O Ano de 1919
The Year of 1919
*Luís Fernando Adriano Carlos
*Faculdade de Letras,
Universidade do Porto
(Portugal). Contato:
luadcarl@gmail.com
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Resumo
Não se pretende caracterizar literariamente o ano do nascimento de Sophia de
Mello Breyner Andresen, que foi também o
do seu amigo Jorge de Sena, personalidade ímpar e cimeira da cultura portuguesa.
O objectivo é — além da obrigatória pintura
académica de uma cor local que faça sentir
o clima artístico da época, pleno de contradições e aporias — equacionar algumas ideias
fundamentais que nascem nesse mesmo ano
além-fronteiras com o pensamento crítico de
T. S. Eliot e se aprofundam com a teoria poética de Roman Jakobson e dos formalistas
russos, influenciados pela fenomenologia intencional de Edmund Husserl. Em particular,
a despeito do fundo historicista reinante, a
inaudita articulação entre a trans-historicidade
do fenómeno literário e a sua especificidade
intrínseca, que a geração dos Cadernos de
Poesia — a que pertencerão estes dois vultos quando atingirem a idade adulta, durante
a II Grande Guerra e no pós-guerra — irá integrar dialecticamente numa concepção ética
de compromisso da palavra com a dignidade
humana sem sacrifício da sua dignidade estética. Esta integração é a marca distintiva de
um Terceiro Modernismo, ainda mal compreendido enquanto tal, cujo embrião doutrinário
e teórico data de 1919 e que prossegue os caminhos abertos pelos modernistas de Orpheu,
The Egoist e Presença.
Palavras chave: 1919 na Literatura; Origens da Geração dos “Cadernos de Poesia”; Sophia Andresen; Jorge de Sena; Tomaz Kim.
Abstract
It is not intended to characterize literarily the year of Sophia de Mello Breyner
Andresen’s birth, which was also that of her friend Jorge de Sena, a unique and
topping personality of Portuguese culture. The objective is — in addition to the
obligatory academic painting of a local color that makes feel the artistic climate
of the epoch, full of contradictions and aporias — to equate some fundamental
ideas that are born in that same year abroad with the critical thinking of T. S.
Eliot and deepen with the poetic theory of Roman Jakobson and the Russian
formalists, influenced by the intentional phenomenology of Edmund Husserl. In
particular, despite the reigning historicist background, the unprecedented articulation between the trans-historicity of the literary phenomenon and its intrinsic
specificity, that the generation of Cadernos de Poesia — to which these two
figures will belong when they reach adulthood, during II Great War and post-war
— will integrate dialectically in an ethical conception of the word’s commitment
to human dignity without sacrificing its aesthetic dignity. This integration is the
hallmark of a Third Modernism, still poorly understood as such, whose doctrinal
and theoretical embryo dates from 1919 and which continues the paths opened
by the modernists of Orpheu, The Egoist and Presença.
Keywords:1919 in Literature; Origins of the “Cadernos de Poesia” Generation; Sophia Andresen; Jorge de Sena; Tomaz Kim.
Introdução
Percepcionado agora, à distância de um século, no ano futurístico do filme Blade runner de Ridley Scott que tão diferente viria porém a revelar-se no nosso real quotidiano, 1919 parece não ter o brilho e a complexidade que a crítica literária portuguesa da segunda metade do século XX atribuiu a 1915, marco da eclosão do Modernismo nacional com a publicação da revista Orpheu, em Lisboa, e com a entrada em cena de Fernando Pessoa e seus companheiros dessa efémera e na verdade póstuma aventura. É um ano que parece ter desaparecido da linha do tempo entre 1915 e 1927, altura em que uma outra revista, Presença, de Coimbra, deu existência formal, pela voz de José Régio, ao conceito periodológico de Modernismo na nossa literatura para mais tarde chamar a si a classificação de Segundo Modernismo. É isto que se ensina nas cadeiras universitárias de Literatura Portuguesa e no Ensino Secundário. Entre 1915 e 1927, se exceptuarmos o ano de 1917 em que vêm a lume o romance expressionista Húmus, de Raul Brandão, e o número único de Portugal futurista, logo apreendido com escândalo, parece existir uma espécie de Triângulo das Bermudas na literatura portuguesa.
Todavia, foram várias as revistas que registaram a deriva classicizante de Fernando Pessoa e constituíram a génese da revista Presença neste período: Exílio, Centauro, Contemporânea e Athena, Tríptico e Bysancio, habitualmente vagueando neste longo lapso. E existe mesmo o caso excepcional d’A águia, que teve cinco séries, entre 1910 e 1932, mas que os métodos escolares contraem de molde a poderem deduzir a sua anterioridade relativamente a Orpheu, como se o espaço literário fosse uma linha de sucessões, unidimensional, e não uma rede de conexões, tetradimensional, em que nada se extingue e começa por sentença ou decreto. Esta contracção chega ao ponto, muitas vezes, de associar a polémica entre os saudosistas d’A águia e os dissidentes da Seara nova, emergente em 1921 do fundo desse oceano, a uma temporada de episódios pré-modernistas ou proto-modernistas.
Soa por isso estranho, a quem tenha sido aluno de Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, eleger para tema de uma conferência o ano de 1919, que as historiografias literárias reduzem a algumas datas de nascimento e óbito ou, eventualmente, à data de publicação da obra de estreia da ultra-romântica e suicida Florbela Espanca, Livro de mágoas. É certo que os especialistas neste específico segmento da nossa literatura destacam outros combates literários, que a divisão periodológica entre Primeiro e Segundo Modernismos rasura numa gigantesca elipse ou resolve numa massa indistinta de Simbolismo e Decadentismo serôdios, misturados com o transcendentalismo panteísta de Teixeira de Pascoaes em clave pessoana. Um desses combates é caro a esta nobre Casa, a Universidade Católica Portuguesa, que tem tradição e pergaminhos no estudo do movimento da Renascença Portuguesa, através do qual, para desagrado de Fernando Pessoa, o Porto sobe à boca de cena da vida literária nacional e será criada a sua Faculdade de Letras, neste mesmo ano de 1919, por diligência ministerial de Leonardo Coimbra, seu mentor e primeiro director.
Refiro-me, naturalmente, ao combate nacionalista entre o Integralismo lusitano de António Sardinha e o Saudosismo de Pascoaes coligado com o Criacionismo de Leonardo Coimbra. Este é o veio que corre nas Letras portuguesas desde o início da I Guerra Mundial até 1919, em paralelo com uma corrente subterrânea de Expressionismo informal patente em Raul Brandão e com ressonâncias na futura estética da Presença, particularmente em José Régio. Neste ciclo, fenomenologicamente falando, não há rasto de Fernando Pessoa ou de Almada Negreiros, e muito menos de Mário de Sá-Carneiro, suicidado em 1916. Por outras palavras, o Modernismo português nunca existiu senão historiograficamente, a título de reconstituição retroactiva, guiada pelos programas literários de José Régio, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro, cuja doutrina estética elevou a luta consciente contra o academismo livresco a uma altitude até então inaudita na terra lusíada. O cenário, em 1919, era inteiramente preenchido pela luta entre Integralistas e Saudosistas. E é tudo.
O fim homicida da ditadura de Sidónio Pais, em Dezembro de 1918, vai determinar a convulsão política, laboral e social dos meses seguintes, desde logo com a proclamação fracassada da Monarquia no Porto e a restauração periclitante da legalidade republicana até 5 de Outubro de 1919, quando cessam as funções do Presidente da República Canto e Castro, substituído pelo Presidente eleito António José de Almeida, o primeiro a cumprir integralmente o mandato na Primeira República. O clima nacionalista, que internamente mergulhava raízes nas Palavras loucas de Alberto de Oliveira, obra doutrinária do Neogarrettismo datada de 1894, tem por pano de fundo as recentes teses de Oswald Spengler na obra A decadência do Ocidente, de 1918, e uma vaga de revoluções e agitações extremistas pela Europa fora, da Rússia à Alemanha, da Hungria à Itália. Mas o mais importante a registar é que, sob o impacto da revolução dos bolcheviques nas classes trabalhadoras e no equilíbrio das sociedades europeias, a I Guerra Mundial de 1914-18 só terminaria oficialmente em 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes em 28 de Junho.
Perspectivando a vida literária e artística, este é o ano charneira em que ocorre a lenta mutação do dilúvio dadaísta que inunda o centro da Europa, em particular no roteiro Suíça-França-Alemanha, numa nova ordem do espírito das vanguardas que vai tirar partido da psicanálise freudiana e fundar o Surrealismo. Se é comum assinalar o nascimento desta Escola literária e artística em 1924, com o primeiro Manifesto do Papa André Breton, é menos conhecida a relevância histórica do ano de 1919 na sua génese. Com efeito, há dois acontecimentos da máxima importância que precipitarão o fim do niilismo dadaísta. Primeiro, em 1919, não é só a Mona Lisa com bigodes de Marcel Duchamp que dessacraliza o altar da arte, na senda do urinol A fonte com essa mesma finalidade iconoclasta; é ainda a publicação do terceiro manifesto de Tristan Tzara, “Proclamação sem pretensão”, que agita a cultura de vanguarda; e é também a profusão massiva de revistas efémeras ou instantâneas neste mesmo ano, a ponto de quase se poder jurar que pouco faltou para que cada dadaísta possuísse a sua própria publicação periódica. Tudo isto enquanto surgia uma vontade de construção, de que o Manifesto Bauhaus de Walter Gropius, publicado a 25 de Abril em Weimar, é o principal sintoma no âmbito das artes visuais.
Por outro lado, no domínio poético, cabe à revista mensal Littérature de André Breton, Louis Aragon et Philippe Soupault, com título irónico extraído do verso “Et tout le reste est littérature” de Paul Verlaine, a missão de impulsionar esse refluxo construtivo sem sacrifício do espírito vanguardista e semioclasta. Publicada de 1919 até 1924, em duas séries, ela é a ponte entre o Dadaísmo como expressão estética do apocalipse da I Guerra Mundial e o Surrealismo como imagística da liberdade do inconsciente perante os ditames da razão lógico-gramatical. No primeiro dos dez números publicados em 1919, colaboram autores cujo legado é reconhecidamente o da construção e da positividade das suas criações: André Gide, Paul Valéry, LéonPaul Fargue, Max Jacob, Pierre Reverdy (a fonte da definição da imagem surrealista no Manifesto de 1924), Blaise Cendrars, Jean Paulhan, Louis Aragon e André Breton.
Em segundo lugar, Breton e Soupault experimentam o método revolucionário da escrita automática, tão influente em todo o século XX por toda a Europa, mas com atraso em Portugal, não depois do Manifesto de 1924, como seria de esperar, mas exactamente em 1919, produzindo textos em prosa nos meses de Maio e Junho que materializam o sonho do livro futuro de Lautréamont segundo o qual a poesia deve ser feita por todos. A obra a duas mãos onde recolheram esses textos automáticos é um dos símbolos mais inspiradores da poesia experimental do século XX: Champs magnétiques, publicada em 1920 com ilustrações de Francis Picabia. Celebramos pois o seu centenário com o mesmo gosto com que celebramos o centenário do Eclipse solar total de 29 de Maio de 1919 que possibilitou a confirmação da teoria da relatividade geral de Einstein pela Royal Astronomical Society de Londres.
Quanto ao centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen, nesta cidade do Porto, é com incontido júbilo que o celebro como facto completamente singular, pela adesão das instituições públicas e em particular do homólogo de Canto e Castro e António José de Almeida, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que, segundo a imprensa e o seu site oficial, condecorou esta escritora, a título póstumo, com o Grande-Colar da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, um alto grau que só teria sido concedido a Chefes de Estado e ao nosso Nobel da Literatura, José Saramago. Acto realizado no dia do aniversário do seu nascimento, 6 de Novembro, que, curiosamente, é o dia de São Nuno de Santa Maria (Nuno Álvares Pereira, o Condestável), beatificado em 1918 e canonizado em 2009. Baseando-se em artigo de Avelino de Almeida na Illustração portugueza, n.º 717, Lisboa, de 17 de Novembro de 1919, Joaquim Veríssimo Serrão sintetiza:
No ano de 1918, a Igreja Romana ratificou o decreto de beatificação de Nuno Álvares. Foi relator do processo Monsenhor Vicente Vanutelli, antigo Núncio Apostólico em Portugal, que durante a sua estada no nosso país, entre 1883 e 1891, se tornara um simpatizante da figura do Condestável. Fortaleceu-se assim o culto de Frei Nuno de Santa Maria, celebrado anualmente no dia 6 de Novembro, com festas litúrgicas no Mosteiro de Nossa Senhora do Carmo, em Lisboa1 .
Não há rasto perceptível desta ligação natural na poesia da Autora, mas o seu corpo repousa hoje no Panteão em Lisboa, onde existe um memorial de Nuno Álvares Pereira a par dos do Infante D. Henrique, de Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque.
Têm portanto os oradores congressistas a vida facilitada, por ser inútil evocar o topos retórico do desprezo do Estado pelos criadores literários. Sem embargo, este acto tão sublime de Marcelo Rebelo de Sousa convida-nos a recordar que em 1919 nasceu também, a 2 de Novembro — no dia dos finados, tal como Teixeira de Pascoaes —, o maior vulto da cultura portuguesa, Jorge de Sena, ateu confesso, com uma obra que atinge níveis cimeiros de alto quilate numa grande variedade de géneros, sem par na nossa história colectiva. Os media não o divulgaram agora, mas este autor foi condecorado, a título póstumo, logo após a sua morte, em 1978, com a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada (grau menos elevado) pelo Presidente Ramalho Eanes, que participou há meses na homenagem centenária da Fundação Calouste Gulbenkian e da revista Colóquio / letras.
É ainda de inteira justiça celebrar sumariamente os centenários dos nascimentos de escritores e intelectuais de mérito reconhecido e valoroso: Fernando Namora, João José Cochofel, Natércia Freire, Afonso Botelho, Augusto da Costa Dias, Joel Serrão e José Hermano Saraiva. De acordo com o Vol. IV do Dicionário cronológico de autores portugueses, de 1998, nasceram ainda neste ano fecundo os seguintes autores, que me permito evocar num breve memorial: Ricardo Alberty, Lopes de Araújo, Vasco Branco, Joaquim Pegado Cardoso, Martins de Carvalho, Sá Coimbra, Margarida Jácome Correia, Maria Cecília Correia, Carlos Cunha, José dos Santos Ferreira, Naríade Galvão, M. Gomes Guerreiro, Fernando Gusmão, António Bellini Jara, Fonseca Lobo, Maria Manuela Couto Viana e Maria Antunes Vieira.
Ora, chegámos ao momento-chave do meu tema. Orpheu, segundo a historiografia literária, tinha acertado o relógio pela Europa; e o governante Afonso Costa também, ao participar na I Grande Guerra. Por seu turno, a Renascença Portuguesa, que foi em grande medida “a incubadora donde saíram a maior parte dos outros movimentos intelectuais desta época”, no juízo do historiador Rui Ramos2 — incluindo o próprio Modernismo pessoano, a começar no heterónimo Alberto Caeiro, acrescento eu —, mantinha o relógio mais atrasado na sua missão de intervenção pública essencialmente de cariz nacionalista. Este é o quadro do início das vidas destes criadores, e em particular dos nascidos nos primeiros dias de Novembro, Jorge de Sena e Sophia Andresen, futuros amigos mas também companheiros de geração literária, a dos Cadernos de poesia, publicação em fascículos com três séries e quinze números, de 1940 a 1942, 1951 e 1952-53. Sophia estreou-se no primeiro número desta revista, a páginas 10, como Sofia (sem “ph”) de Melo (sem duplo “l”) Breyner Andersen (e não Andresen), com a composição “Poesia”, que começa “Senhor, / Se eu me engano e minto”, editada quatro anos depois, em 1944, no primeiro livro, Poesia (publicado em Coimbra), recebendo o título “Senhor” e várias outras modificações. Quanto a Sena, estreou-se sob o pseudónimo Teles de Abreu no segundo fascículo, também em 1940, com os sonetos “Mastros” e “Ciclo”. Organizaria anonimamente o último número da I Série, fascículo quinto, para liderar a direcção, no pós-guerra, como principal animador das II e III Séries.
Devo agora responder a uma questão tempestiva: que tem isto a ver com 1919? Respondo sem hesitações que, no plano das ideias estéticas, tem de facto muito a ver, se pensarmos liminarmente que os dois bebés de 1919 praticariam, a partir de 1940, poéticas cujos fundamentos mais íntimos e estruturantes foram criados no ano em que nasceram. Entre as raízes do entendimento da poesia como criação autónoma e simultaneamente comprometida com o seu tempo, sem deixar de estar ligada ao passado e ao futuro, focarei as principais, que gozaram de grande influência em todos os países do Ocidente, tornando-se muito explícitas no contexto da literatura nacional quando as duas crianças atingiram a idade adulta. Um contexto no qual se debatia a finalidade da arte, opondo os defensores da sua autonomia e os apologistas da sua vocação para o compromisso e o engagement, respectivamente (i) a geração da Presença, que resgatara o Modernismo de Orpheu ou até o inventara, desentranhando-o do esquecimento e da incompreensão, e (ii) a nova geração dos neo-realistas, associada ao ideário do Realismo Socialista, de ideologia incompatível com o psicologismo do poeta contemplando o seu próprio umbigo no alto da “Torre de marfim”.
De facto, tendo José Régio publicado o livro de versos As encruzilhadas de Deus, em 1935-36, e depois imprimindo na revista Seara nova, em Abril de 1939, artigos intitulados genericamente “Cartas intemporais do nosso tempo”, depressa Álvaro Cunhal, futuro secretário-geral do Partido Comunista Português, espoletou acesa polémica com o texto “Numa encruzilhada dos Homens”, que duraria até Agosto, mesmo à beira do início da II Guerra Mundial. Os Cadernos de poesia surgiram então sob o lema “A poesia é só uma”, na tentativa de conciliar e superar esta polémica, em duas fases distintas, a da guerra e a do pós-guerra. Sem tomarem partido por qualquer das partes e adoptando uma posição dialéctica, quando não ecléctica, defenderam no essencial uma “plataforma ética de entendimento” e a divisa “a Poesia é servida, não serve”.
Antes de mais, no ano de 1919, e no rescaldo da Revolução Soviética, um grupo de teóricos da literatura, que viriam a ser conhecidos por Formalistas Russos, seguia os princípios da estética kantiana e da doutrina esteticista de Mallarmé decantada do Romantismo, numa atmosfera marxista que lhes era perigosamente antagónica. A principal figura desse grupo moscovita, Roman Jakobson, criou o conceito mais geral e essencial da teoria literária, que daria a conhecer num artigo com data de 1919 sobre a nova poesia russa, difundido em 1921 na cidade de Praga: a famosa “literariedade”, consequência do entendimento de que a linguagem poética se distingue da linguagem emocional pelo valor autónomo da palavra, tal como os sons na música ou o material visual na pintura. Numa síntese lapidar e, a contracorrente, no contexto historicista que grassava por toda a Europa nos Estudos Literários, Jakobson inferiu a “literariedade” da seguinte fórmula: “A poesia é a linguagem na sua função estética”3 . Logo, o conhecimento da literatura passa pela apreensão daquilo que dela faz literatura, de uma especificidade intrínseca e de um procedimento inerente ao acto poético, independente de normas ou fórmulas doutrinárias
Esta ideia recusa a existência de uma definição estrutural da poesia, que a história das suas transformações ao longo dos séculos demonstra não existir. Trata-se de uma ideia funcionalista, que tem em conta os fins da linguagem quando é utilizada, uma vez que ela exerce uma pluralidade de funções, de que a poética é apenas a mais relevante mas não a exclusiva, porquanto a encontramos em discursos estranhos à poesia como o publicitário, o oratório, o jurídico, o político, etc. Na verdade, uma rima ou uma metáfora pode servir um discurso político ou comercial sem que o seu fim seja o da poesia, mas tão-só o de ganhar eleitores ou dinheiro. É a categoria da intencionalidade husserliana que aqui está em jogo. O leitor sabe reconhecer essa intencionalidade interna: nós sabemos que um poema visa ser poema quando nos encontramos com ele; e sabemos que as mesmas palavras de tal poema podem participar de um discurso que não quer ser poema porque visam um telos heterónomo, lógico e não estético.
Os poetas dos Cadernos de poesia, sem conhecerem esta teoria, que só nos anos 1960 foi divulgada no Ocidente, reconheceram contudo o valor da autonomia da palavra, conforme sugerem na apresentação do fascículo 13: “nenhum compromisso responsável pode ser firmado sem perfeita lucidez, sem ampla compreensão, sem indefectível independência”. De resto, já no fascículo inaugural, onde Sophia Andresen se estreou, a finalidade dos Cadernos de poesia era inequivocamente associada a uma independência fundamental: “Destinam-se estes cadernos a arquivar a actividade da poesia actual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas”4.
Em segundo lugar, mas não menos importante, data de 1919 um artigo do poeta e crítico anglo-americano T. S. Eliot que foi gizado em perfeita sintonia, mutatis mutandis, com as ideias do Formalismo Russo. Intitula-se “Tradition and the individual talent”, vindo a lume nos dois últimos números da revista do Modernismo britânico The egoist5 e, significativamente, traduzido para português por um dos directores dos Cadernos de poesia, Tomaz Kim, sob a assinatura civil e profissional J. Monteiro-Grillo, no livro Ensaios de doutrina crítica6 . Este poeta e Ruy Cinatti, outro amigo de Sophia Andresen (ambos nascidos em 1915), tiveram uma vivência da Inglaterra e da cultura inglesa que introduziu na literatura lusitana — depois do caso Fernando Pessoa, educado na África do Sul — novas prosódias e temáticas com papel relevante em toda a geração literária a que pertenceram, alargando o horizonte de leitura de Sena e Sophia, e dando a conhecer obras sobre o Surrealismo, quase desconhecido em Portugal no início da II Guerra, e as criações literárias ou críticas de T. S. Eliot, Shelley, Edgar Allan Poe, Matthew Arnold, G. M. Hopkins, John Keats, Ezra Pound, W. H. Auden ou Stephen Spender. Foi de facto através de dois livros ingleses emprestados por Tomaz Kim nos finais dos anos 1930, Petite anthologie poétique du surréalisme (1934), de Georges Hugnet, e A short survey of surrealism (1935), de David Gascoyne, que Sena conheceu este movimento começado em 1919 e nascido formalmente em 19247 — mas que só teria representação formal no nosso país em 1947, com o movimento surrealista português.
No essencial, o ensaio de T. S. Eliot, além de uma teoria impessoal da poesia e da emoção estética, que deixarei de lado por implicar demasiados argumentos para o tempo disponível, apresenta num parágrafo absolutamente excepcional — diria mesmo genial pelo seu supremo poder de síntese — um novo sentido da “história”, distinto do sentido positivista que ainda se impunha em 1919, e um novo sentido de “tradição”, completamente diferente do legado pela ideologia romântica então em voga. Vale a pena ler o parágrafo na íntegra:
[A tradição] Não pode ser herdada, e se a quisermos, tem de ser obtida com árduo labor. Envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, o qual podemos considerar quase indispensável a quem continue a ser poeta para além dos seus vinte e cinco anos. E o sentido histórico compreende uma percepção não só do passado mas da sua presença; o sentido histórico compele o homem a escrever não apenas com a sua própria geração no sangue, mas também com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero, e nela a totalidade da literatura da sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do intemporal, bem assim como do temporal, e do intemporal e do temporal juntos, é o que torna um escritor tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que torna um escritor mais agudamente consciente do seu lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade.8
Tal como eu, o leitor pensou com forte probabilidade que Teixeira de Pascoaes teria gostado de conhecer esta exposição, materializada por T. S. Eliot no seu livro de poesia The waste land, de 1922, uma das mais fascinantes facturas poéticas do Modernismo europeu, através da qual sentimos vivamente a dor da terra devastada e toda a tradição ocidental de que nos fala este excerto crítico. Não foi sem motivo que a III Série dos Cadernos de poesia anunciou, nos fascículos 13, 14 e 15, de 1952 e 1953 — ano da morte de Pascoaes, a quem foi dedicado o n.º 14 — a publicação de The waste land em tradução de Tomaz Kim9 . Projecto malogrado, porém, porque entretanto a revista se extinguiu; e não tenho notícia de alguma vez ter visto a luz do dia. Mas projecto que seria a coroação, bem entrevista por Tomaz Kim no versos de Eliot, das imagens mais obsidiantes que percorrem os poetas dos Cadernos, por entre as fendas da matéria verbal e estética que os distingue uns dos outros, apesar de Sena ensaiar um desmentido nada convincente, no artigo “O poeta e o crítico na mesma pessoa: Um depoimento sobre algumas décadas de experiência pessoal”, no volume Dialécticas teóricas da literatura, de 1977:
Quando nos primeiros anos 40, eu e outros amigos meus dos Cadernos de Poesia éramos tidos como grandes conhecedores da poesia inglesa (que não éramos tão grandes na verdade, nesse tempo), apenas por se saber que líamos o inglês que praticamente ninguém sabia então ler, a crítica disse que, provavelmente, nós, na poesia que fazíamos, traduzíamos do inglês impunemente os nossos poemas. Data desse tempo o dizer-se, no meu caso, e ainda ocasionalmente se refere, que o meu mestre era T. S. Eliot [...].10
O próprio Jorge de Sena, que em 1961 fora autor de uma recensão crítica da colectânea de T. S. Eliot On poetry and poets, na Revista de letras, n.º 2, de Assis, Brasil, recorda num verbete com a mesma data de 1977, incluso no Grande dicionário de literatura portuguesa e de teoria literária, com organização de João José Cochofel, que Ruy Cinatti, um dos directores dos Cadernos de poesia, havia publicado no terceiro número da sua revista Aventura, em 1943, uma carta recebida do poeta de The waste land11.
Normalmente, os grandes criadores não resistem a eliminar alguns vestígios maiores do seu percurso. Sena reduz até onde pode a presença explícita de T. S. Eliot na sua obra, tal como procede com JeanPaul Sartre, a verdadeira fonte da sua Poética do Testemunho, de que os críticos senianos não falam porque o poeta não lhes deu a pista, ao invés do habitual. Por seu turno, Sophia Andresen parece não dar conta dele, no seu discurso imensamente elíptico. Contudo, por mais que ambos diluam a interferência, essas imagens de ordem e aventura são a visão eliotiana da história e da tradição, adaptada ao estilo de cada um. Basta, de facto, lermos um a um dos poetas dos Cadernos para sentirmos a presença dessa visão. Sophia Andresen ou Jorge de Sena, Eugénio de Andrade ou José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti ou, finalmente, Tomaz Kim, o mais discreto mas o mais profundo do grupo (com carreira académica em Anglística), que a explicita com superior humildade no poema “Improviso com sugestões eliotianas”, do fascículo n.º 6, II Série:
O tempo futuro que imaginais
Nas noites em claro dos que envelhecem,
Brotando subreptício por entre as evasivas
Dos que da vida nada já podem provar,
Como erva por entre as pedras da calçada
Gasta pelos passos de quem passa
Indiferente ao tempo presente,
Amarrado ao tempo passado,
É apenas tempo presente
E também tempo passado
Como mistura de água brotando da rocha
E vinho do cacho amadurecido
Por um derradeiro sol de Setembro
Que mal aquece a esperança
De quem viu o campo devastado
Pela medonha cavalgada.12
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Referências
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Notas
[1] SERRÃO, Joaquim Veríssimo — História de Portugal. Vol. XII: A Primeira República (1910-1926). Lisboa: Editorial Verbo, 2001, p. 291.
[2]RAMOS, Rui — História de Portugal. Vol. VI: A segunda fundação (1890-1926). Lisboa: Editorial Estampa, 2001, p. 466.
[3]JAKOBSON, Roman — Fragments de ‘La nouvelle poésie russe’: Esquisse première: Vélimir Khlebnikov. In Questions de Poétique. Ed. Tzvetan Todorov, revista e corrigida pelo autor. Paris: Seuil, 1973, pp. 14-15.
[4]Ver VÁRIOS — Cadernos de poesia. Ed. fac-simile. Porto: Campo das Letras, 2004.
[5]The Egoist, 4 e 5, VI (Setembro e Dezembro de 1919), pp. 54-55 e 72-73.
[6]ELIOT, T. S. — A tradição e o talento individual. In Ensaios de doutrina crítica. Ed. J. Monteiro-Grillo. Lisboa: Guimarães Editores, 1997, pp. 19-32. A primeira edição, na mesma editora, data de 1962.
[7]SENA, Jorge de — Notas acerca do surrealismo em Portugal, escritas por quem nunca se desejou nem pretendeu precursor de coisa alguma, ainda que, cronologicamente, o tenha sido, por muito que isto tenha pesado a muitos surrealistas, ex-surrealistas, etc., do que se não excluem mesmo eminentes pessoas que contam entre os melhores e mais dedicados amigos do autor”. In Estudos de Literatura Portuguesa-III. Lisboa: Edições 70, 1988, pp. 250-251.
[8]ELIOT, T. S. — A tradição, pp. 22-23. Original: The egoist, 4, VI (Setembro de 1919), p. 55.
[9]VÁRIOS — Cadernos de poesia, 13, III (1952), contracapa (publicação anunciada para 1952); idem, 14, III (1953), contracapa; idem, 15, III (1953), contracapa.
[10]SENA, Jorge de — O poeta e o crítico na mesma pessoa: Um depoimento sobre algumas décadas de experiência pessoal. In Dialécticas teóricas da Literatura. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 243.
[11]SENA, Jorge de — Aventura. In Estudos de Literatura Portuguesa-III. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 179.
[12]VÁRIOS — Cadernos de Poesia, 6, II (1951), p. 22.