O Sagrado e o Mistério como categorias de análise e interpretação do Religioso na Literatura: a leitura de Dalila P. da Costa do Moby Dick de Melville
The Sacred and the Mystery as categories of analysis and interpretation of the Religious in Literature: the reading of Dalila P. da Costa from the Moby Dick of Melville

*Martinho Tomé Soares
*Docente na Faculdade de Teologia daUniversidade Católica Portuguesa -núcleo regional do Porto, atualmente se dedica ao estudo do pensamento histórico-filosófico de Paul Ricoeur. Contato: martinhosoares@gmail.com
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Resumo
O objetivo deste ensaio é o de enquadrar a análise do Moby Dick de Melville feita pela filósofa, ensaísta, poetisa e pensadora Dalila Pereira da Costa à luz da grelha conceptual desenvolvida pela Fenomenologia e Hermenêuticas da Religião. A evocação de categorias de análise como sagrado e mistério ou de conceitos como mito e símbolo, usados por autores como G. van der Leuuw, R. Otto, M. Eliade, P. Ricoeur, J. M. Velasco, ajudam a contextualizar e aclarar as linhas de interpretação desenvolvidas pela autora portuense.

Palavras chave:Dalila Pereira da Costa; Melville; sagrado; mistério; mal; símbolo

 

Abstract
The purpose of this essay is to frame the analysis of Melville’s Moby Dick made by the philosopher, essayist, poet and thinker Dalila Pereira da Costa in the light of the conceptual framework developed by Phenomenology and Hermeneutics of Religion. The hint of analysis categories such as sacred and mystery or concepts such as myth and symbol, used by authors such as G. van der Leuuw, R. Otto, M. Eliade, P. Ricoeur, J. M. Velasco, help us to contextualize and clarify the lines of interpretation developed by this Oporto author.

Keywords:Dalila Pereira da Costa; Melville; sacred; mystery; evil; symbol

Introdução

Oconceito de Sagrado foi introduzido na ciência moderna das religiões por Rudolf Otto na obra O Sagrado e apropriado por Mircea Eliade como vetor para a compreensão da rutura de nível que se produz em todo e qualquer fenómeno religioso1 . Retomando criticamente os trabalhos de R. Otto e de Mircea Eliade, o teólogo espanhol Juan Martín Velasco não identifica o sagrado com o numinoso2 , de que o mistério seria apenas uma elemento, mas alarga o conceito, definindo o sagrado como ordem ou âmbito da realidade na qual se inscrevem todos os elementos que compõem o facto religioso ou as múltiplas manifestações do facto religioso3 .

Assim sendo, a religião é antes de mais uma relação com o sagrado, ordo ad sanctum, e é à luz do âmbito do sagrado que um objeto, um homem ou uma ação podem receber o atributo de religiosos. Ao considerar o sagrado como ordem ou âmbito da realidade, entende-se que: não constitui, no seu aparecer, uma realidade distinta nem existe separado dos factos religiosos particulares, mas que existe como “propriedade transcendental” do religioso; a religiosidade ou caráter religioso de uma realidade constitui-se em relação a este âmbito (por via de uma conexão ou relação); as realidades profanas ou mundanas não sofrem qualquer mudança na sua essência físico-empírica ao inscreverem-se nesta ordem do sagrado; o sagrado não “é” uma realidade determinada físico-empiricamente, mas manifesta-se em tal realidade como suporte objetivo, transcendendo todas as realidades na sua dimensão empírica4 ; é anterior à fração sujeito-objeto, expressando-se através de aspetos subjetivos e objetivos, dado que os engloba a ambos. Em suma, citando ainda Velasco, diríamos que «a ordem do sagrado realiza-se nas múltiplas manifestações concretas a que chamamos religiões, as quais, juntas, constituem a história da realização do sagrado ao longo da existência da humanidade sobre a terra»5 . O sagrado é em termos fenomenológicos e epistemológicos maior, mais amplo, do que qualquer religião isolada, na medida em que abarca todas as manifestações do fenómeno religioso nas suas múltiplas variantes.

O conceito de Deus, não sendo propriedade comum a todos fenómenos religiosos, afigura-se redutor e inadequado para definir o núcleo do sagrado. Em seu lugar, Juan Martín Velasco considera o Mistério como a essência do sagrado. O Mistério é o termo ou objeto da atitude religiosa, é aquilo que constitui, estrutura e dá ao sagrado o significado que possui. Assim sendo, o Mistério não é uma forma primitiva de Deus, a partir da qual teriam depois derivado por evolução as formas históricas que hoje conhecemos. Não corresponde tão-pouco ao Deus ou aos deuses das religiões como o Cristianismo, o Judaísmo, o Islamismo, o Hinduísmo ou o Budismo. «O Mistério é a categoria interpretativa com a qual designamos o que têm em comum todas as formas de divindade, isto é, todas as configurações que o sujeito deu do que é o objeto da sua atitude religiosa»6 . Segundo Velasco, o Mistério é o nome da divindade no qual se concentram todas as formas da mesma divindade, no qual todas coincidem, e no qual todos os sujeitos religiosos se reconheceram. É a categoria fenomenológica e hermenêutica que permite de forma abrangente e universal designar o objeto de todas as atitudes religiosas. Ou, pegando nas suas palavras:

Mistério designa para nós a Presença da Absoluta transcendência na mais íntima imanência da realidade e da pessoa, à qual se referem as variadíssimas representações do anterior e superior ao homem a que remetem todas as religiões7.

O termo ou objeto da atitude religiosa é o próprio Mistério como realidade absolutamente suprema, fim último e definitivo para o homem. Mircea Eliade, na sua peculiar forma de entender o sagrado – categoria central do mundo das religiões – criou o neologismo “hierofania” para designar o objeto da relação religiosa, que para nós é o Mistério. Este conceito expressa ao mesmo tempo o essencial do fenómeno da mediação: o sagrado manifesta-se no profano. E o que toda a hierofania manifesta é a paradoxal coincidência do sagrado e do profano, do ser e do não ser, do absoluto e do relativo, do eterno e do devir.

As mediações do Mistério (misterofanias/hierofanias) podem ser divididas em dois grandes grupos. 1. Mediações objetivas: as constituídas por realidades mundanas de todos os tipos: objetos pertencentes a todos os reinos da natureza (o céu, a terra, a água, o ar); acontecimentos da vida das pessoas ou da história; realidades artificiais; pessoas, etc., nas quais o homem descobriu a presença do Mistério8. 2. Mediações subjetivas: expressões com as quais o sujeito responde ao reconhecimento da presença do Mistério. A condição transcendente e não objetiva do Mistério e a condição necessariamente objetivadora do homem faz com este expresse e exteriorize a presença não objetiva do Mistério e a sua relação transobjetiva com ele de forma simbólica. Na constituição do símbolo produz-se o fenómeno da transfiguração de uma realidade natural, graças à qual o sujeito é projetado para um mais além de si mesmo. Este fenómeno não pode explicar-se com a simples encarnação de uma realidade sobrenatural nessa realidade natural. No fenómeno do simbolismo, uma realidade sobrenatural torna-se presente para o homem, não com o tipo de presença empírica própria da forma de aparecer dessa realidade natural, mas sob a forma da “transparência opaca do enigma” – para usarmos uma expressão assumidamente ricoeuriana. É, pois, no contexto das mediações subjetivas e da racionalidade simbólica que podemos inscrever a poesia de um modo geral e a poesia de Sophia de Mello Breyner de um modo muito particular, para apelar ao motivo central e ao ato celebrativo deste colóquio que aqui nos reúne. No entanto, não é da poesia de Sophia que aqui vimos hoje falar. No âmbito das mediações subjetivas do mistério, agrupando formas amiúde heterogéneas e, por vezes, pouco convencionais com que o artista reconhece ou responde à interpelação do mistério, optámos por convocar uma outra autora portuense: a filósofa, ensaísta, poetisa e pensadora Dalila Pereira da Costa.

A leitura de Duas epopeias das Américas, Moby Dick, de Herman Melville, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, abriu a Dalila Pereira da Costa a via para uma profunda reflexão hermenêutica em torno do “problema do mal”, intenção expressa no subtítulo da obra publicada em 1974: Duas Epopeias das Américas: Moby Dick e Grande Sertão: Veredas (ou o problema do mal)9 . Cem anos e dois hemisférios do mesmo continente separam as duas epopeias, mas o que as distingue é bem mais do que isso. Tendo ambas por catalisador o tema do Mal e a questão religiosa inerente, apresentam pontos de vista opostos quanto à consumação escatológica do homem na sua luta contra o Mal. Como a própria autora conclui, Melville, ao identificar a Baleia Branca com o demoníaco, como divindade criadora e destruidora, apresenta uma visão arcaica, pessimista e trágica da existência humana, uma existência fatalmente condenada ao pecado sem remissão, estando mais próxima do orientalismo e das civilizações autóctones da América, ou, dentro do ambiente judeo-cristão, do Deus do Antigo Testamento, colérico e vingativo. Paralelamente, Grande Sertão, situa-se e desenvolve-se mais dentro dos valores do Novo Testamento, apostando numa solução final redentora e salvadora, operada por intermédio da graça e do amor. E assim:

Em Moby Dick, tudo se elevará sobre sentimentos de morte e não de vida. Ele é como um dos mais portentosos hinos niilistas que o século passado nos legou – como fim, esgotamento, das forças vivas duma cultura, dum mundo10.

Ao passo que a:

A epopeia brasileira surgirá como a herdeira e depositária da verdadeira essência, luminosa, do cristianismo: como seu coração vivo: Deus é amor11.

Também por isso a epopeia brasileira se presta mais à afirmação e desenvolvimento do pendor ecuménico, messiânico e místico que caracteriza o pensamento de Dalila Pereira da Costa, levando-a a interpretar o Grande Sertão: Veredas à luz do mito gnóstico da “Queda” e da “Reintegração”, em linha de continuidade com um dos leitmotiv da sua produção bibliográfica, a qual, por sua vez, tem fortes afinidades com um dos filões do pensamento filosófico luso: refiro-me ao tema do mal12.

Não obstante, o que aqui nos propomos é bem menos ambicioso e abrangente. Embora a epopeia de Melville também suscite paralelismos simbólicos com os mitos teogónicos babilónicos do caos original e da vitória da ordem sobre este, patente no confronto entre Tiâmat e Marduk13, a análise de Dalila Pereira da Costa estrutura-se fundamentalmente sobre dois eixos bem definidos e afirmados pela autora: a teologia e a fenomenologia. Comprovemos com as suas palavras:

Aqui, nesta obra [Moby Dick], haverá, a um tempo, através do seu processo simbólico, a posição da teologia, como aquela que quer descobrir a verdade de Deus; e a da fenomenologia, como esforço de elucidação do fenómeno, daquilo que surge na experiência, que aí se vê, nos é proposto14.

No que concerne à dispositio do ensaio, Dalila Pereira da Costa faz alternar excertos da obra de Melville com comentários seus. Apostilas exegéticas fundadas quer numa tradição hermenêutica quer numa leitura subjetiva do texto, que têm na teologia calvinista, com a sua “consciência avassaladora do mal e do pecado”15, uma importante chave de leitura e interpretação. Num artigo científico publicado em 1969, Walter Herbert relacionava o calvinismo e o mal cósmico em Moby Dick, pondo a tónica nos elementos teológicos que o autor americano usa para entretecer este laço16. Somos informados do uso extensivo de temas e motivos próprios da teologia calvinista, a teologia da Igreja Holandesa Reformada na qual Melville foi educado. A título de exemplo, a personagem do capitão Ahab é fortemente influenciada pela interpretação que Melville faz da figura do rei Ahab, do Antigo Testamento. Para além disso, o autor conhecia bem a corrente anticalvinista que acusava Calvino de conceber Deus como um monstro brutal.

Mais importante e mais evidente é a constatação feita pelo próprio Melville17, e secundada por Dalila Pereira da Costa, de que a Moby Dick se apresenta “como uma interrogação e meditação sobre o mal”18, tal como o livro de Job, o primeiro a debruçar-se sobre a história do Leviatã19. Visando esse monstro marinho que na Bíblia surge como uma encarnação do mal – à imagem do monstro do caos primitivo na mitologia fenícia, cuja representação era consentânea com o Dragão ou a Serpente Fugitiva – Job e Melville visam, em última instância, Deus ou, em termos fenomenológicos, o sagrado. Assim, segundo a autora: «Moby Dick poderá ser visto como a obra dum teólogo, pois que se apresentará preferentemente como uma ciência de Deus»20.

Os baleeiros são descritos como “caçadores de absoluto”21 e a baleia encarna o sagrado, o detentor de poder. Esta longa caçada é vista como uma comunhão com o sagrado, sendo o mar afigurado ao meio hierofânico onde voga o terrível ser, em intermitentes e fugidias aparições, “epifanias de maravilha e pavor” – no dizer de Dalila Pereira da Costa22. O baleeiro, conquistador do absoluto, vai atrás da essência última da pesca, o seu centro secreto e mais precioso: o espermacete, com o qual se dará a união íntima e final. “Caça sobrenatural ou transcendentemente natural”, levada a cabo ao longo de três anos em preambulações circulares nesse meio sagrado que é o mar, onde se atingirá a plenitude suprema.

Por conseguinte, Moby Dick é uma história de caráter sagrado e soteriológico, mas onde não há redenção possível: soteriológica sem salvação23. Todavia, a contradição da obra, segunda a autora, reside no facto de ser um mito cósmico que inclui o elemento humano com toda a sua problemática existencial e escatológica, mas para o negar. Entre o humano e o divino não há intermediário, Verbo ou Graça, destruindo, por conseguinte, hereticamente, a trindade cristã, erguendo-se como um hino desesperado ao Criador, aqui entendido como o Deus do Antigo Testamento, personagem fria e hostil24, o que resulta num acentuar da culpabilidade humana sem possibilidade de resgate amoroso.

Moby Dick é todo ele impregnado duma cultura religiosa do mundo, mas donde o sentimento de salvação está ausente. Porque aqui, o amor, a graça, foi banida: e o que se elevará das suas páginas será um sentimento total de morte, e não de vida – como delicioso aniquilamento, aceite. […] Ele será como a imagem truncada, ou cópia contraposta, aberrante, do cristianismo – como um cristianismo reduzido ao seu segundo movimento, a Queda, donde seria abolido o seu terceiro e exultante movimento, a Redenção25.

A hermenêutica desdobrada por Dalila Pereira da Costa neste estudo é tributária de vários autores e obras. A fazer a ponte entre a teologia e a fenomenologia, e mesmo entre as duas epopeias, subentende-se a obra de Paul Ricoeur A simbólica do Mal, publicada em 1960 como segunda parte do tomo Finitude e Culpabilidade, onde aparecia adossada a um outro volume, com o título de Homem falível26. Muito sucintamente, lembramos que a obra do filósofo francês divide-se em duas partes: numa primeira disserta sobre a dimensão simbólica da racionalidade mítica e numa segunda analisa quatro mitos de timbre arcaico, helénico, cristão e gnóstico relativos às origens e ao fim, permitindo-lhe explorar o tema do mal a partir de quatro perspetivas diferentes: o drama da criação e a visão “ritual” do mundo; o deus mau e a visão trágica da existência; o mito adâmico e a visão escatológica da história; o mito da alma exilada e a salvação pelo conhecimento. São estes mesmos mitos que Dalila Pereira da Costa traz à colação no seu estudo, no qual onde também é legítimo pensar que a dialética ricoeuriana de símbolo e mito terá deixado a sua marca. Ricœur pensa a realidade do mal a partir das linguagens da confissão religiosa dos pecados e dos mitos cosmogónicos e escatológicos porque estes possuem um conteúdo simbólico que permite entrar, através das peripécias que contam, na realidade empírica e concreta do homem. Pensar realidades como o paradoxo do mal e do sofrimento é assistir ao fracasso da razão calculadora moderna; o mal não é um objeto ou um ser que possa ser representado segundo conceitos claros, pelo contrário, só nos aproximamos dele pela linguagem subjetiva e simbólica da narrativa. É que se na raiz dos mitos está o símbolo, o que nos permite interpretá-los como estruturas dramáticas é a sua forma narrativa. No mito todo o símbolo toma a forma plástica de uma narrativa dramática, que põe em cena ações de personagens e acontecimentos. Ricoeur procura na dimensão simbólica da racionalidade mítica uma forma indireta de compreender melhor a complexidade das realidades humanas. Com efeito, segundo o próprio, “o símbolo dá que pensar”, faz-nos meditar mais e de um outro modo e não há acesso à experiência do mundo e da vida concreta senão por meio da linguagem simbólica. O que dá que pensar é a polissemia metafórica do símbolo, é o duplo ou os múltiplos sentidos da expressão linguística que se presta a um trabalho de interpretação, é a linguagem que designa um segundo sentido que não pode ser alcançado senão através da intencionalidade do primeiro. Assim, é devido à sua função simbólica, e já não à sua função etiológica ou explicativa, que o mito mantém para nós um interesse exploratório e compreensivo. Enquadradas por estas reflexões, melhor se compreenderão algumas das afirmações de Dalila Pereira da Costa, como as que a seguir transcrevemos:

Se se quebrar, ou ultrapassar a casca do símbolo, será um movimento especulativo, que segue todas as etapas do conhecimento contemplativo, aquele que aqui surge; não o discursivo, efetuado pelas faculdades intelectuais27.

A forma simbólica é a natural do pensamento de Melville. Na sua criação, os símbolos nascem uns dos outros, imbricam-se uns nos outros espontaneamente, num movimento de vida. Os símbolos não são usados aí conscientemente de forma rígida e formalista, exteriormente. Mas num processo como realizado independentemente do autor. São eles que [pel]a sua ambiguidade e fecundidade criam a profundeza multiplicada, sucessiva e ilimitada do mundo de Melville.

Porque, cada um em si mesmo, conduzindo-se e referindo-se a outro, seguinte, eleva essa arquitetura abissal, construída em planos imbricados uns nos outros, ou em reflexos justapostos. Porque, cada visível, clama um invisível, cada objeto se despoja de si mesmo, da sua importância e realidade, para só se mostrar e se pretender, como signo, ou anunciador doutro – que depois dele virá.

Tudo aí vive em existência profética.

Ambíguo em si, assim também ele conterá o máximo de possibilidades na sua realidade total – como referência28.

Num mundo onde tudo corresponde, em rigorosa articulação, tal uma imensa arte combinatória – tudo é latente, tudo espera uma leitura – como resolução. Ou conquista duma verdade; e que, em si mesma, seria a salvação. Mas a perfeita coerência deste mundo está só no símbolo, como sua superstrutura. E nele, tudo se abrirá sobre o absurdo, como veredicto de leitura ininteligível do enigma proposto.

[…] Então, todo este mito-epopeia se mostrará como uma profecia ou paradigma proposto ao futuro duma nação: de que todo o seu século seguinte não será mais que esse mito-epopeia posto em ação, o seu desenvolvimento e exemplificação na história29.

Obviamente, tanto as análises de Ricoeur como as de Dalila Pereira da Costa supõem de forma evidente e assumida os trabalhos pioneiros de Mircea Eliade sobre religião e mito que acima referimos. Com efeito, é evidente a influência do intelectual romeno tanto no presente estudo como, de um modo geral, na formação do pensamento da autora portuense, a par de outros reconhecidos estudiosos do fenómeno religioso, como Rudolf Otto e Gerardus van der Leuw.

Na esfera do sagrado encontra-se o numinoso, conceito cunhado por R. Otto a partir do termo latino numen (que significa divindade), para designar a realidade que provoca no homem um eco de “sentimento de absoluta dependência” ou da sua condição de criatura. O numinoso constitui a mais clara expressão, no plano subjetivo, da rutura de nível relativamente ao profano ou ao quotidiano operada pelo sagrado. Definido por Otto como mysterium tremendum, mirum et fascinans, sendo que tremendum et fascinans expressam o essencial da experiência religiosa na sua dimensão psicológica, o numinoso suscita no crente simultaneamente repulsa e atração, terror e fascínio, tal como o cachalote de Melville. É este duplo movimento oscilatório próprio do sagrado que percorre substancialmente o ensaio de Dalila Pereira da Costa. A título ilustrativo, apresentam-se alguns excertos:

E a realidade última (porque aqui Moby Dick está empossada deste prestígio supremo) surge como o mistério e o tremendum. Ela é vista como uma potência de fascinação e repulsa para o homem; e que na sua força o destrói. Não potência de que o homem dela participando, por ela atinja a sua salvação. E a relação com ela, como realidade última, feita por tal movimento de atração e de fuga, toma a forma de medo supremo, a angústia: porque toda ela negação e aniquilamento.

[…] A par do caráter aterrador, presente em toda a intuição do sagrado, através de todos os tempos, e que na Bíblia surge tão fortemente impresso, não há em Moby Dick, como nela, o sentimento complementar de paz e confiança, de entrega, surgido de amor30.

O amor como núcleo do cristianismo e todo o movimento criado por ele, que constitui a sua dinâmica particular, foi aqui recusado. O caráter do seu numinoso está amputado na sua totalidade, para subsistir unicamente o lado terrífico, e o «temor e tremor», que ele desperta no coração dos homens31.

Aqui o que substitui o amor, como força de atração é só o terror. Aqui, a Baleia Branca, ocupando o lugar prestigioso do sagrado, aquele que no mundo detém a vera potência, surgirá só sob este aspeto32.

Esta realidade é só terror que atrai e fascina; mas nunca a piedosa, a que socorre33.

Gerardus van der Leuuw é o único autor abertamente nomeado por Dalila, como credor de conceitos ou ideias. Fá-lo por duas vezes a páginas 40 e 47. Leiamos os passos:

Em Moby Dick, haverá a religião do afastamento, tal como foi a do século XVIII. Onde a alma do homem e o mundo ficam abandonados a si mesmos. E onde, posteriormente, o Demónio ocupará o lugar que Deus abandonou (van der Leuuw)34.

Mas aqui a Potência surgirá como inimigo do homem. E assim a salvação (como a “puissance vécue en bien”, (van der Leeuw) será, desde logo, impossível35.

O holandês Gerardus van der Leuuw é um destacado autor da Fenomenologia da Religião. Publicou em 1933 na sua língua materna a obra Fenomenologia da Religião, obra emblemática e fulcral para o desenvolvimento desta área de estudos. A edição francesa de 1955 haveria de trazer muitos acrescentos e revisões ao texto inicial de 1933 e sairia com o título: La religion dans son essence et ses manifestations : Phénoménologie de la religion36. Durante muitos anos, esta obra, diretamente citada por Dalila Pereira da Costa, foi considerada por teólogos e filósofos da religião como a grande referência para o estudo do fenómeno religioso, quer pelos pressupostos metodológicos nela expostos, quer pelo grande número de aportes científicos. Neste tratado sobre o fenómeno religioso ganha particular relevo o conceito de Potência, acima citado, como forma vaga e impessoal, que constitui a primeira manifestação ou configuração do objeto da religião, anterior inclusive à representação do divino. A análise de Van der Leuuw dirigia-se sobretudo às religiões primitivas e menos às ditas grandes religiões.

Podemos e devemos (porque o tempo assim nos impõe) concluir, dizendo que a espessura e complexidade do pensamento de Dalila Pereira da Costa é resultado de um espírito eclético e dialético, de forte pendor filosófico. No ensaio que aqui procurámos analisar, sobressai a forma como a autora imprime o ritmo e a respiração da caçada, sendo que quem caça o real, procura a verdade, encontra o Sagrado (etimologicamente, o que está separado de nós), o Trans-cendente, o Ab-soluto inapreensível, o Totalmente Outro, entrando pelos caminhos órficos do Mistério, aonde só as tochas do símbolo e do mito poderão levar alguma luz.

Referências

COSTA, Dalila Pereira. Duas Epopeias das Américas: Moby Dick e Grande Sertão: Veredas (ou o problema do mal). Porto: Lello & Irmão – Editores, 1974.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, 1992.

ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões, Porto: Edições Asa, 1997.

HERBERT, T. Walter. Calvinism and Cosmic Evil in “Moby-Dick”, PMLA 6 (vol. 84).

LEUUW, G. van Der, La Religion dans son essence et ses manifestations: Phénoménologie de la religion. Paris: Payot, 1955.

MELVILLE, Herman – Moby Dick (trad. Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves). Lisboa: Relógio D’Água, 2005.RICOEUR, Paul – Philosophie de la volonté : 2. Finitude et Culpabilité. Paris : Éditions Points, 2009.

ROCHA, Afonso – A segunda vinda da saudade: o messianismo de Dalila L. Pereira da Costa. Porto: Universidade Católica Editora, 2018.

OTTO, Rudolf – O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992).

VELASCO. Juan Martín – Introducción a la fenomenologia de la religión. Madrid: Editorial Trotta, 2006.

Notas

[1]Vide OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992 (versão original – Das Heilige, über das Irrationale in der Idee des Göttlichen uns sein Verhältnis zum Rationalem. Breslau: Trewendt und Granier, 1917; ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, 1992 (versão original – Das Heilige und das Profane. Hamburg: Rowohlt, 1957); ELIADE, Mircea – Tratado de história das religiões. Porto: Edições Asa, 1997.

[2]VELASCO. Juan Martín. Introducción a la fenomenologia de la religión. Madrid: Editorial Trotta, 2006, pp. 125-126.

[3]Ibidem, p. 87.

[4]O sagrado distingue-se do profano na medida em que este último delimita a realidade como empírica, espácio-temporal, enquanto que o sagrado delimita o nível simbolizador de algo superior e fundante. Qualquer manifestação religiosa começa por ser uma rutura com a vida ordinária. O aparecimento do sagrado provoca uma rutura de nível. O sagrado ergue-se como um mundo específico em relação ao profano. A entrada em contacto com o mundo do sagrado remete o sujeito religioso a uma ordem de realidade transcendente, que se define como absolutamente superior.

[5]VELASCO. Introducción. p. 205.

[6]Ibidem, p. 125.

[7]«Misterio designa para nosotros la Presencia de la Absoluta transcendencia en la más íntima imanencia de la realidade y la persona, a la que se refieren las variadíssimas representaciones de lo anterior e superior al hombre a lo que remiten todas las religiones» (Ibidem, p. 125).

[8]As mediações objetivas do Mistério são tantas e tão diversas que M. Eliade escreveu com razão que devemos estar dispostos a aceitá-las em qualquer setor da vida: fisiológico, económico, espiritual, ou social, já que, em suma, não sabemos se existe alguma coisa – objeto, gesto, função fisiológica, ser ou jogo – que não tenha sido alguma vez, nalgum lugar, ao longo da história da humanidade, transformada em hierofania. Eliade refere como mediações objetivas: gestos, danças, jogos infantis, brinquedos, instrumentos musicais, arquitetura, meios de transporte (animais, carros, barcos, etc.), animais, plantas e realidades naturais de toda a espécie; ofícios, artes, indústrias, técnicas; atos quotidianos (caça, pesca, agricultura), os atos fisiológicos (alimentação, vida sexual) e provavelmente também as palavras essenciais da língua. A história das religiões constitui um movimento permanente de sacralização de realidades antes tidas por profanas, e de dessacralização de realidades antes inscritas no mundo do sagrado. Este permanente intercâmbio de mediações mostra que nenhuma realidade, nem ordem de realidade, é só por si hierofânica, já que todas podem vir a sê-lo ou deixar de o ser. Para Velasco, «a origem do processo está na presença não objetiva, furtiva, do Mistério no centro da própria pessoa. Esta presença, que não se deixa captar de forma objetiva, dota o ser humano de um mais além de si mesmo que o leva a projetá-lo sobre as realidades mundanas mais propensas a isso na sua cultura, para nelas perceber essa Presença, diretamente impercetível, que o anima. […] De acordo com esta interpretação, as hierofanias seriam um produto imediato da eleição humana, mas teriam a sua origem na Presença do Mistério no ser humano e, por isso, no próprio Mistério» (VELASCO. Introducción. p. 203).

[9]COSTA, Dalila Pereira. Duas Epopeias das Américas: Moby Dick e Grande Sertão: Veredas (ou o problema do mal). Porto: Lello & Irmão – Editores, 1974.

[10]COSTA. Duas Epopeias. p. 134. Cf. etiam p. 139.

[11]Ibidem, 142.

[12]Sobre estas filiações e parentescos, remetemos para o recente estudo de ROCHA, Afonso – A segunda vinda da saudade: o messianismo de Dalila L. Pereira da Costa. Porto: Universidade Católica Editora, 2018. Veja-se, de modo particular, o capítulo III, onde o autor, partindo da análise da suprarreferida obra da pensadora portuense, contextualiza e contrasta o tema do Mal no pensamento geral da autora e na escola filosófica portuguesa.

[13]COSTA. Duas Epopeias. p. 29-30.

[14]Ibidem, p. 47.

[15]Ibidem, p. 43.

[16]HERBERT, T. Walter .Calvinism and Cosmic Evil in “Moby-Dick”, PMLA 6 (vol. 84), ISSN 00308129 (1969), p. 1613-1619

[17]MELVILLE, Herman. Moby Dick (trad. Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves). Lisboa: Relógio D’Água, 2005, p. 214-230.

[18]COSTA. Duas Epopeias. p. 9.

[19]cf. Job 40, 25-4; 26.

[20]COSTA. Duas Epopeias. p. 15

[21]Ibidem, p. 17.

[22]Ibidem, p. 18.

[23]Cf. Ibidem, p. 30.

[24]Ibidem, p. 31-32

[25]RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté : 2. Finitude et Culpabilité. Paris : Éditions Points, 2009.

[26]RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté : 2. Finitude et Culpabilité. Paris : Éditions Points, 2009.

[27]COSTA. Duas Epopeias. p. 21.

[28]COSTA. Duas Epopeias. p. 50

[29]Ibidem, p. 51.

[30]Ibidem, p. 13

[31]Ibidem, p. 14. Cf. 42-43.

[32]Ibidem, p. 15.

[33]Ibidem, p. 32.

[34]Ibidem, p. 40.

[35]Ibidem, p. 47.

[36]Leuuw, G. van Der (1955), La Religion dans son essence et ses manifestations : Phénoménologie de la religion. Paris: Payot.