As crianças de Salinger: Inocência e sacralização da infância em Nine Stories (1953)  
Salinger’s children: Innocence and childhood sacredness in Nine Stories (1953)     

Arthur Aroha Kaminski da Silva*
*Doutorando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (PPGL - UFPR), e Mestre pelo mesmo programa. Contato: arthuraroha@gmail.com 

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Resumo:

O presente artigo procura demonstrar que há uma forte similaridade entre a maneira pela qual o escritor norte-americano J.D. Salinger construiu os vários personagens criança de Nine Stories (1953) – especialmente aquele nomeado Teddy – e a poética romântica da infância, inaugurada por autores ingleses como William Blake e William Wordsworth, onde a criança é representada como uma entidade sagrada, portadora de uma pureza e sabedoria celestiais. Para tanto, operamos uma análise direta dos contos de Salinger – pela qual exploramos suas personagens e técnicas literárias –, mas também uma ampla revisão bibliográfica que visa rastrear os motivos que levaram ao surgimento dessa poética literária da infância no século XVIII e sua continuidade até o século XX, além de identificar algumas das interinfluências das doutrinas filosóficas, teológicas e psicanalíticas que debateram a infância durante os últimos séculos. Desta forma, o presente artigo transita por questões como: desenvolvimento e educação infantil, o pecado original, inocência, experiência social e mundana, pureza de intenções e estado natural, iluminação espiritual, Salvação Cristã e Nirvana Zen-Budista. Elementos que se vinculam à sacralização da infância operada por diversos autores de textos literários, a exemplo de Blake, Wordsworth e, claro, Salinger.   

Palavras chave: Infância. Inocência. Salvação. J.D. Salinger. Nine Stories. 

Abstract

This article intends to demonstrate that there is a strong similarity between the way that the north American writer J.D. Salinger built the various child-characters of Nine Stories (1953) – specially the one named Teddy – and the romantic poetic of childhood, inaugurated by English authors like William Blake and William Wordworsth, where the child is represented as a sacred entity, carrier of a celestial purity and wisdom. Therefore, we operate a direct analysis of Salinger short stories – by which we explore his characters and literary techniques –, but also a wide bibliographic review that aim to track back the motives that led to the emergence of this literary poetic of childhood during the Eighteenth Century and it’s continuity until the Twentieth Century, apart from identifying some of the interinfluences of the philosophical, theological, and psychanalytic doctrines that debated the childhood during the last centuries. Thus, this article transits by questions as: child education and development, the original sin, innocence, social and worldliness experience, purity of intentions and the natural state, spiritual illumination, Christian Salvation, and Zen-Buddhist Nirvana. Elements that bind to the childhood sanctification operated by several literary authors, like Blake, Wordsworth, and, of course, Salinger. 

Keywords: Childhood. Innocence. Salvation. J.D Salinger. Nine Stories. 

1. Introdução

Nascido em Manhattan, Nova York, a 1º de janeiro de 1919, Jerome David Salinger era filho de imigrantes: pai polonês e mãe irlandesa. Ele cresceu junto com sua cidade natal, já que durante a década de 1920 Nova York passava por um boom econômico, se estabelecia como área mais populosa do planeta, e se transformava com a construção de seus famosos arranha-céus. Já durante a adolescência conviveu com o contexto da Grande Depressão, uma das maiores crises econômicas da história norte-americana, e que só terminou com a chegada da II Guerra Mundial. Foi nesse período que Salinger iniciou sua carreira como escritor, publicando contos em revistas literárias, mas pouco depois foi convocado para o exército e enviado para o front na Europa, onde lutou inclusive nos desembarques da Normandia. As experiências de Salinger na guerra e as violências que ele presenciou marcariam profunda e irremediavelmente sua vida, e temáticas como a depressão, ansiedade e dificuldade de adaptação à vida social na volta aos Estados Unidos aparecem em quase todos os seus textos, que alcançaram alta popularidade. Alguns de seus contos foram publicados na renomada revista The New Yorker, e junto do livro The Catcher in the Rye (O Apanhador no Campo de Centeio, 1951) o tornaram um dos mais influentes escritores norte-americanos do pós-guerra. Sua dificuldade de lidar com os traumas de guerra e se reinserir socialmente, todavia, o levaram a se tornar cada vez mais recluso, e até mesmo agressivo às tentativas de contato. Assim, entre as décadas de 1970 e 2010, quando faleceu, Salinger se manteve praticamente incógnito. 

Além das questões relacionadas à guerra, vários dos textos de J.D. Salinger têm outra coisa em comum: retratam crianças e sua maneira de se relacionar com o mundo. Apesar de esta não ser exatamente uma novidade, tendo tal ponto já sido percebido por uma série de autores com que dialogaremos, é sobre esta questão que este artigo pretende reflexionar, já que consideramos que nem todos os meandros desta relação foram ainda explorados. Neste artigo, mais especificamente, nosso foco recairá sobre o livro de contos Nine Stories (1953), e em especial no texto Teddy e seu protagonista homônimo, uma criança sacralizada. 

Nosso texto, por uma questão organizacional, se dividirá em tópicos, os quais almejam cobrir os seguintes pontos principais: a romantização da infância; as crianças de Nine Stories e seus simbolismos; a criança santa do conto Teddy e a sacralização da infância. Passemos, pois, a tais reflexões. 

2. Poéticas da infância: a contenda entre Inocência e Experiência nos âmbitos teológico, filosófico e literário

São raros os textos literários contemporâneos protagonizados (em parte ou totalidade) por personagens crianças que deixam de mencionar ou pintar certas características ditas infantis − seja certa incapacidade de concentração, a presença constante de devaneios, uma curiosidade e sinceridade muito exacerbadas, e uma imaginação ou inocência muito afloradas. Tais caracterizações parecem ser uma constante, e o que muda é apenas a maneira pelas quais são apresentadas: como uma vantagem ou uma desvantagem em relação ao modo como os adultos se relacionam com o mundo. Concomitantemente, nesses mesmos textos é também perceptível a onipresença de determinadas temáticas, como o ato de brincar, o medo (e sua possível superação), o trauma, a violência, a desconfiança ou incompreensão em relação a adultos, a desconstrução de convenções sociais, e um sentimento de maravilhamento onírico. Ademais, várias dessas obras parecem carregar ainda um marcado desejo – por parte dos narradores ou dos próprios autores – de se recuperar algo, como que uma Inocência ou capacidade criativa há muito perdida. 

Salinger, como veremos não foge a esses padrões, e todas essas similaridades, como indica Roz Evans (2012), não são meras coincidências, pois durante os últimos séculos uma concepção europeia específica de infância foi exportada para o restante do mundo: a de que a infância é um período de inocência e vulnerabilidade, durante o qual a criança precisa da proteção do adulto em função de sua imaturidade física e emocional. Um período em que as crianças devem ser educadas e isoladas, como forma de proteção contra os domínios do trabalho, sexo e política, vistos como potencialmente danosos a seu desenvolvimento. Uma concepção que, embora pertencente a um momento histórico e cultural específico – a industrialização da Europa Ocidental –, tem sido tratada como universal (EVANS, 2012, p. 2). 

Conforme indica a especialista em poéticas da infância Roni Natov (2003), grande parte dessa imagética da infância ocidental se baseia numa antiga contenda filosófica e religiosa, a qual se delimita no debate sobre a origem do pecado ou do afastamento de uma “Inocência natural” como ocorrendo no nascimento, na infância ou na vida adulta. Desta forma, a questão central dessa imagética é a dualidade entre os seguintes elementos: a Inocência – que pode simbolizar, de pontos de vista religioso, filosófico ou antropológico, a pureza espiritual e a salvação, ou a integração com o Self e com a natureza; e a Experiência – que engloba nossa relação com a civilização e suas culturas, educação, tecnologia, teorias, costumes, normas, relações sociais, políticas e violências, ou seja, tudo aquilo que perfaz o viver em uma sociedade humana. Mas como essa dualidade foi e é encarada em diferentes áreas do conhecimento? 

No âmbito teológico, podemos dizer que uma das origens desta dicotomia se iniciou com as discussões agostinianas sobre o pecado original. Nas sociedades cristãs europeias anteriores ao Século XVIII havia uma forte doutrina ancorada na noção do Pecado Original, que determinava que todo ser humano nasce em pecado – no sentido de carregar a culpa coletiva pelo pecado edênico de Adão e Eva. Segundo a lógica dessa doutrina, portanto, toda criança nasceria portando a semente do mal que a condenaria à danação, e o crescimento e a experiência terrena seriam um dos caminhos para a absolvição – começando pelo batismo e seguindo por uma vida regrada pelos dogmas e ensinamentos das Igrejas Católica ou Protestantes. 

Mais especificamente, a doutrina do Pecado Original surge através do embate teológico do século IV entre Pelágio da Bretanha e Agostinho de Hipona (também chamado Santo Agostinho), sendo este último o autor da concepção primeira do termo em latim peccatum originale (PATTE, 2010, p. 892). O pecado adâmico original, na compreensão de Agostinho, era transmitido entre humanos através da culpa coletiva pela concupiscência, que, grosso modo, engloba os pecados da ganância e da luxúria, conectando-se ao apreço por bens materiais e pelo prazer sexual. Pelágio, por outro lado, defendia que não se deveria culpar um indivíduo pelos pecados de outrem, e assim seria injusto culpabilizar crianças pelos pecados dos adultos que as cercavam ou que as precederam (REIS, 2016). A contenda religiosa foi resolvida nos Concílios de Cartago de 416 e 418, no qual a Igreja Católica deu razão a Agostinho, validando o Batismo como uma das formas de minimizar o Pecado Original (REIS, 2016; CAPDEVILLA, 1989), e estabelecendo a raiz desta doutrina que permearia a história do medievo europeu. 

É interessante lembrar ainda que, como narra Philipe Ariès (1986), durante a maior parte deste mesmo medievo a ideia de infância e preocupações com esse período da vida eram extremamente diferentes das que temos hoje. Naquele contexto a duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, e se encerrava por volta dos seis ou sete anos, quando a criança adquiria capacidade física suficiente para as atividades mais básicas à vida, sendo já nesta idade misturada aos adultos, partilhando de seus trabalhos, jogos, e demais atividades sociais. Assim, de maneira geral, o desenvolvimento e processos de aprendizado da criança nessas sociedades se dava pela experiência direta com o amplo mundo social, e tudo de positivo e negativo que isso acarretava. Posteriormente, quando das Grandes Navegações e da expansão de colégios religiosos para as colônias europeias, os instrutores católicos notariam uma “vantagem” das crianças em relação aos adultos na busca pela salvação: o fato de a criança ser como uma tabula rasa, mais facilmente convertida ou convencida de algo do que um adulto que já teve largo contato com outros costumes e religiões. Uma percepção especialmente notada pelos missionários jesuítas na América do Sul, que chegavam a chamar as crianças indígenas de “anjos inocentes” (FLECK, 2007, p. 113)1 . Há assim no âmbito religioso cristão uma valorização da Inocência infantil mesmo com a presença da doutrina do Pecado Original, pois seria essa condição de inocência que protegeria a criança da experiência “errada” promovida por uma vida social não cristã, vista como nociva. 

No âmbito filosófico os efeitos nocivos da experiência social também foram temas preponderantes nas discussões que originaram o conceito de estado natural. Grosso modo, o estado natural seria o hipotético estágio em que os humanos viviam antes do advento da sociedade organizada, o qual foi descrito por autores como Thomas Hobbes (em Leviathan, 1651) e Jean-Jacques Rousseau (em Discourse on Inequality, 1755, e Émile, ou De l’éducation, 1762) – os quais tomaremos como exemplos – entre outros. 

Em Leviatã, Hobbes (2009) estabelece as justificativas para sua defesa de um contrato social que permita um governo centralizado e absoluto, que ele considerava o único meio de controlar ou conter os estragos causados pelo estado natural humano, o qual – para ele – levaria inevitavelmente à guerra e conflitos contínuos em pequena e larga escala. Isso porque, para Hobbes, o estado natural seria um estado negativo, de conflitos contínuos alimentados pela característica intrínseca humana de fazer uso da força para alcançar seus intentos, satisfazer seus desejos, vencer competições e obter bens. Para ele, portanto, o ser humano não teria a capacidade de controlar suas pulsões, estando fadado a um estado de violência, auto predação, miséria e solidão. A forma de evitar esse pessimista destino? O Estado – seja ele teocrático, civil, autoritário ou monárquico –, que ele chamava de homem artificial, um indivíduo ou coletivo ao qual pelo contrato social os membros de uma sociedade afeririam o direito de governá-los, contê-los, puni-los, e assim por diante, de modo a permitir uma existência coletiva pacífica e ordenada (Cf. HOBBES, 2009) 

Em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, Rousseau (2008), por sua vez, se opõe à teoria de Hobbes de que o ser humano é naturalmente violento e predatório. Para Rousseau, indivíduos no estado natural – da mesma forma que a maioria dos animais – seriam imbuídos de dois sentimentos essenciais: o de autopreservação, principal determinador de sua existência; e o de repugnância ao sofrimento, tanto seu quanto dos outros, o que conforma uma espécie de compaixão ou piedade. Sendo a autopreservação o sentimento dominante, para Rousseau era evidente que um indivíduo no estado natural pudesse se tornar violento ou predatório caso ameaçado, seja por um animal, outro humano, ou pela fome, por exemplo. Entretanto, para Rousseau, o conflito não seria um estado contínuo como imaginara Hobbes, até porque num universo pré civilizado sequer existiriam conceitos como o de propriedade privada e posse material – marcas do estabelecimento de normas sociais (Cf. ROUSSEAU, 2008). 

Grosso modo, portanto, para Rousseau, o que acontecia é que Hobbes potencialmente houvesse cometido um anacronismo, tendo imaginado não um homem em estado natural per se, mas sim um homem europeu do século XVII transportado para um mundo pré-histórico e civilizacional. Assim, as origens da corrupção estariam não no estado natural, a Inocência em essência, mas sim na sociedade europeia em que viviam, e que representava a Experiência. É interessante notar que nem Hobbes nem Rousseau falavam especificamente de crianças, mas nos séculos seguintes se tornou usual vincular-se o estado natural à infância, em especial em função do texto Émile, ou De l’éducation (1762) – um tratado novelesco de Rousseau que retrata a relação do infante Emílio e seu tutor como um modelo educacional que permitiria ao homem em estado natural resistir à corrupção social. Assim, da mesma forma que no âmbito religioso cristão havia uma valorização da Inocência infantil em detrimento da experiência mundana não adequadamente guiada, o mesmo ocorria na filosofia iluminista. 

Não à toa, portanto, a vinculação da Inocência infantil ao estado natural positivo de fato se tornou tão amplo na Europa que no âmbito literário elas talvez sejam indissociáveis. Tanto que, como diz Natov, “durante o Século XVIII, a criança romântica, concebida por Rousseau, Blake e Wordsworth como uma personificação da bondade natural, tornou-se central nas formas como a infância era imaginada” (NATOV, 2003, p. 3-4). William Blake, poeta por ela mencionado, é autor de Songs of innocence and of experience (1789), uma coleção de poemas ilustrados que retratam um tipo de dualismo mítico em que a Inocência representa o mundo não caído ou corrompido, por sua vez representado pela Experiência. Esta dicotomia é construída principalmente através do uso da imagem da criança como uma entidade em estado de inocência, uma pureza de nascença que se opõe numa à doutrina do pecado original. Todavia, na obra de Blake esta pureza não é imune à corrupção, podendo ser influenciada ou deteriorada pelo decadente mundo da experiência, representado pelo universo adulto e seus costumes e normas. A criança, uma entidade pura, portanto, pelo contato com a vida mundana e experiência do envelhecimento correria o risco de perder sua vitalidade original, sendo gradualmente marcada pelo medo, violência, sexualidade, inibição, corrupção política, social e religiosa (Cf. BLAKE, Songs of innocence and of experience, 2008, p. 7-32). 

Não é difícil notar que a obra de Blake carrega uma forte crítica social, focada na Igreja, no Estado, e nos costumes das classes dominantes, elementos que na obra dele surgem como representantes do que perfaz o mundo da experiência terrena. Por outro lado, há aí também a permanência de um elemento mítico-religioso, já que, embora crítico das Igrejas Católica e Anglicana, Blake nunca deixará de se considerar cristão, e a Inocência por ele idealizada se relacionava à pureza almejada como caminho para a salvação cristã, fé que ainda professava de forma pessoal (e quiçá herética), através de sua própria mythopoeia e visões (no sentido de alucinações mítico-religiosas mesmo)2 , descritos em seus livros proféticos (Cf. BLAKE, Prophetic Works, 2008, p. 276-400). 

William Wordsworth – o outro escritor mencionado por Natov (2003, p. 21) – foi um dos expoentes do movimento Romântico europeu. Como Blake, Wordsworth descobriu na infância sua grande fonte de inspiração, e em muitos de seus poemas surgem crianças, muitas vezes ocupando o papel de mentoras em diálogos com adultos que não as entendem e delas recebem lições sobre o mundo e a existência. Há em Wordsworth, portanto, uma inversão dos valores sociais tradicionais – onde o adulto é que ensinaria a criança –, e em sua obra os infantes é que se tornam os professores, portadores de uma sabedoria externa e superior, em contraste à experiência mundana dos adultos, que perderam contato com sua sabedoria original. É possível perceber que essa inversão, como em Blake, também carrega ainda um caráter religioso – e Wordsworth era um ardoroso anglicano –, pois por vezes, “nestes poemas, [...] a criança é Cristo. A criança é o ‘Olho entre os cegos’, aquele que vê o que escapa à nossa visão adulta” (NATOV, 2003, p. 21)3 . Ademais, seus poemas, também em consonância com os de Blake, representavam o convívio das crianças com os adultos e a Experiência como a derrocada de sua sabedoria primordial, escancarando a impossibilidade dos adultos de lidarem com a essência celestial, o que fazia com que limitassem seus filhos – seja pela força, ou as fazendo sentir vergonha de sua sabedoria e espontaneidade –, gradualmente as “adequando” ao plano terreno (Cf. NATOV, p. 23-24). 

Assim como para Blake, portanto, para Wordsworth a Inocência – esta essência e completude da criança que se conecta com a divindade – era algo que se perdia através da Experiência, e o que ele almejava era “[...] rastrear o que nós perdemos conforme saímos da infância, e como nos tornamos antinaturais e limitados (NATOV, 2003, p. 26), para, idealmente, podermos reproduzir em nós mesmos essa visão primordial. Esta busca por uma Inocência romantizada supostamente perdida, todavia, não era exclusividade de poetas, e em fato todas as três instâncias, teológica, filosófica e literária, tiveram um grande impacto mútuo de maneira geral. E, como aponta Allison James (2005, p. 4), “essa globalização de um conceito particular de infância encontra uma contrapartida no pressuposto de algum tipo de experiência universal para todas as crianças” (JAMES e PROUT, 2005, p. 4). Um pressuposto que seria absorvido em obras literárias de língua inglesa durante toda a contemporaneidade. E assim chegamos à Salinger. 

3. As crianças de Nine Stories (1953): os conflitos entre Inocência e Experiência nos contos de Salinger 

O livro Nine Stories, publicado originalmente em 1953, trata-se de uma coletânea de contos previamente publicados por Salinger na revista The New Yorker. Algumas das principais marcas ou linhas temáticas dessa coletânea são: os traumas da Segunda Guerra na sociedade norte-americana, a intolerância, a espiritualidade, e a infância como símbolo de uma Inocência (e liberdade) idealizada, ameaçada, e por fim sacralizada. É a partir destas confluências temáticas que surgem personagens como Sybil Carpenter, a menininha de A Perfect Day for Bananafish (1948), Ramona, a garotinha de Uncle Wiggily in Connecticut (1948), Lionel, o garotinho de quatro anos de Down at the Dinghy (1949), o inominado narrador de nove anos de The Laughing Man (1949), e Theodore (dez anos) e Booper (seis anos), o casal de irmãos de Teddy (1953). Passemos a cada um deles. 

Sybil Carpenter, personagem do conto A Perfect Day for Bananafish (SALINGER, 1991, p. 2-9), é uma menininha de cerca de quatro anos que brinca na praia em frente ao hotel em cujo bar a mãe bebê alguns drinks. Sem supervisão e solitária, Sybil vai ao encontro de sua companhia dos últimos dias, um ex-combatente da Segunda Guerra chamado Seymour Glass, que também se hospedara no hotel com sua esposa após ser liberado de um hospital militar. A narrativa, neste ponto, infere uma sensação dúbia de compaixão e perigo, pois a narrativa infere que Seymour está mentalmente desequilibrado pelos traumas do conflito, o que poderia significar um risco que Sybil desconhece. Além disso, algumas ações ou observações de Seymour parecem deslocadas, de forma que a leitura oscila entre a sensação de iminência de perigo e sensação de talvez estar sendo injusto frente a uma amizade inocente e genuína. 

De toda forma, Sybil não tem medo de Seymour, e com ele parece ter uma divertida tarde brincando no mar. Do mesmo modo, Seymour se diverte facilmente com a inocência infantil de Sybil, o que contrasta com a dificuldade que apresenta em seu trato com os adultos em seu entorno. Ao fim da tarde, ambos seguem seus caminhos em segurança, e Seymour tem assim, nesses aparentemente inocentes e fortuitos encontros com a pequena Sybil, alguns momentos de alívio em seu sofrimento psíquico. Mais que isso, Sybil é em fato a única pessoa com quem Seymour consegue dialogar, interagir e se conectar antes de ele cometer suicídio ao final da narrativa (Cf. SALINGER, 1991, p. 2-9). É por isso que Anne Goebel (1992, p. 27) afirma que “é evidente que Seymour se sente mais confortável com Sybil do que com adultos”, aos quais ele tende a ser avesso ou mesmo hostil. Especialmente porque Sybil – como toda criança pequena – “[...] é devastadoramente honesta em sua confrontação com o aqui e o agora, [...] vivendo exuberantemente para o momento e participando alegremente da plenitude da vida” (GOEBEL, 1992, p. 28), o que diferiria dos adultos e suas preocupações artificiais e mundanas. Sybil, assim, representa as virtudes da infância, atuando como “[...] um triunfante símbolo de bondade e pureza” que “[...] contrasta dolorosamente com o autoconsciente, carregado de ego e falsidade, mundo dos adultos (GOEBEL, 1992, p. 28). Todavia, há também outras possibilidades interpretativas. 

Emma Haggeman (2017) e André Carvalho (2013), por exemplo, analisam a relação de Sybil e Seymour como uma interação sensualizada, inclusive vinculando o suicídio à potencial sensação de culpa e confronto de Seymour com suas próprias pulsões. Para estes autores, Seymour não aprecia Sybil apenas por sua honestidade e inocências infantis, mas sim pela tensão sexual que ele apresenta frente a essa inocência, o que a narrativa indicaria com a presença de diálogos de duplo sentido por parte do homem (HAGGEMAN, 2017, p. 35; CARVALHO, 2013, p. 31-33). Uma possibilidade que dialoga com a sensação dúbia que o leitor encontra durante a leitura do conto – que, como mencionamos anteriormente, oscila entre a sensação de iminência de perigo e a possibilidade de se estar sendo injusto com Seymour. De qualquer modo, em se tratando de um conto com um narrador não necessariamente confiável e sem outros pontos de vista na narrativa, é claro que não será possível encontrar uma resposta absoluta, e caberá a cada leitor decidir por si próprio o que pensa da relação entre Seymour e Sybil a partir das informações ali contidas. Mas, independentemente do sentimento de Seymour se tratar de empatia ou de desejo de corrupção, em ambos os casos Sybil cumpre um papel, o qual é identificado por Haggeman também em personagens como Phoebe (irmã do protagonista de The Catcher in the Rye, Salinger, 1951) e Lolita (enteada- -amante do protagonista do livro homônimo de Nabokov, 1955): “[...] todas as reproduções de alguma imagem anterior de inocência inatingível a que os três homens se agarram. Elas não são apenas imagens em si; elas são imagens de imagens, tentativas de recriar uma ideia de bondade inexequível” (HAGGEMAN, 2017, p. 37). Ou seja, reproduções de uma maneira pela qual a Inocência pode ser tanto mitificada quanto objetificada. 

Outra personagem que surge nos contextos temáticos de Nine Stories é Ramona, do conto Uncle Wiggily in Connecticut (SALINGER, 1991, p. 10-17). Ramona é uma menininha que convive com Eloise, sua rígida, alcóolatra e deprimida mãe que vive em contínuo luto por seu “verdadeiro amor”, um ex-namorado chamado Walt, falecido na Europa durante a Segunda Guerra, com quem ela imagina que teria sido mais feliz do que em sua atual vida com o atual marido e filha – Ramona, a qual por sua vez parece continuamente reproduzir o luto da mãe criando constantes namorados imaginários que falecem de formas violentas em suas brincadeiras. Esta atividade imaginativa, que de início parece irritar profundamente Eloise, no fim leva as duas personagens a um conflito que permite à mãe perceber que as fugas imaginativas de sua filha não diferem tanto das dela mesma, que se entorpece e fantasia com um ex- -namorado idealizado pelo luto – e, portanto, imaginário – como modo de fugir de uma realidade que não a satisfaz. Neste momento há, então, uma breve demonstração de remorso por parte da mãe em relação ao destrato que recorrentemente dedica à filha. Tal resolução, todavia, não parece ser definitiva, pois logo em seguida a mãe parece voltar a suas atividades escapistas e a viver imaginativamente em sua juventude idealizada, e ali o conto termina. 

Mesmo que temporariamente, todavia, “Ramona leva sua mãe a uma importante auto-realização” (GOEBEL, 1992, p. 2), operando assim, de certa forma, aquele papel de tutoria invertida, na qual a criança é que desvela algo ou oferece uma lição ao adulto. Se este ensinamento será aproveitado ou não, não há como saber, já que Eloise, como percebe Harold Bloom (2008, p. 95), é hipercrítica, especialmente com Ramona, e parece desdenhar de todas as ações e capacidades da filha durante a narrativa, numa reação que ilustra a cegueira que acomete a visão dos adultos, tão marcados pelo egocentrismo que por vezes parecem incapazes de enxergar o que é óbvio. Ramona, assim, perfaz o modelo literário identificado por Natov (2003, p. 21): o da criança que é o “olho entre os cegos”, identificando agudamente o cerne da insatisfação e fúria da mãe em relação à vida, e sendo em alguma medida punida por isto. 

A terceira criança de Nine Stories que gostaríamos de abordar é Lionel, o garotinho – de Down at the Dinghy (Cf. SALINGER, 1991, p. 32-37) – que se isola em seu bote e brincadeiras de marinheiro num projeto de fuga após ficar magoado por uma criada da família ofender seu pai com um termo antissemita que ele sequer entendia, mas do qual captara o sentimento de desprezo4 . Conforme Carvalho (2013, p. 94), “[...] o conto delineia as causas da crise de Lionel de forma inquestionável colocando a questão social – o preconceito racial – no centro do conflito”. Ou seja, o garoto procura fugir de uma situação que, em seu estado de “pureza infantil” não consegue assimilar – até porque o contexto é especialmente complexo, vide que o texto narra uma relação dúbia e carregada de indicações de segregação racial da própria família de Lionel contra as criadas, afrodescendentes. Nesse caso, portanto, Lionel ilustra a Inocência que entra em choque com o mundo da experiência, seus preconceitos, hierarquizações e injustiças sociais. 

A segunda metade do conto – como bem notou Carvalho (2013, p. 94-97) – retrata Boo Boo, a mamãe que vai ao resgate de sua prole assustada e desgostosa, procurando amenizar os efeitos do choque que sofreu com o mundo da experiência. Para tanto, Boo Boo age compreensiva e afetuosamente, adentrando o universo de brincadeira do filho como um almirante que, por fim, o distrai e convence de que sua fuga não é uma boa ideia. Boo Boo, assim, perfaz o papel da mãe superprotetora, aquela que cria uma bolha artificial onde espera que nada perturbe a suposta harmonia da existência do filho – uma existência que, todavia, o conto deixa claro estar longe de ser harmoniosa. Lionel expõe assim a impossibilidade de total isolamento da criança do mundo da Experiência, e os inevitáveis choques que este causará em sua Inocência idealizada. 

A quarta criança que destacamos em Nine Stories não tem nome. Trata-se do inominado narrador de The Laughing Man (Salinger, 1991, p. 25-31), um homem que rememora sua infância e descreve seu dia a dia e atividades em um clube de garotos chamado “Comanches”, tutorado por um jovem adulto apelidado Chief. De maneira geral, este conto gira em torno de dois pontos principais: um namoro do Chief e consequente impacto que a presença de uma mulher causa no clube de meninos, e a narrativa do Laughing Man, uma narrativa seriada que o Chief inventava e contava diariamente aos garotos – e que atua como metáfora de várias das próprias experiências do menino, que se aproximava cada vez mais da adolescência e parecia desenvolver certo afeto ou atração pela namorada do tutor. Neste conto, portanto, “[...] o narrador conta a história do Chief e do Laughing Man para dar sentido a algo profundamente sentido, mas apenas vagamente compreendido, muitos anos atrás” (BLOOM, 2008, p. 96). E, ao fazer isto, em alguma medida recaptura a voz, a existência, e as experiências de seu eu pré-púbere que, com o advento da sexualidade, passa a se isolar da família – identificando-se mais com o Laughing Man e com seus pares dos comanches do que com os próprios pais (Cf. CARVALHO, 2008, p. 78-79). 

A busca pela representação de um eu anterior e infantil, aliás, parece ser também um esforço do próprio Salinger5 , e não apenas do narrador deste conto. O narrador, afinal, indica ter nascido no mesmo ano que o autor6 , e descreve o dia a dia de um menino em Nova York, que poderia se assemelhar aos dias vividos por Salinger em sua própria infância – em especial no sentido das referências a locais e atividades mencionadas pelo protagonista, como os jogos de baseball no Van Cortland Park e os passeios ao Palisades e ao Museu de História Natural. Além disso, há incontáveis alusões a elementos da cultura infantil da década de 1920, como a referência aos filmes de Western na nomenclatura “comanches” dada ao clube de meninos, e as incontáveis influências utilizadas pelo personagem Chief na criação do Laughing Man, dentre as quais é possível identificar o homônimo L’Homme qui rit (1869), de Victor Hugo, o Mogli de The Jungle Book, de Rudyard Kipling, o mítico Robin Hood, e referências a vampiros, atores do Western, e diversas características clichês de heróis e anti-heróis que na década de 1930 dariam origem a personagens de quadrinhos como The Phantom (1936) e Mandrake (1934), de Lee Falk. Ademais, seria ainda possível traçar ainda um paralelo entre o Clube dos Comanches e Os Meninos Perdidos de Peter Pan (1904, J. M. Barrie), uma vez que o Chief atua como mentor dos jovens comanches da mesma forma que Pan em relação aos meninos perdidos, uma relação que se vê estremecida e depois alterada pela aparição de uma moça: Mary Hudson em Salinger e Wendy em Barrie. Isso porque, tanto em Peter Pan quanto em The Laughing Man a ruptura da harmonia é causada pela chegada de um evento “externo” aos primeiros estágios da infância: a sexualidade. 

Como indica Natov (2003, p. 1-2), momentos de grande ruptura na infância, como o aparecimento do primeiro interesse amoroso, são muitas vezes causadores de sensação de deslocamento no âmbito familiar e de picos de vergonha. E conforme a adolescência se aproxima, com a chegada sem aviso da sexualidade, é comum ocorrer uma ruptura ou isolamento do seio familiar e, por vezes, de si mesmo. Assim, a criança passa a se sentir uma estranha ou outsider em relação à própria família e ao que ela mesma costumava ser. A atividade de rememorar ou narrar esses momentos de ruptura, todavia, sempre perpassará todo tipo de distorção e projeção, pois é impossível resgatar ou reviver inteiramente aqueles momentos, tão carregados em si mesmos de projeções imaginativas características da infância. Assim, resgatar memórias da infância é como procurar algo “[...] camada por camada, como fragmentos encaixados metaforicamente em pedaços de sonhos, acordando e dormindo, de várias camadas de consciência, subconsciência e inconsciência” (NATOV, 2003, p. 2). E este é, precisamente, o jogo e o campo das poéticas da infância, o qual há tanto tempo interessa e intriga artistas e escritores, especialmente desde o Romantismo, como vimos com Blake e Wordsworth, autores tão dedicados a explorar a infância, este reino perdido do passado dos adultos. 

Esta busca pelo passado, por um retorno momentâneo (ou definitivo) ao modo de viver da infância, aliás, em muitos autores – haja visto os próprios Blake e Wordsworth – perpassa também um anseio pelo retorno humano a um estado natural de Inocência, a uma existência efetivamente harmônica. E se isso não chega a aparecer em The Laughing Man, certamente surge de maneira escancarada em Teddy, último conto que abordaremos aqui. 

Teddy (SALINGER, 1991, p. 69-82), conto final de Nine Stories, narra um dia na vida de Theodore McArdle, um menino de 10 anos que viaja a bordo de um cruzeiro com sua família. O contexto aparentemente banal de férias de verão de uma típica família norte-americana dos anos 1950, com um casal briguento, filhos pequenos, e preocupações mundanas e materiais, todavia, logo é rompida pelo destoante comportamento de Teddy (apelido de Theodore). 

Quando o narrador descreve a aparência de Teddy, sabemos que ele é um menino magro de cabelos longos e desgrenhados, usando roupas sujas e furadas. Em comparação aos pais e à preocupação que demonstram com seus objetos, personagem do menino começa a ser construído como alguém que não liga para bens materiais. Ele não regozija nas mercadorias, mas oferece observações de ordem estética e filosófica (CARVALHO, 2008, p. 158).

Ao longo da narrativa esse desapego material e pensamentos abstrato e reflexivo de Teddy vão sendo cada vez mais aprofundados, em contraste não só aos pais da personagem, mas ao comportamento dos adultos de maneira geral. Até que descobrimos que Teddy não é exatamente uma “pessoa comum”, mas sim uma espécie de prodígio, uma criança respeitada pelos maiores filósofos e pensadores do planeta, e convidado recorrente de mesas de debate nas principais universidades europeias. O motivo ou origem dessa fama não é precisada, e o que o leitor pode inferir inicialmente é que Teddy seria um indivíduo extremamente inteligente. Essa impressão é ampliada pela própria narrativa que, acompanhando o ponto de vista de Teddy, trata as demais personagens com certo menosprezo complacente, como se o menino se apiedasse da inferioridade e limitações dos demais humanos. Conforme a narrativa avança, aliás, parece ficar claro que Teddy realmente parece viver em um estágio evolutivo completamente diferente das pessoas que o cercam: é revelado que o menino teria a capacidade de abstrair a suposta materialidade do pensamento humano convencional, o que permitiria a ele alcançar uma confluência harmônica com o mundo a seu redor, alcançando tal nível de compreensão sobre a vida, o universo e tudo o mais que só pode ser descrito como celestial. 

De maneira prática o que a narrativa faz é incluir um personagem adulto – Bob Nicholson – que confronta Teddy, procurando brechas ou respostas em sua sabedoria superior, da qual o homem desconfia. O motivo da suspeita é um escândalo midiático gerado por uma das últimas reuniões de eruditos a que Teddy atendera, na qual o menino revelara ser possível precisar aproximadamente o momento da morte de alguém, tendo supostamente revelado a data da futura morte de alguns dos presentes. Nicholson, assim, inicia um breve debate filosófico com Teddy, que com certa indisposição – como que cansado de tentar novamente ensinar a um aluno que já tomara a mesma lição muitas vezes – procura explicar o evento e seus pontos de vista ao homem. Grosso modo, como resume Carvalho: 

É um trecho que traz conteúdos puramente filosóficos através do uso de diálogos, onde o personagem Bob Nicholson vai fazendo perguntas e Teddy respondendo. O tema da conversa gira em torno da visão de mundo do rapaz, de forma pouco acadêmica. É o trecho mais interessante para quem busca compreender o quanto a ficção de Salinger se ocupa explicitamente de filosofias orientais” (CARVALHO, 2008, p. 159). 

Isso porque, conforme Teddy discorre, fica cada vez mais claro que sua pregação perpassa itens característicos do zen-budismo – e de outras doutrinas filosóficas e religiões –, como o autocontrole, a rigorosa prática de meditação, a busca pela percepção da “verdadeira natureza”7 da mente e das coisas, e a expressão dessa percepção no cotidiano, buscando sempre o benefício dos outros e não o próprio (Cf. YOSHIZAWA, 2010). Não nos ateremos aqui aos inextricáveis meandros da relação de Salinger e dos norte-americanos dos anos 1950 com as grandes filosofias orientais, que àquela altura inundavam o universo ianque em diversas versões adaptadas. Nos interessa, todavia, o seguimento do diálogo entre Teddy e Nicholson, em especial duas passagens. A primeira trata do momento primeiro de iluminação de Teddy, narrado pelo menino quando questionado pelo adulto: 

Eu tinha seis anos quando vi que tudo era Deus, e fiquei de cabelos em pé, e toda essa sorte de coisa’, disse Teddy. ‘Era um Domingo, eu me lembro. Minha irmã era apenas uma criancinha na época, e ela estava bebendo seu leite, e de repente eu vi que ela era Deus, e o leite era Deus. Quero dizer, tudo o que ela estava fazendo era derramar Deus em Deus, se é que você me entende (SALINGER, 1991, p. 78). 

Neste ponto Teddy delimita, portanto, sua concepção do Divino, a qual faz confluir o Brahma – o todo do qual fazemos parte, segundo doutrinas orientais como o budismo e o hinduísmo –, e a concepção cristã de que Deus está em todos os lugares e coisas – uma característica do que é onipresente. E, em seguida, Teddy ainda declarará que seu objetivo, e o de toda humanidade, deveria ser sempre a reunificação ou reunião com essa divindade, numa alusão que pode ser lida tanto como a Salvação cristã quanto o Nirvana budista. 

A segunda passagem que nos interessa é aquela em que Nicholson questiona Teddy sobre a educação infantil, ao que o garoto responde que o modelo educacional ocidental confunde convenções com conhecimento. Em seguida, questionado sobre como deveria se dar o ensino, segue-se o seguinte diálogo: 

Eu acho que primeiro eu apenas reuniria as crianças e mostraria a elas como meditar. Eu tentaria mostrar a elas como descobrirem quem elas realmente são, não apenas quais são seus nomes e essas coisas... Eu acho que mesmo antes disso eu faria elas se esvaziarem de tudo o que seus pais e todo mundo sempre disse a elas. Eu quero dizer, até se os pais delas simplesmente tivessem dito a elas que um elefante é grande, eu as faria esvaziarem isso. Um elefante só é grande quando está perto de alguma outra coisa – um cachorro ou uma moça, por exemplo. Eu não iria nem dizer a elas que um elefante tem uma tromba. Eu poderia lhes mostrar um elefante, se houvesse um à mão, mas eu as deixaria caminhar até ele sem saberem nada além do que o próprio elefante saberia sobre elas. O mesmo com a grama, e outras coisas. Eu nem sequer diria a elas que a grama é verde. Cores são apenas nomes. Quero dizer, se você falar a elas que a grama é verde, isso fará com que elas passem criar uma expectativa de que a grama pareça de certa maneira – a sua maneira – ao invés de qualquer outra maneira que seria tão boa quanto, e até mesmo muito melhor... Eu não sei. Eu só faria elas vomitarem cada pedacinho da maçã que os pais delas e todos as fizeram morder’. Não há risco de que você estivesse criando uma pequena geração de ignorantes? Por quê? Elas não seriam mais ignorantes do que um elefante é. Ou que um passarinho é. Ou que uma árvore é. Só porque algo é de uma certa maneira, ao invés de se comportar de uma certa forma, não significa que seja um ignorante. [...] Além disso, se elas quisessem aprender todas aquelas outras coisas – nomes e cores e coisas – elas poderiam fazer isso, se quisessem, quando fossem mais velhas. Mas eu gostaria que elas começassem com todas as formas reais de ver as coisas, e não apenas o modo pelo qual todos os outros comedores de maçã olham para as coisas – é isso que eu quero dizer (SALINGER, 1991, p. 80-81).

Há evidentemente neste trecho uma forte presença de elementos que abordamos anteriormente, como a mitificação do olhar infantil como algo puro e verdadeiro, uma Inocência que remete a um estado natural edênico, pré pecado. Não à toa, portanto, na fala de Teddy os adultos são referidos como “os comedores de maçã”, numa óbvia referência ao pecado original cujo peso todos os homens carregariam. Para Teddy, portanto, o pecado e os sofrimentos e limitações que incorre seriam inerentes à Experiência civilizatória e social, e o caminho para a Salvação ou o Nirvana seria a manutenção da Inocência do estado natural com a qual se nasce. Uma Inocência que, segundo Teddy, era seguidamente corrompida não só pela sociedade de maneira geral, mas pelos próprios pais, que incutiam em seus filhos limitações e marcas negativas. Caso da própria irmãzinha de Teddy, Booper, uma menininha de seis anos que pratica bullying com um menininho ainda menor, e que declara odiar a todos, incluindo sua família, numa possível mímica da violência verbal pela qual os próprios pais tratam um ao outro, como é possível aferir nas primeiras cenas do conto (SALINGER, 1991, p. 69-73). 

No fim, como estratégia narrativa, o conto ainda se conclui com a previsão de Teddy sobre sua própria morte possivelmente vir a ocorrer naquele mesmo dia, num acidente causado por sua própria irmã na piscina do navio. Algo que, ao final, a narrativa sugere ter efetivamente ocorrido. Esse é “o recurso narrativo que melhor serve para dar credibilidade ao ponto de vista de Teddy” (Carvalho, 2008, p. 158). Assim, como um vidente, um profeta ou um santo, cuja experiência com a meditação lhe permitisse acessar o conhecimento divino, o menino antevê sua própria morte.  

4. Considerações finais sobre a sacralização da infância em Salinger

Acreditamos que, através das análises aqui apresentadas sobre as personagens infantis de Nine Stories, tenha sido possível identificar determinadas características narrativas e representacionais que conectam a poética da infância de Salinger aos modelos sob o qual a infância comumente era representada no âmbito da literatura romântica de língua inglesa – modelos que tem ainda grande impacto sobre as literaturas da infância contemporâneas de maneira geral. 

Foi possível perceber que em Nine Stories há uma certa tentativa de dramatização (ou mesmo exaltação) do que usualmente se define como uma capacidade das crianças de se divertirem e viverem concomitantemente no mundo real e num mundo de fantasia, o qual muitas vezes é ancorado num hipotético mundo real mais aprazível ou desejável. Uma capacidade (ou característica) que é especialmente notada quando observada em crianças que vivem em situações de sofrimento, violência ou risco − como no caso das “crianças da guerra” (Sarmento, 2002)8 . E várias das crianças de Salinger, se não efetivamente crianças da guerra –no sentido de vivenciarem situações bélicas –, são por outro lado “filhas da guerra”, pois vivenciam as sequelas da Grande Guerra através de seus pais e outros personagens. Além disso, também foi possível perceber que em alguns contos de Nine Stories há uma certa tentativa de reencontro de Salinger com estas habilidades imaginativas infantis9 , o que pode revelar algo sobre o modo pelo qual Salinger enxerga ou mesmo viveu a infância. 

É interessante notar como esta busca de Salinger por seu imaginário infantil gera um duplo movimento, que ao mesmo tempo o afasta e aproxima das discussões da Psicologia sobre a infância. Isso porque, como explica Sarmento (2002), até a segunda metade do século XX havia duas correntes principais no estudo da infância, as quais foram herdadas da Psicologia europeia do século XIX e princípio do XX: a psicanalítica, ancorada na concepção freudiana do imaginário infantil como expressão do princípio do desejo sobre o princípio da realidade (FREUD, 2010), e a construtivista, baseada em propostas como a de Piaget (1999), para quem “[...] o jogo simbólico é uma expressão do pensamento autístico das crianças, progressivamente eliminado pelo desenvolvimento e construção do pensamento racional” (SARMENTO, 2002, p.2). Duas correntes que, apesar de muitas diferenças viscerais, compartilham um elemento comum que é inerente à própria concepção moderna da infância, na qual o imaginário infantil é entendido como a expressão de um ‘déficit’ (SARMENTO, 2002). Uma análise estabelecida por esse viés, portanto, poderia encontrar eco em personagens como Ramona e Lionel, pois ambas são crianças que parecem imaginar o mundo em tons fantasiosos porque ainda não está completo seu desenvolvimento racional nem estão bem estabelecidos seus laços com a realidade. 

Com Theodore, entretanto, Salinger inverte esta lógica, indicando que seria precisamente a falta de “desenvolvimento racional” que tornaria as crianças superiores aos adultos. Ou seja, em Teddy o excesso de racionalização ou de logicidade adulta é que seria a marca de um déficit, e não a imaginação fantasiosa – e aparentemente ilógica – da infância. Como diz impassivelmente o menino santo ao adulto que busca respostas com ele: “Você está apenas sendo lógico” (SALINGER, 1999, p. 79), e assim Salinger se afasta das concepções piagetiana e freudiana e se reaproxima do modelo romântico da infância – estabelecido por autores como Blake (2008) e Wordsworth (1965; 2014) –, onde a pureza e Inocência criativa é sacralizada10. Como identifica Natov (2003, p. 35), aliás, Wordsworth também idealizava uma “criança natural” educada pela natureza e não pelo sistema educacional. O poeta inglês, embora não fosse totalmente contra o uso da leitura e livros para complemento da educação – até porque ele mesmo escrevia –, defendia que o mundo natural era a única fonte de aprendizado pura, espontânea a verdadeira. Da mesma forma, para Blake, “Inocência e Sabedoria eram parceiras naturais, enquanto a Ignorância residia com a Experiência e com aqueles que, em sua negação do mundanismo do mundo, ultimamente negavam também o espiritual” (NATOV, 2003, p. 12). 

É interessante notar que posteriormente o rompimento com a noção da infância como déficit alcançaria a própria Psicologia, em uma disputa que estava em voga precisamente durante as décadas de 1950 e 1960, momento em que Salinger produzia e publicava várias de suas obras. Algumas discussões iniciadas naquela época acabariam formalizadas por autores como Winnicott (1975), a partir do qual passa-se a entender o jogo simbólico não mais como um divisor de águas entre a infância e a adultidade, mas sim como uma atividade comum a todas as gerações que se expressa através de narrativas literárias, cinematográficas e artísticas tanto quanto pelo brincar infantil, mas que também (e acima de tudo) se relaciona à própria capacidade criativa humana. Assim, conquanto assuma-se que existe uma óbvia imaturidade físico-biológica na infância, deixa-se de atribuir a ela uma carga pejorativa. 

Note-se, porém, que as concepções psicanalíticas mais recentes da infância – como a de Winnicott (1975) – também não colocam a infância e seu modo de existir acima da adultidade: o que se propõe é a ocorrência de uma continuidade não hierarquizada. Ainda assim, grande parte das produções literárias que abordam a memória infantil seguiram (e seguem) tratando a infância como uma espécie de mundo mágico perdido: como um modo de existência perdido ao longo da maturação humana, uma outra maneira de viver que é descrita muitas vezes com um carregado tom de admiração ou saudade. E nisso Salinger não diferiu, uma vez que em Teddy essa desracionalização da vida parece ser elevada a um patamar mitológico, religioso ou filosófico, inferindo que o caminho para a pureza do estado natural, para a Salvação ou para o Nirvana perpassaria a superação dos elementos sociais que utilizamos para demarcar a maturidade psíquica humana. Desta forma a criança Theodore é elevada a um status de maior elevação espiritual em relação aos adultos que o cercam, e se reforça no texto a poética da infância romântica onde a criança é o ser evoluído e o adulto o não completo. 

Esta nostalgia e idealização do ser criança nas Nine Stories é o ponto chave identificado por este artigo, já que essa percepção idealizada da infância tem forte relação com uma poética literária que data dos séculos XVIII e XIX, mas que se mantém forte nos séculos seguintes, tendo claramente influenciado Salinger e potencialmente sendo uma marca do século XX como um todo. Como diz Natov (2003, p. 7-8), “à medida que os românticos vinculavam a infância e a imaginação, a criança se estabelecia não apenas como ‘pai do homem’, mas também como guardiã internalizada da memória e, portanto, como potencial curadora do adulto que não se lembra”. Assim, a rememoração e reconstrução da infância via narrativa e imagens, em bolsões de momentos poéticos, poderia ter o poder de organizar esses fragmentos de memória em um determinado alinhamento que poderia auxiliar a curar as fraturas entre mente, corpo e alma causadas pela socialização, o que poderia servir tanto ao leitor quanto ao escritor. Pela arte, afinal, até os nossos piores e mais obscuros momentos de infância, aqueles de maior deslocamento, podem ser metamorfoseados em uma rejuvenescedora energia criativa, uma “fonte de luz” (NATOV, 2003, p. 8). Nesse sentido, a criança se fixa no corpo literário – via influência Romântica - como uma fonte de esperança mesmo em mundos altamente corrompidos, destruídos ou permeados de sofrimento – e talvez aí esteja o motivo da forte permanência deste modelo literário. De modo que, como astutamente antecipa Sarmento (2002, p. 16), “[...] não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças, pois tomarmos como ponto de ancoragem as culturas da infância nos permite rever o nosso próprio mundo, globalmente considerado” (SARMENTO, 2002, p. 16).  

Referências

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Notas

[1]  Conforme Eliane Fleck (2007, p. 113), “A ênfase dada à formação das crianças encontra-se embasada na noção de passividade própria da infância e insere-se nas estratégias missionárias jesuíticas, decorrendo das preocupações em relação à resistência à conversão e ao retorno às pautas tradicionais pelos adultos, como fica evidenciado neste registro da Ânua de 1634: ‘Tem posto muitos cuidados […] e muito mais no ensino dos meninos e meninas de quem depende a Cristandade futura, criando-lhes desde pequeninos no leite da fé, para que duvidem de todos os ressábios de seus antepassados’.        

[2] Como indicam trabalhos biográficos como os de Peter Ackroyd (1995) e Bentley Jnr. (2002), Blake afirmava ter visões desde criança, e alegava ter visto e sido visitado por anjos e Deus ele mesmo em diversas ocasiões.     

[3] Caso, por exemplo, da ode Immortality (1804), onde a criança é representada como Profeta ou Vidente (Cf. WORDSWORTH, Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood, 2014). Caso também de We are Seven (1798) e Anecdote for Fathers (1798), em que a criança ensina o adulto a superar os limites do Self terreno. Cf. WORDSWORTH, 1965, Ode 11, p. 64-66).   

[4] Como explica Bloom (2008, p. 38), Lionel ouviu a cozinheira se referir ao pai dele por “kike”, um termo ofensivo utilizado nos Estados Unidos para se referir a judeus. O menino, todavia, desconhecia a palavra, a interpretando como “kite” (pipa, em português), mas o tom insultuoso na voz da cozinheira foi mais que suficiente para o garoto perceber que aquilo carregava uma agressão. 

[5] Algo que não é de se estranhar, visto que muitos autores buscam em suas próprias memórias a receita para fabricar personagens infantes. O próprio Lionel, de Down at the Dingy, aliás, é um personagem que também parece carregar alguns elementos autobiográficos de Salinger, conforme Slawenski (2010, p. 174-176). 

[6] Mais especificamente, o narrador diz que “In 1928, when I was nine (...)” (SALINGER, The Laughing Man, 1991), o que indica que a personagem teria nascido em 1919, mesmo ano que Salinger        

[7] Maiores informações sobre as Quatro Nobres Verdades – conceitos que conformam uma das essências centrais do Budismo e da tradição Zen – podem ser encontradas, por exemplo, em textos publicados pelo 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso (Cf. GYATSO, 2013). 

[8] Uma capacidade ou característica que é abordada frequentemente também pelo cinema, vide produções como La vita è bela (Itália, 1997) de Roberto Benigni, El laberinto del fauno (México-Espanha, 2006) de Guillermo del Toro, ou Beasts of the Southern Wild (USA, 2012) de Behn Zeitlin, entre tantos outros.  

[9] Algo que não é de se estranhar, visto que muitos autores buscam em suas próprias memórias a receita para fabricar personagens infantes, casos dos próprios Blake e Wordsworth, mas também de incontáveis autores contemporâneos.   

[10] Como identifica Natov (2003, p. 35), Wordsworth também idealizava uma “criança natural” educada pela natureza e não pelo sistema educacional. O poeta inglês, embora não fosse totalmente contra o uso da leitura e livros para complemento da educação – até porque ele mesmo escrevia –, defendia que o mundo natural era a única fonte de aprendizado pura, espontânea a verdadeira.