REDENÇÃO E DEFORMIDADE - A poética do estranhamento como discurso teológico da modernidade
REDEMPTION AND DEFORMITY - The poetics of strangeness as the theological discourse of modernity

*Teresa Bartolomei
*Membro Titular do CITER e Docente da Faculdade de Teologia (UCP). Ela tem um Ph.D. do Programa de Teoria Literária da Universidade de Lisboa e um MA em Filosofia da Linguagem pela Universidade La Sapienza de Roma. Contato: Tbvv@newes.eu
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Resumo
O processo psicológico da identificação emocional com o herói é o paradigma dominante da civilização literária ocidental desde a sua descrição na Poética de Aristóteles como mecanismo básico da receção da obra por parte do leitor/espetador, e a sua adoção como vetor primário daquela edificação moral prezada na antiguidade clássica e na tradição cristã como função antropológica essencial da literatura.
Gesto fundador da modernidade literária a partir, pelo menos, do fim do século XIX, numa inovação que seria teorizada sistematicamente na dramaturgia do estranhamento de Bertolt Brecht, a rutura com este paradigma implica uma mudança radical não apenas do discurso antropológico veiculado pela literatura e da interpretação do seu papel como agente moral, mas também do discurso teológico por ela implícita ou explicitamente desenvolvido.
Com referência final à obra de duas escritoras símbolo desta evolução como Flannery O Connor e Clarice Lispector, focalizar-se-á o núcleo teológico da poética do estranhamento, de desativação da identificação empática com o protagonista: é através da intolerável, repugnante, deformidade (moral e estética) do ser humano que a redenção se manifesta como ocorrência, imprevisível e humanamente impossível, da Graça, como abismo incompreensível em que a transcendência se abre caminho, derrubando todo o raciocínio, toda a expetativa, toda a lógica. Porque a redenção é Graça, não Lei.

Palavras chave:Identificação. Estranhamento. Repugnância. Deformidade. Redenção. Poética. Aristóteles. Flannery O’Connor. Clarice Lispector.

 

Abstract
The psychological process of emotional identification with the hero is the dominant paradigm of Western literary civilization since its description in Aristotle’s Poetics as the basic mechanism of reader’s / spectator’s reception of works, and its adoption as the primary vector of that moral edification praised in classical antiquity and in the Christian tradition as an essential anthropological function of literature.
Founding gesture of literary modernity from at least the nineteenth century, through an innovation that will be theoretically formalized in Bertolt Brecht’s dramaturgy of estrangement, the break with this paradigm implies a radical change not only in the anthropological discourse conveyed by literature and in the interpretation of its role as moral agent, but also in the theological discourse implicitly or explicitly developed by literature.
With final reference to the work of two writers symbolizing this evolution, such as Flannery O’Connor and Clarice Lispector, the essay focuses on the theological core of the estrangement poetics, with its blocking of the empathic identification with the protagonist: it is through the intolerable, repulsive deformity (moral and aesthetic) of a human being that redemption manifests itself as the unpredictable and humanly impossible occurrence of Grace, as an incomprehensible abyss in which transcendence makes her way, overthrowing all reasoning, all expectation, all logic. Because redemption is Grace, not Law.

Keywords:Identification. Estrangement. Repugnance. Deformity. Redemption. Poetics. Aristoteles. Flannery O’Connor. Clarice Lispector.

Imitação e identificação

No começo era a imitação. Poderoso recurso da sobrevivência e do desenvolvimento intelectual e moral para Aristóteles,1 máquina letal de formatação do desejo para R. Girard (Girard 1961), que subordina o relacionamento com o objeto ao relacionamento com outro sujeito, num jogo de espelhos que esvazia a pulsão de prazer em réplica, diretamente convertível em pulsão de morte (eliminar, materialmente ou simbolicamente, quem deseja o mesmo que eu, cf. Girard 1972), e faz do desejo um castelo de Atlante de procura incessante que nunca alcança, cadeia altamente povoada em que vagueiam bandos de presos à caça do mesmo (da mesma).2

Filho primogénito da imitação, quando se encarna em literatura, não é o plágio (a ovelha negra do rebanho), nem a angústia da influência (Bloom 1973), que são patologias minoritárias afetando apenas a escrita, mas a identificação, que é dispositivo poético e estético essencial, equipamento da escrita como da receção, ao combinar o prazer intelectual gerado pela imitação com o pathos, a aflição em relação a nós mesmos (“temor” do mal que podemos vir a sofrer) e aos outros (“compaixão” do mal que os pode atingir) despertada em nós pela contemplação da condição humana.

Módulo da construção da ação, da intriga e dos personagens na narrativa e na dramaturgia,3 assim como da expressão emocional na lírica, a identificação é um poderoso ‘reader-catcher’: fator maior de instituição daquela empatia com o conteúdo do texto (“atração”, chama-a Aristóteles 1449b, p. 50) que lhe dá força para que o seu sentido se torne fator de convicção,4 transformação, isso é purificação,5 para quem o recebe. O objetivo da tragédia - género sumo em que se recapitula na sua mais pura forma tudo o que pode, e por isso deve, a literatura - é claramente, para Aristóteles, que o seu sentido se torne mensagem, reconhecida não como pacote de convicções a abraçar, mas como vetor de mudança interior de quem, ao compreender racionalmente o sentido, se deixa ‘conquistar’ por ele através de um processo emocional de identificação: ‘empatizando’

Por isso, em Aristóteles, a descrição da estrutura da tragédia resulta na descrição da sua receção, uma mise em abîme meta-textual. O herói purifica-se6 por meio da dor provocada pela “peripécia” (a “mudança” da situação, elemento constitutivo da tragédia) e pelo “reconhecimento” (“anagnórise”, outra componente chave da escrita dramática: um meio e um efeito da “peripécia”),7 assim como o destinatário8 (o público) adquire um estádio superior de consciência de si, ao discernir, numa aflição particular representada em cena, a condição universal do homem. O leitor/ espetador passa, como o herói, por uma experiência de sentido que o ‘sublima’: a identificação (a conjugação emocional da imitação) 9 declina o reconhecimento (o que se aprende por meio da imitação de uma ação particular que, ao ser possível, se apura como universal) em “pathos”, partilha euforicamente revivificante do sofrimento representado, acolhida como evidência afetiva do cariz universal do caso individual..

Na genial exposição aristotélica, a doutrina imemorial (paradigma clássico que a civilização cristã herda integralmente da antiguidade greco- -romana) do recomendável, e inevitável, papel moral da literatura é formulada elegantemente não como apologética instância de um aproveitamento extrínseco e posterior de um código moral a afirmar, mas como mecanismo intrínseco da escrita literária. Para Aristóteles, a obra nasce mensagem, agente de ‘edificação moral’, graças ao prazer estético que gera.10 É por ser capaz de produzir identificação, por ser capaz de dar o ‘prazer aflito’ do temor e da compaixão na aprendizagem intelectual que transmite, que a literatura é catártica: é experiência de elevação e “purificação”. O belo11 manifesta-se como o bom, segundo o ideal da kalokagathia da paideia grega (cf. Jaeger 1933-1947), ao ser para o homem forma de se conhecer e de reconhecer os próprios problemas morais numa transformação interior que não consiste em os resolver, mas em aprender a conviver com a sua trágica não solubilidade, adquirindo a ‘tranquilidade’12 contemplativa da aceitação de uma condição intransponível porque universal. Assumindo o trágico como o ponto mais alto, mais poderoso, de revelação (reconhecimento) da condição humana (contemplação reserva da aos homens melhores, que não escrevem de homens vis),13 Aristóteles formula uma teoria da autonomia e da legitimidade da arte (contra o ‘ostracismo’ platónico), baseada no princípio da autonomia da ética da religião. Na Poética é assim consomada a definitiva emancipação da literatura do mito,14 como estádio de autoconhecimento do homem, a partir de uma autocompreensão radicalmente agnóstica da ética15 (a sua separação da normatividade e da esperança religiosa).

Associando o prazer intelectual da imitação (reconhecer que as coisas são assim e assim, 16 algo que se dá também na comédia),17 ao prazer aflito (pathos) da identificação emocional (a “preocupação”18 para consigo e para com os outros), a tragédia não ensina conteúdos éticos particulares (virtudes, normas ou valores), mas torna os homens melhores, ao mostrar- -lhes como “deveriam ser”, isto é, na potencialidade que todos os indivíduos têm de serem heróis: seres normais, mas com a dignidade da liberdade, a aceitação consciente e ativa da própria finitude e dos seus custos.1919 O herói, o homem como deveria ser, não é, na perspetiva da tragédia, aquele que não falha, não cai, mas aquele que do “fado” da queda, da sua inevitabilidade, faz livre ação, aquele que não sofre a queda como constrição, mas a torna objeto de autodeterminação.20

Separado dos deuses pela história, que o desperta à própria radical contingência, o herói trágico encara-se arquetipicamente como o culpado (arquetipicamente como Édipo): aquele que tem de justificar eticamente a própria ação (e antes até a própria existência), porque a sua legitimidade já não vem diretamente da sua conformidade com o ditado divino, cuja múltipla contraditoriedade tira valor moral à vontade celeste, reduzida a puro arbítrio. Por isso, a Odisseia, poema épico da crise da épica, da crise do mito, se abre com a cena da inflexível recusa da própria divinização por parte de Ulisses, padre da modernidade, que à assimilação identitária aos Olímpios prefere a própria dignidade humana com o seu preço de morte, culpa e sofrimento. Encarando o idílio edénico da inocência meta-histórica da ilha de Calipso como uma regressão moral e existencial, Ulisses tenazmente resiste à ficcionalização mitológica da própria existência para ‘regressar’ à história como à própria casa, náufrago sobrevivido ao afundamento no desterro ético, graças à jangada da própria decisão de ser o dono das próprias escolhas, de ser moralmente responsável.21

Uma vez assumida a consciência da própria radical solidão em relação à lei divina (que se torna de todo incompreensível, e por isso amoral, na sua manifestação como fatum: ao qual não se obedece porque é constrição inescapável),22 ultrapassando a ainda mitológica euforia da escolha ulissaica, para a reconhecer como condição sofrida, não disponível, no herói trágico consoma-se, como reconstruído tão magnificamente quão problematicamente por Hegel, uma etapa fundamental da consciência do homem ocidental.23 Todo o homem reconhece ser Orestes, Electra, Édipo, Antígone, perante o paradoxo insolúvel, constituído pelo facto de que uma injustiça constitutiva é intrínseca a toda a justiça humana, mas exercer a justiça é parte constitutiva da dignidade humana: a identificação é o principal vetor estético pelo qual se transmite a visão trágica do mundo, acabando por se tornar consubstancial a ela na reconstrução aristotélica, que recusa igual valor ético e poético a toda a imitação artística que não ative o mesmo ‘dispositivo sentimental’, empático, de sublimação cognitiva da experiência (‘objetivo’ principal da literatura, “efeito próprio da arte” que determina a explicita hierarquia dos géneros literários da Poética).24

Com efeito, segundo Aristóteles, a imitação (princípio primário da criação artística) não produz identificação, não tem o poder moral de ‘purificar’ o destinatário, se ficar limitada ao puro prazer intelectual (como na comédia e na sátira), 25 ou se fracassar, no caso em que, em vez de despertar os sentimentos morais da “cura” para consigo e os outros (temor e compaixão), ela ative o sentimento ‘antitrágico’ por excelência da repugnância (Poética, 1453b, p. 65). Nesta atitude emocional, a empatia, gerada pelo reconhecimento que os outros são iguais a nós (e que por isso nós podemos sofrer como, com e para eles), dissolve-se na perceção de uma diferença que não é apenas insuperável, mas constitui uma incompatibilidade ameaçadora, inspirando por isso um sentimento compulsivo de distanciação.

Por outras palavras, o cómico e o repugnante são para Aristóteles dois dispositivos de escrita que desativam a identificação e tiram à arte o seu poder moral ao tirar-lhe o sofrimento,26 porque ambos dissociam o prazer (intelectual da imitação) da empatia, a aflição moral que promove a capacidade de reconhecer no outro um cosujeito.

O cómico, para Aristóteles, é anódino, isento de sofrimento (Poética, 1449 a, p. 46),27 porque interceta o deforme, estético e moral: a ferida daquela unidade e ordem que constituem a beleza das coisas e dos seres,28 o seu ser ‘conformes’ à ideia racional inerente a todo o ente mundano.

Deforme é um ser, ou simplesmente um corpo, ‘malformado’, privado de algo que deveria possuir por força da sua pertença a uma espécie (ou a uma categoria de objetos), e cuja falta, cujo defeito, o exclui para nós emocionalmente desta pertença, tirando-lhe ‘valor’. A coisa e o ser deformes são ‘sub-coisas’, ‘sub-seres’. São algo, alguém, que é menos daquilo que deveria ser, que é percebido como ‘inferior’, e que por isso dificulta a nossa capacidade de reconhecer a sua igualdade, de merecer a nossa em-patia: do deforme ri-se antes de chorar com ele, destacando-o como ridículo. Deforme é aquela “parte do vício”, aquela manifestação do mal, que tira ao homem a sua grandeza de homem (o seu ser magnânimo),29 tornando-o máscara – imagem diminuída - da própria humanidade. “A comédia é, como dissemos, uma imitação de caracteres inferiores, não, contudo, em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora, tal como, por exemplo, a máscara cómica é feia e deformada, mas não exprime dor” (Ib., 1449a, pp.45-46). Grotesco30 – segundo a formidável definição aristotélica - é o “feio de que se ri”, porque a fealdade desativa o sofrimento por parte do espetador, a sua capacidade pontual de identificação (do belo que sofre, pelo contrário, tendencialmente choramos, ao sentirmos compaixão e temor, com ele e por ele), mantendo unicamente o prazer intelectual do reconhecimento da “queda” (da passagem para, ou manifestação de, uma condição inferior) como algo que afeta o outro, mas não a nós.31

Se o deforme, consubstancial ao cómico, impede a identificação por nos ser ‘alheio’, incapaz de se converter de objeto da representação em cosujeito, incompatibilizando-se com a nossa autorrepresentação como uma humanidade ordenada e completa, o repugnante impede a identificação por nos ser insidiosamente próximo, no seu desmentido de nós como sujeito. A repugnância é a disposição interior ‘oposta’ à identificação, porque o repugnante não se limita a ser indiferente, a-pático, mas nos é radicalmente anti-pático: suscita a nossa ‘re-pulsa’, o instinto de o afastar de nós, de todo o contato físico, visual, memorial. A sua proximidade apresenta-se-nos, com efeito, como uma ameaça cognitiva, como um perigoso fator de nos reconhecermos inferiores àquilo que queremos e acreditamos ser: sujeitos. Se o trágico denuncia a “queda” como cumprimento doloroso da condição humana, e se o cómico a denuncia como um ridículo acidente possível, o repugnante denuncia-a como manifestação de uma condição mais profunda de inferioridade: a superioridade humana não é apenas vulnerável, mas talvez seja pura ilusão. Não queremos mexer em, ver, pensar no, repugnante, porque nele o sujeito é forçado a identificar-se como objeto, como ser possivelmente isento de vida, de liberdade, de dignidade.

É esta a raiz da nossa repulsa por tudo aquilo que veio a ser religiosamente classificado como impuro, como evidencia Aristóteles ao realçar que só a imitação (a representação artística) pode torná-lo aceitável e até agradável para nós. Do impuro, diz Aristóteles: “todos sentem prazer nas imitações. Uma prova disto é o que acontece na realidade: as coisas que para nos são aflitivas ao vê-las ao natural, agradam-nos quando as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as reproduções dos animais mais sórdidos e de cadáveres” (Poética, 1448b, p. 42, negrito m.tr.).32

O sórdido, o impuro, é algo que nos tira um pouco da nossa dignidade de sujeitos, da nossa ‘transcendência’, ao sujar-nos, ao tornar-nos mais matéria, mais imanência, e é por isso que a da impureza é categoria religiosa central (discrimina a diferença entre imanência e transcendência): o cadáver é impuro (em todas as religiões que não conhecem a ressurreição dos corpos), porque é corpo a que foi tirada toda a transcendência do ser humano, é ser humano que se tornou só e radicalmente objeto. Foram por longo tempo, e no seio de algumas tradições ainda são, consideradas como religiosamente impuras, funções biológicas em que o homem se manifesta sem possibilidade de disfarce como ‘animal’ (sexo, menstruações, defecação, e até o parto). Alguns animais, por sua vez, são catalogados como impuros, porque neles é ritualizada religiosamente a distância que é necessário manter entre o ser humano e o reino animal, apesar de, contra, todo o necessário intercâmbio que a sobrevivência do homem com esta esfera da vida exige.

No entanto, o impuro, repulsivo na experiência quotidiana, torna-se aceitável, até agradável, na imitação artística, explica Aristóteles, porque ela afirma a vitória do homem sobre esta ameaça: a capacidade humana de imitar (de fazer objeto de representação a coisa) é para nós a “prova” emocional de que somos sujeitos: não somos o cadáver, não somos o animal desprovido de logos, com a sua carga de impureza ameaçadora, mas agentes vivos e racionais.

É, igualmente, pelo facto de ameaçar a nossa auto representação como sujeitos, seres morais, racionais e livres, que nós achamos “repugnantes” as situações em que a contingência da condição terrena parece reduzir a ilusão a possibilidade de a moralidade se tornar regra da nossa vida como lei que tem eficácia neste mundo (tão eficaz quanto a lei da causalidade). São circunstâncias deste tipo, nitidamente antimorais (ao encarnar não o imoral ou amoral, mas tudo aquilo que desativa a integração da moralidade na realidade), os exemplos enunciados por Aristóteles como o antitrágico por excelência. Se o trágico é precisamente a celebração da dignidade do homem como sujeito moral apesar do fatum, da vontade dos deuses e da contingência do mundo, representar esta contingência como mais poderosa do que a nossa vontade, do que a nossa liberdade, destitui-nos a objetos nas suas mãos, tira-nos a dignidade de atores morais, transformando as nossas ações em ilusões, caricaturas de si mesmas.33

O antimoral é repulsivo e antitrágico porque ‘ridiculariza’ aquilo que de mais sacro temos: a nossa dignidade de seres livres. Torna cómico, ridículo, aquilo que nós vemos como sublime: “É evidente, em primeiro lugar, que se não devem representar os homens bons a passar da felicidade para a infelicidade, pois tal mudança suscita repulsa,34 mas não temor nem piedade; nem os maus a passar da infelicidade para a felicidade, porque uma tal situação é de todas a mais contrária ao trágico,35 visto não conter nenhum dos requisitos devidos, e não provocar benevolência, compaixão ou temor; nem tampouco os muitos perversos a resvalar da fortuna para a desgraça” (Ib., 1452b; p. 60).36

Antitrágica, repulsivamente ridícula, é por isso igualmente a não consumação da ação ética, porque é unicamente por meio dela que o sujeito afirma a própria liberdade dentro da realidade (eventualmente, frequentemente à custa da própria autodestruição) como lei que incide na contingência. A não consumação, o adiamento hamlético (terá Shakespeare escrito a sua tragédia sobre o príncipe da Dinamarca como teste ético-estético desta citação aristotélica?) é experiência repugnante em que o sublime se torna ridículo – ao tirar toda a credibilidade à pretensão humana à própria autonomia ética:37 “Destes casos, o pior é ponderar uma ação, estando plenamente ciente [da situação envolvida], e não a realizar: isto é repugnante38 e não é trágico, pois não se consuma o acto destruidor.”39 (Poética, 1453b, p. 65)

Se o repugnante religioso (o impuro) pode dar prazer intelectual na representação artística, o repugnante antimoral dá cabo da obra literária, porque destrói o “objetivo” da tragédia: proporcionar uma representação da ação humana como algo de elevado e unitário, um sentido em que o espetador reconhece a condição universal do homem, ‘purificando-se’ do próprio apego emocional à contingência da situação individual.

Ser confrontado com a própria representação como um objeto de forças éticas ou totalmente an-éticas exteriores e superiores, que expõem a insignificância cósmica do seu sentido de autonomia moral (porque o resultado da ação moral é exposto como uma cega variável do acaso, do capricho da contingência, ou porque a mesma ação descai a variável descartável de uma decisão arbitrária), é um trauma que o espetador quer evitar (repele-o). Por isso tem de ficar fora da representação poética.

A ‘função’ moral da arte e a crise do trágico perante a ideia da redenção

A teoria aristotélica da escrita trágica inverte genialmente a perspetiva platónica, que denunciava como fraqueza, estigma a sancionar e eliminar, o emocionalismo e o ficcionalismo das artes, a sua construção afetiva e imaginativa do sentido,40 resgatando como recurso, vetor racional de catarse (não cedência irracional aos sentimentos, mas sua sublimação), a sua constitutiva associação ao prazer41 e ao pathos, assim como a sua ambígua relação à verdade, sempre em risco de dissolução no jogo mito-poiético e lírico da ficção.42 Na sua potência concetual incomparável, no entanto, a reconstrução aristotélica tira a própria força de uma assunção trágica (a separação do humano e do divino, o agnosticismo da ética, o paradoxo da culpa como mais alta manifestação da dignidade humana), que mal se concilia com a apologética defesa da utilidade moral das artes com que os poetas sempre procuraram legitimar o próprio periclitante estatuto de insidiosos desfazedores da ordem perante o poder político e religioso (num gesto que encontra o seu exemplo mais representativo e influente na Arte Poética de Horácio). Na prática artística e na reflexão teórica sucessivas, o dispositivo estético da identificação é amplamente reformulado, em chave não aristotélica, como inflação sentimental da escrita, cuja coerência deve ser essencialmente estilística e não ética, como na Poética (em que o sentimento a despertar é essencialmente o da “cura” para consigo e para com os outros):

Não basta serem belos os poemas; têm de ser aprazíveis (dulcia) e assim conduzir a alma do ouvinte aonde quiserem. Como leva ao riso o rosto de quem ri, assim leva ao pranto o de quem chora; se queres ver-me chorar, tens de ser tu o primeiro a sentir aflição; só então, meu Télefo, ou Peleu, os teus infortúnios me afetarão; se declamares mal o teu papel, andarei a dormir ou desatarei a rir. Palavras tristes condizem com uma face abatida, as ameaçadoras com um semblante irado, com o brincalhão combinam-se as joviais, com um aspeto grave as sérias. A natureza molda-nos primeiramente por dentro para todas as mais diversas condições de fortuna; ela alegra-nos ou impele-nos à cólera, deita- -nos à terra, prostrados pelo peso da aflição; só depois é que exprime e interpreta os motos da alma por meio da linguagem. (Arte poética 99-111, m.tr.)43

A força emocional da escrita é agora “doçura”, que se sobrepõe à sua beleza como uma propriedade diferente (“Non satis est pulchra esse poemata; dulcia sunto”), configurando-se como camaleónica capacidade de espelhar toda a variedade das emoções humanas (ira, alegria, tristeza...), de sorrir com quem sorri e chorar com que chora (“Ut ridentibus arrident, ita flentibus adsunt humani voltus”), induzindo o espetador a fazer o mesmo (“si vis me flere”), num exercício enciclopédico de reprodução ‘credível’ dos afetos (“si vis me flere, dolendum est primum ipsi tibi; tunc tua me infortunia laedent, Telephe vel Peleu; male si mandata loqueris, aut dormitabo aut ridebo”). A consistência mimética, imitativa, da representação das emoções (“Tristia maestum voltum verba decent, iratum plena minarum, ludentem lasciva, severum seria dictu”) é o mérito estético que habilita a obra à transmissão eficaz de competências, modelos e valores éticos44 mutuados dos códigos sociais em que ela se baseia. A conversão do dispositivo aristotélico da identificação em mimetismo emocional está diretamente relacionada com a conversão da sua mensagem (a potência ética do seu sentido) em função, derivativa, posterior (a sua expressão linguística não é dimensão constitutiva do sentimento, mas segue-se a ele: formulá-lo funcionaliza o sentimento a um uso, não o determina: “Format enim natura prius non intus ad omnem/ fortunarum habitum; iuvat aut impellit ad iram, /aut ad humum maerore gravi deducit et angit; /post effert animi motus interprete língua”). O prazer poético pode ser eventualmente aproveitado como meio moral, mas já não é (como em Aristóteles) intrinsecamente moral.

Esta ideia, tão nitidamente formulada por Horácio, da utilidade moral da literatura (“Aut prodesse volunt aut delectare poetae/ aut simul et iucunda et idonea dicere vitae”), implica por isso necessariamente a subordinação do seu sentido a uma mensagem produzida, estabilizada, legitimada exteriormente à racionalidade da obra. Nesta perspetiva, são a religião, o poder político, a tradição jurídica e cultural, as estruturas sociais, os grandes acervos de normatividade ética que (crescentemente em conflito entre eles, à medida do passar dos séculos e da sua especialização sistémica) concorrem para estabelecer o que é justo e bom, numa desqualificação das artes a mero suporte ornamental e emocional da sua transmissão. Reduzidas a entretenimento pedagogicamente aproveitável, canal emocional de reprodução das normas estabelecidas pelas convenções sociais, as artes surgem despojadas da racionalidade ética peculiar inscrita na sua semântica textual, em que a única evidência da normatividade expressa (a mensagem) é, autorreflexivamente, ela ser o sentido da obra:

princípio e fonte da arte de escrever é a sabedoria. Os escritos socráticos poderão fornecer-te a matéria prima; as palavras não tardarão em seguir a coisa. Quem aprendeu os seus deveres para com a pátria e para com os amigos, que amor é devido ao pai, ao irmão, ao hóspede, qual é a obrigação de um senador, qual a de um juiz, qual o papel do general em guerra, esse consegue dar com perícia o carácter que lhe convém a cada personagem (Arte Poética, 309-316, m.tr.)45

O peso plurissecular do magistério horaciano, com a sua degradação da identificação a mimetismo emocional e da mensagem ética da obra à função pedagógica de divulgação de códigos morais preexistentes, é um índice evidente da dificuldade estrutural da legitimação social da arte, que só se complica com o advento do cristianismo e a sua inicial desconfiança em relação à autonomia e à justificação da linguagem artística fora de uma apologética inscrição na normatividade da crença religiosa.

A obra de arte cristã que não aceita implodir em mero veiculo pedagógico de transmissão de conteúdos morais de cuja evidência não pode ser a fonte, mas que, à luz do monoteísmo ético abraçado (cf. Assmann 2003), não pode questionar, autocompreende-se então como exploração do relacionamento existencial com a verdade recebida: a mensagem da obra torna-se a luta do homem para se apropriar de, acreditar em, viver consistentemente com, a própria fé, num paradigma de identificação do homem com Jesus Cristo. A imitatio Christi (nas suas dolorosas impossibilidades e nas suas comuns dificuldades, nas suas dinâmicas e nos seus alcances) é o grande eixo ético da literatura cristã não degradada a apologético manual de instruções.

O mecanismo literário da identificação, subtraído à vulgarização didática do omnívoro sentimentalismo horaciano, ao jogo mimético da alternância entre lágrimas e sorrisos, ganha por isso novo valor nos grandes autores antipedagógicos da cristandade. O dispositivo estético é aqui o de um “véu de ignorância” ético: nenhum leitor sabe o que é bem e mal antes de ler a obra. A suspensão da descrença reivindicada pela ficção tem correspondência na descrença exigida em relação às convicções que o leitor traz consigo, e que deve deixar à porta da obra, para nela reconstruir a própria crença, na base da evidência proporcionada pelo sentido do texto. Numa espécie de experimentum mentis, o escritor, e o leitor com ele, entra na obra como personagem pecadora e perdida (despida de uma visão positiva do bem, e ou de uma vontade capaz de o acolher), para sair dela crente, redimido, transformado, pela evidência que a obra em si constitui da possibilidade da identificação com o Filho do homem, da possibilidade da imitatio Christi.

Este dispositivo de identificação inerente à imitatio Christi encontra a sua exposição mais completa e artisticamente poderosa na Divina Comédia dantesca, o maior poema jamais escrito por um autor cristão: o protagonista da obra é um ser sem rumo no labirinto da própria inteligência e da vida, cuja escrita é registo e caminho da reconstrução da própria noção do bem e da verdade, da própria fé. Toda a verdade teológica e filosófica que conflui no poema não lhe dá evidência, mas ganha evidência nele e por ele: torna-se convicção existencial construída nos degraus dos versos como degraus de uma experiência espiritual no poema vivida e não apenas relatada. O que é pedido ao leitor é algo mais do que o reconhecimento da universalidade da condição humana, é antes o enveredar-se por um caminho de transformação desta condição, por um caminho de redenção. A sublimação cristã, que em Dante encontra o seu poeta supremo, não consiste mais, aristotelicamente, na afirmação e no reconhecimento da própria liberdade dentro da queda, da infelicidade heróica inerente à condição humana, mas na aceitação da possibilidade que esta liberdade possa levar ao resgate da queda, que o sofrimento e a culpa possam ser reparados: o poeta cristão é chamado a passar (a converter-se) da intuição, trágica, da universalidade da condição humana, à fé na possibilidade histórica do resgate desta condição universal, na possibilidade da redenção.

Para aceder a esta fé, a esta esperança, é, no entanto, necessário que destinatário ganhe uma noção inequivocável da culpa como pecado, do estigma do mal que se aninha em todo o homem como “inferioridade”, e queira mudar. Para aceder à redenção é preciso reconhecer a vileza, a “inferioridade” retratada no registo cómico da comédia, como condição intrínseca ao ser humano, de que só somos redimidos pela entrega ao perdão, à misericórdia divina. Por outras palavras, é preciso “desmistificar” a grandeza humana para que se dê a sua redenção. O estranhamento que desperta o reconhecimento da inferioridade própria e dos outros torna-se assim um meio essencial para alcançar aquela viragem de atitude, que é precondição indispensável da redenção da própria condição trágica. O poema dantesco não é comedia só porque acaba bem, como explicado na celebre Epístola a Cangrande Della Scala (cujo autor é, alegadamente, o mesmo do poema).46 É comédia, porque fala do homem, de todo o homem, como um ser tornado vil e inferior pela própria culpa, um ser por cuja dejeção não se pode ter alguma empatia. Não há culpa inocente, no Inferno dantesco, como há na tragédia (formidável mecanismo empático-identificativo para ‘inocentizar’ a culpa do homem: perante Édipo, Orestes, Hamlet e Otelo, o espetador experimenta temor e compaixão, e nesta identificação torna-se incapaz de julgar como culpa a ação do ‘herói’ que é todo o homem, a começar de si mesmo). Na eversão definitiva da rigidez da separação dos géneros (cf. Auerbach 1949, 22ss. 183ss.), Dante mistura (de forma mais massiva e revolucionária no canto dos danados, no Inferno) os diferentes dispositivos estéticos identificados por Aristóteles, passando sem solução de continuidade da identificação positiva (temor por si e compaixão pelos outros) e negativa (a repugnância) à não identificação cómica (o grotesco, o deforme).47 Esta pluralidade estilística, estética, é essencialmente uma visão ética: o olhar sobre o homem é intrinsecamente polifónico, porque já não há categorias de seres humanos (os inferiores, os superiores, os como nós, segundo a reconfortante taxonomia aristotélica), mas seres humanos tecidos inextricavelmente de bem e de mal, simultaneamente dignos e repelentes, inocentes e culpados, vis e heroicos. E só a ativação deste olhar polifónico, que junta o cómico e o trágico ao mesmo tempo, a identificação e o estranhamento, a empatia e a distanciação, permite formular o reconhecimento, a peripécia, que leva à redenção. Porque aquilo que o poeta cristão procura para si e para o próprio leitor não é catarse, mas redenção; a purificação que quer alcançar não é sublimação, mas salvação.

Na Divina Comédia, uma épica em que a narrativa se constrói como um ‘quadro metafísico’ e não como um enredo, e a ação como um ‘quadro espiritual’ em que a peripécia, a reviravolta, é a da conversão e da redenção que ela torna possível, a dialética complexa, extremamente refinada, entre identificação, distância e repugnância (entre trágico e cómico, entre sublime e grotesco) é um veículo subtil de discernimento do que é bem e mal, além de todas as mecânicas e estereotipadas definições. Perante pecadores em que o mal se tornou a identidade exclusiva, é impossível qualquer forma de identificação positiva, apenas repugnância (identificação negativa),48 enquanto a identificação positiva é possível com as almas em que o pecado não consuma por inteiro a humanidade, mas se configura num erro tragicamente seletivo. A grandeza espiritual de alguns gigantes do Inferno evidencia a ferida infligida pelo mal à dignidade humana como ‘cegueira’. A tragédia moral de personagens trágicos como Farinata, Ulisses, Ugolino, “magnânimos” no sofrimento e na dignidade com que o assumem, é precisamente que não sabem sair do registo trágico: estão pregados para toda a eternidade à própria imagem, falsa porque unilateral, de heróis, não conseguindo reconhecer-se como personagens cómicas (seres inferiores) no pecado que os perde. Seríssimos na própria dor, são incapazes de estranhamento, do olhar crítico do cómico, imprescindível recurso cognitivo da redenção.

A crise da ideia de redenção e a emergência dos novos paradigmas éticos: a integridade pessoal entre sinceridade e autenticidade49

Nesta dialética dantesca entre empatia trágica, comicidade, grotesco e repugnância, abre-se uma mudança radical do mecanismo de identificação que emerge na grande literatura do sec. XVI, encontrando as suas vozes maiores em Cervantes e Shakespeare, cantores da conversão do ser humano em indivíduo e da desintegração da consciência que disto resulta. Na crise civilizacional do monopólio católico do mundo ocidental (quebrado pela fragmentação confessional produzida pela Reforma; pela invalidação epistemológica operada pela ciência moderna da pretensão religiosa de detenção exclusiva da verdade; pelas revoluções sociais e geopolíticas produzidas pela descoberta de novos mundos e pelo avanço da técnica), desmorona a unidade entre expressão estética, moral e religiosa subsistente até então e abre-se o espaço de escolha, de incerteza (diria Kundera),50 em que o ser humano se reconhece indivíduo: titular de uma identidade singular, não equivalente àquela de nenhum outro, cujo cariz universal não é formulável em termos positivos, mas unicamente negativos.51

A grande utopia dantesca, pela qual o homem que entra ateu e pecador na obra consegue sair dela crente e redimido, fracassa perante a nova consciência do homem moderno,52 que pode ler a Divina Comédia e reconhecer nela sublimidade trágica, riqueza cómica e beleza poética e espiritual, mas sem sair dela nem crente nem moralmente melhor. Na progressiva dissolução do paradigma cristão como modelo social civilizacional, volta o trágico, volta o agnosticismo aristotélico (de que Shakespeare é a suma encarnação na modernidade), desta vez como poderosa força de questionamento dos códigos éticos dominantes, percebidos como mera expressão de estruturas sociais sempre menos consensuais. Na sua revolta contra o automatismo de tradições funcionais à manutenção de relações de poder em crise (veiculada pela pertença confessional nas guerras de religião que funestam o século XVII), a evidência principal que o herói tem para a própria revolta é ele mesmo: é a sua identidade individual, a sua incompatibilidade com o conformismo social, o fundamento que lhe dá direito a questionar todas as normatividades tradicionais, numa interrogação que se torna aventura estética: a obra de arte afirmando-se como lugar privilegiado de desconstrução moral.

Don Quixote, Hamlet, Romeu e Julieta,..., são encarnação, cómica e trágica, desta revolta do indivíduo contra o próprio estatuto social, não como aspiração à emancipação de classe, rejeição da injustiça da desigualdade (esta dimensão, eminentemente política, abrirá caminho na literatura só a partir do séc. XVIII), mas como não aceitação da própria vida como destino social, a reivindicação dela como escolha individual. Nenhum destes heróis da primeira modernidade está em paz com a própria condição social, não porque ponham em questão o privilégio de que são titulares, mas porque não se conformam à normatividade associada ao próprio estatuto. A prova ética que têm para legitimar moralmente esta recusa é a “sinceridade” com que a assumem, uma coerência consigo perante os outros que consome na morte a autenticação suprema da consistência ética da própria revindicação de autonomia e que desperta a identificação incondicional do leitor, numa mistura sublimemente catártica de temor e compaixão.

Mas é precisamente na duplicidade constitutiva de um herói como Don Quixote, de quem não se pode decidir se é trágico ou cómico (assim como em Hamlet está inscrito o antitrágico por excelência da demora: o trágico torna-se nele paródia de si mesmo), que se delineia uma caraterística nova do cariz ético do agnosticismo religioso da modernidade: a sua resistência a encarar-se como trágico. Uma vez conhecida, a noção de redenção (inconcebível para o homem da antiguidade) é uma fonte de esperança de que é difícil abdicar. A esperança é um sentimento residual na cultura clássica,53 cuja centralidade a tradição judaico-cristã inscreve indelevelmente na história da humanidade e que nem a alienação desta tradição pode extirpar. A noção de redenção sobrevive à secularização, tornando-se recurso do agnosticismo religioso: o trágico da modernidade é por isso instável e intermitente. A ideia de que afinal o homem é senhor de si mesmo, neste mundo sem Deus, torna-se o vetor de uma esperança histórica que resgata as derrotas individuais no caminho de progresso da humanidade. Don Quixote indica o caminho da autoconsciência nobre da secularização da esperança: o homem deve ser um salvador, e se ele ocasionalmente fracassa, o seu testemunho constitui um marco para quem se segue: apesar de perder todo o horizonte escatológico, a história já não pode ser pensada como abdicação do cumprimento das suas próprias promessas.

A literatura da modernidade triunfante, a modernidade que se autodefine como Luzes, é cómica, porque o prazer intelectual da imitação (do triunfo do saber humano) se dissocia sistematicamente do pathos, do sofrimento, na experiência eufórica do facto de que o crescente poder do indivíduo de ser ele mesmo é fator de transformação do mundo, de que o saber e querer humano são poder de salvação individual e coletiva. A fé na possibilidade da redenção da aflição e da culpa inerentes à condição humana, é, no entanto, um bem frágil e escasso. É já no seio da celebração cómica desta sinceridade triunfante (virtude duma coerência consigo que é fator de emancipação)54 que volta a emergir a dúvida no seu poder de resgate: ao celebrar a libertação dos poderes divinos, naturais e sociais que se dá na autonomia do indivíduo (titular universal da lei teorética e moral, do saber científico e da justiça, na celebração kantiana), o homem vai tomando rapidamente consciência da própria inextricável inserção cultural na sociedade e do facto de que a dependência não é apenas uma questão de vontade, de liberdade, mas de racionalidade: é, mais profundamente, uma questão de ontologia social.

O homem descobre-se assim inautêntico ao celebrar a própria sinceridade (em Rousseau), ou sincero ao celebrar a própria inautenticidade (em Diderot, exemplarmente em Le neveu de Rameau).55

A sinceridade, trágica ou cómica, não garante a coerência consigo que pretende expor, porque mais profundamente de toda a intenção, de todo o esforço de consistência, o indivíduo é essencialmente inautêntico: expressão de uma racionalidade (social, cultural, linguística) que o expropria da própria verdade pessoal. A cultura é o reino da alienação do espírito, sintetizará Hegel na Fenomenologia do Espírito, o espaço em que a autoconsciência individual se manifesta como inelutavelmente dividida.56

A identificação com a sinceridade do herói, desmistificada como ilusão subjectiva que encobre a sua inautenticidade, torna-se impossível. A mensagem moral da obra de arte já não é expor a sinceridade do indivíduo como fator de (trágica) oposição ao - ou de (cómica) redenção do - destino inscrito na coerção da identidade social, mas de manifestar o estado geral de inautenticidade socialmente gerada e afirmar contraexemplos de autenticidade, como modelos de redenção. A potência ética da arte torna-se programaticamente a da grande desorganizadora, eversora da racionalidade social (Nietzsche), potência que salva por afundar a ilusão de autonomia do sujeito das forças da sociedade e da cultura e abrir as portas do seu derrubamento.

A expulsão do poeta da polis já não é estigma, mas sinal de eleição. O poeta torna-se o “foragido” por vocação e não por desgraça, não um excluído, mas um autoexilado, alguém que está de saída: um crítico da sociedade que se autoestiliza a herói da própria criação, num colapso ético-estético entre autor e personagem. A identificação eticamente transformativa (positivamente redentora) por parte do destinatário já não se aplica à ação e às personagens da obra, mas antes ao artista, como suprema e extrema encarnação da possibilidade da autenticidade numa sociedade inexoravelmente alienante.

A elevação da opção artística como absoluta via de redenção (da reconquista da autenticidade) é, contudo, profundamente problemática, na sua mistura de elitismo insarável, autodestrutivo solipsismo (a vida artística é prerrogativa de unhappy few) e destrutiva anulação da diferença entre bem e mal. A oscilação romântica entre angelismo e satanismo (entre Keats e Byron) é um sinal maior da dificuldade inerente a este caminho, que eleva a amoralidade da arte à única forma possível de redenção do indivíduo. Ninguém formula as consequências de uma assunção radical da escolha estética como via da autenticidade (a vida como obra de arte) mais claramente do que Nietzsche: nesta perspetiva, a redenção é tragédia (a necessária autodestruição do indivíduo como irremediavelmente inautêntico em prol da obra de arte), despida de toda a normatividade ética (‘salvar-se’, conquistar a autenticidade, é colocar- -se além do bem e do mal).

O paradoxo vertiginoso desta opção (fazer da arte uma forma de vida alternativa, substitutiva da normatividade ética) não é resolvido pela descontextualização pós-romântica deste paradigma existencial, do poeta à personagem, com a criação de uma série de anti-heróis, ‘autênticos’ maus (ou mais precisamente seres totalmente amorais) que afirmam a autenticidade do próprio eu como força fora do controlo social e da sua racionalidade, e cujo papel já não é o de simples (eventualmente fascinantes, mas sempre subordinados) antagonistas (como Iago, como o Lucífero de Milton), mas de protagonistas absolutos, elevados a pólo central de identificação. O sincero, o virtuoso, o depositário da normatividade social, agora nem é antagonista, mas simples subordinado:57 Dorian Gray, Mister Hyde, Kurtz, e, antes deles, o sobrinho de Rameau, assim como o antecessor deles todos, Don Giovanni, esmagam com a própria plenitude de ser os seus decentes interlocutores, pálidos figurantes perante a sua abjeta grandeza e a sua sórdida intensidade.58

A identificação promovida pelo paradigma estético (romântico e pós-romântico) da autenticidade já não visa a catarse, como na tragédia; nem a edificação, como na comédia moralmente pedagógica; nem a redenção como na grande literatura da época clássica cristã; nem a emancipação social como na literatura das Luzes, mas uma libertação que se torna eversão (a própria independência de indivíduo de todo o poder da sociedade) e não recorre nem ao temor nem à compaixão, mas à emulação, perante a grandeza de quem se opõe à sociedade.59 Se a imitatio Christi prometia a salvação ao leitor cristão, agora a imitação do artista (ou do anti-herói que faz da própria vida uma obra de arte, destacando na imoralidade a distinção maior da própria capacidade de afirmar o próprio direito de autodeterminação) é o cerne da identificação redentora suscitada pela obra. Sapere aude, diziam os iluministas. O anti-herói diz: Te ipsum aude, não tendo medo das consequências.

As consequências desta estratégia esteticista de resgate da autenticidade do eu através do derrubamento dos códigos sociais, a começar pelos morais, são efetivamente extremas, tanto no plano comunitário (na sua dissolução da legitimidade ética) como individual (no seu pendor autodestrutivo, que tem nas biografias dos artistas e filósofos maudits uma ‘legenda negra’ de suntuosa eloquência), e a emulação requerida pelo anti-herói e pelo artista maudit como única forma possível de identificação, de empatia com ele, paralisa, de facto, o destinatário, que descobre não poder elevar-se além do papel, robustamente disfórico, de subordinado, se quiser evitar a sorte inexoravelmente destruidora de quem abraça a autenticidade superhomística do criminoso e do artista absoluto. Afinal, a receção estética do salto esteticista da emancipação à eversão da racionalidade social leva, paradoxalmente, à desativação da identificação: o leitor pós-romântico tende a ler ‘comicamente’, neutralizando o efeito empático da emulação a favor da receção puramente intelectual, imitativa, antes de mais porque se adensam as dúvidas sobre a eficácia desta estratégia, sobre a sua capacidade de garantir qualquer coisa com um ipsum autêntico.

A despedida da identificação: o paradigma do estranhamento

Ao reconhecer que a inautenticidade, a perda de identidade, é o problema maior do homem contemporâneo, a arte do séc. XX denuncia a inanidade da tentativa romântica e simbolista da reconstrução artística da autenticidade do indivíduo, e despede-se do vetor catártico, edificante ou emulativo da identificação, para abraçar o paradigma do estranhamento.60 Deste novo ponto de vista, a arte não pode restituir ao indivíduo uma autenticidade, socialmente ou metafisicamente, impossível, mas apenas torná-lo consciente desta condição, proporcionar-lhe a possibilidade de reconhecer a própria dejeção, confrontá-lo com a verdade do próprio ser inautêntico. Para o fazer, deve suspender o dispositivo emocional da identificação com a personagem e com a ação, com o outro, e ativar o mecanismo oposto do estranhamento, como vetor privilegiado de perceção da alienação universal.

Se o homem do séc. XVI, através da própria sinceridade, tinha descoberto ser indivíduo, e o do fim do séc. XVIII, através da própria reivindicação de autenticidade, ser indivíduo alienado pela sociedade, o homem do começo do séc. XX, ao lidar com os “paradoxos terminais” da civilização ocidental,61 depara-se com uma alienação ainda mais radical e aterradora: a do indivíduo como ‘não sujeito’, objeto manipulado não apenas pela sociedade, mas pela mesma racionalidade (pelo saber sistematizado como instrumento de domínio), numa condição de dependência mais profunda de toda a consciência, e que por isso nenhum esforço da vontade, heróico ou anti-heróico que seja, pode resgatar. A necessária implementação da razão como mecanismo societário (burocrático, político, económico, técnico e científico)62, imposta pela lei da sobrevivência, reduz o homem a marioneta de si mesmo, do próprio saber e do próprio poder, objetivados à força coletiva que reduz o indivíduo a ocorrência.

O colapso do indivíduo, destituído a não sujeito, induz diretamente o abandono do dispositivo ético-estético da identificação, rejeitada como instrumento estético de autoengano, e a adoção de técnicas da sua explícita desativação, que põem a nu o seu cariz ideológico. Exprimir o facto de que a identificação não é mais possível, torna-se conteúdo essencial da escrita literária marcada pela poética do estranhamento.

Muito além da sua formulação programática no vanguardismo russo e no seu relance brechtiano, a poética do estranhamento permeia todo o modernismo vanguardista novecentista, cujo experimentalismo linguístico pode ser reconhecido como uma técnica de desativação e denúncia da identificação, numa intenção que se configura com potência e clareza exemplares na viragem joyciana dos Dubliners e do Portrait a Ulysses e Finnegan’s Wake. Nesta sua formulação auroral, ligada à ambição da realização da ‘obra mundo’, a poética do estranhamento continua, contudo, a encarnar uma esperança redentiva, ao substituir o mundo real pela obra, como lugar de autenticidade possível (em linha com a ambição de escritores oitocentistas como Flaubert). O leitor já não se identifica com o exilado, o artista danado, contramodelo social e existencial de autenticidade (como em Baudelaire), mas o trabalho árduo e totalizador para ‘entrar’ na obra, a dificuldade hermenêutica que impossibilita à partida toda a espontânea identificação emocional, desloca o intérprete da ‘polis’, da sua conformidade aos códigos culturais da tribo de pertença, para o recolocar numa articulação expressiva da sua humanidade que se não o reconstrói como sujeito, restitui-lhe contudo alguns traços, alguns poderes, da subjetividade na sua faculdade de criatividade e autodeterminação.63

Por paradoxal que possa parecer, a poética do estranhamento do vanguardismo modernista continua a ser romanticamente confiante no poder da arte de transformar o destinatário (restituir-lhe uma condição de autenticidade) e converge, nisto, com o antiformalismo brechtiano, que fornece a mais completa e consciente doutrina novecentista do estranhamento ao apelar à construção de uma dramaturgia antiaristotélica, em que a despedida definitiva do princípio da identificação é reconhecida como a única possibilidade de salvar o papel moral da arte na modernidade. O teatro didático de Brecht conjuga assim a função edificante tradicionalmente exigida da literatura na aspiração romântica à reconstrução da autenticidade individual e coletiva com a emancipação do sujeito e da justiça das relações sociais, ao postular que a alienação do ser humano é devida à ordem social capitalista e que o derrubamento revolucionário deste estado de coisas pode restituir o homem à própria autenticidade no plano público e privado: a Verfremdung (estranhamento)64 torna-se meio para combater, e derrotar, a Entfremdung (alienação).65

Ao activar mecanismos de reflexão ‘estranhantes’ que despertam a consciência sobre os condicionamentos sociais dos padrões éticos e culturais partilhados, a arte, em Brecht, torna-se agente fundamental da estratégia revolucionária de resgate individual e coletivo da alienação capitalista. Esta função já não é exercida ao contrapor individualisticamente o homem à sociedade, mas ao desmistificar a ‘falsa consciência’ induzida em todos os indivíduos pelas relações de poder que nela dominam. Na “queda da quarta parede”, que separa a cena da plateia, pelo que o que se passa no palco é ‘recitado’ como se não houvesse público, como se fosse realidade e não ilusão ficcional,66 a identificação é desativada,6767 e o espetador toma consciência da natureza ideológica da própria identidade (de oprimido ou de opressor), aprende a desconstrui-la e a virar-se para padrões éticos de solidariedade revolucionária: o modelo de libertação perseguida pelo herói moderno num solipsismo imoral é abandonado para converter-se na luta pela igualdade e fraternidade proletária (dos oprimidos contra os exploradores capitalistas):68

As minhas palavras iniciais, ao tratar desta questão, desde logo revelam que a técnica que causa o efeito de distanciamento é diametralmente oposta à que visa a criação da empatia. A técnica de distanciamento impede o ator de produzir o efeito da empatia. (Brecht 1957, tr. port. p.80)

O mérito principal da operação brechtiana é formular com grande clareza didática a novidade estética das diferentes, convergentes, instâncias de estranhamento emergentes na literatura de Novecentos, evidenciando como esta desconstrução artística do mecanismo ético-estético da identificação pode ter outras modalidades de implementação fora do experimentalismo linguístico e formal do modernismo vanguardista e que um dos seus recursos principais é, como enunciado uma vez por todas por Aristóteles e como amplamente praticado pelo antiaristotélico teatro épico do grande escritor alemão, o registo cómico.

O exemplo maior de declinação novecentista da poética do estranhamento fora do experimentalismo formal, ao abrigo de um recurso estrutural ao registo do grotesco, do descarte cómico do belo em prol do deforme e repugnante, encontra-se, evidentemente, em Kafka. Neste autor, uma escrita cristalinamente clássica abriga uma máquina infernal de ‘desidentificação’, ao convocar o dispositivo cómico da deformidade para falar de situações de angústia extrema e ao colocar no centro do enredo as categorias repulsivas, antitrágicas, do impuro (“μιαρὸν” e “ἀτιμοτάτων”) e da inação.

É o cómico que desativa sistematicamente o pathos – a compaixão do leitor – em relatos de sofrimento-limite como a Colónia penal e o Processo, em que o Édipo novecentista, o inocente acusado justamente, porque é a acusação que o constitui como culpado, não é herói algum, mas simplesmente um homem ridículo. O leitor tem um arrepio, fica ‘gelado’, mas não sente nem compaixão nem temor ao ler a história: a deformidade, a deficiência - carência de unidade e ordem: caótico incoativo –, dos protagonistas (o seu ser corpo sem rosto na colónia penal; criança em corpo de adulto no Veredicto; homem sem qualidades, despido de unidade, no Processo), bloqueiam a identificação emocional, a capacidade de se reconhecer iguais a ele e por isso de sofrer com ele e de temer por si.

É o repugnante (ético e estético) que emerge sistematicamente como espinha dorsal da narração: a inação (a consciente não consumação da ação), com a sua carga dissolutiva de atitude antitrágica porque antimoral, é o estado narrativo fundamental (o enredo dissolvese em estado: exemplarmente no Castelo e no Processo). Constante, por outro lado, é o emergir do imundo, como na Metamorfose, em que o protagonista se converte em, ou mais precisamente se desvenda como barata, animal nojento e impuro por definição. Quem pode, quem quer identificar-se com uma barata?69 O estranhamento não põe em cena um anti-herói, mas a constatação ascética que não há herói.70 No entanto, precisamente na repulsão profunda que o não-herói suscita71 ao manifestar a própria não-amabilidade72 no leitor-espetador (a sua dejeção), dá-se a revelação de que afinal ele é precisamente aquilo que somos: ao não se identificar com ele, ao não ‘querer’ identificar-se com ele, o leitor identifica-se a si mesmo, aprende a própria identidade com ele, num reconhecimento que não leva a nenhuma catarse, a nenhuma outra aprendizagem ética que não seja a da aceitação dolorosa do destino não heróico, antes grotesco, da própria impotência radical.

A fronteira entre a humanidade e o animal é frequentemente anulada em Kafka (alter ego do artista são animais como ratos cantores ou toupeiras construtoras de labirínticas tocas de isolação), porque a impossibilidade do indivíduo se reconhecer como sujeito o desumaniza, desencadeando a sua regressão ao reino animal. Em Kafka, a crise do humanismo traduz-se numa deflação irónica do papel da arte, que não se atribui algum poder redentivo, tendo como próprio ofício unicamente ser registo da verdade, na sua grotesca, “feia e vil”, repugnância. Impotente e destituído como os seus personagens, o poeta é um rato, como Josefina, ou um jejuador: aquele que por definição faz da passividade total a própria virtude. Na sua abjeção radical, a existência não pode ser contemplada como tragédia, ferida da dignidade ética do ser humano, mas como catástrofe ridícula, ruir incessante de alguém que não pode cair porque a inferioridade (à própria noção de si mesmo como sujeito) é a sua condição matricial.

É o conjunto deste instrumentário de escrita, anti-pathicamente cómica, antimoralmente antitrágica, dada ao deforme e ao repugnante como lugares privilegiados de revelação da condição humana, na desativação de toda a empatia como consequência inevitável da perda de subjetividade do indivíduo, que é reproposto no único autêntico herdeiro literário de Kafka, Samuel Beckett. O seu teatro do absurdo retoma o programa brechtiano de estranhamento para liquidar toda a sua pletora didática numa contemplação comicamente a-páthica da condição humana.73

No teatro, como na narrativa de Beckett, a alienação (burocrática e técnica) da condição humana, a destituição da sua subjetividade, é tão radical que toda a identificação com o herói da história é excluída à partida. Não há ‘sujeito’ e por isso não há nem empatia nem moral: normas e gramáticas simbólicas não ‘pegam’ no indivíduo-massa, que pode identificar-se unicamente como o não isto e aquilo, como o marginal, aquele que não entra nos padrões sociais de classificação, não por ser alguém de ‘excecional’ (graças à própria arte), mas porque não ser ninguém é a ‘normalidade’. Ser alienado, privo de identidade, e sem esperança de a recuperar, é o que acontece a todos na sociedade de massa, feita de indivíduos estatisticamente indistinguíveis e por isso plenamente substituíveis. A alienação de massa já não é tragédia, mas comédia:74 a estatística suplanta a épica, a economia a narrativa, o anúncio a poesia; a amostra toma o lugar da identidade. Os personagens de Beckett são cómicos e a sua radical falta de moralidade não é proactivamente imoral (nietzschianamente superhomística), mas sóbria, passivamente ‘inframoral’: registo da dissolução de toda a normatividade, que incide na possibilidade de autodeterminação do sujeito. A situação com que lida a geração do niilismo pós-nietzschiano assenta no facto de que quando os códigos sociais de produção de sentido e valor rebentam, o que fica não é o super-homem (que alegadamente não precisa de mediações simbólicas e éticas, porque começo e fim de si mesmo), mas o infra- -homem, incapaz de se articular como sujeito, porque esta faculdade pode constituir-se unicamente na base da funcionalidade de mecanismos intersubjetivamente predispostos como a linguagem, as tradições culturais, axiológicas e simbólicas. Sem linguagem, sem código interpessoal não há palavra: sozinho, o ser humano é afásico diz Wittgenstein, o irmão especulativo dos poetas do absurdo, dos cantores cómicos do grotesco da derrota.75

O homem a quem é tirada a pertença social e comunitária perde tudo, perde si mesmo, e, com efeito, ao homem de Beckett foi tirado tudo: é, sintomaticamente, um sem abrigo, um hóspede de instituições de acolhimento, ou um intruso em casa de outros. É alguém que não possui nada: não tem capital, nem trabalho, nem família, nem crença. Antes de mais não possui uma casa: não está em casa na terra, a sua condição é literalmente de unheimlich: desfamiliarizado, descasado. A única linguagem que o pode exprimir é portanto a do estranhamento, da desfamiliarização (ostraneneie), ‘des-casação’. Em Beckett, como em Kafka, a arte não pode fazer mais nada do que expor esta verdade: tirar-nos todas as ilusões de ter algo (de ter códigos para nos conjugar como sujeitos), tornar-nos conscientemente os sem-abrigo que ignoramos ser. No beckettiano teatro do absurdo, o dispositivo de estranhamento que implementa a função desorganizadora76 da arte, o seu efeito de desfamiliarizar,77 não é utilizado para veicular uma mensagem ética alternativa à do capitalismo dominante como em Brecht (ou para criar uma obra-mundo alternativa à realidade social, cuja apropriação restitui uma potência de subjetividade), mas para detetar o facto que já não pode haver mensagem, porque já não há códigos morais a defender ou a reinventar, nem contracódigos estéticos capazes de resgatar da destituição. A arte não se reconhece mais como “didática” ou demiúrgica, mas como puramente testemunhal. Às normatividades éticas obsoletas já não se substitui nem uma nova ética (eventualmente revolucionária), nem indivíduos inflacionados a híper-sujeito (fantasmas sombrios do super-homem nietzschiano), nem a produção vanguardista com que a arte pretende instituir uma alternativa de sentido à sociedade,78 mas a visão sobriamente deflacionada de um ser humano pequeno e ridículo, vulnerável e impotente, deficiente e até repelente, que nada sabe empreender, nada pode se não aguardar, mas (ainda mais coerentemente do que em Kafka) não desiste de si, não desiste do desejo da salvação. Neste cenário desolado e desolador, emerge, com efeito, um novo paradigma teológico: o relance de uma ideia, irredutivelmente humana apesar de humanamente indisponível, de redenção.

No cume novecentista da crise da ética humanista, racionalista, autossuficiente, abalada pela exposição da ambivalência ética subjetiva e objetiva do Eu dividido e inautêntico, alienado, que interioriza inconscientemente a normatividade social, tornando-se marioneta dela e anónimo indivíduo-massa, objeto do saber desvirtuado a poder (como técnica e burocracia), o homem reconhece-se contudo incapaz de viver sem ética e sem esperança. O homem não pode deixar de esperar o bem que não pode alcançar (En attendant Godot), o bem de ser um eu, um sujeito, alguém e não apenas ninguém (alguém a quem é destinada a mensagem do imperador). E esta sua não resignação, esta espera obstinada, é atestação fundamental desta não conformação com a ‘reificação’, a atestação de um resto de subjetividade (que se manifesta no desejo, não de posse, não de domínio, mas daquele que não é dado) que não se deixa apagar. O homem inautêntico, não resignado, redescobre o valor ético da sinceridade como testemunha de uma ‘esperança desesperada’, porque entregue a uma confiança sem fé, esperança naquilo em que já não se sabe acreditar.

É o paradoxo teológico de um ateísmo racional que não pode prescindir moralmente do mistério que desconstrói, porque se a deprivação do bem de ser um eu é o resultado da própria ação, da racionalidade humana (da conversão do saber em poder na sociedade moderna), a esperança no resgate deste bem não pode, com efeito, residir no homem, mas em algo que está fora dele, uma exterioridade que não é nem disponível à ação humana, nem por ela conhecível (porque o saber se torna automaticamente destruição, poder). Só como mistério, como transcendência, esta exterioridade do bem pode apresentar-se como esperança, como alternativa ao mal que o homem é a si mesmo.

Abre-se assim a saudade da Graça, como saudade de uma salvação que transcende o ser humano, e que não ocorre na história, não se torna narrativa (não se desenvolve em peripécia, fica estado, sem enredo e reconhecimento), mas manifesta-se como condição metafísica normativamente relevante: o sem-abrigo beckettiano, como o imputado kafkiano, no seu estranhamento da Lei, não está além do bem e do mal. Não é o super-homem superior à moral (que encontra na imoralidade a autenticidade), nem o artista – pós-moral - que cria na obra de arte uma alternativa à inautenticidade da moral social. No seu processo à Lei (humana e divina), à pretensão normativa da moral sobre a existência humana, o sem abrigo beckettiano e o imputado kafkiano, na sua cómica impotência, na sua repugnante, antitrágica inação, atestam que aquilo de que o homem precisa e está à espera não é uma nova norma, mas uma carta de libertação. Por absurda que seja, porque completamente incompatível com a lógica que governa o inferno terreno, esta espera vincula o indivíduo ao bem de que ele é incapaz, a que ele fica fiel no desejo e na falta aberta pela sua indisponibilidade: o bem, não mais reconhecível como norma, habita o desejo do homem como Graça, eventualmente impossível, mas no entanto sempre aguardada, abrindo- -o a um relacionamento inter-humano marcado pela não violência e a amizade.79 A esperança desesperada do pessimismo radical do inautêntico confessadamente irredimível por si mesmo, por isso, não é cínica: na confissão de ser autor da inautenticidade de que é vítima, o homem reencontra o valor ético da sinceridade,80 da solidariedade dos derrotados, e da não resignação, a obstinada não desistência da ideia de uma redenção entregue a uma alteridade tão desconhecida e inalcançável que o seu nome divino resulta deformado, mas não inteiramente irreconhecível (Godot). Na sua ambiguidade indecidível entre esperança e ilusão, a espera é a face com que a salvação ainda se abriga no seio da humanidade, que “só um Deus”, alguém que poderia chegar ao fim do dia, “pode ainda salvar”.81

A epifania da deformidade e do repugnante como condição de redenção: Flannery O’Connor e Clarice Lispector

O que em Beckett fica articulação negativa de um espaço ético e teológico (de sinceridade e esperança que se recusam ao mal e à alienação a que o homem condena si mesmo) encontra uma declinação afirmativa em duas autoras americanas contemporâneas de Beckett, dele biograficamente mas não literariamente distantes: Flannery O’Connor e Clarice Lispector.8282

O que acontece em ambas é que é a total sinceridade em relação à própria repugnância e à não resignação a ela, a esperança ‘impossível’ inscrita na imutabilidade do homem, são apresentadas não como estase insolúvel, mas como movimento catártico que abre a porta de uma nova condição, da possível ocorrência daquela Graça que é mistério inalcançável ao homem e por ele desesperadamente esperado. Nas duas escritoras o recurso sistemático a situações e figuras de estranhamento (Verfremdung) apresenta-se como ocasião de superação de uma condição de alienação (Entfremdung) e inautenticidade que não é puramente social, mas ‘metafísica’ (no sentido de que não é devida a uma contingência histórica corrigível, mas a um carater universal da condição humana) e torna-se condição de elaboração de um discurso teológico capaz de dialogar com a consciência ética da pós-modernidade ou de uma modernidade pós-iluminista.

Em Flannery O’Connor, o dispositivo de estranhamento é declinado em termos positivamente, extrovertidamente religiosos (a autora assumia-se como “escritora cristã”, mais precisamente “católica”). Em Lispector, pelo contrário, o gesto religioso é introvertido, ambiguamente indeterminado, preste a culminar numa experiência espiritual não associável diretamente a crenças positivas, a uma dádiva de Graça. Em ambas, contudo, é claro o padrão narrativo, pelo qual o estranhamento é vetor de uma experiência de transformação (de recuperação da verdade do eu) que não passa para uma alteração moral (no sentido de uma conversão ao bem, numa adoção ativa de novos valores, comportamentos, de uma ação resolutiva), mas se assume como mística: como passivo acolhimento de um ‘evento’ exterior, indisponível à vontade, ressentido como momento de epifânica revelação em que se dá a restituição de um eu que se encontrava destituído na inautenticidade e alienação da vida comum (que esta restituição coincida não infrequentemente, em Flannery O’Connor, com a morte de quem faz a experiência, só reforça a dimensão escatológica, mística e não moral do que ocorre)

Flannery O’ Connor

Em Flannery O’Connor o estranhamento é declinado afirmativamente na repugnância inspirada no leitor pelos protagonistas (nem heróis nem anti-heróis: freak deficientes, deformados, incompletos, inacabados, banais e ridículos ao mesmo tempo), que bloqueia toda a identificação. No entanto, é precisamente esta repulsa que se torna condição de reconhecimento da possibilidade da Graça como intervenção livre e totalmente injustificada de Deus, que intervém no absurdo do mundo da experiência humana de forma tão inesperada e improvável que parece casual. O perverso, o distorcido, o deforme, o repugnante são a gramática do reconhecimento do mistério da Graça na vida do homem:

A minha perceção é que os escritores que veem à luz da fé cristã terão, no nosso tempo, o olhar mais sensível para o grotesco, o perverso e o inaceitável.” Penso que “frequentemente, o motivo desta atenção ao perverso é a diferença entre as [suas: dos escritores] crenças e as crenças do seu público. A redenção não tem sentido, a menos que haja para ela uma causa na vida real que vivemos [...]. O romancista com preocupações cristãs encontrará na vida moderna distorções que são repugnantes para ele, e o seu problema será fazer com que elas apareçam como distorções também para um público que está acostumado a vê-las como naturais; e ele pode muito bem ser forçado a usar meios cada vez mais violentos para transmitir a sua visão a esse público hostil. (O’Connor 1957, p. 805)83

A função própria do estranhamento: de despertar a perceção do destinatário perante as anomalias da condição humana universal ou do homem contemporâneo em particular, por meio da desativação da identificação, da ativação da repulsa do deforme e do perverso, é aqui apropriada programaticamente por O’Connor como recurso poético de um discurso teológico afirmativo, como dispositivo de escrita essencial para um autor “cristão” do seculo XX. É por isso que as histórias de O’Connor “são, na maioria das vezes, sobre pessoas pobres, diminuídas tanto na mente como no corpo, que têm um sentido de finalidade espiritual escasso ou pelo menos distorcido” (Ib., p.804).84

Hoje em dia, declara O’Connor, um escritor laico não crente poderá produzir “um grande naturalismo trágico” (O’Connor 1960, p. 815), mas o escritor cristão, que quer exprimir a possibilidade da intervenção redentora da Graça dentro da vida comum, terá de adotar o registo antitrágico e não sentimental (anti-identificativo, não empático) do grotesco: “A sua forma de representar será muito mais obviamente a da distorção” (Ib., p.816).85

O grotesco não é uma representação caricatural da humanidade, não é cómico no sentido pejorativo, de recusa de ver a seriedade das coisas. Pelo contrário, o cómico do grotesco é a única forma atualmente possível de reconhecer esta seriedade na rejeição do sentimentalismo que anestesia a perceção (do mistério das coisas):

Os nossos “atuais heróis grotescos não são cómicos, ou pelo menos não é o que são em primeiro lugar. Eles parecem carregar um fardo invisível e fixar-nos com olhos que nos lembram que todos nós carregamos uma pesada responsabilidade cuja natureza esquecemos. São figuras proféticas. No caso do romancista, a profecia é uma questão de ver as coisas próximas com as suas amplitudes de significado e, portanto, de ver de perto coisas distantes. O profeta é um realista das distâncias, distâncias no sentido qualitativo, e é esse tipo de realismo que se encontra nas instâncias modernas do grotesco. Mas aos olhos do leitor em geral, esses heróis-profetas são seres aberrantes [freaks]. O público invariavelmente aborda-os do ponto de vista da psicologia anormal.” (O’Connor 1963, pp. 860-861)86

O grotesco, com toda a sua carga de violência, comicidade e selvageria, é a única possibilidade contemporânea de uma escrita “profética”, que esquiva sistematicamente aquela “compaixão” apreciada por Aristóteles e pela literatura religiosa edificante como supremo sentimento poético:87

Não é necessário salientar que a aparência desta ficção será selvagem, que ela será quase necessariamente violenta e cómica, devido às discrepâncias que ela procura combinar. Mesmo que o escritor que produz ficção grotesca não considere os seus personagens mais esquisitos (freakish) do que normalmente é o homem caído, o seu público vai considerá-los assim […]. Thomas Mann disse que o grotesco é o verdadeiro estilo antiburguês, mas eu acredito que neste país o leitor geral conseguiu associar o grotesco ao sentimental, porque sempre se fala favoravelmente acerca disso. O leitor geral parece associar o grotesco à compaixão do escritor. Hoje em dia, é considerada uma necessidade absoluta que os escritores tenham compaixão [...]. Certamente, quando o grotesco é usado de maneira legítima, os julgamentos intelectuais e morais implícitos nele terão influência sobre o sentimento. (O’Connor 1960, pp.816- -817)88

Escrita centrada nas fraturas e nas contradições abertas na realidade pela recusa de a aceitar como simples facto natural, pela procura do que nela vislumbra e anuncia a possibilidade autocontraditória do milagre (a possibilidade de uma redenção nela impossível), o “realismo grotesco” (O’Connor 1960, p.815), tem o próprio ‘herói’ de eleição no “freak”, o ser aberrante, tarado e nojento, que repele o leitor, tornando impossível toda a identificação:

Sempre que me perguntam por que os escritores do Sul têm uma propensão especial a escrever sobre seres aberrantes (freaks), digo que é porque ainda somos capazes de reconhecer um. Para poder reconhecer um ser aberrante, é preciso ter alguma conceção geral do homem, e no Sul a conceção geral de homem ainda é, principalmente, teológica [...]. O Sul não é propriamente centrado em Cristo, com ceteza é, antes, assombrado por Cristo.(Ib., pp.817-818)89

Num mundo incapaz de se centrar em Jesus, ser perseguidos, assombrados por Ele é a única forma de o reencontrar, tomando consciência do próprio “estar fora de lugar”, da própria doente inaptidão e não adaptação. Por isso o freak, o ser deforme e disforme, o marginal e não aceite, é o mediador privilegiado do reconhecimento da nossa alienação (“displacement”): “De qualquer forma, é quando o ser aberrante (freak) é reconhecido como uma figura do nosso deslocamento essencial, que ele alcança alguma profundidade na literatura” (Ib., 818).90 Porque é na sua desordem e falta de unidade, na sua ostensiva deficiência, na sua ‘fealdade’ ética e estética que nos é restituído o sentido certo do que é redenção do ponto de vista cristão:

Há, no leitor, a necessidade de “ser animado. Há algo em nós, como contadores e ouvintes de histórias, que exige o ato redentor, que exige que o que cai, ao menos, tenha a chance de ser restaurado. O leitor de hoje procura este movimento, e com razão, mas o que ele esqueceu é o custo dele. O seu sentido do mal está diluído ou falta completamente e, portanto, ele esqueceu o preço da restauração.” (Ib., 820)91

O preço da redenção é calculado corretamente unicamente por quem tem um sentido do mal não edulcorado, não anestesiado pela “ternura” típica de um tempo que se preocupa mais com a sensibilidade do que com a visão:

Nesta piedade popular, registamos o nosso ganho em sensibilidade e a nossa perda em visão: se outras eras sentiam menos, elas viam mais, mesmo se elas viam com o olho cego, profético e não sentimental de aceitação, que, por assim dizer, é o olho da fé. Na ausência desta fé, agora governamos por meio da ternura. (O’Connor 1961, p.830)92

A Graça, em Flannery O’Connor, nunca se manifesta suavemente, com a serena beleza de uma visão transcendente, mas sempre com a violência de um trauma, de um soco que bate e dói: como um livro atirado à cabeça (“Revelação”), um tiro na cabeça (“A Good Man Is Hard To Find”), um granizo de pancadas de vassoura nas costas (“As Costas de Parker”), o peso de um touro caído que mata (“Greenleaf”), a “face da nova miséria que se sente” (“A circle in the Fire”, O’ Connor 1955, p.250).

A Graça não é a retribuição de uma obra boa ou de um bom arrependimento, de uma conversão, mas o choque da revelação inesperada da própria indignidade dela. É este reconhecimento grotesco (ver a face da própria miséria)93 a redenção, a manifestação salvadora de Deus na vida, ficando sempre em suspenso quais serão as consequências morais desta epifania: a narrativa, carateristicamente, pára no momento da revelação, sem se debruçar sobre as consequências, que são em geral destrutivas, e não infrequentemente levam à morte de quem é afetado ou de alguém que lhe é próximo.

Se a narrativa de O’Connor está repleta de ‘monstros’ é porque pra ela eles são a única figura em volta da qual reformular poeticamente (sensatamente) a possibilidade da redenção no horizonte da crise contemporânea da crença e da normatividade.94 Numa sociedade marcada pela alienação, Graça é ser confrontados com esta condição, recuperando a sinceridade da indigência e da deprivação, a consciência da própria incapacidade de ser si mesmos sem a ocorrência milagrosa de uma epifania: eventualidade (improvável, imprevisível, inesperada) de uma circunstância, de um encontro, em que o sujeito toma consciência da própria inautenticidade e da própria deformidade,96 numa dádiva que não se resolve em triunfo da autodeterminação, mas, pelo contrário, como irrecusável constrição. Os personagens de Flannery O’Connor propriamente nunca se ‘convertem’: nunca escolhem, são antes ‘forçados’ a uma sinceridade tão ‘violenta’ que dá cabo da sua vida (reconhecer-se é, quintessencialmente, cair).

A violência da experiência da redenção representada não pode poupar o leitor. Tornando-se testemunha profética da natureza da Graça, a narrativa deste trauma desperta-o da sua inércia ética e religiosamente conformista.96 Exatamente como a Graça, a escrita produz uma revelação (da Revelação), que não consiste em ‘transmitir verdades’, mas em ajudar o leitor a olhar para o real como um mistério:

Não acredito que se possa impor a ortodoxia à ficção. Acredito que ler pode contribuir a aprofundar a própria ortodoxia se não se tiver medo de visões estranhas [...]. São Gregório escreveu que todas as vezes que o texto sagrado descreve um fato, ele revela um mistério. E é isso que o escritor de ficção, no seu nível mais baixo, tenta também fazer. (O’Connor 1963, p.861)97

É esta a chave do “realismo grotesco”, um realismo das distâncias (O’Connor 1960, p.817) que “se afasta dos padrões sociais típicos, em direção à miséria e ao inesperado” (Ib.), que é o oposto da estratégia narrativa de autores como Henry James:

Henry James disse que na sua ficção ele fazia as coisas da maneira que é mais comum. Penso que o escritor de ficção grotesca as faz da maneira que é menos comum, porque no seu trabalho as distâncias são tão grandes. Ele anda à procura de uma imagem que conecta ou combine ou incorpore dois pontos; um é um ponto no concreto e o outro é um ponto não visível ao olho nu, mas em que ele acredita com firmeza, tão real para ele, quanto aquele que todos veem (Ib., p. 816)98

‘Expor’ a comunhão do visível com o invisível como duas faces da realidade implica produzir uma ‘distorção’ da perceção do leitor que é traumática e corre sempre o risco de ser destrutiva (“O problema para um romancista desse tipo será agora até que ponto ele pode distorcer sem destruir”, Ib., p.821),99 mas dentro da condição de “displacement” que é própria do homem contemporâneo, de dissolução de toda a referência social comum da crença e de alienação solitária do indivíduo-massa, ela é a única maneira de testemunhar credivelmente que a “redenção tem uma causa na vida real que vivemos e que por isso tem sentido”. Este sentido não consiste, para Flannery O’Connor, em pôr em caminho uma transformação que tire ao homem “a marca da imperfeição”.100 Nada pode estar mais distante da fé cristã de todo o programa de demiúrgica autorrealização do homem como ser ‘salvado’, limpo da humana imperfeição. A redenção nesta terra não é ‘sair’ do mal, mas aprender a olhar para ele à luz da presença de Deus, ganhando a consciência de “que o mal não é simplesmente um problema a ser resolvido, mas um mistério a ser enfrentado” (O’Connor 1963, p.862).101

Clarice Lispector

Em Clarice Lispector, por sua vez, o que encontramos são sobretudo experiências de estranhamento, situações de “desorganização” dos padrões identitários adquiridos (“O resto – o resto eram sempre as organizações de mim mesma”, APSGH, p.19), em que uma epifania singularmente traumática revela à personagem a sua condição de alienação profunda, mas ao mesmo tempo abre-lhe a porta de uma transformação interior que se cumpre como a descoberta de que a vida é mistério, alteridade irredutível ao eu, com o qual, no entanto, é possível entrar em comunhão numa ‘rendição’ inefavelmente ‘redentora’. Em nenhum outro texto de Lispector este padrão narrativo recorrente é exposto com a nítida clareza alcançada na Paixão segundo G.H., em que o estranhamento se configura precisamente como aquele processo de desativação da identificação sentimental e do prazer da beleza, que se produz ao virar-se para o deforme e o repugnante. A eucaristia da barata que está no centro do romance é a celebração sacramental desta despedida dos sentimentos102 e da beleza103 como estigma de inautenticidade,104104 consomada como passagem pelo repugnante e pelo imundo,105 como ‘detranscendentalização’, perda da falsa transcendência (Ib., p. 76): renúncia à própria pretensão humana, de sujeito, de ser diferente do objeto,106 de o transcender.

Eu sabia que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata. É que a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata. (Ib., 128) Comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria minha pureza fácil. O antipecado. Mas a que preço. Ao preço de atravessar uma sensação de morte. (Ib., 129)

É unicamente ao ‘baixar-se’, ao reconhecer a própria identidade de objeto, de coisa, que o ser humano recupera a própria subjetividade alienada,107 falsificada na sua autocompreensão socialmente determinada.108 É na kenosi109 que o sujeito sai da alienação de se pensar só como ser social, fatual, e encontra a epifania mística de si mesmo como mistério,110 como parte do divino:

“Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi – porque não entendo. Sei que vi – porque para nada serve o que vi. (Ib., p.14) “Eu “sabia que era uma glória, e tremia toda nessa glória divina primária que, não só eu não compreendia, como profundamente não a queria.” (Ib., p. 50)111

O estranhamento que culmina na ingestão repugnante da matéria branca da barata, produz-se como progressiva dissolução da própria identificação consigo mesma em que a protagonista é ‘forçada’ a identificar a própria inautenticidade, a se desmistificar. E só ao comungar a barata, ao assumir sacramentalmente (não apenas cognitivamente) a própria identidade nojenta (“ἀτιμοτάτων”: sórdida) de besta impura, que a protagonista de Lispector se entrega plenamente à Graça da revelação, da possível comunhão com uma presença divina que permeia a realidade como mistério. A redenção é ganha através de uma experiência de “Paixão”, de uma passagem pelo inferno, por aquilo que mais repele o homem:

Eu “quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e não na promessa, quero encontrar a alegria neste instante – quero o Deus naquilo que sai do ventre da barata – mesmo que isto, em meus antigos termos humanos, signifique o pior, e, em termos humanos, o infernal.” (Ib., pp. 65-66)

O Inferno tem de ser aceite112 para que o homem se ganhe a si mesmo, trocando a beleza pela identidade (Ib., pp.123ss.), no abandono da “falsa transcendência” (Ib., p.76) em prol da visão da própria “nudez final na parede”, em que o homem contempla, “com medo”, a “face de Deus” e a própria, obedecendo finalmente a uma lei suprema da dignidade humana: “conhecer-se e conhecer ao mundo é a lei que, mesmo inalcançável não pode ser infringida, e ninguém pode escusar-se dizendo que não a conhece” (Ib., 77).

Também neste caso, como em tantas passagens da narrativa de O’Connor, a redenção final proporcionada por esta revelação não é moral, no sentido que não se produz como ‘conversão’ ética, como uma nova vida de obras, de expiação dos próprios pecados e de correção dos próprios erros.113 É, antes, uma catarse,114 redenção ‘mística’ proporcionado pelo passivo acolhimento da manifestação da realidade como mistério, como alteridade não disponível, não dominável, pela desistência de si na rendição à incontrolável presença do divino: “Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é glória própria da minha condição.” “A desistência é uma revelação” (Ib., 138 e 139)115

Conclusão

A tragédia põe-nos perante uma queda (mudança da felicidade para a infelicidade), inspirando-nos o temor de passar pelo mesmo e a compaixão por quem cai não por maldade, mas por um erro de discernimento. Este duplo sofrimento (transitivo e intransitivo, relativo a nós mesmos e aos outros) é o vetor da mensagem ética da tragédia: se a queda é o preço universal da finitude, o estigma da falibilidade humana (estamos todos prestes a cair, mais cedo ou mais tarde), o que salva a nossa dignidade, o que faz do indivíduo um herói, é a livre aceitação desta fatalidade, no reconhecimento consciente de que não há salvação possível: o homem tem de viver, e de morrer, na radical ausência de Deus, porque que haja um ou muitos Deuses não faz para ele diferença nenhuma.116

Na literatura pós-trágica, grotesca, do estranhamento, pelo contrário, já não há lugar para quedas, porque não há lugar para os heróis. Na secularização pós-cristã do pecado em contingência, a humanidade pós- -trágica do estranhamento está caída antes de se aventurar na ação. É uma humanidade feita dos “seres vis” do aristotélico registo cómico, para os quais a queda não é uma peripécia, mas um estado:117 não podem cair porque eles nunca estiveram em alto. São freak, diria O’Connor: marcados por um estigma físico, social, cultural, que os torna banais (como em geral as protagonistas de Lispector), ou consistentemente defeituosos, deformes, falhados, tão enraizados na própria deficiência que acabam por ser ‘anódinos’, incapazes de ter (e suscitar) um verdadeiro sofrimento e de exercer uma verdadeira ação. Indivíduos que já não conseguem reconhecer-se como sujeitos, destituídos de autenticidade e autodeterminação, os protagonistas da literatura cómica do estranhamento estão caídos numa condição que está abaixo da queda do erro trágico, porque nela o bem já não é pensável como norma moral, mas unicamente como Graça, objeto de um desejo de redenção completamente indisponível ao ser humano: a ideia do Bem, naufragada moralmente, só é pensável teologicamente, num resgate eventualmente impossível, mas de cuja exigência não se abdica.

Despidos de liberdade e autodeterminação, objeto dos poderes em que a razão se autonomiza como puro domínio (técnico, burocrático, económico, ideológico), para eles nada se passa, ao não ser, eventualmente, uma inextinguível espera do bem como mistério do dom prefigurado pelo desejo (como em tanto Beckett, apesar de todo o breuem que o homem está envolvido). Ou, então, o que se passa é a pura manifestação deste estado de destituição, infligida por uma norma moral que se torna o principal agente da alienação, despindo o homem da sua dignidade de sujeito e desfigurando grotescamente a sua não resignação ao sofrimento como passiva resistência corpórea, cegueira irracional misticamente disruptiva (como em Kafka). Ou, enfim, o que acontece (na visão de Lispector e O’Connor, sardonicamente capazes de heterodoxa esperança) é a, para Aristóteles moralmente repugnante, elevação do indigno, mudança não agida mas sofrida, fruto de uma misteriosa ocorrência exterior, que põe o ser inferior, misericordiosamente, a subir (“Tudo O Que Sobe Tem de Convergir”). A mudança (peripécia) é então trauma que resgata, que produz reconhecimento, revelação, e ensina a sofrer quem não sabia sofrer. São as lágrimas de Parker, finalmente capaz de compaixão em relação a si mesmo e de se chamar pelo próprio nome (O’Connor 1965/2015, p. 203); é o terror de Julian ao ver-se entrar “no mundo da culpa e da mágoa” (Ib., 25). É a epifania kenótika do impuro como verdade desorganizadora que quebra o inautêntico através da consumação do “ato ínfimo” (A paixão segundo G.H.). É a intuição, repugnante, que revelação e redenção se dão no massacre (cómico e não trágico) de uma família disfuncional por parte de uma banda de criminosos em fuga, à beira de uma estrada (“A Good Man is Hard To Find”). Intuição moralmente repugnante, deforme, para o homem. Misteriosamente autêntica na luz da graça de Deus.

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Notas

[1]“Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais. Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem prazer nas imitações.” (ARISTÓTELES, Poética 1448b, p. 42; a seguir citada como Poética. A indicação da página refere-se à tradução portuguesa assinalada na bibliografia e geralmente utilizada. Apenas nas passagens realçadas em negrito a tradução, diferente, é de minha responsabilidade).

[2]ARIOSTO, Canto XII; em particular as oitavas 10-20: Orlando “volta abaixo e acima e tudo revê, / mas a alegria e os olhos não lhe aquece: / Angelica não vê, nem o rapace / que lhe ocultou a delicada face. /11. E enquanto aqui e alia movia o passo, / perdido em pensamentos agoireiros, / Ferraù, Brandimarte e o rei Gradasso, / rei Sacripante e outros cavaleiros / encontrou, que, correndo o mesmo espaço, / não menos que ele eram vãos caminheiros; / queixavam-se do invisível raptor, / O qual daquele palácio é senhor. / 12. Em vão procuram, e culpa lhe dão / e acusam de algum furto que lhes fez: / .... incapazes de sair do xadrez; muitos lá estão, do engano fregueses, / alguns há semanas, outros há meses. // 20. Uma mesma voz e a mesma pessoa .... desses que andavam pelo palácio errando, / parece a todos que tal coisa seja / o que cada um para si mais deseja.” (ARIOSTO, pp. 193-195).

[3] É a possibilidade ou não de identificação, assim como as suas consequências morais, que para Aristóteles determinam a escolha dos caracteres na tragédia e na comédia: cf. Poética, 1448a, pp. 39-40. É contudo importante realçar que esta seleção dos caracteres é um meio, funcional ao objetivo da tragédia. A tragédia “não é imitação dos homens, mas das acções e da vida [...]; os acontecimentos e o enredo são o objectivo da tragédia e o objectivo da tragédia é o mais importante de tudo” (Ib., 1450a, p. 49).

[4]Alcançar a “convicção” do destinatário é o êxito principal da obra de arte segundo Fried 1967

[5]A tragédia é “imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões” (Ib., 1449b, pp. 47-48).

[6] O reconhecimento “que se opera juntamente com a peripécia [...] suscita ou a compaixão ou o temor (e a tragédia é, por definição, a imitação de acções deste género), pois que desse reconhecimento e dessa peripécia depende o ser-se infeliz ou feliz”(Ib., 1452a, pp. 57-58) e é “por meio da compaixão e do temor, [que a tragédia] provoca a purificação de tais paixões” (Ib., 1449b, 48). A purificação é tanto do espetador (que experimenta as paixões representadas na imitação da tragédia) como do herói que as sofre na ação.

[7]“Portanto, estas são duas partes do enredo: peripécia e reconhecimento. A terceira é o sofrimento. [... O] sofrimento é um acto destruidor ou doloroso” (Ib., 1452b, p. 59). A epopeia, como a tragédia, deve ter “igualmente peripécias, reconhecimentos e cenas de sofrimento; e ainda beleza de pensamento e de elocução” (Ib., 1459b, p.93). Aristóteles especifica que o reconhecimento é de pessoas (Ib., 14452b, p. 58), não tem nada a ver com um saber filosófico, teorético da verdade, mas perde-se o seu sentido, a razão da sua importância (equivalente à do sofrimento e à da reviravolta existencial que o origina) se for reduzido a um simples expediente dramático. A sua importância incide diretamente na ideia da tradição filosófica grega de que o princípio fundamental da sabedoria é formulado pelo oráculo délfico “conhece a ti mesmo” e este movimento de conhecimento passa pelo restabelecimento da identidade dos outros, do seu papel na nossa vida: “Reconhecimento, como o nome indica, é a passagem da ignorância para o conhecimento, para a amizade ou para o ódio entre aqueles que estão destinados à felicidade ou à infelicidade” (Ib., 14452a, p. 57). Só quando Édipo reconhece quem era o homem que matou, alcança a verdade sobre a própria vida. Re-conhecimento é vir a saber de forma nova, diferente, algo que sabíamos mal, de forma incorrecta e parcial sobre nós e sobre os outros. Afinal, levar a reconhecer-nos, é precisamente aquilo que se propõe fazer a tragédia, mostrando-nos a universalidade inerente a histórias particulares: é alcançar a ‘verdade’ do saber da história. “O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro em verso [....]. Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia acontecer. Portanto a poesia é mais filosófica e tem um caracter mais elevado do que a história. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verosimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois nomes às personagens.” (Ib.,1451b, p. 54)

[8] Indiferentemente espetador ou leitor: a tragédia não perde nada em ser simplesmente lida: “É que o efeito da tragédia subsiste mesmo sem a encenação e os atores” (Ib.,1450b, p. 51). “Além disso, a tragédia, tal como a epopeia, mesmo sem nenhum movimento, produz o seu efeito próprio: de facto, a sua qualidade é visível através da leitura” (Ib., 1462a, p.105).

[9]“E uma vez que o poeta deve suscitar, através da imitação, o prazer inerente à compaixão e ao temor, é evidente que isso deve ser gerado pelos acontecimentos” (Ib.,1453b, pp. 64-65).

[10]“Aut prodesse volunt aut delectare poetae/ aut simul et iucunda et idonea dicere vitae” (Arte poética, 333-334: “Procuram os poetas ser úteis, ou deleitar, ou então dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida”), reformulará Horácio, numa vulgarização didática da ideia aristotélica, que a falsifica, no aut aut convertível em simul que dissocia delectare e prodesse, considerando este último uma função atribuível ao prazer estético e não a sua essência. Em Aristóteles, o prazer estético é o que torna o sentido mensagem ética: não pode ser por isso ‘funcionalizado’ a, associado a uma mensagem subsistente fora dele. É esta deformação didático-utilitarista da intuição aristotélica da matriz estética da lição ética da obra de arte que O’Connor veementemente recusa: “The fact would seem to be that for many writers it is easier to assume universal responsibility for souls than it is to produce a work of art, and it is considered better to save the world than to save the work” (O’Connor 1957b, p. 810). “The novelist must be characterized not by his function but by his vision”. (O’Connor 1960, p.819)

[11]. A arte poética trata de como escrever um texto, “se se pretender que a composição poética seja bela” (Poética., 1147a, p. 37) é declarado programaticamente, logo na abertura da obra aristotélica.

[12]Wordsworth: “I have said that poetry is the spontaneous overflow of powerful feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility: the emotion is contemplated till, by a species of reaction, the tranquillity gradually disappears, and an emotion, kindred to that which was before the subject of contemplation, is gradually produced, and does itself actually exist in the mind” (Wordsworth 1800, Preface to Lyrical Ballads, pp. XXXIIIXXXIV).

[13]“A poesia dividiu-se de acordo com o carácter de cada um: os mais nobres imitaram acções belas e acções de homens bons e os autores mais vulgares imitaram as acções de homens vis, compondo primeiramente sátiras, enquanto os outros compunham hinos e encómios” (Poética, 1448b, pp. 42-43). “Também a tragédia se distingue da comédia neste aspecto: esta quer representar os homens inferiores, aquela superiores aos da realidade” (Ib., 1448a, p. 40).

[14] O recurso às histórias tradicionais é justificado não em termos de normatividade moral, mas em chave estilístico-formal, por elas constituírem um excelente repertório de enredos, cf. 1453a, pp. 60-62.

[15] Cf. a sumamente ambígua liquidação da verdade dos mitos no contexto de defesa da ‘verdade humana’ da tragédia. Perante a crítica feita por alguns de a tragédia “não ter representado a verdade como é, mas como deveria ser,” afirma Aristóteles, “pode resolver-se o problema como Sófocles, que disse que ele representava os homens como deviam ser e Eurípides como eles eram. E fica resolvida a questão. Se não servir nenhuma das duas soluções, pode invocar-se o que as pessoas dizem, como, por exemplo, as histórias tradicionais sobre os deuses: provavelmente não contam nem melhor nem de acordo com a verdade, mas talvez como era para Xenófanes; seja como for, realmente é o que dizem.” (Ib., 1460b, pp. 98-9). A passagem evoca diretamente a argumentação de Sócrates em Fedro 229a-230a: “Se eu fosse um incrédulo como os Doutores, não seria o ser esquisito (ἄτοπος) que sou; nesse caso, eu envolver-me-ia em sofismas [...]. Em vista disso, dou a esses mitos a importância que merecem, mantendo a crença tradicional quanto a eles (e quanto ao seu tema, limito-me a seguir a tradição). Digo-o a todo o momento: não são lendas (ἀλλότρια) que investigo, é a mim mesmo que examino” (Fedro, pp.15-16, negrito m.tr.).

[16]“A razão disto é também que aprender não é só agradável para os filósofos, mas é-o igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa aprendizagem em menor escala. É que eles, quando veem as imagens, gostam dessa imitação, pois acontece que, vendo, aprendem e deduzem o que representa cada uma, por exemplo, «este é aquele assim e assim»” (Ib., 1448b, pp. 42-43).

[17]Nas origens, a “poesia dividiu-se de acordo com o carácter de cada um: os mais nobres imitaram acções belas e acções de homens bons e os autores mais vulgares imitaram ações de homens vis, compondo primeiramente sátiras” (Ib., 1448b, p. 43). Da “dramatização do ridículo” nasce a comedia (Ib., p. 44).

[18]Em Ser e Tempo (§39-42; §57; §§64-65), Heidegger carateriza o ser-no-mundo essencialmente como cura (Sorge), em relação a si (como ser que sempre já se precede a si mesmo) e ao ente encontrado no mundo. A cura articula-se como ocupação (Besorgen), em relação ao ente que está disponível como coisa; como preocupação (Fürsorge), em relação ao “concomitante ser no mundo dos outros” e encontra no “temor” uma manifestação emocional específica da cura em relação a si (cf. §30). Mais especificamente, cura é “o modo de ser que domina completamente o percurso temporal do homem no mundo” (Heidegger 1927, p.198, m.tr.) e ela está na base daquela experiência ética fundamental de se autocompreender como seres humanos a que damos nome de consciência: “A consciência revela-se como a chamada da cura: quem chama é o ser- -aí que, no seu ser-lançado (ser-já-em), angustia-se em relação ao seu poder ser [...]. A chamada da consciência, isto é, a consciência mesma, encontra a sua possibilidade ontológica no facto de que o ser-aí no fundamento do seu ser é cura” (Ib., pp. 277-278, m.tr.). A angústia do ser-aí que reconhece a finitude, o ser-para-a morte, como sentido último da condição humana no mundo, é a condição generativa da consciência: temor e compaixão, cura (angústia) em relação a si e aos outros, são as atitudes constitutivas da consciência de si do homem.

[19]No mito (expressado exemplarmente pela épica homérica), os personagens são heróis incomparáveis com o ser humano comum (são deuses ou semideuses, filhos de deuses, príncipes e reis que entretêm com os deuses um relacionamento direto, que falam com os olímpios e por eles são carnalmente amados ou odiados, isso é, individualmente conhecidos), pelo que toda a identificação do espetador ou do leitor com os personagens pode ser apenas situacional e parcial, contextual. Todo o leitor pode identificar-se com a dor de Príamo ao implorar o corpo do filho; com Heitor ao despedir-se da mulher, com o seu medo perante Aquiles, mas não pode identificar-se com Príamo e Heitor como personagens (que além de mais não podem ser reconhecidos como ‘pessoas’, porque carentes de ‘unidade pessoal’. Sobre a ‘falta de humanidade’ dos heróis homéricos e a sua progressiva ‘construção’, cf. os estudos clássicos de Bruno Snell 1946, pp.19ss., e de Eric Auerbach 1949, em particular o célebre primeiro capítulo: A cicatriz de Ulisses, pp. 3ss.). Se a tragédia (educada na escola da lírica, o género inaugural da literatura pós-mítica), continua a fazer do mito o próprio objeto (a maior parte dos enredos é tirada deste repertório, cf. o já mencionado 1453a), ele já não é o seu conteúdo, porque no código da tragédia (em contraste com a épica homérica) a diferença entre o humano e o divino é interiorizada como separação: como polarização entre imanência e transcendência. Os personagens são, assim, heróis em que é possível projetar-se aspiracionalmente. São melhores do que nós, diz Aristóteles, mas não tanto melhores que não subsista com eles um parentesco que convalida a universalização da condição humana de que eles são vetores por excelência: nos heróis trágicos, não nos reconhecemos como indivíduos, mas sim naquilo que nos torna a todos seres humanos: que a vida é queda (“peripécia”) e que a nossa dignidade é a liberdade com que enfrentamos e “reconhecemos” este fado de “sofrimento” (“o ato destruidor”).

[20]Como heróis da tragédia “restam-nos então aqueles que se situam entre uns e outros (bons e maus). Essas pessoas são tais que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela justiça; tão pouco caem no infortúnio devido à sua maldade ou perversidade, mas em consequência de um qualquer erro” (1453a, p. 61). O herói de Aristóteles não é um santo, não é melhor do que a média, é um homem comum. Do ponto de vista da virtude a sua superioridade – o seu ser herói, é como lida com a própria normalidade: isto é com a queda, com o erro que é inevitável para todos os homens, devidos à limitação da finitude. É forçoso que “a mudança se verifique, não da infelicidade para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade, mas de um erro grave” (Ib., 1453a, p. 61) (A epopeia é, como a tragédia, imitação de carateres virtuosos, Ib., 1449b, pp.46-47) .

[21]Na abertura do poema encontramo-nos em Ítaca, a ‘terra’, de que Ulisses está tão dramaticamente, dolorosamente, ausente, engolido pelo nevoeiro de lendas não verificáveis, já tornado mais mito do que homem em carne e osso pela indiscernibilidade da sua vida com a dos deuses que o amam ou o combatem (pela sua aparente subtração às leis comuns da contingência). A profunda desordem que reina em Ítaca (na história) não pode ser resolvida se a função paterna (instituidora da lei) não for salvaguardada da sua dissolução no arbítrio do mito, se ela não voltar a ser presença histórica: partilha discursivamente acessível de convivência e responsabilidades (muito ensina a Odisseia sobre a de-realização da autoridade na ficcionalização provocada pela sua transcrição como celebridade).

[22]Sobre o “deus maligno” que está na base da “visão trágica” da existência cf. Ricoeur 1960, pp. 355ss.

[23]Cf. o capítulo sobre “O Espírito” (BB, VI, pp. 324ss.) na Fenomenologia do Espírito e os capítulos sobre a formação da arte clássica e sobre a poesia dramática na Lições de Estética (Werke 14, II, pp.33ss.; Werke 15, III, pp. 474ss.).

[24]“Por conseguinte, se a tragédia se distingue e todas estas coisas e ainda no efeito próprio da arte [τῆς τέχνης ἔργῳ] (pois estas imitações devem produzir não um prazer qualquer mas o que já foi referido), é evidentemente superior, uma vez que atinge o seu objetivo melhor do que a epopeia” (Ib., 1462b, p. 106).

[25]Faltando-nos o mítico ensaio aristotélico sobre a comédia (obsessão que é o motor do echiano Nome da rosa), não podemos saber se Aristóteles recuperasse aí o poder de critica de conteúdos e atitudes morais, tradicionalmente reconhecido à sátira, segundo o adagio tradicional “ridendo castigat mores”. De facto, a Poética desvaloriza sistematicamente o poder moral da comédia, considerando que ela se dobra à expectativa do público, o qual prefere o prazer sem pathos, privilegiando sistematicamente (a mentira dos) happy ends até na tragédia, ao procurar enredos em que a tragédia “termina de maneira oposta para os bons e para os maus. [Esta estrutura p]arece ser a mais bela devido à tibieza do auditório: os poetas orientam-se pelos espectadores e compõem de acordo com as suas preferências. Este prazer não é próprio da tragédia, mas sim, essencialmente da comédia. “(Poética, 1453a, pp. 62-63).

[26] Deste ponto de vista, é puramente aristotélica a ideia nietzschiana de que a aprendizagem da moral passa necessariamente pelo sofrimento, porque o instinto “divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica”, NIETZSCHE 1887, p.295 (tr. port., p.51). “«Como fazer no bicho-homem uma memória? [...]». Este antiqüíssimo problema, pode- -se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e resposta suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. «Grava-se algo a fogo na memória, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória.» – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. Pode -se mesmo dizer que em toda a parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, coisas sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro profundo passado que nos alcança e que reflui dentro de nós, quando nos tornamos «sérios»” (Ib.; tr. port., pp.50-51).

[27]Mais radical, Bergson 1939 fala não de falta de sofrimento”, mas de falta de qualquer emoção, de “insensibilidade” (Ib. p. 3), atribuindo-a não à deformidade (que pode caber no mecanismo do cómico como um caso específico), mas à mecanicidade. A essência do cómico, para Bergson, é de intercetar no ser humano, numa situação específica, o automatismo da matéria, que se sobrepõe à, e ameaça a, liberdade da vida e do espírito. O problema com a unilateralidade da visão aristotélica e bergsoniana é que tira ao cómico toda a alegria que lhe pode ser associada: a sua capacidade de anestesiar intelectualmente a dor não é declinada na potência ‘eufórica’ do riso, como dispositivo contrastivo de vitória sobre a dor, afirmando a capacidade humana de rir onde teríamos de chorar, de afirmar a potência espiritual do homem ainda dentro do seu fracasso material (é esta, por exemplo, a chave ‘humanizadora’ do cómico em Chaplin, jogado num vaivém permanente entre desativação e reativação da empatia). O cómico ‘alegre’, diferentemente do cómico puramente ‘insensível’, tira o temor, transmitindo a potência eufórica e transformativa de esperança: se a queda é parte da nossa humanidade, afinal ela não nos despe da nossa humanidade e rir dela é afirmar que podemos reerguer-nos, que a tragédia não é a última palavra sobre a condição humana. A do cómico é uma dialética complexa, que intercetando ‘anodinamente’ a deformidade e o automatismo como realidades básicas da experiência, não exclui a sua empática reapropriação identitária por parte do destinatário.

[28]Cf. 1450 b, 21ss – 1451a, um longo raciocínio condensado na fórmula: “A beleza reside na dimensão e na ordem” (Ib., 1450b, p. 51).

[29]Sobre a virtude de megalopsykhia, cf. Ética a Nicómaco, Livro IV, Cap. 3.

[30]Para uma reconstrução histórico-iconológica desta categoria de matriz greco-romana, que no tardo-renascimento, com a sua redescoberta da imaginação, conhece um momento de grande relance, afirmando-se como pintura das “margens”, cf. Morel 1997.

[31]O desdobramento autorreflexivo do sujeito entre grâce et pesanteur (Bergson 1939, pp.21s), res extensa e res cogitans, entre razão e natureza (de Man 1983, pp. 208ss.), é essencial ao mecanismo do cómico e encontra no fenómeno da queda (Ib., pp.211ss.) uma figura matricial, libertadora porque ajuda a ‘objetivar’ (expulsar) no ‘outro’ a inquietante dimensão mecânica que o eu reconhece em si mesmo, mas recusa como ameaçadora e degradadora da própria autocompreensão como sujeito.

[32]ἃ γὰρ αὐτὰ λυπηρῶς ὁρῶμεν, τούτων τὰς εἰκόνας τὰς μάλιστα ἠκριβωμένας χαίρομεν θεωροῦντες, οἷον θηρίων τε μορφὰς τῶν ἀτιμοτάτων καὶ νεκρῶν. Para o significado de “ἀτιμοτάτων” (indigno, sórdido, desonrado), cf. LSJ Middle Liddell Slater Autenrieth: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29timota%2Ftwn&la=greek&can=a%29timota%2Ftwn0&prior=tw=n &d=Perseus:text:1999.01.0055:section=1448b&i=1#lexicon.

[33]Se a causa última e determinante da ação humana não for reconhecida na vontade do homem, “a liberdade não pode ser salva” (“so würde die Freiheit nicht zu retten sein”), e o homem reduz-se a “uma marioneta, um autómato de Vaucanson (célebre mecânico setecentista, m.n.), fabricado e carregado pelo mestre supremo de todas as obras de arte, e a consciência de si torná-lo-ia um autómato que pensa, no qual, no entanto, a consciência da espontaneidade, se for considerada liberdade, seria simples ilusão, porque só comparativamente ela merece ser chamada assim [... quando ] a causa última e determinante se encontra em mão alheia” (Kant 1788, p.227, m.tr.). A ideia-pesadelo, de que o homem possa ser uma marioneta, governada por forças desconhecidas, é recorrente no protorromantismo alemão, de Goethe a Jean Paul, questionando o otimismo ético iluminista. Em A Morte de Danton, II, 5: Georg Büchner escreve: “Somos marionetas, puxadas por fios na mão de forças desconhecidas”.

[34]Literalmente: “não suscita temor ou piedade, mas é apenas repugnante”: οὐ γὰρ φοβερὸν οὐδὲ ἐλεεινὸν τοῦτο ἀλλὰ μιαρόν ἐστιν. Para o significado de “μιαρὸν” disgustoso, repugnante, porque impuro, sujo, cf. LSJ Middle Liddell Autenrieth: http://www.perseus. tufts.edu/hopper/morph?l=miaro%5Cn&la=greek&can=miaro%5Cn0&prior=ga\r&d=Perseus:text:1999.01. 0055:section=1453b&i=1#lexicon.

[35]Literalmente: “a mais antitrágica de todas as situações” (“ἀτραγῳδότατον γὰρ τοῦτ᾽ ἐστὶ πάντων”).

[36]Esta passagem ecoa diretamente em Kant: “Se é um espectáculo digno de uma divindade ver um homem virtuoso em luta com as contrariedades e as tentações para o mal e vê-lo, no entanto, oferecer resistência, é um espectáculo sumamente indigno, não direi de uma divindade, mas até do homem mais comum, porém bem pensante, ver o género humano a elevar-se de período para período à virtude e, logo a seguir, recair tão profundamente no vício e na miséria. Contemplar por um instante esta tragédia pode talvez ser comovente e instrutivo, mas é preciso que por fim caia o pano. Efectivamente, com o tempo, isso torna-se uma farsa e, embora os actores não se cansem porque são loucos, cansar-se-á o espectador; pois já tem que chegue num ou noutro acto, se puder supor com razões que a peça, sem nunca chegar ao fim, é sem cessar a mesma. O castigo que se segue no fim pode, sem dúvida, se for um simples espectáculo, transformarem aprazíveis, através do desenlace, as sensações desagradáveis. Mas deixar que na realidade vícios sem número (embora se lhes imiscuem virtudes) se amontoem uns sobre os outros, para que algum dia muito se possa castigar, é contrário, pelo menos segundo a nossa ideia, à moralidade de um sábio Criador e governador do mundo.” A similitude teatral da tragédia que se torna farsa na repetição mecânica da inépcia da intenção moral perante a resistência das forças ‘materiais’ introduz, para Kant, um argumento tão nevrálgico (a necessidade do acordo entre liberdade moral e determinismo das leis da natureza e da história), que ela se torna evidência da ‘obrigação moral’ de abraçar uma filosofia da história de cariz iluminista, otimisticamente progressista: “Poderei, pois, admitir que, dado o constante progresso do género humano no tocante à cultura, enquanto seu fim natural, é necessário também concebê-lo em progresso para o melhor, no tocante ao fim moral do seu ser, e que este progresso foi por vezes interrompido, mas jamais cessará. Não sou obrigado a provar este pressuposto; o adversário é que tem de o demonstrar. Apoio-me, de facto, no meu dever inato” (Kant 1793, p. 41 tr. port.; pp.166-167 Textausgabe).

[37]A reivindicação trágica de o homem ser sujeito moral das próprias acções: não ser o objeto das obscuras e cegas forças exteriores da contingência (da Dyke, fatum) e da arbitrária vontade dos deuses (isto é, de um código moral estabelecido não com o homem, mas sem ele). Sobre esta autocompreensão trágica do choque entre lei humana e lei divina, cf. a análise, inultrapassável, de Hegel, na Fenomenologia do Espírito e nas Lições de Estética (cit., n.23).

[38] Cf. Poética, 1454a, pp.65-66, para uma situação trágica “não repugnante”, ilustrada por Aristóteles logo a seguir: agir na ignorância, descobrindo só depois da consumação do facto uma relação de parentesco.

[39]“οὐ τραγικόν: ἀπαθὲς γάρ”: com o seu maravilhoso poder de síntese, o grego condensa a circunlocução num adjetivo: “apathés”, o não trágico é o “sem pathos”, “sem sofrimento”. A não consumação da catástrofe, a inibição da ação, não é trágica, para o homem grego, mas ridícula.

[40]Todo o Livro X da República é uma longa tirada contra a arte mimética, por ser duplamente contrária à racionalidade, do ponto de vista cognitivo como ético. Por um lado, a mimese literária afasta ‘epistemologicamente’ da verdade: “O artista é um criador de fantasmas”, um “imitador”, que “nada entende da realidade, mas só da aparência (República, 601b, p. 464). Por outro lado, ela afasta ‘eticamente’ do bem, porque se entrega acriticamente ao emocionalismo próprio do ser humano não governado pela razão: “A poesia mimética, dizíamos nós, imita homens entregues a acções forçadas ou voluntárias, e que, em consequência, de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias” (Ib., 603c, pp. 468-469). A arte mimética tem na identificação um recurso imprescindível, porque as emoções são “material” privilegiado da imitação (Ib., 604e, p. 471) e é precisamente isso que torna o poeta eticamente corrutor (Ib., 605-606): antes de reforçar o governo racional da alma, o poeta imitador, promotor da empatia, alimenta as paixões, de forma que ao acolher “a Musa aprazível” da literatura, “governarão na tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor.” (Ib., 607a, p. 475).

[41]Estigma relançado sempre de novo nos rotineiros renascimentos platónicos da reivindicação da ‘arte da mensagem’, a arte da verdade, que contesta a categoria de prazer estético como negação da função cognitiva da arte, preliminar ao seu eventual colapso na corrupção comercial do escapismo sentimental. Contra este redutivismo, é importante realçar que Aristóteles condena explicitamente a equivalência entre prazer estético e diversão: o grande poeta é aquele que obedece a uma lei do prazer inscrita na obra, não à lei do prazer do público, que quer a-pática gratificação emocional, que vê no prazer simples divertimento, diversão da contemplação da dolorosa condição humana. Cf. a já lida passagem de Poética, 1453a, pp. 62-63, sobre o happy end trágico como adulteração ‘populista’ da tragédia.

[42]Até a ficção, notoriamente denunciada por Platão por ser “três pontos” afastada da realidade, da verdade, (Ib., 597a, pp. 454ss.), é resgatada por Aristóteles da sua danação, vindo a ser paradoxalmente celebrada como meio de maior aproximação a ela: é por não falar do que já aconteceu, mas do que poderia acontecer que a poesia é mais filosófica do que a história: trata do universal e não do particular (cf. 1541b, p. 54). Ao refugiar-se no possível, resgata, ‘purifica’, o contingente da história como universal.

[43]O trecho horaciano é discutido por Brecht em: “A nova técnica da arte de representar: Breve descrição de uma nova técnica da arte de representar, conseguida mediante um efeito de distanciamento” (Brecht 1957, pp. 106ss, tr. port. p. 79 ss.).

[44]Nesta linha tradicional posicionam-se propostas contemporâneas de valorização do papel ético da literatura como a de M. Nussbaum (cf. e.o. Nussbaum 1997): a literatura torna os homens ‘melhores’. Apesar do seu bem intencionado cariz humanista, é problemática, nesta perspetiva, a idealização, algo utopística, das dinâmicas morais: as competências cognitivas (de juízo prático) e emocionais (empatia e relativização do ponto de vista individual) que objetivamente ganha o leitor de literatura, não se traduzem necessariamente e automaticamente numa consciência ética ‘superior’, equipada com o reconhecimento de valores consistentes do ponto de vista ‘humanista’ e com a motivação necessária ao seu exercício. Apesar de valiosa, a aprendizagem moral, decontextualizada de interações concretas, própria da experiência literária (leitura de textos e assistência a espetáculos), não é suficiente para desativar o narcisismo originário e a pulsão de morte que são os mecanismos primários da violência inter-humana.

[45]“Scribendi recte sapere est et principium et fons. / Rem tibi Socraticae poterunt ostendere chartae, / verbaque provisam rem non invita sequentur. / Qui didicit, patriae quid debeat et quid amicis, / quo sit amore parens, quo frater amandus et hospes, / quod sit conscripti, quod iudicis officium, quae / partes in bellum missi ducis, ille profecto / reddere personae scit convenientia cuique.”

[46]“Comedia vero inchoat asperitatem alicuius rei, sed eius materia prospere terminatur, ut patet per Terentium in suis comediis” (“A comédia, pelo contrário, começa com uma circunstância difícil, mas o decurso das coisas acaba de forma favorável, como se vê nas comedias de Terêncio”), Epístola XIII, in Alighieri, p. 1391.

[47]“The themes which the Comedy introduces represent a mixture of sublimity and triviality which, measured by the standards of antiquity is monstrous […]. And in general, as every reader is aware, Dante knows no limits in describing things which are humdrum, grotesque, or repulsive.” (Auerbach 1949, 184). “Many important critics – and indeed whole epochs of classicistic taste- have felt ill at ease with Dante’s closeness to the actual in the realm of the sublime – that is, as Goethe put it in his Annals for the year 1821, with his «repulsive and often disgusting greatness»” (Ib., 185).

[48] É perturbadora a violência, inexoravelmente impiedosa, da representação de danados que se tornam caricaturas desumanizadas da própria alma, como o colérico Filippo Argenti (Inf. VIII, 32-63), o ladrão Vanni Fucci (Inf. XXIV. 97-151; XXV, 1-15), o traidor da pátria Bocca degli Abati (Inf. XXXII, 70-123).

[49]. Sinceridade e autenticidade são as duas noções essenciais da identidade do “eu moderno”, como reconstruído exemplarmente por Trilling 1972 do ponto de vista literário e por Taylor 1989 do ponto de vista filosófico (duas obras que são referência essencial das páginas que se seguem).

[50]Em Cervantes, segundo Kundera, o mundo desvenda-se como insolúvel “ambiguidade”, como constelação de “verdades relativas que se contradizem”, pelo que a única certeza do homem (exemplarmente expressa pelos quatro séculos de romance europeu inaugurados pelo D. Quixote) vem a ser “a sabedoria da incerteza” (“la sagesse de l’incertitude”) (Kundera 1986, p.17).

[51]A substância oximórica da universalidade individual encontra uma expressão intrasponível na ideia de “negative capability” de Keats: At “once it struck me what quality went to form a Man of Achievement, especially in Literature, and which Shakespeare possessed so enormously—I mean Negative Capability, that is, when a man is capable of being in uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason” (Keats 1899, p. 277). A célebre definição é formulada por Keats numa carta escrita a 22 de Dezembro de 1817 aos seus irmãos George e Thomas.

[52]Que Dante ajudou decisivamente a construir: “And by virtue of this immediate and admiring sympathy with man, the principle, rooted in the divine order, of the indestructibility of the whole historical and individual man turns against that order, makes it subservient to its own purposes, and obscures it. The image of man eclipses the image of God. Dante’s work made man’s Christian-figural being a reality,and destroyed it in the very process of realizing it. The tremendous pattern was broken by the overwhelming power of the images it had to contain” (Auerbach 1949, p.202).

[53]Cf. Paulo, 1 Ts 4, 13; Ef 2, 12.

[54] Em figuras emblemáticas como Pamela, a protagonista do célebre romance epónimo (Pamela: or Virtue Rewarded) de Samuel Richardson, publicado em 1740, e o Fígaro das Bodas mozartianas.

[55]Para uma panorâmica desta evolução e do papel fulcral destes dois autores, cf. Trilling, pp. 26ss.

[56]“A “cultura” é o “espírito estranhado a si mesmo” (“Der sich enfremdete Geist. Die Bildung”), dividido entre consciência efetual e consciência pura (essência) (cf. Hegel 1807, pp. 359ss). “Dieser Geist bildet sich daher nicht nur eine Welt, sondern eine gedoppelte, getrennte und entgegengesetzte aus” (Ib., p.361: “Por isso, este espírito não forma para si apenas um mundo, mas um mundo duplicado, dividido e oposto”). O resultado é que a consciência moral se produz essencialmente como “Verstellung”, “distorsão” (cf. Ib., p.453).

[57]Mudança anunciada e maravilhosamente apresentada na grandeza de Hamlet. Todos são anões perante ele, e o único verdadeiro antagonista que tem é ele próprio: Hamlet é o herói e o anti-herói, que se divide sem saber escolher entre sinceridade e autenticidade, numa duplicidade que faz do eu o Doppelgänger de si mesmo. Neste sentido, o herdeiro direto de Hamlet é Faust, que se desdobra em Mefistófeles antes de se vender a ele

[58]. Criando, em Doutor Jekill e Mr Hyde, um personagem que se reproduz como duplo satânico de si mesmo através da própria arte, da própria ciência, Stevenson dá representação simbólica do problema do autor pós-romântico, que necessita de se distanciar existencialmente da convicção que unicamente a conversão estética da vida em obra de arte, além de todo o código ético, permite ao indivíduo conquistar a autenticidade que a sociedade lhe tira. Se Jekill/Hyde ‘salva’ Stevenson, no efeito libertador da projeção simbólica, Dorian Gray não salva Oscar Wilde: na vida real, o autor sucumbe à duplicação artística de si mesmo como Dorian, ao próprio retrato.

[59]A figura em que esta mudança de paradigma se condensa e encontra a primeira e formidável consagração mediática, em que a emulação se torna vetor principal da identificação, é notoriamente o Werther de Goethe, que desencadeou uma epidemia de imitadores na Europa do fim do século XVIII. O Werther-fieber (a febre Werther), com milhares de jovens vestidos à la Werther e alegadamente inclinados ao suicídio (apesar de não haver provas objetivas de um aumento do número dos suicídios a seguir à publicação do livro, segundo Jeßing 2004), inaugurou de forma marcante o romantismo.

[60]Um grupo relevante, mas minoritário, de escritores como Dostoiévski, Tolstói, Eliot, Huysmans, Peguy e Claudel não quer desistir, a cavalo entre os séculos XIX e XX, da potência moral da literatura e identifica na difusão do humanismo agnóstico o problema maior da sociedade do próprio tempo. Nesta leitura, a inautenticidade do homem contemporâneo é fruto da perda de uma fé cristã autêntica, e unicamente o regresso a ela, para o qual a literatura pode eventualmente contribuir, ajudará a recuperar aquela unidade interior, cultural e social, que é necessária à civilização e torna a vida sustentável. “I do not believe that the culture of Europe could survive the complete disappearance of the Christian Faith”, escreve Eliot num ensaio famoso. “If Christianity goes, the whole of our culture goes”. É como estudioso “da biologia social” que Eliot está convencido que “the dominant force in creating a common culture between peoples each of which has its distinct culture, is religion. […It is] the common tradition of Christianity which has made Europe what is” (Eliot 1948, p. 122). Cf. também Eliot 1939 para uma declinação robusta e problematicamente antiliberal desta reapropriação cultural da tradição cristã.

[61]Cf. Kundera 1987, L’héritage décrié de Cervantes, pp.11ss.

[62]Toda a filosofia e a arte da primeira metade do século XX são atravessadas por esta denúncia (que encontra em Husserl, Heidegger, Weber, Horkheimer e Adorno formulações intransponíveis) da auto sujeição do homem através da própria racionalidade, da destruição da Lebenswelt, dos habitats comunitários em que nos relacionamos como sujeitos - através de relações de reconhecimento -, por parte da máquina burocrática, técnica e científica da modernidade.

[63]“It has been in search of the absolute that the avant-garde has arrived at “abstract” or “nonobjective” art -- and poetry, too. The avant-garde poet or artist tries in effect to imitate God by creating something valid solely on its own terms, in the way nature itself is valid, in the way a landscape -- not its picture -- is aesthetically valid; something given, increate, independent of meanings, similars or originals. Content is to be dissolved so completely into form that the work of art or literature cannot be reduced in whole or in part to anything not itself.” Greenberg 1939, pp.5-6.

[64]O que o artista pretende é parecer alheio ao espetador, ou antes, causar-lhe estranheza. Para consegui-lo, observa-se a si próprio e a tudo o que está representando, com alheamento. Assim Brecht no ensaio seminal “Efeitos de distanciamento na arte dramática chinesa” de 1937, in Brecht 1957, pp. 74ss., tr. port., p.57.

[65]“O principal objetivo deste efeito era dar um caráter histórico aos acontecimentos apresentados. Explicando melhor: O que o teatro burguês sempre realça nos seus temas é a intemporalidade que os caracteriza. Apresenta-nos uma descrição do homem subordinada por completo ao conceito do chamado «eterno humano»” (Ib., p. 63). “Uma concepção como a que vimos nos referindo pode permitir a existência de uma história, mas é, não obstante, uma concepção não-histórica” (Ib.). “A concepção do homem como uma variável do meio ambiente e do meio ambiente como uma variável do homem, ou seja, a redução do ambiente às relações entre os homens, é fruto de um pensamento novo, o pensamento histórico” (Ib.).

[66]“Primeiro, o artista chinês não representa como se além das três paredes que o rodeiam existisse, ainda, uma quarta. Manifesta saber que estão assistindo ao que faz. Tal circunstância afasta, desde logo, a possibilidade de vir a produzir-se um determinado gênero de ilusão característico dos palcos europeus. O público já não pode ter, assim, a ilusão de ser o espectador impressentido de um acontecimento em curso” (Ib., p.56). “A noção de uma quarta parede que separa ficticiamente o palco do público e da qual provém a ilusão de o palco existir, na realidade, sem o público, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em princípio, permite aos atores voltarem-se diretamente para o público.” (Ib., p.80).

[67]O efeito de distanciamento típico da arte dramática chinesa “foi, ultimamente, utilizado na Alemanha, em peças de dramática não-aristotélica (que não se fundamentam na empatia): foi utilizado ao serviço das tentativas realizadas para a estruturação de um teatro épico. O objetivo dessas tentativas consistia em se efetuar a representação de tal modo que fosse impossível ao espectador meter-se na pele das personagens da peça.” (Ib., p. 55) “O contato entre o público e o palco fica, habitualmente, na empatia. Os esforços do ator convencional concentram-se tão completamente na produção deste fenômeno psíquico que se poderá dizer que nele, somente, descortina a finalidade principal da sua arte” (Ib., p.80).

[68] “O espectador do teatro dramático diz: - Sim, eu também já senti isso. - Eu sou assim. - O sofrimento deste homem comove-me, pois é irremediável. É uma coisa natural. - Será sempre assim. - Isto é que é arte! Tudo ali é evidente. – Choro com os que choram e rio com os que riem. O espectador do teatro épico diz: - Isso é que eu nunca pensaria. - Não é assim que se deve fazer. - Que coisa extraordinária, quase inacreditável. - Isto tem que acabar. - O sofrimento deste homem comove-me porque seria remediável. - Isto é que é arte! Nada ali é evidente. - Rio de quem chora e choro com os que riem” (Ib., p.48).

[69]Esta é a pergunta central em que Lispector inscreve a sua A Paixão segundo G.H. (a partir de agora referida como APSGH), obra crucial para esta reflexão.

[70]“Eu bitara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. Não o ato máximo, como antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato ínfimo que sempre me havia faltado” (Ib., p. 140).

[71]Cf., em APSGH, a referência recorrente e explícita ao “nojo” inspirado por este animal (o outro não-herói do romance): “o meu nojo por baratas,” (Ib., p.37) “Constrangeume o corpo em nojo profundo (Ib., p.39) “Era-me nojento o contato com essa coisa sem qualidades nem atributos, era repugnante a coisa viva que não tem nome, nem gosto, nem cheiro.” (Ib., p.68). Se, na Metamorfose de Kafka, a transfiguração em barata do não herói-protagonista se produz como uma destituição que o leva à morte, em APSGH a não-heroína-protagonista resgata-se no rebaixamento da identificação com o inseto: encontra-se a si mesma ao ‘perder-se’, acolhendo a ‘revelação’ da própria identidade profunda com a anti-não-heroína barata.

[72] “Such is to me the secret of all forms of Paganism. Worship is transcendent wonder; wonder for which there is now no limit or measure; that is worship. To these primeval men, all things and everything they saw exist beside them were an emblem of the Godlike, of some God. And look what perennial fibre of truth was in that. To us also, through every star, through every blade of grass, is not a God made visible, if we will open our minds and eyes? We do not worship in that way now: but is it not reckoned still a merit, proof of what we call a «poetic nature» that we recognize how every object has a divine beauty in it; how every object still verily is «a window through which we may look into Infinitude itself»? He that can discern the loveliness of things, we call him Poet! Painter, Man of Genius, gifted, lovable.” (Carlyle 1840, Hero as Divinity, p. 27). “They understand little of the man who cite this in discredit of him! — I will call this Luther a true Great Man; great in intellect, in courage, affection and integrity; one of our most lovable and precious men. Great, not as a hewn obelisk; but as an Alpine mountain, -- so simple, honest, spontaneous, not setting up to be great at all; there for quite another purpose than being great! Ah yes, unsubduable granite, piercing far and wide into the Heavens; yet in the clefts of it fountains, green beautiful valleys with flowers! A right Spiritual Hero and Prophet; once more, a true Son of Nature and Fact, for whom these centuries, and many that are to come yet, will be thankful to Heaven” (Ib., Hero as Priest., p.123).

[73]No cariz cómico do teatro de Beckett inscreve-se uma dimensão irónica mais abrangente, de disrupção do narrativo, de disrupção da forma, em que, seguindo a reconstrução de Paul de Man, o “a parte bufonesco” por meio do qual se consome a destruição da ilusão ficcional se radicaliza como destruição da ilusão cognitiva do real, o seu desvendamento como puro “caos”, isto é como “erro, loucura e estupidez” (cf. de Man 1996, pp. 180ss., ao relançar a definição de poesia de Friedrich Schlegel).

[74] Para uma leitura bastante diferente, que recoloca Beckett e o teatro do absurdo na tradição da tragédia (deflacionada, contudo, como “infratragédia”), cf. Domenach 1967, que fala programaticamente de regresso do trágico.

[75]“Não pode ser que uma regra tenha sido seguida uma única vez por um único homem. Não pode ser que uma comunicação tenha sido feita, que uma ordem tenha sido dada ou compreendida apenas uma vez. Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são costumes (usos, instituições). Compreender uma proposição significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica.” (WITTGENSTEIN, §199, p. 320).

[76]A arte ‘toma conta’ de, dá expressão a experiências de ‘desorganização’ dos equilíbrios feitos, das identidades (desmascarados como ‘falsos’, inautênticos). O termo desorganização é o ‘Leitwort’ da página de abertura de APSGH: “Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso queria chamar desorganização .... A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi –na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.” (APSGH, p. 9). A epifania é uma experiência de visão que desorganiza profundamente: “Estou desorganizada[...]. O que vi não está organizável” (Ib., p.53).

[77]O original russo é ostranenie, que se apresenta como programática produção da Unheimlichkeit descrita por Freud nos mesmos anos, e que na sua declinação artística é vista não como problema (como estado psíquico de angústia), mas como recurso cognitivo. Na rotina garantida pela esquematização cultural da nossa experiência, afirma Shklovsky, a nossa perceção da realidade é automatizada “[a]nd so life is reckoned as nothing. Habitualization devours work, clothes, furniture, one’s wife, and the fear of war. «If the whole complex lives of many people go on unconsciously, then such lives are as if they had never been» And art exists that one may recover the sensation of life; it exists to make one feel things, to make the stone stony. The purpose of art is to impart the sensation of things as they are perceived and not as they are known. The technique of art is to make objects «unfamiliar », to make forms difficult, to increase the difficulty and length of perception because the process of perception is an aesthetic end in itself and must be prolonged. Art is a way of experiencing the artfulness of an object: the object is not important” (Shklovsky 1917, in Id. 1929, p.2).

[78] No colapso da religião, alegadamente substituída pela arte no seu papel de gerador de ‘sentido’, o artista pode chegar a ver-se como substituto de Deus, segundo a celebre tese de Matthew Arnold 1880, disseminada na memória criativa de muitos artistas da viragem modernista.

[79]O não-herói kafkiano e beckettiano é sistematicamente vítima de violência, mas nunca a inflige. Alem de mais, a solidão claustrofóbica dos personagens kafkianos é quebrada sempre de novo, em Beckett, na exploração de relações, eventualmente disfuncionais, mas vitais para os protagonistas. Em peças emblemáticas como En attendant Godot, Fin de Partie, Happy Days, a espera é singularmente não comunitária, mas também não solitária, declinada nas ligações interpessoais.

[80]. De que ele não tem, contudo, algum ‘domínio’, alguma certeza. Quão sincero pode ser um ser inautêntico? O que é certo é que nesta pergunta se joga a aposta ‘moral’ de uma peça como Trapp’s Last Tape. A confissão do protagonista, ato que por definição implica sinceridade, é uma luta interior, eventualmente perdida, com a própria inautenticidade.

[81]Segunda a célebre fórmula hölderliniana reproposta por Heidegger (cf. em particular Heidegger 1966).

[82]Por várias razões, não será incluída nesta galeria Agustina Bessa-Luís, uma autora de que seria interessante estudar as afinidades com Flannery O’Connor, a que está muito próxima pelo “regionalismo”, o “catolicismo” explicitamente assumido (cf. O’Connor 1962), a escrita não convencionalmente grotesca e anti sentimental. O facto de que também em Bessa-Luís o deforme e o repugnante sejam acolhidos como ‘lugares teológicos’ de redenção e revelação, pode ser considerado como a marca de água da sua escrita, desde o fulminante começo d’ A Sibila. Para uma análise circunstanciada desta perspetiva, cf. o trabalho pioneiro de Sarsfield Cabral 1993: “Ao percorrer a obra de ABL, é possível detetar lugares privilegiados que revelam a essência misteriosa do humano e que, ao revelá-la, manifestam, obliquamente, o divino. Entre elas destacarei as figuras do simples (o que é pequeno e insignificante), do povo (os pobres), de seres abjetos ou anormais e ainda representações do mundo subterrâneo” (Ib., 102) (cf. o desenvolvimento desta chave crítica em relação a várias personagens da obra da Agustina, como a Perdiz e Damião, n’Os Incuráveis. Ib., pp.110 ss.).

[83]“My own feeling is that writers who see by the light of their Christian faith will have, in these times, the sharpest eyes for the grotesque, for the perverse, and for the unacceptable.” I think that “more often the reason for this attention to the perverse is the difference between their beliefs and the beliefs of their audience. Redemption is meaningless unless there is cause for it in the actual life we live…. The novelist with Christian concerns will find in modern life distortions which are repugnant to him , and his problem will be to make this appear as distortions to an audience which is used to seeing them as natural; and he may well be forced to take evermore violent means to get his vision across to this hostile audience.”

[84] “When I look at stories I have written, I find that they are, for the most part about people who are poor, who are afflicted in both mind and body, who have little –or at least distorted – sense of spiritual purpose.”

[85] “His way will much more obviously be the way of distortion”.

[86]Our “present grotesque heroes are not comic, or not at least not primarily so. They seem to carry an invisible burden and to fix us with eyes that remind us that we all bear some heavy responsibility whose nature we have forgotten. They are prophetic figures. In the novelist’s case prophecy is a matter of seeing near things with their extensions of meaning and thus of seeing far things close up. The prophet is a realist of distances, distances in the qualitative sense, and it is this kind of realism that you find in the modern instances of the grotesque. But to the eye of the general reader, these prophet-heroes are freaks. The public invariably approaches them from the standpoint of abnormal psychology.”

[87].“The result of this underground religious affinities will be a strange and, to many, perverse fiction – one which serves no felt need, which gives us no picture of Catholic life or the religious experiences that are usual with us” (O’CONNOR 1963, p.860).

[88] “It’s not necessary to point out that the look of this fiction is going to be wild, that is almost of necessity going to be violent and comic, because of the discrepancies that it seeks to combine. Even though the writer who produces grotesque fiction may not consider his characters any more freakish than ordinary fallen man usually is, his audience is going to […]. Thomas Mann has said that the grotesque is the true anti-bourgeoise style, but I believe that in this country, the general reader has managed to connect the grotesque with the sentimental, for whenever he speaks of it favorably. He seems to associate it with the writer’s compassion. It is considered an absolute necessity, these days, for writers to have compassion […]. Certainly when the grotesque is used in a legitimate way, the intellectual and moral judgements implicit in it will have the ascendency over feeling.”

[89]“Whenever I’m asked why Southern writers particularly have a penchant for writing about freaks, I say it is because we are still able to recognize one. To be able to recognize a freak, you have to have some conception of the whole man, an in the South the general conception of man is still, in the main, theological […]. The South is hardly Christ-centered, it is most certainly Christ-haunted.”

[90]“In any case, it is when the freak can be sensed as a figure for our essential displacement that he attains some depth in literature.”

[91]His need “is to be lifted up. There is something in us, as story-tellers and as listeners to stories, that demands the redemptive act, that demands that what falls at least be offered the chance to be restored. The reader of today looks for this motion, and rightly so, but what he as forgotten is the cost of it. His sense of evil is diluted or lacking altogether and so he has forgotten the price of restoration.”

[92]“In this popular pity, we mark our gain in sensibility and our loss in vision: if other ages felt less, they saw more, even though they saw with the blind, prophetical, unsentimental eye of acceptance, which is, to say, of faith In the absence of this faith now, we govern by tenderness.”

[93]No conto que traz o título programático “Revelação”, é literalmente perante um curral de porcos (“espreitou os porcos dentro do curral, como se observasse o centro de um mistério.” O’Connor 1965, pp.181-182) que se consuma a epifania final em que aquele Jesus que recusa sistematicamente responder-lhe envia a Mrs. Turpin, a protagonista, uma “visão”: “Ergueu as mãos sobre o curral num gesto profundo e hierático. Uma luz visionária repousava nos seus olhos. Viu essa faixa no céu como uma colossal ponte suspensa, erguendo-se da terra sobre um campo de chamas ardentes. Uma turba vasta de almas perdidas atravessavam-na a caminho do céu” (Ib., 182).

[94]We “live now in age which doubts both fact and value, which is swept this way and that by momentary convictions. Instead of reflecting a balance from the world around him, the novel now has to achieve one from a felt balance inside himself. There ages when it is possible to woo the reader.; there are others when something more drastic is necessary” (O’Connor 1960, p. 820).

[95] Intuição relançada por Tolentino Mendonça num poema em que lembra a passagem de S.Paulo (1 Co 4, 13: “Tornámo-nos, até ao presente, como o lixo do mundo e a escória do universo”), cuja transcrição O’Connor tinha à cabeceira da cama: “Os orantes são mendigos da última hora / remexem profundamente através do vazio / até que neles /o vazio deflagre / São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios, / «até agora somos o esterco do mundo» / citação que Flannery trazia à cabeceira” (Mendonça 2006, p. 178).

[96]Desde que “The reader wants his grace warm and binding, not dark and disruptive (O’Connor 1963, p.862), o objetivo principal do autor será não produzir “sentimental literature” (O’Connor 1957, p.804) para desmentir, destruir esta expetativa: “by separating nature and grace as much as possible, [an average Catholic reader] has reduced his conception of the supernatural to pious cliché and has become able to recognize nature in literature in only two forms, the sentimental and the obscene , […] and the similarity between the two generally escapes him” (O’Connor 1957b, p.809). “To look at the worst will be for him no more than an act of trust in God” (Ib., p.810).

[97]“I don’t believe that you can impose orthodoxy on fiction. I do believe that you can deepen your own orthodoxy by reading if you are not afraid of strange visions […]. Saint Gregory wrote that every time the sacred text describes a fact, it reveals a mystery. And this is what the fiction writer, on his lower level, attempts to do also.”

[98] “Henry James said that in his fiction, he did things in the way that took the most doing. I think the writer of grotesque fiction does them in the way that takes the least, because in his work distances are so great. He’s looking for one image that will connect or combine or embody two points; one is a point in the concrete and the other is a point not visible to the naked eye, but believed by him firmly, just as real to him, really, as the one that everybody sees.”

[99]“The problem for such a novelist will be to now how far he can distort without destroying”.

[100]Cf. o comentário de O’Connor ao conto de Nathaniel Hawthorne “The Birthmark” (O’Connor 1961, pp.823s.) in “A memoir of Mary Ann”, texto dedicado precisamente à questão da aceitação do mal, em particular do sofrimento, que deve ser acolhido não como praga a eliminar, mas como condição humana de que cuidar: “A ativa eliminação da imperfeição humana” (Ib., p.830 ), observa O’Connor, é uma ocupação maior da nossa época, e ela é algo de completamente diferente do empenho para estar ao lado de quem sofre, vencendo o “gelo no sangue” e a “repulsa para a fealdade” (Ib., p.824) que nos afasta dele. Afinal, “The communion of Saints …is a communion created upon human imperfection, created from what we make of our grotesque state” (Ib., p.831).

[101]“[T]hat evil is not simply a problem to be solved, but a mystery to be endured”.

[102]“Eu estava limpa da minha própria intoxicação de sentimentos, limpa ao ponto de entrar na vida divina que era uma vida primária inteiramente sem graciosidade.” (APSGH, p.82)

[103]“Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum pano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa , e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não o contradizem.” (Ib., 125).

[104] “[A]deus beleza do mundo. Beleza que me é agora remota e que não quero mais. Estou sem poder mais querer a beleza” (Ib., 65). A “limpeza” e a ‘conformidade’ própria desta beleza eram condição destruidora de não ser nada mais do que uma cópia agradável de si mesmos: “Quanto a mim mesma, sem mentir nem ser verdadeira [...]. Enquanto eu mesma era, mais do que limpa e correta, era uma réplica bonita. Pois tudo isso é que me torna generosa e bonita.” (Ib., 24). Abandonar a ‘falsidade’ própria desta beleza (feita de ordem e unidade) torna possível a descoberta de uma nova forma de beleza, que “horroriza” e mete medo em desvendar a face de Deus como aquilo que revela a nudez final do homem, o seu ser mais profundo: “Eu tinha medo da face de Deus, tinha medo de minha nudez final na parede. A beleza, aquela nova ausência de beleza que nada tinha daquilo que eu antes costumava chamar de beleza, me horrorizava.” (Ib., 77)

[105] “Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos [...]. Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo” (Ib., 56) (frase destacada como refrão, como cerne, que encerra um capítulo para ser repetida em abertura do capítulo sucessivo). “Eu estava sabendo que que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz. [...]. Porquê? por que não queria eu me tornar imunda quanto a barata?” (Ib., 57)

[106] Erro denunciado na citação de Bernard Berenson escolhida por Lispector como epigrafe do livro: “A complete life may be one ending in so full identification with the non-self that there is no self to die” (Ib., p. 99) (“Uma vida completa pode ser aquela que acaba numa identificação tão plena com o não-eu que não há nenhum eu a morrer”).

[107]“Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que eu não era [...]. Para saber o que realmente eu tinha a esperar, teria eu antes que passar pela minha verdade?” (Ib., p.46).

[108]“Eu não queria reabrir os olhos, não queria continuar a ver. Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los, é preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também não haverá a ordem, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender.” Mas “eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entra no inferno da matéria viva.... Eu tinha de cair na danação da minha alma.” (Ib., 46-47).

[109]Cf. em particular o último capítulo do romance, que é todo uma articulação da kenosi do eu, do seu esvaziamento e rebaixamento, como meio para recuperá-lo: “A desistência é uma revelação [...]. Desisto e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana [...]. “E, finamente, me votando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim” ganhei “confiança [...] Eu confiava.” (Ib., 139) “Eu botara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. [...] Por não ser, eu era[...]. Mas agora eu, muito menos que humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano” (Ib., p.140).

[110] “«Não saber» – era assim então que o mais profundo acontecia?” (Ib., p.130). “A verdade tem que estar exatamente no que não poderei jamais compreender” (Ib., p.87, p.89).

[111] Eu “estava saindo do meu mundo e entrando no mundo [...]. É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo” (Ib., p.50).

[112]“ – Então – então pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em mim. Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.” (Ib., p. 95, cf. também pp. 96ss.). A solidariedade com o mundo implicada nesta ‘opção pelo inferno’ é ponto de vista muito próximo ao de O’Connor: “Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, as o que somos. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo” (Ib., p.137).

[113]“Para a minha anterior moralidade profunda – minha moralidade era o desejo de entender e, como eu não entendia, eu arrumava as coisas, foi só ontem e agora que descobri que sempre fora profundamente moral: eu só admitia a finalidade – para a minha profunda moralidade anterior, eu ter descoberto que estou tão cruamente viva quanto essa crua luz que ontem aprendi, para aquela minha moralidade, a glória dura de estar viva é horror. Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha. É que um mundo todo vivo tem a força do de um Inferno” (Ib., 17). A “liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso ser maior que a culpa. A minha ínfima parte divina é maior que a minha culpa humana. O Deus é maior que minha culpa essencial. Então prefiro o Deus, à minha culpa.” (Ib., 68).

[114]“Será preciso «purificar-me» muito mais [...]. Antigamente purificar-me significaria uma crueldade contra o que eu chamava de beleza, e contra o que eu chamava de beleza, e contra o que eu chamava de «eu», sem saber que «eu» era um acréscimo de mim” (Ib., 135).

[115]Uma desistência que leva à adoração, palavra com que se conclui o livro: “E entregando-me com a confiança de pertencer ao desconhecido. Pois só posso rezar ao que não conheço” (Ib., 140). “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. - -----” (Ib., 141).

[116]A recusa socrática desta indiferença do divino é o núcleo autêntico do facto de que Sócrates ‘mata’ a tragédia, como realçado pelo Nietzsche do Nascimento da Tragédia, numa reconstrução que resulta certeira, mesmo para quem não partilha o antissocratismo irracionalista que a alimenta (Nietzsche 1872/1886).

[117]Tous ceux qui tombent e Cascando é o título emblemático de duas peças radiofónicas de S. Beckett.