porto: Sombra pela cintura, 2009.
—
Notas
[1]Verso de Daniel Faria (cf. Poesia. Porto: Assírio & Alvim, 2012, p. 166). Todas as citações da obra de Daniel Faria seguem esta edição.
[2]ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner — “A casa térrea”, «O nome das coisas». In Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011, p. 628.
[3]HELDER, Herberto — “Prefácio”, «A colher na boca». In: Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 12.
[4]Respetivamente Noite vertebrada (1960) e Uma cidade com muralha (1991).
[5]Carlos Azevedo lembra: «No fim do primeiro Inverno em Singeverga […] dá-se o episódio que levou à edição dos dois primeiros livros comercializados no mercado, “Explicação das Árvores e Outros Animais” e “Homens Que São Como Lugares Mal Situados”: perde uma disquete com os dois textos e assusta-se com a ideia de alguém os publicar primeiro. […] propus-lhe fundar uma coleção de poesia. […] à beira do verão de 1998 os livros estavam cá fora.» Apud COELHO, Alexandra Lucas — Daniel Faria: o rapaz raro. Público — Mil Folhas, 14 de julho de 2001, https://www.publico.pt/2001/07/14/jornal/daniel-faria-o-rapaz-raro-159820 [consultado em 20 de junho de 2019].
[6]Os livros fazem parte da coleção «Documenta poetica» da Assírio & Alvim; Poesia de Luiza Neto Jorge (número 23 da coleção) tem 319 páginas e Poesia de Daniel Faria (número 144 da coleção) tem 458. Este livro não inclui as obras O livro do Joaquim e Legenda para uma casa habitada.
[7]FARIA, Daniel — Um anjo atingido na raiz. Entrevista concedida a Francisco Duarte Mangas. In Gazeta literária. N.º 5 (2019), p. 19.
[8]Cf. COELHO, Alexandra Lucas, Daniel Faria: o rapaz raro.
[9]FARIA, Daniel — Um anjo atingido na raiz, p. 20.
[10]Apud COELHO, Alexandra Lucas, Daniel Faria: o rapaz raro. O itálico é meu.
[11]VOUGA, Vera — Da magnólia entre nós. In Sobre este dia precipitem as manhãs. Daniel Faria ou da tão primeira nuvem. Porto: Sombra pela cintura, 2009, pp. 64-65.
[12]Ibidem, p. 79.
[13]«Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia / Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio / A minha casa» — FARIA, Daniel — Dos líquidos, p. 338. Ver também JORGE, Luiza Neto — O seu a seu tempo. In Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 137. Todas as citações da obra de Luiza Neto Jorge seguem esta edição.
[14]CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain — Casa. In Dicionário dos símbolos. Dir. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Lisboa: Teorema, 2010, pp. 165-166. Os itálicos são meus.
[15]O semantema «casa» surge nesta divisão dezassete vezes; na restante obra de Luiza Neto Jorge, surge vinte e uma vezes de forma mais dispersa.
[16]Ver ROQUE, João — Luiza Neto Jorge, RTP (série Artes e letras), 1982, https://www. youtube.com/watch?v=99qO-ntFPyY&t=209s [consultado em 10 de julho de 2019].
[17]CRUZ, Gastão — Memória de um tempo e de Luiza Neto Jorge. In Relâmpago. N.º 18 (2006), p. 125.
[18]DERRIDA, Jacques — Che cos’è la poesia?. Coimbra: Angelus Novus, 2003, p. 9.
[19]PEREIRA, Elsa — A insurreição do corpo e da palavra: Terra imóvel, de Luiza Neto Jorge, p. 2, http://docplayer.com.br/44301149-A-insurreicao-do-corpo-e-da-palavra-terra-imovel-de-luiza-neto-jorge-1.html [consultado em 8 de junho de 2019]
[20]Só neste poema — do grupo dos catorze — temos o semantema «casas» no plural. Isto parece significativo, já que depois deste grupo de poemas, vamos encontrar o «Posfácio às casas»; aqui podemos estar perante um prefácio às casas.
[21]JORGE, Luiza Neto — Terra imóvel [TI], p. 98.
[22]Ibidem.
[23]Ibidem.
[24]Ibidem, p. 99.
[25]MARTELO, Rosa Maria — Luiza Neto Jorge e a máquina de oscilar. In Em parte incerta. Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004, p. 168.
[26]JORGE, Luiza Neto — TI, p. 100.
[27]Ibidem.
[28]Ibidem, p. 103.
[29]NUNES, José Ricardo — Um corpo escrevente. A poesia de Luiza Neto Jorge. Lisboa: & etc, 2000, p. 50.
[30]JORGE, Luiza Neto — TI, p. 101.
[31]Ibidem, p. 100
[32]Ibidem.
[33]TEIXEIRA, Jorge — Conheço toda a terra só de amar. Sobre a eternidade na poesia de Luiza Neto Jorge. Comunicação apresentada no II Colóquio Internacional Poesia e Transcendência: «Nascidas do sangue das palavras» — vozes e universos poéticos femininos, Porto, 5 de julho de 2017, Universidade Católica Portuguesa, p. 10 (não publicado).
[34]JORGE, Luiza Neto — TI , p. 105.
[35]CRUZ, Gastão — Memória de um tempo e de Luiza Neto Jorge, pp. 128-129.
[36]JORGE, Luiza Neto — TI , p. 105.
[37]JORGE, Luiza Neto — TI, p. 106.
[38]Na obra de Daniel Faria, opto por centrar-me nas três obras da maturidade, Explicação das árvores e de outros animais [EAOA], Homens que são como lugares mal situados [HSLMS] e Dos líquidos [DL]. O semantema «casa» surge nas três obras noventa e uma vezes (EAOA — vinte e uma; HSLMS — vinte e quatro; DL — quarenta e seis).
[39]FARIA, Daniel — EAOA, p. 32.
[40]TEIXEIRA, José Rui — Ofício de morrer. O corpo e a morte na poesia de Daniel Faria [um tríptico para o desdobramento da imolação]. In AZEVEDO, Carlos A. Moreira (Coord.) — «Se acender a luz não morrerei sozinho«: receção de Daniel Faria, a 20 anos da morte. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 2019, p. 163.
[41]FARIA, Daniel, EAOA — p. 113.
[42]FARIA, Daniel — HSLMS, p. 122.
[43]Idem — DL, p. 320.
[44]Idem — EAOA, p. 125.
[45]Vd. ibidem, 126.
[46]Idem — HSLMS, p. 149.
[47]Idem — EAOA, p. 56.
[48]Ibidem, p. 44.
[49]Idem — DL, p. 221
[50]Idem— EAOA, p. 57.
[51]TEIXEIRA, José Rui — Um modo de te amar dentro do tempo. Sobre a saudade de Deus na poesia de Daniel Faria. In Igreja e Missão. N.º 232 (maio/agosto de 2016), p. 208.
[52]FARIA, Daniel — HSLMS, pp. 189-190.
[53]Ibidem.
[54]Ibidem, 193
[55]Idem — DL, p. 222.
[56] CRUZ, São João da — Noite escura. In Obras completas. Oeiras: Edições Carmelo, 1986, pp. 550-551.
[57]FARIA, Daniel — EAOA, p.59.
[58]Ibidem, p. 38.
[59]Idem — HSLMS, p. 166.
[60]Ibidem, p. 185.
[61]Idem — DL, p. 303.
[62]Ibidem, p. 304.
[63]Ibidem, p. 310.
[64]Vd. ibidem, pp. 313 e 314.
[65]Ibidem, p. 316.
[66]Ibidem, p. 217.
[67]Idem — EAOA, p. 62.
[68]Idem — O livro do Joaquim. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 75.
[69]ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner — O poema é uma outra forma de conhecer. Entrevista concedida a Ricardo Araújo Pereira. In JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XVII, n.º 709, 17/12 a 30/12/1997, p. 7.
[70]FARIA, Daniel — HSLMS, p. 169.
[71]FARIA, Daniel — Autorretrato do artista enquanto agora. In Gazeta literária. N.º 5 (2019), p. 9.
[72]. Idem — Retrato de mim, numa aula de introdução aos estudos literários. In VOUGA, Vera — Sobre este dia precipitem as manhãs. Daniel Faria ou da tão primeira nuvem, p. 50.
[73]Idem — O livro do Joaquim, p. 69.