A duração do dia, de Adélia Prado – o sagrado no cotidiano    
The length of the day, by Adélia Prado - The sacred in daily life 

 

Marta Botelho Lira*
Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira**
*Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem e Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Contato: martablira297@gmail.com
**Doutora em Letras - Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Professora adjunta do Departamento de Língua e Literatura Portuguesa e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Amazonas. Contato: ritapsocorro@gmail.com 
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Resumo:

O objeto de análise deste artigo consiste na obra A duração do dia (2011), publicada no ano de 2010, com a segunda edição em 2011, sendo uma das mais recentes publicações de Adélia Prado. A autora aborda assuntos do cotidiano, do qual a poetisa retira momentos marcantes de significação sagrada no cotidiano. Pretende-se discorrer sobre o diálogo do sujeito do poema com algumas passagens de textos da Bíblia judaico-cristã, exclusivamente na estruturação ou nas partes do mencionado livro, de maneira que o tratamento dos temas desde as epígrafes permita ao leitor realizar uma profunda reflexão a respeito da existência e da fruição estética. Para a análise crítica são empregadas as ideias de Agnes Heller sobre a vida cotidiana e de Rudolf Otto sobre o sagrado, as quais são complementadas com o pensamento de outros autores, Roger Caillois, Georges Bataille, Luis Santos e Silvana Oliveira, Raimunda Alvim Bessa destes dois temas. 

Palavras chave: Adélia Prado; A duração do dia; sagrado; cotidiano 

 

Abstract
The object of analysis of this article is one of Adélia Prado’s most recent publications, A duração do dia (2011); published in 2010, the second edition in 2011; which considers everyday matters, from which the poet draws striking moments of sacred significance in daily life. This article intends to compare and contrast the dialogue of the subject of the poem with some passages from the Judeo-Christian Bible, exclusively in the structuring or particular parts of the book, so that the treatment of the themes from the epigraphs allow the reader to carry out a deep reflection regarding the existence and aesthetic enjoyment. For the critical analysis, the ideas from Agnes Heller were used to look at the daily life while the ideas of Rudolf Otto were used for the sacred. Both were complemented with the thoughts of other authors for these two themes like Roger Caillois, George Bataille, Luis Santos e Silvana Oliveira, Raimunda Alvim Bessa. 

Keywords: Adélia Prado; A duração do dia; sacred; daily life

Introdução 

Sabe-se que, nas obras de Adélia Prado, o cotidiano é retratado com uma linguagem análoga à empregada na vida diária, linguagem coloquial, em que se destacam os espaços dos quintais, de partes da casa, de locais da cidade, as conversas entre amigos, o amor. Em síntese, temas tratados ao mesmo tempo de modo particular e universais, conforme Adilson Citelli (2009, p.116). Corroborando com a ideia de Citelli, Alvim Bessa (2008, p.37) ressalta que Adélia torna assuntos considerados banais em pautas de profunda reflexão, em que a vida é mostrada em seus significados complexos. Outro autor que debate sobre a obra adeliana, Alex Villas Boas (2016, p. 385), declara que, possivelmente, os temas e o modo como os poemas são construídos constituem-se de recorrências das leituras da poetisa de obras de autores como Carlos Drummond de Andrade. Este crítico lembra as palavras do poeta mineiro na apresentação ao primeiro livro de poemas de Adélia, Bagagem, lembrança que se transcreve a seguir: 

Assim é a apresentação da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond de Andrade: “Trata-se de um fenômeno. [...]. Acho que ele [São Francisco de Assis] está no momento ditando em Divinópolis os mais belos poemas e prosas a Adélia Prado. Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é lei, não dos homens, mas de Deus. [...]. Como é que posso demonstrar Adélia, se ela ainda está inédita e só uns poucos do país literário sabem da existência desta grande poeta-mulher à beira da linha?” (DRUMMOND apud VILLAS BOAS, 2016, p. 385).

Embora Drummond tenha apresentado a obra de Adélia Prado em um momento em que ela não era conhecida, o poeta mineiro destacou a excelente feitura dos poemas do livro Bagagem (1976), nos quais, é sabido, há o diálogo com trechos da Bíblia. De fato, como afirma Adilson Citelli (2009, p.116), o cristianismo predomina na obra adeliana, traço que se mostra pela presença do sagrado, elemento que também indica o diálogo do texto de Adélia Prado com a obra de Guimarães Rosa. 

Em A duração do dia (2011), o elemento sagrado apresenta-se por meio da imagem do cotidiano criada em poemas como “Uma janela e sua serventia” (PRADO, 2011, p.10), no qual o eu lírico observa que, atualmente, a razão, no mundo contemporâneo, se sobrepõe de modo negativo às crenças e à fé. 

UMA JANELA E SUA SERVENTIA 

Hoje me parecem novos estes campos 
e a camisa xadrez do moço, 
só na aparência fortuitos. 
O que existe fala por seus códigos. 
As matemáticas suplantam as teologias 
com enorme lucro para minha fé. 
A mulher maldiz falsamente o tempo, 
procura o que falar entre pessoas 
que considera letradas, 
ela não sabe, somos desfrutáveis. 
Comamo-nos pois e a desconcertante beleza 
em bons bocados de angústia. 
Sofrer um pouco descansa deste excesso. 
(PRADO,2011, p.10). 

O eu lírico olha o campo e a camisa como elementos de renovação de cada momento no cotidiano, e eles se mostram tão reais por serem comprovados pelas ciências e pela razão que eles reforçam a fé do eu lírico na existência do sagrado na vida cotidiana, embora isso possa parecer contraditório: “O que existe fala por seus códigos, / As matemáticas suplantam as teologias/ com enorme lucro para a minha fé” (PRADO, 2011, p. 10). Porém, as pessoas que estão no mesmo lugar que o eu lírico não veem o sagrado, pois estão ocupadas com coisas inúteis. Devido a isso, eu lírico é irônico ao afirmar que “somos desfrutáveis” (PRADO, 2011, p. 10). As pessoas só querem exercer o poder sobre as outras pessoas e as coisas, por isso ficam cegas e não usufruem da beleza vital. O eu poético é também irônico quando ordena que nós nos comamos e que comamos a beleza. A ironia do eu lírico decorre de sua angústia por causa da insensibilidade das pessoas que não conseguem ver o sagrado na vida. Esse é o motivo de o eu poético olhar pela janela, para fora daquele ambiente, para “os campos” e “a camisa xadrez do moço”: ele prefere ver o sagrado que se renova e é colorido, ver que as coisas são outras a cada dia. Esta é a serventia da janela: olhar para fora de um espaço onde as pessoas são fúteis: “A mulher maldiz falsamente o tempo, procura o que falar entre pessoas/ que considera letradas”. O eu lírico encontra uma compensação para sua angústia como forma de tentar superá-la: “Sofrer um pouco descansa deste excesso”. Até o sofrimento apresenta aspecto positivo, pois impede de alguém se contaminar pela insensibilidade dos que o cercam. 

Desse modo, o conjunto de ações que ocorrem no dia a dia é concretizado por meio de variados gestos que formam as identidades dos grupos sociais, questão que possibilita a interpretação e o questionamento sobre as alegrias e os conflitos do sujeito do poema. Nessa mesma linha de pensamento, outro exemplo é o poema “Rute no campo” (PRADO, 2011, p. 15), da mesma obra. 

RUTE NO CAMPO 

No quarto pequeno 
onde o amor não pode gemer 
admiro minhas lágrimas no espelho, sou humana, 
quero carinho que à ovelha mais fraca dispensa. 
Não parecem ser meus meus pensamentos. 
Alguns versos restam inaproveitáveis, 
Belos como relíquias de ouro velho quebrado, 
Esquecidas no campo à sorte de quem as respigue. 
A nudez apazigua porque o corpo é inocente, 
só quer comer, casar, só pensa em núpcias, 
comida quente na mesa comprida 
pois sente fome, fome, muita fome. 
(PRADO, 2011, p. 15)

No poema, Rute encontra-se em um momento de reflexão, sendo possível observar alguém com pensamentos, desejos e sentimentos diferentes dos da Rute na Bíblia1 , pois as mulheres, na época da Rute bíblica, vivam de acordo com outro código, precisavam estar casadas ou sob a proteção de um homem da família, como pode ser observado no excerto retirado da Bíblia “Então Boaz disse aos anciãos e a todo o povo: Sois hoje testemunhas de que tomei tudo quanto foi de Elimeque, e de Quiliom, e de Malom, da mão de Noemi” (Rt,4, 9). No entanto, em A duração do dia (2011), observamos que a personagem Rute é ressignificada. 

As ideias suscitadas nos dois poemas acima transcritos levam Vera Queiroz (1994, p. 2) a declarar que Adélia Prado transforma a vida cotidiana em poesia. Também, esse modo de Adélia inter-relacionar o cotidiano com o sagrado na poesia remete à ideia de Agnes Heller (2000, p. 17-20) de que a vida cotidiana é uma organização e produção do homem na comunidade, pauta na objetivação, verificada nas ações responsáveis pela manutenção da língua pela qual são transmitidos os costumes e as crenças, das quais o indivíduo se apropria como instrumento para se relacionar socialmente. Gleny Guimarães (2002, p. 12-13) reitera esse pensamento quando afirma que as habilidades determinantes da vida cotidiana dizem respeito às individualidades, exprimem o comportamen1. Tradução por João Ferreira de Almeida to e os pensamentos do indivíduo na vida social. 

Assim, tal instrumentação encontra-se no primeiro poema do livro A duração do dia, “Tão bom aqui” (PRADO, 2011, p. 9) quando o eu lírico se esconde no porão, pois ali é onde ele se encontra consigo mesmo, sentindo-se num local de refúgio e de aconchego. Em síntese, o eu lírico apropria-se de uma ação singular da natureza do homem que é a de, às vezes, ficar sozinho para reavivar a espiritualidade, bem como organizar os pensamentos ou tomar decisões. 

Sendo assim, o sagrado ligado ao cotidiano nessa obra de Adélia Prado indica a relação entre elementos da religião com a poesia. A esse respeito Eli Brandão (2007, p. 19-20) afirma que não há diferença entre experiência religiosa e poética no pensamento de Adélia Prado, pois o poeta escreve sobre o indivíduo, a natureza ou um objeto, que, segundo a poetisa, são criações de Deus. O trecho a seguir elucida isto: 

Eu não faço diferença. Para mim experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só. Isto porque a experiência que um poeta tem diante de uma árvore, por exemplo, que depois vai virar poema, é tão reveladora do real, do ser daquela árvore, que ela remete necessariamente à fundação daquele ser. A origem, quer dizer, o aspecto fundante daquela experiência, que não é a árvore em si, é uma coisa que está atrás dela, que no fim é Deus, não é? (PRADO, CLB, 2000, p.23).

Assim, percebe-se, pelo trecho acima, que daí decorre o fato de a poesia e a religião estarem imbricadas. A declaração de Adélia Prado faz alusão ao que Rudolf Otto (2007, p. 32-35) de que o sagrado se verifica em determinadas ações da comunidade que religam o lado racional do homem ao seu lado espiritual. 

Os textos de Adélia Prado apontam tanto para a reflexão sobre o sentido da vida quanto para a fruição estética. Junto com essa fruição, em A duração do dia (2011) são recriadas situações relacionadas com a morte, as desilusões e os êxitos. O título da obra remete a momentos em que um acontecimento poderia ocorrer sem que fosse percebido, e que, no poema, ganha imensa importância, e se prolonga em nosso pensamento, em nossa reflexão, torna-se motivo de nossa atenção. 

Neste artigo, será feita, primeiramente, a análise da relação do título da obra com a imagem da sua capa, em seguida, das epígrafes presentes no livro em que é possível observar a ideia do sagrado no tempo e no espaço, e esse sentido dialoga com o leitor, projetando-se, desse modo, para sua vida. 

1. Tempo poético – O sagrado na dureé

O livro A duração do dia teve duas publicações, uma em 2010 e a segunda em 2011, e a imagem da capa reitera determinados elementos de outros livros de Adélia Prado: o sagrado e o cotidiano. Esses elementos podem apresentar uma relação. O sagrado é uma categoria que está inserida no contexto religioso pelo fato de a religião apresentar o fenômeno numinoso, por exemplo, a crença em almas, os cultos (OTTO, 2007, p. 155). Vale ressaltar que a concepção da capa dessa obra é da própria poeta, conforme informa a ficha catalográfica da edição de 2010, a partir da ilustração de pinturas do surrealista René Magritte, conforme informa a ficha catalográfica da edição de 2010 e a aparata da contracapa. Assim, a imagem da capa de Prado constitui-se de detalhes de duas pinturas de Magritte, Land of Micrales (1964) e Meditation (1936). De fato, ao observar essas duas pinturas, constata-se o diálogo intertextual que Adélia Prado muito bem realiza com as imagens que expressam o mundo interior na obra daquele pintor, que se dá tanto por semelhança quanto pela simbologia do sagrado e do erotismo, conforme destaca Ana Regina Borge Milione (2015, p. 73). 

Sabe-se, a respeito da vinculação do sagrado com o erotismo, e conforme discute Georges Bataille em O erotismo (1987), que ambos são indissociáveis e que, pela relação erótica, acontece o estado de descontinuidade do homem que gera nele momentos de completude, de prazer, de epifania, momentos que afastam o homem da continuidade marcada pelo excesso de racionalismo em que ele vive (BATAILLE, 1987, p. 11-13). O diálogo de Prado com Magritte se dá e se reitera pela presença de elementos sagrados e ao mesmo tempo eróticos na vida cotidiana. Com base na assertiva de Senna, observa-se a analogia da capa do livro A duração do dia com a cesta com ovos, análoga ao detalhe semelhante constante na tela Land of Micrales (1964) - detalhe que aparece com alguma modificação em outras telas de Magritte, bem como com uma vela análoga à do quadro Meditation (1937) – detalhe que torna recorrente o tema da luz, do poder criador em outras pinturas magritteanas. No entanto, o diálogo de Adélia com a temática desse pintor ocorre com a liberdade criadora própria da poeta e do artista de modo geral, como se descreve adiante neste artigo. Além da analogia da capa de A duração do dia com imagens e significados da pintura de Magritte, o título deste livro remete ao que poderia ocorrer em um dia da vida diária, suscitando a ideia de que o sagrado se manifesta no cotidiano. Essa ideia remete ao pensamento de Agnes Heller de que o homem se mostra inteiro - íntegro, na vida cotidiana, pois é nela que o ser humano realiza as crenças, ideologias e capacidades intelectuais (HELLER, 2000, p.17). O título, que dialoga com a imagem da capa, é aqui descrito com mais minúcia: a capa possui a imagem de três ovos e uma vela acesa dentro de uma cesta que é feita de cipó trançado. Esses objetos estão situados em um ambiente escuro. Os ovos, no cristianismo, têm a simbologia da ressurreição, representam uma nova vida ou renascimento, conforme verifica Maria Cecília Rosa (2009, p.89). Ademais, o número três que se refere à quantidade de ovos na cesta, remete às três virtudes cristãs: fé, amor e esperança, segundo a mesma Rosa (2009, p.115). A vela representa a luz ou a fé e ainda a ligação entre matéria e espírito (ROSA, 2009, p.120). O cesto simboliza o corpo materno (CHEVALIER E GHEERBRANT,1986, p. 278), enquanto a forma entrelaçada de que ele é tecido remete à ligação entre o espírito e a matéria, possuindo, assim, simbologia semelhante à da vela (ROSA, 2009, p. 69). O ambiente escuro que circunda o cesto com a vela e os ovos corresponde ao caos, a duas forças que se opõem e se entrelaçam, a força do mal e a força criadora de onde nasce a luz, caos que também é oposto à luz (ROSA, 2009, p.52). 

Ainda na ligação da capa com o título do livro, os elementos não verbais com os verbais indicam a possibilidade de que o indivíduo viva com base na fé, esperança e amor, pois remetem à ideia de que esse modo de viver é inseparável do cotidiano. Assim, na duração do dia são religados a matéria e o espírito, de que se forma o sagrado. A escuridão que circunda os fios de vime trançados do cesto e que serve de fundo para a imagem dos três ovos e da vela acesa dentro do cesto de vime, contudo, pode também corresponder ao profano, indicado na tensão que envolve algumas ações diárias que, embora predominantemente profanas, contêm ainda natureza sagrada. 

Assim, na capa de A duração do dia, há a indissociabilidade do sagrado com o profano, que são interdependentes, pois um existe em relação ao outro e, por meio de algumas concepções que os elementos da citada capa contêm, as significações são diferenciadas. Um trecho retirado da obra O Homem e o sagrado, de Roger Caillois, tratam dessa inter-relação: 

Sem dúvida, em relação ao sagrado, o profano não está apenas impregnado de características negativas: parece, em comparação com aquele, tão pobre e desprovido de existência como nada diante do ser. Mas, segundo a feliz expressão de R. Hertz, é um nada activo que avilta, degrada, arruína a plenitude em função da qual ele se define. Convém, pois, que certas divisórias estanques garantam um isolamento perfeito do sagrado e do profano: qualquer contato é fatal quer a um quer ao outro. “Os dois gêneros, escreve Durkheim, não podem aproximar-se e preservar ao mesmo tempo a sua natureza própria”. Por outro lado, eles são ambos necessários ao desenvolvimento da vida: um como o meio onde ela desdobra, o outro como a fonte inesgotável que a cria, que a mantém, que a renova (1970, p.21-22).

Conforme descreve Caillois (1970, p.21-22), se, na relação entre os dois elementos, há um limite para que nenhum dos dois se anule, eles não podem ficar juntos e preservados. Contudo o sagrado desdobra o profano e este desdobra o sagrado em uma atividade interminável, e essa dinâmica é importante para o desenvolvimento da vida. E é esse vínculo inseparável a que a capa de A duração do dia e seus poemas aludem e problematizam. 

Há uma correspondência entre os elementos não verbais apresentados na capa deste livro e o título da obra, A duração do dia, a qual é gerada pelo tempo poético, marcado pela vivência, na qual é preciso mergulhar. Essa ideia é confirmada por Luis Santos e Silvana Oliveira (2001, p.54), ao escreverem que a duração deve ser vivida, sentida, mais do que representada. Para estes autores, diferentemente da narrativa em que o tempo é representado e se constitui como elemento essencial para situar o que se narra, na poesia o tempo é explorado na própria linguagem. Quando se faz a associação desse pensamento sobre a duração com o título de A duração do dia, verifica-se a indicação de que o tempo é vivido por meio das palavras construídas nos poemas. Nesse contexto, os poemas, organizados com a musicalidade das palavras, correspondem às vivências registradas em determinados momentos, as durações. Assim, o título remete a um tempo psicológico, assim descrito por Santos e Oliveira: 

Uma das formulações mais eficazes na tentativa de se pensar o tempo psicológico é a durée – duração. O conceito forjado pelo filósofo Henri Bergson exprime as mudanças qualitativas dos estados de consciência, os quais se fundem sem contornos precisos e sem possibilidade de medição (2001, p.57).

Por meio desse trecho observa-se que as imagens poéticas de A duração do dia se constroem por meio do tempo psicológico, pois o eu lírico apresenta um momento de ócio em que o eu lírico usufrui de um momento de solidão, como no poema “tão bom aqui”. 

O eu lírico não se preocupa em marcar o tempo, pois ele dá importância ao momento do ócio, período em que ele descansa em um porão e agradece a Deus pelo tempo em que está sozinho com seus pensamentos. Esse momento é o da duração pela vivência predominantemente do mundo interior, quando o eu lírico se desliga da temporalidade marcada pela cronologia, em que minutos e horas se tornam ilimitados. 

Na abertura de A duração do dia, há a transcrição de um poema de Czeslaw Milosz, poeta e romancista que, segundo Olga Kempinska (2014, p. 204-206), renunciou escrever em sua língua materna, o polonês, porque de certo modo entendia que era problemático traduzir para outra língua as funções emotivas da língua mãe. De modo aproximado, esse poeta se refere à questão conflituosa de traduzir as emoções para a linguagem poética, conforme seu texto que serve de epígrafe para a primeira parte de A duração do dia (2011), em que a voz lírica afirma que a poesia é assustadora porque mostra os sentimentos terríveis que uma pessoa jamais pensaria ter e que estão dentro do indivíduo: 

Em sua essência, a poesia é algo horrível: 
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós, 
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre, 
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris. (MILOSZ In: PRADO, 2011, p.5). 

O fato de o indivíduo não ter conhecimento do que está no seu mundo interior gera o horror, pois a descoberta se assemelha a algo que coloca em risco sua própria vida, como um tigre que súbita e inesperadamente salta atrás do indivíduo para o atacar. Com efeito, essa imagem faz pensar que a poesia revela os sentimentos mais contraditórios, que contrariam as pseudoverdades e podem provocar ações imprevisíveis do indivíduo: a poesia – esse algo “horrível” - pode se manifestar de um momento para o outro, mal “piscamos os olhos” (MILOSZ In: PRADO, 2011, p.5). A propósito disso, segundo Maria Cecília Rosa, na Bíblia, o olho é símbolo da vigilância (2009, p.88), a indicar que, se contrariamente alguns homens não percebem que têm a poesia dentro de si, é porque não param para se observar. Essa ideia vai ao encontro do que afirma Agnes Heller (2016, p.35) de que os indivíduos não têm tempo nem possibilidade de se avaliar e de refletir sobre si e a vida, porque são movidos pelo automatismo e ritmo veloz de suas atividades diárias, fator que os torna insensíveis e indiferentes ao prazer e beleza das coisas e dos momentos que a eles estão próximos. 

Por isso, não aguçam suas habilidades, o conhecimento de si, e isso provoca a ignorância e o afastamento dos problemas sociais. Contudo, o poema de Czeslaw Milosz (In: PRADO, 2011, p.5) adverte os indivíduos para despertarem e se tornarem atentos às coisas que se passam a sua volta e em seu mundo interior, pois o tigre pode saltar sobre suas costas a qualquer momento e impedir que eles tenham experimentado a dor e a alegria de viver. 

Algo importante para se destacar na figura do tigre é que esse animal representa, para o Cristianismo, a ordem oposta ao caos (ROSA, 2009, p.112). Ele, ao olhar em direção à luz, representa a imaterialidade de Deus (ROSA, 2009, p.75). Por conseguinte, o poema de Milosz ressalta a importância de o indivíduo reparar em si, de se observar atentamente, ter o momento para o ócio para avaliar tudo o que ele faz e que acontece a cada período do dia. O tigre, então, simboliza o mistério da vida que ataca o modo descuidado, desatento de as pessoas viverem. 

2. A duração do dia – o sagrado no cotidiano

O livro A duração do dia apresenta nove divisões iniciadas por epígrafes, número que representa o sagrado elevado à segunda potência, conforme Rosa (2009, p. 86), elemento que reitera o tema do sagrado na obra. A maioria das epígrafes das nove partes do livro possui referência a trechos de alguns livros da Bíblia, sendo recriados, reorganizados, aumentados e, ao mesmo tempo, sendo mantidos os sentidos dos versículos evocados pelo diálogo que estabelecem com eles. Por isso, foram consultadas quatro traduções da Bíblia para fazer a analogia da configuração de A duração do dia com os textos bíblicos de modo a aprofundar a discussão a respeito das modalidades do sagrado que estão relacionadas aos temas do cotidiano. Foram empregadas três traduções – a primeira de Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin e José Luiz Gonzaga do Prado; a segunda, de João Ferreira de Almeida; a terceira, de Reina-Valera; e a quarta do Padre Antônio Pereira de Figueiredo. 

Na discussão do sagrado em A duração do dia fazemos diálogo com a ideia de Rudolf Otto em O sagrado (2007), em que este autor apresenta o sagrado como uma categoria constituída por uma combinação de elementos irracionais e racionais (2017, p. 34), determinando racional como algo bem definido, como Deus para os cristãos, ser onipotente, racionalizado como um ser espiritual; e definindo irracional como algo inexplicável, como o espírito, por não ser possível afirmar como é feito o espírito. Os componentes irracionais relacionam-se com o numinoso, algo transcendental da divindade, uma condição psíquica do ser vivo (OTTO, 2007, p.40-42). Essa ideia de Deus como sagrado ao mesmo tempo racional e irracional é possível observar nos poemas de Adélia Prado no livro A duração do dia (2011), no sentido de que Ele é sagrado, pois, ao mesmo tempo em que pode ser definido, é impossível explicar como ele se formou. Também, para Otto, o sagrado está presente na vida cotidiana de diferentes maneiras em razão da heterogeneidade das pessoas, tanto em seu componente racional quanto irracional. Como se demonstra neste artigo, o livro de A duração do dia (2011), de Adélia Prado, pode fazer alusão a esses aspectos do sagrado. E, por meio dessa síntese teórica, verifica-se que é possível analisar o sagrado no cotidiano como algo importante para as vidas das pessoas, mesmo que elas não percebam sua presença no cotidiano delas, em razão das suas atividades diárias serem desempenhadas de forma automatizadas. 

A primeira parte de A duração do dia começa com a seguinte epígrafe: “Pediu-nos que a deixássemos respigar entre os feixes de trigo e apanhar as espigas dos segadores. Rute 2,7” (PRADO, 2011, p.7). Essa referência poética assemelha-se ao capítulo 2, versículo 7 do Livro de Rute na Bíblia, nas quatro traduções pesquisadas. Na primeira tradução, o excerto está redigido dessa forma: “E me pediu para catar o restolho das espigas. Ela chegou de manhã e está de pé até agora, sem parar um momento.” Em Almeida, lê-se: “Disse-me ela: Deixa-me colher espigas, e ajuntá-las entre as gavelas [feixes de espigas] após dos segadores. Assim ela veio, e desde pela manhã está aqui até agora, a não ser pouco que esteve sentada em casa”; na tradução Reina-Valera, consta o seguinte trecho: “Disse-me ela: Rogo-te que me deixes recolher e ajuntar as espigas entre as gavelas após os segadores. Entrou, pois, e está desde pela manhã até agora sem descansar ao menos por um momento sequer”; na tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, essa passagem apresenta-se assim: “e pediu-me que a deixasse apanhar as espigas que ficassem atrás dos segadores: e ainda no campo desde a manhã até agora, sem ter voltado a casa nem por um momento”. 

Como se sabe, a figura de Rute que é descrita na Bíblia é a de uma mulher estrangeira da tribo de Moab, que precisa trabalhar para o sustento da sogra e seu após as mortes de seu marido e de seu sogro, que eram israelitas, ocorrida quando eles estavam restaurando as normas de vida tribal após terem escapado da escravidão a que estiveram submetidos na Babilônia. A referência poética à Rute bíblica, em A duração do dia, alude à mulher de diferentes épocas que trabalha arduamente para viver com dignidade. Nos poemas dessa parte do livro, a paisagem é atualizada de Jerusalém para a das cidades de Minas Gerais, onde Rute lembra de suas relações interpessoais, ocasião em que come, bebe ou faz sexo. Deste modo, a mulher chamada Rute nos poemas adelianos é descrita em plena atividade no meio social. 

Junto com a imagem poética de Rute acima descrita, verifica-se a alusão metalinguística de que o trabalho de Rute de colher as espigas que ficam no campo, depois de os segadores fazerem a primeira colheita, é análogo à escrita do poema, ocasião em que o poeta recolhe as palavras a partir da observação da vida cotidiana. Também, a figura de Rute - que, junto com Boaz que a desposou, constrói a geração da qual nascerá Jesus Cristo -, sugere que a escrita do poema é trabalho humilde e sagrado como o da colheita.

A epígrafe da segunda parte do livro A duração do dia assim se mostra: “Vede com que tamanho de letras vos escrevo. Gálatas 6,11” (PRADO, 2011). Na versão de Storniolo, Balancin e Prado, se lê: “Vejam com que letras grandes estou escrevendo a vocês de meu próprio punho”; na versão de Almeida, encontra-se: “Vede com que grandes letras vos escrevi por minha mão”; na versão de Reina-Valera, tem-se: “Vede com que grandes letras vos escrevi por minha própria mão”; na versão de Figueiredo, escreve-se; “Vede que cartas vos escrevi de minha própria mão”. Nesta citada carta, São Paulo aconselha os gálatas a exercerem a caridade e o amor fraterno, expressos na coragem e liberdade de avaliar e modificar a regras da comunidade, quando considerarem conveniente e adequado para o bem do convívio social. 

A epígrafe mostra a importância que o remetente dá a sua mensagem, escrita com letras grandes, informação que possui dois significados: a mensagem está muito bem legível até por aquele que tem limitação para ver, e a mensagem constitui-se da metáfora de um grito. É possível observar a importância do destinatário na mensagem, pois ele está referido nela pela função fática – vejam, vede. Em A duração do dia (2011), essa função chama a atenção do leitor para procurar saber qual é a mensagem, que pode ser inferida nas temáticas dos poemas desta parte, que tratam das convenções sociais, em decorrência das quais os indivíduos se alegram ou sofrem, sendo, às vezes, atormentados por outros indivíduos; tratam do drama provocado pela existência de indivíduos que ficam calados diante das injustiças, bem como da existência de outros indivíduos que protestam, criticam e cobram mudanças diante dessas injustiças; apontam para a reflexão de que o Deus do Cristianismo coloca o homem à prova e que este deve perseverar para vencer as provações; suscitam a ideia de que a crença decorre da liberdade para escolher; da escolha de viver de acordo com a santidade, esta possuindo o sentido de viver com respeito por si e pelos outros que são as pessoas, os animais e os demais elementos da natureza; das formas de lidar com a morte; e da sabedoria transmitida pelos antigos. De modo complexo, a segunda parte de A duração do dia alude à necessidade de conciliar a vida terrena com a vida espiritual no sentido de olhar com atenção para tudo o que se passa no mundo interior e na comunidade e assumir responsabilidade com ambos. 

Na terceira parte do livro, eis a epígrafe: “Neste momento, ela descansa um pouco sob a tenda. Rute 11,7” (PRADO, 2011, p.39). Na Bíblia, o livro de Rute possui quatro capítulos, não onze como está referido na epígrafe poética. E esta epígrafe, de acordo com as quatro versões bíblicas que estão sendo utilizadas neste estudo, assemelha-se à segunda frase do versículo 7, que foi acima transcrita. No trecho destacado anteriormente sobre a primeira epígrafe, foi apresentada esta personagem na atividade diária, enquanto na terceira epígrafe ela é mostrada no momento do descanso. Nesta terceira parte de A duração do dia, tanto os poemas que tratam do trabalho quanto aqueles que tratam do ócio remetem aos seguintes temas: à criação do poema – sendo, portanto, metalinguísticos -, ao desejo sexual das mulheres, aos prazeres da mulher no cuidado com os filhos, com o marido, com enfeitar-se, vestir-se, fazer compras, mas também o gosto de fazer algumas coisas que não contribuem para a construção da vida social. Nesse caso, a epígrafe aponta para os momentos em que Rute, durante o ócio, o descanso, reflete sobre a vida pessoal e social. Na quarta epígrafe lê-se: “Em estado de fraqueza, desassossego e temor. II Coríntios 1,3” (PRADO, 2011, p.57). No livro II Coríntios (1,3), a passagem encontrada na Bíblia traduzida por Storniolo, Balancin e Prado está escrita de outra forma: “Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação!”. Na tradução de Almeida apresenta-se dessa forma: “Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação”. Na tradução Reina-Valera, a passagem está conforme o trecho a seguir: “Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia e Deus de toda consolação”. Na tradução de Figueiredo, é encontrada dessa forma: “Bendito seja o Deus, e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia e Deus de toda a consolação”. Portanto, a alusão poética a II Coríntios se afasta das traduções, mas preserva o sentido de uma oração de alguém que suplica misericórdia e consolação. Os poemas dessa parte do livro de Adélia Prado tratam de sofrimento, insegurança, individualismo, maldade, humildade, súplicas e cânticos para o Deus judaico-cristão, bem como tratam da crítica ao individualismo. Ao mesmo tempo, esses poemas sugerem que o poeta escreve sobre tais questões tanto para criticar e denunciar as atitudes destrutivas do homem como para suplicar misericórdia a Deus. 

Na epígrafe da quinta parte de A duração do dia consta: “Orvalho, névoa, cerração, neblina, a respiração de Deus querendo o mundo que já havia feito e ainda não vira” (PRADO, 2011, p.75). Embora essa epígrafe intertextualize com a criação do mundo no Livro do Gênese da Bíblia, possui uma diferença daquela passagem porque a neblina impede Deus de ver sua criação. A simbologia dos vocábulos representa a renovação da vida, a matéria necessária para a criação do mundo, conforme Rosa (2009, p. 85, 89) ou impede a visão clara, segundo Ferreira (2014, p.158, 528). Com base nessas simbologias, entende-se que os obstáculos dificultam o contato de Deus com as pessoas ou talvez remetam à dificuldade do homem para ver Deus. 

Observa-se a metalinguagem na sugestão de que a escrita do poema procura mostrar a vida cotidiana para além do corriqueiro, mas essa tarefa é árdua, e o poeta só vê sua criação depois que ela está pronta. Antes, palavras, versos, estrofes e sua configuração na página são indefinidas. Neste caso, o poeta não tem poder completo sobre sua criação, e esta possui algum domínio sobre ela própria, certa independência perante o poeta que a cria. 

A epígrafe da sexta parte de A duração do dia consiste em: “Ei-los atrás da parede. Cântico dos Cânticos” (PRADO, 2011, p.79). Essa epígrafe poética não se refere a capítulo ou versículo, mas se observa que ela se refere ao capítulo 1, versículo 9 do cântico “Primavera”, em que a amada dirige elogios ao amado. Na tradução de Storniolo, Balancin e Prado, se lê: “Ei-lo postando-se/atrás da nossa parede”. Na tradução de Almeida, consta: “Eis que está detrás da nossa parede”. Na tradução de Reina-Valera, o trecho está assim escrito; “Eis que está detrás da parede”. Na tradução de Figueiredo, tem-se: “O meu amado é semelhante a uma cabra montesa, e a um veadinho. Ei-lo aí está posto por detrás da nossa parede”. A amada descreve seu amado, recorda o que o amado fala para ela, pois o inverno passou e ela deve se levantar, porque ele a chama para viver, aproveitar a vida enquanto é primavera. Os poemas desta parte de A duração do dia tratam do amor espiritual mais do que do amor sensual, havendo a sugestão metalinguística de que, durante a escrita do poema, há uma relação erótica, amorosa entre este e o poeta. 

A epígrafe da sétima parte do livro em estudo consiste em: “Um resplandor na mata igual um dia. Velha mulher falando de quando viu o cometa Halley” (PRADO, 2011, p.85). O resplandecer do cometa Halley é análogo à luz do dia e representa um acontecimento surpreendente, aludindo às situações valiosas, ricas de significado que às vezes não são observadas e usufruídas no cotidiano, talvez por falta de atenção. Embora a epígrafe não possua clara referência bíblica, os dois únicos poemas desta parte tratam do resplandecer da natureza e, ao mesmo tempo, fazem refletir sobre a luz que se espalha a partir do poema já escrito, criado. Ao mesmo tempo, a epígrafe alude à imagem de Deus ordenando: “Faça-se a luz”. 

A epígrafe da oitava parte do livro A duração do dia corresponde a: “Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai comigo. Marcos 14,34” (PRADO, 2011, p. 89). Na tradução de Storniolo, Balancin e Prado, eis o trecho: “Então disse a eles: “Minha alma está numa tristeza de morte. Fiquem aqui e vigiem”. Na tradução de Almeida, lê-se: “E disse-lhes: A minha alma está profundamente triste até à morte: fica aqui, e vigiai”; na tradução de Reina-Valera, a passagem é encontrada desse modo: “E disse-lhes: Minha alma está aflita com uma tristeza mortal: Ficai aqui e vigiai”. Na tradução de Figueiredo, tem-se: “Então lhes disse: A minha alma se acha numa tristeza mortal: detende-vos aqui, vigiai”. Na passagem bíblica Jesus sabe o que irá acontecer, por isso fala como sua alma está. Os poemas desta parte aludem ao Natal como época de fartura de alimento, de beleza e de emoções, aludem à necessidade e à dor da poetisa para escrever, ao absurdo das imagens do sonho, da oração em línguas e do fato de que até as pessoas más podem escrever poemas, pois elas também têm desejos, emoções. Aludem ainda ao fato de que Deus e o homem são indissociáveis, remetendo à ideia de que a corporalidade se inter-relaciona com a espiritualidade. A sugestão metalinguística associa o Natal ao nascimento do poema no sentido de que ambos trazem mensagens positivas para homens que estão brutamente esquecidos de sua espiritualidade. 

Na epígrafe da nona e última parte de A duração do dia, lê-se: “Explica-nos a parábola. Mateus 13, 36” (PRADO, 2011 p.99). Na tradução de Storniolo, Balancin e Prado, encontra-se: “Então Jesus deixou as multidões e foi para casa. Os discípulos se aproximaram dele e disseram: “Explica-nos a parábola do joio”. Na tradução de Almeida, se lê: “Então, tendo despedido a multidão, foi Jesus para casa. E chegaram ao pé dele os seus discípulos, dizendo: Explica-nos a parábola do joio do campo”. Na tradução de Reina-Valera, está escrito: “Então, Jesus, tendo despedido a multidão, foi para casa; e chegaram-se a Ele Seus discípulos, dizendo: Explica-nos a parábola do joio do campo”. Na tradução de Figueiredo, consta: “Então, despedidas as gentes, veio à casa. E chegaram-se a ele os seus discípulos, dizendo: Explica-nos a parábola da cizânia do campo”. Na passagem, Jesus afirma que o joio representa o mal, enquanto o campo é o mundo e a semente são os filhos do reino dos céus. O responsável por plantar é o filho de Deus, e os ceifadores são os anjos. Esses são enviados por Deus para tirar todo o profano do mundo. A referência metalinguística, nesta parte de A duração do dia, aponta que o poema é a palavra sagrada, como a das parábolas de Jesus, e precisa ser semeada e refletida pelos leitores. 

Por fim, este livro de Adélia Prado inventa uma gradação crescente no modo de tratar a presença do sagrado na vida cotidiana e de denunciar que o homem se afastou do sagrado ao agir como se fosse superior aos demais seres do planeta Terra e de sugerir que a palavra poética mantém o elo inseparável do sagrado com o profano. 

Conclusão 

Os poemas de A duração do dia (2011), de Adélia Prado, mostram a natureza sagrada da vida cotidiana. O diálogo com as passagens de textos bíblicos direciona os temas do livro tanto para a religiosidade cristã quanto para além dela, para indivíduos que não conhecem a palavra da Bíblia, revestindo-se esse diálogo da liberdade recriadora da poetisa. Esse livro também instiga à reflexão sobre a possibilidade de haver outro modo de viver que se coloca para além do padrão de subsistência ou de uma sobrevivência que se reduz à ideia de que a boa qualidade de vida está baseada exclusiva e excessivamente nos bens materiais, que não valoriza o ócio, os momentos para estar só consigo mesmo para contemplar a natureza, para refletir sobre si, sobre os outros, sobre o convívio na comunidade. 

A crítica à vida cotidiana marcada pela falta de tempo para voltar-se para si e para seu entorno é abordada por Agnes Heller (2000, p. 35) em O cotidiano e a história, quando esta autora escreve que, contra o automatismo, é necessário estar atento para os mínimos acontecimentos de modo a valorizar tanto os aspectos materiais quanto espirituais da vida, pois nesses momentos de ócio, contemplação e reflexão, se encontra o sagrado. Assim, a postura crítica consigo e com o outro é imprescindível, pois é por meio dela que se pode refletir a respeito do sofrimento, do mal e sobre as maneiras de enfrentá-los. 

Em resumo, o elemento que a poetisa destaca para viver de acordo com essa atenção é o amor à natureza, o qual pode ser descoberto em um instante como aquele em que a velha mulher se deslumbrou durante a passagem do Halley. A simbologia deste cometa se amplia para a ideia de que é necessário combinar a espiritualidade com a materialidade e que essa mensagem se encontra tanto na linguagem da Bíblia, da natureza, quanto em um livro de poemas. 

Com efeito, cada poema de A duração do dia corresponde a uma dureé, a uma vivência em que se descobre o elo da vida material-espiritual, que precisa ser escrita e pensada desse modo, como uma palavra escrita e vivida de acordo com essa complexidade. 

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