FREI AGOSTINHO DA CRUZ:
um poeta para o nosso tempo
FREI AGOSTINHO DA CRUZ:
a poet for our time
* Ruy Ventura
*Doutor em Teologia pela
PUC-Rio. Professor do
curso de graduação em
Teologia e do programa
de Pós-Graduação em
Ciências das Religiões da
Faculdade Unida de Vitória.
Contato: abdo@fuv.edu.br
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Resumo
O presente artigo evoca a figura do poeta franciscano Frei Agostinho da Cruz (1540
– 1619), no momento em que se comemoram
os 400 anos da sua morte e os 480 do seu
nascimento. Agostinho é apresentado como
poeta actual cuja leitura é importante num
momento civilizacional em que uma crise poliédrica precisa de directores que indiquem
os melhores caminhos para alcançarmos a
liberdade interior. Transcendendo os lugares
comuns da poesia ao divino do seu tempo e
mesmo uma linguagem quinhentista, o frade
arrábido apresenta uma obra sólida e teotópica que, expondo sem rebuço os conflitos interiores e as psicomaquias do sujeito poético,
reflecte sobre a erosão da dignidade humana
durante “crise do renascimento”, propondo linhas de fuga universais e sempre contemporâneas, baseadas na “saudade de Deus”.
Palavras chave: Arrábida – liberdade – saudade – crise – alegria – ranciscanismo.
Abstract
The present article evokes the figure of the Franciscan poet Frei Agostinho
da Cruz (1540 - 1619), at the time of the 400th anniversary of his death and the
480th anniversary of his birth. Augustine is presented as a current poet whose
reading is important in a civilizational moment when a polyhedral crisis needs
directors who indicate the best ways to achieve inner freedom. Transcending
the common places of poetry to the divine of his time and even a 16th century
language, the arrábido friar presents a solid and theotopic work that, without
exposing the inner conflicts and the psychos of the poetic subject, reflects on
the erosion of human dignity during “ crisis of rebirth ”, proposing universal and
always contemporary escape lines, based on“ longing for God ”.
Keywords:Arrábida – freedom – longing – crisis – joy – franciscanism.
Introdução
Frei Agostinho da Cruz incomoda-me. Se não me incomodasse (sou sincero) há muito teria deixado de ler a sua poesia. Creio, aliás, que um poeta – seja qual for o meio expressivo que usou para comunicar – só sobrevive às suas circunstâncias se, de algum modo, continuar a retirar-nos do torpor e da indiferença que nos envilecem. Assim se torna intemporal, ao espicaçar-nos, fazendo-nos acordar. E só acordados – ou seja, com o coração desperto e vigilante – conseguiremos distinguir a realidade dos seus mais enganadores e perigosos simulacros. Atentos, talvez vejamos – mesmo pelo meio do negrume – o caminho que é preciso seguir, que meta procurar, evitando a queda nas mais sedutoras armadilhas. O frade franciscano, nascido em 1540 e falecido em 1619, não foi um escritor que, querendo fugir do mundo e dos seus alçapões, tenha adormecido para encontrar ou fabricar devaneios oníricos. Poeta da experiência com a natureza, com os homens e com a divindade, ao longo dos seus 79 anos de vida, sempre intranquilos, apresenta-se como um ser acordado e atento – e assim desvela aos leitores o seu exemplo vivido e pensado, ensinando-nos onde estão as alpondras que nos permitirão atravessar as mais perigosas torrentes de lama.
Uma perigosa cinza vulcânica ameaça o mundo em que vivemos. Não é de agora. Sabemos disso pelo menos desde finais do século XVIII. Parece-me, assim, importante retomar a interrogação que Hölderlin, incomodado e incómodo, registou nesse distante (e afinal tão próximo) ano de 1800: “para que servem poetas em tempo de indigência?”1 . Não há qualquer maravilha tecnológica que consiga desmentir a sua aridez, a sua miséria, a sua ruindade (dürftiger Zeit); antes pelo contrário. Vivemos num período histórico em que se tornou bem mais sensível a acção do “mistério da iniquidade”2 . Já passaram mais de dois séculos sobre as palavras do vate de Tubinga – e não há heroísmo ou acção luminosa que consigam desmentir a hipocrisia da maior parte das promessas de liberdade, igualdade e fraternidade. Uma observação atenta confirma, infelizmente, a devastação do espaço, a sua infertilidade, o abandono e o envenenamento de uma boa parte daqueles que o habitam.
Inquieto e reflectindo sobre esta realidade, T. S. Eliot viu profeticamente, entre duas guerras mundiais, uma “terra sem vida” (waste land)3 ou “terra morta” (dead land), povoada por “homens ocos” (hollow men), “empalhados” (stuffed men) e “vazios” (empty men)4 . E. E. Cummings, por seu turno, apontou nos mesmos lugares (os nossos) uma vasta multidão de “senhoras de Cambridge”, vivendo em “almas mobiladas” (furnished souls), “desgraciosas” (unbeautiful), indiferentes a tudo, nos seus “pensamentos confortáveis” (comfortable minds)5 . Perante este quadro, hoje ainda mais carregado nas suas tintas escuras, vale a pena repetir e meditar a interrogação do autor de Hipérion ou o Eremita da Grécia: “para que servem poetas em tempo de indigência?”
Vale a pena juntarmos a argúcia de Umberto Eco aos traços deste diagnóstico e perguntarmos para que servem os poetas na “nova Idade Média” em que vivemos. Neste tempo de “transição permanente”, em que temos de subsistir no meio da desordem e de novos totalitarismos, terão os poetas, sobretudo os de um passado que se projecta no futuro, como Frei Agostinho da Cruz, ainda algo a dizer? Servirão para algo, se todos os dias nos vemos rodeados por uma perigosa lógica de conflito e somos seduzidos por uma civilização alienante que nos obriga a uma contínua readaptação, alimentada por pavores e utopias6 ? Serão ainda escutadas as palavras desses sismógrafos que teimam em avisar-nos dos abalos e dos terramotos, registando-os para memória futura, desses pontífices que no meio da barbárie ainda conseguem estabelecer pontes entre a recordação e a esperança? A reedição de uma época caracterizada por “pestes e matanças, intolerância e morte” – amedrontada por constantes ameaças de destruição total, feudalizada e egoísta, mergulhada numa irremediável erosão ecológica, habitada por novos nómadas, por gente insegura e vagueante, na qual uma imensa fatia da arte é quase só uma espécie de bricolage inconsequente ou um espectáculo manipulador7 - coloca-nos perante problemas que urge interrogar, discutir e enfrentar com coragem. Vale a pena interrogarmo-nos sem cessar; interrogar é talvez uma das melhores vias de oração mental, aquela que roga e questiona interiormente, sem abdicar da Palavra.
Há quem se refugie nos mais estranhos e degradantes narcóticos, procurando alienar-se e afogar as suas frustrações, lançando-se numa prisão perpétua. Há quem procure, por aqui e por ali, novos mosteiros, eremitérios e desertos onde ainda seja possível habitar e sobreviver, interiormente libertos. Se decidirmos levar a cabo essa demanda, decerto concordaremos com Frei Agostinho da Cruz: “Não há melhor manjar que liberdade”8 . Toda a vida a procurou e construiu. Teremos nós, todavia, ainda a coragem de procurá-la?
De Frei Agostinho resta-nos tanto a poesia quanto os parcos relatos das quase oito décadas em que viveu. Vulto largamente mitificado em escritos de vária ordem e proveniência é, ainda agora, um ser cuja biografia tem demasiados campos obscuros, bem mais numerosos do que aqueles onde a claridade nos deixa ver com nitidez. Se mantivermos um convívio intenso com os seus poemas, reconheceremos não obstante que o seu pensamento não nasceu de “uma alminha de Deus, nua como na hora do nascimento, a dar-se, sem querer e sem saber, em versos da mais ingénua e viva emoção religiosa”9 . Vale a pena tê-lo sempre ao nosso lado, seja como objecto de estudo, seja (sobretudo) como elevador de reflexão ou, mesmo, como uma espécie de Virgílio, guiando-nos na nossa Commedia e num consequente processo de revisão, de mudança de vida e de aproximação ao “amor que move o sol e as mais estrelas”10. Se assim fizermos, perceberemos que não estamos a venerar uma múmia embelezada pela devoção com sucessivas camadas de cera, mas temos junto de nós um dos maiores da nossa poesia, um dos grandes da literatura, do pensamento e da espiritualidade europeias.
Frei Agostinho da Cruz viveu numa época de grande crise. Pertenceu a uma geração alargada cuja percepção da crise moldou atitudes, gestos, hábitos, palavras, arte – tudo. Ciente das fendas que haviam derruído a confiança humanista do Renascimento europeu, a consciência de muitos levou ao duro confronto com a vacuidade de um ambiente mundano e hedonista e à procura de linhas de fuga ou de purificação que permitissem ao homem sobreviver ao desengano. Essa demanda (nem sempre esclarecida) subjaz a muitos acontecimentos, movimentos e também desvigamentos que sucederam pelo mundo de então.
Agostinho Pimenta, natural de Ponte da Barca, viveu junto da alta nobreza de Portugal desde tenra idade, integrado na casa de um dos netos do rei D. Manuel I, o infante D. Duarte, filho póstumo de um príncipe homónimo e D. Isabel de Bragança. Nesse ambiente conheceu e travou amizade com D. Álvaro de Lencastre, futuro Duque de Aveiro e padroeiro do Convento de Santa Maria da Arrábida. Aí decidiu fazer-se frade franciscano, seduzido pelas virtudes e pela pregação do arrábido Frei Jácome Peregrino, o Tio. Nascido em 1540, não pôde assistir à entrada em Portugal dos judeus expulsos de Castela pelos Reis Católicos, nem à matança dos seguidores de Moisés ocorrida em Lisboa, nem à promulgação da lei que os obrigou a uma conversão forçada ou ao exílio, nem aos primeiros decénios do cisma protestante, nem sequer à instauração entre nós do Tribunal do Santo Ofício, a pedido da Casa Real. Nos seus 79 anos de vida teve, todavia, notícia dos diabólicos autos-de-fé; talvez tenha assistido a alguns. Sentiu decerto o apertado controlo intelectual sobre o pensamento, o estudo e a expressão, com suas graves consequências. Terá tido ecos do desenrolar e da conclusão do longo Concílio de Trento (1545 – 1563), observando a sua aplicação entre nós. Viveu ainda de perto o abalo provocado pela morte do filho e herdeiro de D. João III, as várias regências que foram governando o reino em nome de um rei-menino, o reinado de um D. Sebastião adolescente, o terrível impacto nacional da morte desse monarca numa campanha militar insana que fez perder grande parte da elite portuguesa, o governo hesitante e moribundo de um cardeal-rei impotente, a perda da independência em benefício de uma monarquia dual e os primeiros 39 anos do domínio castelhano. Assistiu, em suma, ao escurecimento de Portugal e do mundo, ao lado de muitos dos seus contemporâneos. Com eles, lidou como pôde com um novo quadro político, social e religioso.
Num mar revolto, essa geração tentou encontrar um pouco de segurança. Em lugares, materiais ou imateriais, insularam-se e discretamente operaram pequenos gestos, tentando mitigar o negrume. As palavras de Aguiar e Silva ajudam-nos a entender melhor esse período em que os paradigmas renascentistas foram postos em causa:
[…] esta crise do Renascimento é fundamentalmente uma crise do humanismo, expressa numa concepção pessimista do homem e da vida. O regnum hominis, a dignitas hominis do classicismo renascentista fundavam- -se na crença de que não existia conflito entre a ordem divina e a ordem humana, entre a alma e o corpo, entre a razão e a natureza, entre a fé e a razão; // a Reforma, luterana e calvinista, o maquiavelismo e o maneirismo corroem os fundamentos dessa crença, apresentando o homem como um ser miserável e radicalmente corrupto, apenas redimível através de um acto da graça de Deus; defendendo a existência de uma dupla moral; opondo o corpo ao espírito, acentuando dramaticamente a insegurança e a efemeridade da vida, descobrindo em tudo, no universo e no homem, a incoerência, o conflito, a contradição. […] a mesma aversão pela razão humana, o mesmo anti-intelectualismo, valorizando e exaltando por isso a fé, aquilo que é instintivo, o facto, a experiência pragmática11.Nem todos estes traços assentam no perfil e no pensamento de Frei Agostinho da Cruz. Mas também ele deu voz à contradição “entre o ideal e o real”. Deu abundante testemunho de uma sociedade onde dominava “o egoísmo, a ambição, o desconcerto”, nascidos de uma natureza humana que precisa da graça para atingir a salvação. Não escondeu mesmo alguns momentos de “melancolia exasperada” e de “instabilidade afectiva”12. Resolveu-os, todavia, contemplando “o Creador da creatura”13 e escolhendo a “Solitária vida / suave, ditosa, / vida saudosa, / vida só vivida”14.
Do muito que escreveu, pouco publicou durante a sua existência terrena, nisso não se diferenciando da maior parte dos seus contemporâneos, cujo descuido é eloquente. Tirando uma dúzia de textos, só no século XVIII o grosso da sua arte começou a merecer a luz da imprensa, tendo de esperar por 1918 para ver editada a primeira (e única) tentativa de recolha plena dos seus versos.
Produziu, de facto, uma obra para poucos, perpassada pela humildade, mas sem dispensar a franqueza. Talvez uma parte dela tenha sido traçada apenas como uma espécie de diário íntimo, usando ainda assim uma linguagem cautelosa, mentalmente reservada, plena de segredos e de enigmas. Sabemos hoje, contudo, o que pensou de si e do seu tempo, quanto viu, que perplexidades sentiu, quanto recusou e quanto abraçou, quanto se inter-rogou. A sua oficina estilística não se afasta muito dos cânones da poética maneirista do seu tempo. Escreveu redondilhas, cantigas a mote, sonetos, epigramas, epitáfios, cartas, éclogas e elegias como a maioria dos seus contemporâneos. Não se destaca pela singularidade dos tropos com que foi tecendo os seus textos, não lhes tendo negado inclusive a citação culta de mestres italianos. Os seus poemas distinguem-se, não obstante, pela intimidade desvelada, pelos silolóquios ou diálogos especulares, vislumbráveis mesmo quando encena ou finge estratégias dramatizantes, usando e subvertendo as convenções pastoris. Neste nosso tempo (em que a vulgaridade impera, mesmo entre versos), a sua arte eleva-nos num seríssimo jogo entre a sinceridade e a velatura, entre a abertura e o enigma. Mostra e esconde, num discurso estruturado como expressão do encontro com o Outro, que tanto pode ser a sua imagem espelhada quanto as gentes do seu entorno, figuras várias da História Sagrada, toda a imensa criação ou mesmo o Criador, directamente interpelado.
Lê-lo é senti-lo ao nosso lado. Frei Agostinho não escreveu para deleitar “quem não tem brandura”15, mas para se inscrever em nós, professando, confessando e dirigindo espiritualmente os leitores que às suas palavras decidam aderir. Segundo afirma, não as escreveu “para louvores / Humanos, pelo menos perigosos, // Senão para plantar em tenros peitos / Desejos de colher divinas flores / À força de suspiros saudosos”16. Desconfia aliás do engenho poético, pensando que não é capaz de “penetrar entranhas duras”1717. Chega a avisar os praticantes de tal arte com palavras desconcertantes:
Sem sílabas medir, e sem trovar,
Se logre dos conceitos, que de cima
Pelo de cima, fazem suspirar.
Escuse de limar em prosa ou rima,
Porque sem se limar a rima ou prosa,
Nem por isso no Céu menos se estima.18Se os seus poemas não deixam de exprimir a inquietação maneirista, fazem-no com um grau de veracidade que vai além da observação diletante e do raciocínio distante, bem instalado. Talvez por isso use uma linguagem que tanto manipula os códigos do discurso erudito quanto toca a lhanura das frases quotidianas, usando um colorido irónico, metafórico e certeiro. Ao recusar um “cantar suave e brando”19, torna-se incómodo, exigindo uma leitura comprometida. Ao comover-nos, movendo- -nos enquanto comunidade de leitores, obriga-nos a colocar questões incómodas, intemporais e urgentes:
De que serve, que presta, que aproveita,
Tudo quanto se acaba em tempo breve,
Qual cera ao fogo, ou qual ao sol a neve,
Que não pode deixar de ser desfeita?
Tal o que só no mundo se deleita,
Querendo do pesado fazer leve,
Sem temer o castigo, que se deve
A quem p’lo temporal eterno enjeita.
As flores, que nos campos aparecem,
Abatem sua mesma fermosura
Ant’ os olhos de quem desaparecem.
Amostra-nos o tempo que a pintura
De quantas cousas há todas fenecem,
Senão o Creador da creatura.”20Não sei se os seus juízos são universais, mas tenho a mais funda convicção de que seremos capazes de reconhecer a acutilante actualidade de uma larga parte das suas palavras. Ao espicaçar-nos com firmeza, não pode deixar-nos indiferentes:
[…] Tanto podem malinas creaturas,
Que por fazer escuras as estrelas,
Dizem que falta nelas claridade!
Pouco val a verdade dos pequenos!
Tudo neles val menos; a cobiça
Em lugar da Justiça reina agora.
Ah! quanto melhor fôra padecer
Mil mortes, que não ver nossos vizinhos
Por tão tortos caminhos possuir,
Roubar, e destruir honras, e vidas! […]”21Exprimindo uma sociedade em crise, semelhante à nossa, os seus versos salientam um desassossego que não nasceu de meras especulações, mas da dura experiência de quem se espantou com o porvir, temendo o passado, “Sem ter já que esperar, nem que perder”22. Nem mesmo os seus 59 anos de religião foram pacíficos. Têm por isso valor redobrado as suas perplexidades e as suas interrogações, servindo-nos de proveito e exemplo:
Claros desenganos
Dão nestes extremos,
Quantos vistos temos
Em tão poucos anos! […]
Os dias não cansam;
Cansa a vida neles:
Que será daqueles,
Que nela descansam?
Que busco, que quero?
Que choro, que rio?
Em que me confio?
Que tenho, que espero?
Que presta, que val
Quanto o mundo tem?
Como terá bem
Quem escolhe mal?
Se choro, se canto,
Se calo, se grito;
Falta-me o esprito
Para sentir tanto.
Que guerra tão crua,
Que esforço, que manhas,
As suas entranhas
Contra uma alma sua!”23Sobreviveu, mesmo em “guerra”, segundo afirmou24, porque aos vinte anos decidiu viver superiormente, primeiro em Santa Cruz de Sintra e depois em Santa Maria da Arrábida. Neste último lugar, sua meta de vida ascética, “Rodeado […] / De firmeza e confiança”, conseguiu “sustent[ar] a esperança” “No silêncio da lembrança”25, “Sem mais alembrar / Viva creatura”26.
Com essa decisão, manifestou da melhor maneira o seu entendimento da hierarquia que, séculos depois, seria intuída e expressa sibilinamente pelo seu irmão Sebastião da Gama. Tornando presente a doutrina inclusa nos versos de Frei Agostinho da Cruz, o autor de Campo Aberto compreendeu que a Poesia é outro dos santos nomes de Deus, cabendo ao poeta um apagado papel pontifício de intermediário que não vira a cara à sua obrigação de escrever poemas que tornam mais visível e legível a Palavra27. O poema – ou outra obra de arte digna desse nome, acrescento eu – pode assim ser percebido como um lugar de Deus no nosso mundo, logo, como uma teotopia. O poema e não o poeta (tenhamos atenção) que, por isso mesmo, é obrigado à humilhação para que a humildade o não deixe, substituída por soberbas e atitudes titânicas, surgidas sobretudo quando se deleita em rituais que mais não são do que rasteiras.
Sem alardear o seu entendimento, mas registando-o, Frei Agostinho da Cruz teve consciência do seu tempo e de quanto o rodeava – e também consciência do valor real da escrita poética, da hierarquia de valores em que deve incluir-se. Soube assim que nem tudo vale a pena – e nesse desnudamento se fortalece a alma. Teve, sobretudo, a capacidade de escolher, de perceber que a vida mendicante é o melhor caminho para o empobrecimento vital, aquele que mantém em nós a sede e a fome, a fragilidade e a dependência, o vazio ou nada que abre espaço para uma realidade transcendente que só se aproxima de nós quando nos tornamos menores ou mínimos, eternos aprendizes ou crianças28.
Percebemos assim que “manjar melhor” é esse chamado “liberdade”. A obra de Frei Agostinho da Cruz propõe-nos uma libertação. É algo que não podemos menosprezar neste “tempo de indigência” que é o nosso (a ser que queiramos engrossar o número dos “homens ocos” ou das “senhoras de Cambridge”…). Estruturada sobre um triângulo em cujos vértices encontramos a Natureza-Mundo, a Palavra-Poesia e Deus-Amor29, a sua obra conduz-nos pelo pensamento até à convicção de que não se trata do registo de uma experiência mística, mas antes de um valioso conjunto de poemas onde contactamos com um rigoroso percurso de consequente ascese. São textos prenhes de experiência com os homens, com o ambiente e com a divindade mais ou menos humanada, registos eloquentes, francos e desafiadores de uma experiência teândrica. Neles, o engenho artístico é secundarizado em benefício de um bem maior. Esse bem maior nos propõe em cada passo, consciente – com seu pai espiritual, São Francisco de Assis – de que a criatura só tem valor porque espelha o Criador e a pintura só merece ser salvaguardada porque nos aponta o seu supremo Pintor30.
Professor da Cruz31, é também ele, discretamente, um apóstolo da Dona Pobreza. Não nos sugere, apenas, um despojamento de todo e qualquer bem material. Como se fosse o nosso director espiritual, propõe antes um extenso caminho de peregrinação ou de aprendizagem que poderá conduzir à pacificadora entrega ao Divino das potências da nossa alma, gerando assim – como queria o Poverello – a mais perfeita alegria32.
Referências
AA. VV.– Bíblia Sagrada – versão dos textos originais. Lisboa / Fátima, Difusora Bíblica – Franciscanos Capuchinhos. 2002.
AA. VV.– Fontes Franciscanas I – S. Francisco de Assis. Braga, Editorial Franciscana. 2005.
ALIGHIERI, Dante– A Divina Comédia. Trad. Vasco Graça Moura, Rio deMouro, Círculo de Leitores, 1998.
CUMMINGS, E. E. – livrodepoemas. Trad. Cecília Rego Pinheiro, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.
CRUZ, Frei Agostinho da. Antologia Poética. Organização de RuyVentura, Évora, Editora Licorne. (2019)
ECO, Umbert.“La Edad Media ha comenzado ya” [1973]. La Nueva Edad Media, Madrid, Alianza Editorial,1990.
ELIOT, T. S.Poesia. 4ª edição, trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
ELIOT, T. S. A Terra Sem Vida. Trad. Maria Amélia Neto, Lisboa, Edições Ática, 1984
FARIA, Daniel Augusto da Cunha. A vida e a conversão de Frei Agostinho: entre a aprendizagem e o ensino da Cruz. Lisboa, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa,1999.
HÖLDERLIN, Friedrich. Elegias. Trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.
PASCOAES, Teixeira de. Os Poetas Lusíadas. Lisboa, Assírio & Alvim.
SILVA, Vítor Manuel Pires de Aguiar e (1971) – Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1987.
VENTURA, Ruy. A Chave de Sebastião da Gama. Évora, Editora Licorne / Associação Cultural Sebastião da Gama, 2017.
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Notas
[1]Hölderlin, 1999: 74 – 75.
[2]2Ts 2.
[3]Eliot, 1984.
[4]Eliot, 1981: 117 – 120
[5]Cummings, 1999: 46 – 47.
[6]Cf. Eco, 1990: 34.
[7]Cf. Eco, 1990.
[8]Cruz, 2019: 130 [écloga “No ano do Noviciado”].
[9]Pascoaes, 1987: 111.
[10]Alighieri, 1998: 598 [Paraíso, canto XXIII, v. 145].
[11]Silva, 1971: 29 – 30.
[12]Silva, 1971: 31.
[13]Cruz, 2019: 58 [soneto “Da vida humana”]
[14]Cruz, 2019: 277 [“Endechas”].
[15]Cruz, 2019: 105 [elegia “Deixei já de cantar como soía”].
[16]Cruz, 2019: 45 – 46 [soneto “Os versos, que cantei importunado”].
[17]Cruz, 2019: 105.
[18]Cruz, 2019: 106.
[19]Cruz, 2019: 105.
[20]Cruz, 2019: 57 – 58 [soneto “Da vida humana”].
[21]Cruz, 2019: 140 – 141 [écloga “Em que se queixa de um amigo”]
[22]Cruz, 2019: 46 [soneto “Ao triste estado”].
[23]Cruz, 2019: 273 – 274 [“Endechas”]
[24]Cruz, 2019: 271 [“Redondilhas a Nossa Senhora”]
[25]Cruz, 2019: 269 – 270 [mote “Rodeado nesta Serra”].
[26]Cruz, 2019: 275 [“Endechas”].
[27]Cf. Ventura, 2017.
[28]Mc 10, 14 – 15.
[29]Cf. Ventura, 2017: 37.
[30]Cf. Cruz, 2019: 55 [soneto “Da contemplação”]
[31]Cf. Faria, 1999.
[32]Cf. Faria, 1999.