Aurora Cardoso de Quadros*
*Doutora em Teoria Literária e Literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Estudos Literários no Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Contato: auroracardoso2010@hotmail.com
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Resumo:
No romance Os Miseráveis, escrito por Victor Hugo no século XIX, o Bispo Myriel é representado como agente da transformação espiritual do protagonista. Sua importância legitima-se após ter sido roubado por Jean Valjean, sendo a indulgência com que reage o dispositivo que reorientará a vida daquele maltrapilho recém-liberto da prisão. Na mente do transgressor, o êxtase mental que se segue ao indulto deflagraintenso fenômeno: o redimido incorpora seu redentor. A partir desses fatos, este estudo, por meio da leitura, análise e pesquisa bibliográfica, tem por objetivo compreender e refletir sobre a representação do fenômeno ocorrido com Jean Valjean. O percurso teórico realiza associações sobre propriedades espirituais da literatura, tomando como base a dupla horaciana “dulci utile”, a função de humanização da literatura e a instância da memória. Observa-se que a obra ultrapassa a natureza estética, propiciando o estabelecimento de relações psíquicas associadas à visão de mundo e ao movimento da sensibilidade.
Palavras chave: Bispo Myriel; Jean Valjean; Humanização; Memória
Abstract
In the novel Les Miserables, written by Victor Hugo in the nineteenth century, Bishop Myriel is represented as the agent of the spiritual transformation of the protagonist. Its importance legitimizes itself after having been stolen by Jean Valjean, and the indulgence with which it reacts becomes the device that will reorient the life of that man newly freed of the prison. In the mind of the transgressor, the mental ecstasy that follows the pardon triggers an intense phenomenon: the redeemed incorporates his redeemer. From these facts, this study, through reading, bibliographical research and analysis, aims to understand and reflect on the representation of the phenomenon occurred with Jean Valjean. The theoretical course makes associations on the spiritual properties of literature; based on the “dulci utile” Horacian double, the function of humanization of literature and the instance of memory. It is observed that the work surpasses the aesthetic nature, propitiating the establishment of psychic relations that favor the improvement of the world view and the sensitivity.
Keywords: : Bishop Myriel; Jean Valjean; Humanization; Memory
Este trabalho, partindo do clássico Os miseráveis, escrito por Victor Hugo e publicado em 1862, centra-se na emblemática força do bispo Myriel, personagem que talvez baseie grande parte da perpetuação desse romance. A meta de analisar as decorrências a partir dessa força, instaurada já no início do romance, justifica-se pelo potencial efeito estético no leitor e pela atuação psíquica que ele exerce no protagonista, Jean Valjean, indicando o quanto aquele é vital para o destino deste último. Motivada pela paradoxal intersecção entre o simples e o sofisticado, a presente proposta investiga as implicações abstratas possíveis a partir dos acontecimentos da história de Jean Valjean, desde o momento de contato com o clérigo. A lucidez com que os capítulos iniciais delineiam em detalhes a vida, a personalidade e a atitude do Bispo Myriel funcionam de modo a imantar a continuidade da leitura. Partindo desse efeito, o percurso do estudo se constrói a partir de uma atitude de perscrutar, nas atitudes de Valjean, a presença dessa energia transformadora, deflagrada na experiência relatada nos curtos episódios da casa episcopal. No decorrer da narrativa, o passado do personagem será presente até os momentos finais, ainda que o leitor não esteja todo o tempo atento ao fato que provocou a transformação. O que o homem vive muda sua vida e se instala na sequência dos momentos da sua história, de forma subliminar e paralelamente fora do foco da visão, lembrando a explicação de Santo Agostinho a respeito da atuação da memória:
como cresce o pretérito, que já não existe, a não ser pelo motivo de três coisas se nos depararem no espírito onde isto se realiza: expectação, atenção e memória? Aquilo que o espírito espera passa através do domínio da atenção para o domínio da memória. (AGOSTINHO, 1999, p. 337).
A relação dos personagens passa a ser mnemônica, quase simbiótica, numa presença abstrata no interior do novo homem.
Com base nesses dispositivos iniciais, a atenção se volta para o fenômeno ocorrido com o personagem principal, bem como para o possível funcionamento da leitura da obra, que pode influenciar modos de sentir, ser e ver dos leitores. A construção do personagem se realiza por meio de uma linguagem clara, sensível e minuciosa. A técnica do autor promove um intenso envolvimento pelo leitor. Entendendo ser a obra literária uma produção simbólica, associam-se neste estudo a sua natureza e o seu poder de humanizar, tomando como base a elaboração de Antonio Candido (1972) sobre a transformação operada pela literatura que, sendo produto humano, veicula valores do ser humano. Entendese que, sendo o autor de um romance um ser social, sua criação reflete o homem, seus costumes e crenças. Simbolizando o homem no mundo, pode revelar as tendências filosóficas e políticas do seu criador. Desse modo, os elementos literários intrínsecos associam-se cooperativamente e complementarmente aos elementos exteriores, sociais. Em outras palavras, o mundo se influencia por determinada obra e pelo ponto de vista do seu autor. Este, por sua vez, como ser social, é influenciado pelo mundo nesse ciclo em que, reciprocamente, influencia o leitor por meio da sua obra. Nessa linha de raciocínio, a referida obra torna-se a exemplar do potencial efeito da literatura que, nas palavras de Candido, é capaz de despertar no homem:
aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004, p. 180).
A adesão e confiabilidade na leitura são alcançadas pela técnica, em que o narrador, no caso da obra, muitas vezes se confessa em dúvida sobre fatos históricos dos quais não teria conhecimento, gerando um sentido de que o relato teria natureza documental. Exemplo disso encontra-se na carta em que a irmã do bispo escreve à sua prima, no ponto em que o narrador se porta como autor e abre os seguintes parênteses ao descrever o irmão: “O que eu poderia lhe dizer? Há romanos e romanas, (nesta passagem há uma palavra ilegível) e toda a sequência.” (HUGO, 2007, p. 55. Grifo em itálico do autor). Assim, o bispo emerge como uma figura que se mescla com um sentido de realidade, e o leitor entra no convite do jogo estético e se deixa levar pela história das raras figuras que por ela transitam. Como peça central desse dinamismo, o personagem Myriel, antes de ter contato com o personagem principal, tem o mérito para ser iluminado pelo autor, de modo a realmente situar sua entidade em lugar especial e constituinte. São quase oitenta páginas em que se expõem seus caracteres essenciais, não soltos, mas harmonicamente articulados aos episódios, ilustrados num conjunto coeso e coerente entre natureza e prática. Substancial para entender toda a história e a complexidade da vibração que caracterizará o protagonista, é curioso o fato de que, na maioria das adaptações, esses detalhes são suprimidos ou resumidos de forma a prejudicar as relações de causa e consequência que serão estabelecidas no decorrer da leitura. O fenômeno espiritual, por assim dizer, do bispo Myriel também se torna elemento estruturante para o efeito potencial da obra no espírito do seu leitor. É ele que, conforme será visto, constrói o eixo mnemônico que subjaz as ações do personagem principal. Embora de modo abstrato, constitui o ponto axial deixado em segundo plano, mas que é evocado em momentos cruciais. A harmonia entre a essência espiritual e o modo de vida estabelece uma coerente relação de causa e consequência, promovendo uma sensação de se estar vivenciando o descortinar de uma bela e única construção humana, da qual não se pode deixar escapar nenhum detalhe, para melhor experiência estética e espiritual. A mensagem torna-se esteticamente válida reciprocamente, numa justa aplicação da prescrição de Horácio, na sua Epístola aos pisões (1999), que defende: “Levou todo ponto aquele que misturou o útil ao agradável, / ao leitor deleitando e igualmente advertindo.” (HORÁCIO, 2013, p. 42). O bispo torna-se um espetáculo de nobres ações e sentimentos que se abre aos olhos do leitor. Primeiramente, de modo simples, pelo óbvio da lógica que devia pautar todos os homens. Por outro lado, complexo, por ser a combinação do divino com o terreno; da lucidez singular que, no entanto, contrasta com os equívocos que, de fato, baseiam as relações dos demais mortais.
Em sua distinta desafetação, o monsenhor aproxima-se de uma sofisticada concretização do bem, da nobreza de espírito e do amor ao próximo. De prosa prazenteira e afável, tem sempre uma resposta astuta para os erros serem repensados. “Quando se tratava de caridade, não se chocava nem mesmo diante de uma recusa, encontrando sempre algumas palavras que faziam refletir.” (HUGO, 2007, p. 37). Sua presença de espírito produz deleitosos chistes, como quando observa a frequência com que um rico e avaro senhor dava miserável moeda para alguns mendigos dividirem na porta da igreja que ele frequentava. Disse Myriel certa vez: “Olhe o senhor Geborand comprando o paraíso por um tostão” (HUGO, 2007, p. 37). Nos momentos em que se relata alguma tensão, são muitas as citações em que ele interfere de modo a contribuir para o melhor desfecho: opina com coragem e lucidez diante de circunstâncias e decisões da justiça, das famílias, em ocasiões de equívocos prejudiciais ao pobre. Sem nenhum temor, mas com brandura, é atraído pelos necessitados e oprimidos e, naturalmente, opina, age, debruça-se pelo outro; a exceção de fatos como a execução na guilhotina, diante da qual se entristeceu e se indignou, evitando passar pelo local onde os condenados eram executados.
Como são muitos os relatos construtores da sua generosidade, torna-se difícil selecionar os mais substanciais para construir o entendimento da sua personalidade e da sua vida. E na pretensão de se optar pelos trechos que melhor traduzam o personagem, as chances de falhar se reforçam pelas tendências de cada observador. Alguns pontos, entretanto, parecem revelar com certa densidade sua vida e dedicação, como no trecho:
Inclinava-se sobre o que geme e sobre o que expia. Para ele, o universo era como uma imensa enfermidade, por toda parte sentia a febre, por toda parte auscultava o sofrimento e, sem procurar desvendar o enigma, tratava de fazer o curativo nas feridas. O temeroso espetáculo das coisas criadas inspirava-lhe enternecimento; não se ocupava a não ser de encontrar para si mesmo, e ensejar nos outros, o melhor meio de consolar e aliviar. (HUGO, 2007, p. 78)
Sobre a visão que lhe é atribuída referente às causas dos infortúnios e seus desdobramentos, a narrativa antecipa traços do realismo, o que a faz ser considerada como romântica e realista. Realista, devido ao determinismo que parece fazer parte da filosofia subjacente à narrativa. Podem-se ler trechos como:
Era indulgente para com as mulheres e os pobres, sobre quem recai o peso da sociedade humana. Dizia: “Os erros das mulheres, dos filhos, dos criados, dos fracos, dos indigentes e dos ignorantes são os erros dos maridos, dos pais, dos amos, dos fortes, dos ricos e dos sábios”. E dizia mais: “Aos ignorantes, ensinem o máximo de coisas que puderem; a sociedade é culpada por não ministrar a instrução gratuita; ela é responsável pelas trevas que produz. Uma alma cheia de sombras é onde o pecado acontece. A culpa não é de quem pecou, mas de quem fez a sombra”. (HUGO, 2007, p. 38)
Essa apresentação dos atributos do bispo e do seu modus vivendi cria a base para que, na história que será narrada, ocorra a sintonia do leitor com os sentidos e fatos que se seguem à sua apresentação. A expectativa criada gera o preparo para que se espere e para que flua a melhor reação do bispo, num encontro que esse terá com o personagem central, em torno do qual se desenvolverá a história. E é o mencionado encontro dos dois personagens que vai determinar a transformação da natureza desse personagem principal da história. O cuidado do bispo, benfeitor no episódio da hospedagem, mais o que se segue, sua reação e seus desdobramentos tornam-se exemplo para as teorias que atribuem a certa categoria de literatura o dom de libertar, de emancipar o homem e aprimorar ou despertar seus nobres sentimentos. Talvez seja esse o ponto forte da representatividade do bispo Myriel no romance, uma vez que ele, por escolher como campo de sua vivência o lado rejeitado pela maioria, os recantos do homem desfavorecido, enfermo e necessitado, age com o ex-condenado de modo espontaneamente generoso. Também usa sua casa como a casa dos pobres, e sua vida como natural instrumento de alívio dos sofredores. O mundo desenhado nos muitos capítulos da obra torna-se o objeto de aplicação de sua generosidade. E a riqueza do seu mundo interior propicia aos olhos do leitor a elucidação da base da sua personalidade, sem deixar de enternecer e atuar espiritualmente. Essa atuação da literatura é estudada pela elaboração de Wolfgang Iser (1996, vol. 1), em que explica a “teoria do efeito”, aqui ligada às funções da Literatura descritas por Antonio Candido (1972; 2004), especialmente a função formadora e o seu efeito humanizador.
O valor da obra literária está, segundo Iser (1996) explica no decorrer da sua teoria, na sua capacidade de promover mudanças e refinamento no leitor, conduzindo-o a um posicionamento crítico e consciente diante dos indicadores que codificam a literatura e cria perspectivas. Tal interação pode promover uma violação das normas e a transformação de si mesmo, como leitor, que cria suas estratégias de leitura, alcança novos códigos de compreensão aprimorando suas percepções e juízos. Assim, pela emoção estética, pela apreensão dos significados, símbolos, temas abstratos, veiculados por meio de figuras concretas em trânsito pelo romance, o leitor lê o mundo e o relaciona aos fatos individuais de suas experiências, para aprimorá-las, sendo capaz de, com o acúmulo de vivências, com o amadurecimento do olhar, com o refinamento das emoções, melhor lidar com suas próprias questões e com as questões do mundo exterior a si, mas no qual está inserido.
Nesse sentido, o panorama que se descortina ao leitor em Os Miseráveis, como o título sugere, em princípio, parece criar a atmosfera sombria em espaços degradados e revelar esse ingrediente como a substância primaz da obra, em sua representação ficcional de vidas e homens miseráveis. Mas, numa leitura atenta, o leitor apreende mais a face oposta a essa imagem concreta da desdita humana, e se envolve nos sentidos luminosos do campo abstrato, que é construído de modo subliminar no decorrer da história de Jean Valjean. Este é o nome do personagem central.
De fato, o romance apresenta um mundo imerso em pobreza, miséria, injustiças e vícios. A começar pelo protagonista, um recém-liberto da prisão, cujo crime foi roubar um pão para a família, os horrores dos fatos deixam em suspense o leitor, diante do qual se apresenta o drama social de uma França marcada pela miséria, injustiça e pela desigualdade. Na dinâmica infecta desse ambiente, a maioria dos personagens vive complicações essenciais, estando quase sempre envoltos em sofrimentos, trevas, maus costumes, em conflitos interiores ou sociais. E os indivíduos, quando caracterizados por nobres sentimentos, divergem entre o ideal e o mundo. São eles, no geral, alguma coisa que não conseguem, pelo menos inicialmente, concretizar em ato. Assim, a essência se choca com o desempenho e, quando este acontece, não acontece sem sofrimentos, mas por meio de insalubres estratégias de sobrevivência. Evoluindo diante dos olhos do leitor, desenvolvem-se muitas cenas, vidas e ações periféricas que antagonizam o conjunto de passagens, as quais traçam o caminho e o destino de Valjean. Constituindo ele o eixo da ação central, está se destacará como sendo iluminada pela nobreza de sentimentos e ações, deflagrados pela metamorfose por que passa o personagem e pela sua diferenciada trajetória a partir dessa mudança. E, de certa forma, se essa mudança se efetiva no seu interior, é possível que, aos olhos do leitor, o espelhamento naquela aura do bispo possibilite uma interação também substancial desse receptor.
Representando fatos inerentes ao homem em sociedade, a obra Os Miseráveis representa também uma França que pode se estender metaforicamente a um mundo, e homens que também podem ser representativos de todo e qualquer homem, em suas inclinações e circunstâncias possíveis. Alguns se caracterizam pelos nobres sentimentos, muitos pelos vícios e impulsos imediatos baixos. Muitos lutam contra o sistema, como é o caso do personagem Marius. Há aquele que incorpora o fundamentalismo moralista que, em prol da “justiça”, esquece-se da humanidade necessária, pressuposto inerente ao indivíduo. Exemplo desse tipo é o inspetor Javert, cujo senso obstinado de uma severa justiça, incluindo uma austeridade descomunal consigo mesmo, torna-se o contraponto radical com respeito à evolução do protagonista, a quem persegue com o olhar agudo, como uma ave de rapina. O fato é que, por trás de cada um, há uma filosofia de vida, uma visão de mundo numa representação de um tipo, categoria explicada por René Wellek e Austin Warren (1976), simbolizando o real. Entre símbolo e filosofia, associação em que, na visão de Guy Rosa (2007), transitam fatos, ideias e ações, poder-se-ia dizer que Javert, por exemplo, encarna o repúdio à caridade em prol da justiça. Esta, para ele, é soberana e absoluta. Existe o amor maternal da personagem Fantine que, visando à proteção da filha, chega ao ponto de sacrificar-se em prostituição. No geral, os personagens consistem em “tipos”, que encarnam e condensam os problemas da alma humana, em suas fragilidades e vulnerabilidades. Alguns, como dito, encarnam as almas iluminadas pela sabedoria e bons sentimentos. Todos, embora não sem controvérsia sobre essa generalização, são componentes verossímeis de um mundo representado. Daí seu potencial de espelhamento e de identificação.
Contudo, é em meio a esse contexto em que a superfície revela o predomínio de um fervilhar da miséria e do vício, onde a moralidade confunde-se com a rigidez e o despotismo, num mundo tirano, carregado, adverso, triste, que Victor Hugo faz emergir o ser diferente, cuja leveza espiritual e comportamental coexiste com o significativo efeito da ação firme, corajosa e convicta. Um indivíduo construído em harmonia entre o ideal e as ações, aparentemente não distinguindo os polos da dita dicotomia caridade versus justiça, mas naturalmente fazendo de uma à outra; e da outra, uma. Ao construir o personagem, ou seja, Myriel (ou Bienvenu, como passou a ser chamado após se tornar bispo) como um indivíduo em quem talvez condensem todas as boas qualidades, conforme o pensamento de um justo, o autor não peca, nesse caso, pelo excesso ou por uma idealização fantasiosa, inverossímil. Ao contrário, suas atitudes, embora angelicais no melhor sentido da palavra, encontram paralelo na realidade, e o efeito no leitor pode ser previsto como dá mais completa interação e empatia. Torna-se inevitável a intensa reação do leitor que, instantaneamente, começa a associar literatura e vida, ligação que confirma a literatura com produto que reflete o homem e se reflete no homem. A doçura da fruição liga-se ao elemento moral, transformador, que faz refletir, ponderar, raciocinar e transformar.
A arte verbal da literatura, segundo Wellek e Warren (1976), utiliza- -se da palavra como sua matéria prima, como elemento estético. Dizem eles que, semelhante ao modo como a pintura usa a cor e a forma, o escultor usa a pedra e as linhas, o escritor utiliza a palavra para criar o seu produto estético. Mas, ponderam eles, a literatura não se limita ao componente estético, e considerar a fórmula horaciana do dulci utile é fazer justiça à obra literária que, em muitos casos, instrui e deleita. Assim, enfoca-se com essa linha de raciocínio a probabilidade desse efeito ser produzido com a leitura de Os Miseráveis, em efetiva simbiose de efeito estético e valor formador. A perpetuação da obra não deixa dúvida sobre o seu valor estético, sobretudo em pontos cruciais como os episódios ilustrativos da figura e da efígie do referido bispo. Completa-se que a literatura, por se utilizar da palavra, distingue-se de outras artes, pois traz, além do elemento formal, que deleita, o seu significado e, consequentemente, o assunto, que constrói a mensagem que, muitas vezes, instrui. A esse respeito, Mário de Andrade assegura:
Que o assunto seja, principalmente em literatura, um elemento de beleza também, eu não chego a negar, apenas desejo que ele represente realmente uma mensagem, como na obra de um Castro Alves. Quero dizer: seja efetivamente um valor crítico, uma nova síntese que nos dê um sentido da vida, um aspecto do essencial. (ANDRADE, 2002, p. 108-9).
Esse ingrediente da palavra literária abordado por Andrade, ou seja, o assunto, no caso do Monsenhor Myriel, produz um efeito de essencialidade, um sentido da vida, entendendo que a referida síntese se efetiva na construção da dinâmica de vida e pensamento do personagem. Ele toca, faz refletir e faz viver. Nele, as qualidades e as atitudes revelam o equilíbrio ponderador do posicionamento e da realização, cujo exemplo consiste em forte potencial para ser incorporado em experiência humana profunda. A felicidade do encontro entre o ser e o fazer e, sobretudo, a lucidez da sua atuação em prol do oprimido, talvez, representem, ao lado do drama de Jean Valjean, o centro condensador das virtudes gerais da obra e os principais motivadores da sua imortalidade.
Diante do dito até este ponto, torna-se indispensável relatar o episódio em foco, abstraindo do romance a influência do bispo em Jean Valjean. Incialmente, conforme digressão realizada no sexto capítulo da obra, intitulado “Jean Valjean”, há o relato da sua vida pregressa. Resumindo o relato, pode-se contar que ele trabalhava com serviços rurais, principalmente poda de árvores. De vida órfã, humilde, mas digna, morava com a irmã, viúva, que o criara. Seus sentimentos e atitudes sublimes eram demonstrados no cuidado e carinho com essa família, a irmã e os sete sobrinhos, a quem ajudava com o básico, propiciado pelos pagamentos que recebia. A narrativa constrói ternamente sua vivência, incluindo a dedicação e a compreensão, em momentos como quando, à mesa ao se alimentar, “sua irmã tirava-lhe da tigela o melhor da refeição, o pedaço de carne, a fatia de toucinho, o miolo da couve, para dar a algum dos seus filhos” (HUGO, 2007, p. 102). Ele não demonstrava qualquer reação e continuava a comer naturalmente.
Certa vez, em fase de crise, desempregado, não suportando ver os sobrinhos com fome, rouba um pão, motivo pelo qual vai preso e sofre terrivelmente nas galés. As tentativas de fuga estendem sua pena e ele passa dezenove anos encarcerado. Ao sair da prisão, o primeiro dia de liberdade já revela as decorrências lastimáveis do estigma adquirido pelo seu delito: em todos os lugares onde procura pousada, é rejeitado e marginalizado. Mesmo pagando, não conseguir acolhimento para dormir, sendo expulso imediatamente ao ser reconhecido como recém liberto. Cansado, faminto e com frio, está se preparando para deitar-se ao relento, quando recebe de uma senhora a sugestão de bater em mais uma casa. Era a casa do bispo. Neste ponto, o personagem apresenta- -se ao bispo Myriel pedindo abrigo e alimento.
O Bispo Myriel, que já soubera dos boatos de que se tratava de um temível ladrão, recebe o maltrapilho como a digno cavalheiro, mesmo depois de ele esclarecer, sem ressalvas, sua condição advinda do crime do furto do pão. À mesa que, por solicitação do bispo, foi distintamente posta com peças de prata, Jean Valjean relata sua história e sua pena, diante do olhar terno, atencioso e consternado do bispo, também acompanhado da sua irmã Baptistine e da ajudante Magloire. O bispo, embora tomado de sentimento pelo relato, permanece sem alterar a serenidade da expressão, e faz com que se acolha o hóspede. Sua atitude, potencialmente, já causaria um misto de perplexidade e admiração no leitor. Mas, apesar do tratamento atencioso, que incluiu, além do jantar, uma cama cuidadosamente preparada para seu repouso, em um quarto no interior da casa, Jean Valjean, durante a noite, furta os talheres de prata do seu anfitrião e foge. Após isso, pela manhã, Magloire sente falta dos mesmos, reportando-se ao bispo sobre a falta da cesta com os talheres, no episódio que se segue:
O bispo acabava de apanhar a cesta em um canteiro e entregou- -a à senhora Magloire. - Aí a tem. - Mas não há nada dentro! – disse ela. – E os talheres? - Ah! – replicou o bispo. – Então é a prata que procura? Não sei onde está. - Jesus Senhor! Então foi roubada! Foi o homem de ontem à noite que a roubou! Num piscar de olhos, a senhora Magloire, com toda a vivacidade que tinha, correu ao oratório, entrou na alcova e voltou até o bispo. Este acabara de abaixar-se e contemplava com a maior tristeza uma planta quebrada pela cesta que caíra pela platibanda; ao ouvir os gritos da senhora Magloire, ergueu-se. -Monsenhor, o homem foi-se embora e a prata foi roubada! Ao fazer essa exclamação, seus olhos bateram em um ângulo do jardim onde viam-se traços recentes de escalada, e um caibro havia sido arrancado. - Olhe, foi por ali que ele fugiu! Saltou para a viela Cochefilet. Que maldade, roubou nossos talheres! O bispo ficou silencioso por um momento, depois, com olhar sério, disse calmamente à senhora Magloire: - Antes de mais nada, aquela prataria nos pertencia? A senhora Magloire ficou sem saber o que dizer. Mais um momento de silêncio, e o bispo prosseguiu: - Senhora Magloire, havia muito que eu era ilícito possuidor daquela prata. Ela pertencia aos pobres. E quem era aquele homem? Um pobre, evidentemente (HUGO, 2007, p. 121).
O ocorrido cria uma situação que, se ponderada pelo senso comum, poderia escandalizar, mas o inusitado despojamento do clérigo e a leveza como procede a absolvição da culpa do hóspede intensifica o calor das circunstâncias e agita a leitura, deixando um potencial lacuna na mente do leitor que se inquieta na tentativa de julgar a reação que acaba de presenciar pela experiência da leitura.
Em seguida, acontece o episódio crucial: após fugir e ser flagrado por policiais, Jean Valjean é trazido de volta com os talheres. Ficando embaraçado diante do bispo, assiste confusamente estupefato a reação daquele que o havia acolhido. Esse o recebe amigavelmente e o defende, dizendo aos policiais ter presenteado o rapaz com a prataria. Acrescenta Myriel, na presença dos policiais, que Valjean se esquecera de levar os castiçais, os quais também teriam sido dados ao seu hóspede. Entrega-lhe, por fim, os castiçais e, após a saída dos homens, arremata o caso dizendo ao atordoado infrator: “Jean Valjean, meu irmão. Lembre-se de que não pertence mais ao mal, mas sim ao bem. É sua alma que acabo de comprar: furto-a ao espírito de perdição para entregá-la a Deus” (HUGO, 2007, p. 123). Esse foi o marco inicial da remissão de Jean Valjean.
Confuso, ele sai, sem saber o que pensar. Esse episódio é seguido de uma espécie de perda de consciência do personagem, que não conseguia organizar os pensamentos e entender o que tinha se passado. Fica um tempo ausente de si, numa abstração de tudo. Então ocorre mais um episódio adverso, que o marcaria e revelaria a emblemática presença do padre. Estava ele sentado na rua, e um garoto deixa cair uma moeda em que ele, absorto, pisa. Fica expresso que não é ele, de modo lúcido, quem pisa, mas como que seu espectro. Sem que ele percebesse, o garoto pede, reclama, implora a devolução do dinheiro, a cujos apelos Jean Valjean responde mecanicamente, mas irritado, de modo ríspido, como num incômodo de estar sendo importunado no seu zonzo desvario. Enxota o garoto, que, por fim, foge apavorado. Depois, levanta-se, como a despertar do esvaimento, quando vê a moeda de que havia privado o menino.
Ao recobrar momentaneamente os fatos, sai desesperado à procura do garoto (Gervais), porém sem sucesso. Sente profundo pesar pelo que acabara de fazer e, encontrando um padre, pergunta se o vira. Diante da negativa, Valjean, como forma de se retratar, entrega ao clérigo o dinheiro do garoto e, não satisfeito, dá mais quatro moedas de cinco francos, dizendo que seriam para os pobres. Também pede ao padre que o mandasse prender, confessando ser um ladrão. Esse episódio é importante por revelar a transformação do personagem e por ser de fundamental repercussão, uma vez que, devido ao que diz ao padre, passa a ser procurado pelo inspetor Javert. Ouvindo-o “[o] padre cravou as esporas no cavalo e fugiu apavorado” (HUGO, 2007, p. 125). Muito perturbado, ainda continua na vã procura do menino. Com a tentativa fracassada, é então tomado por profundo conflito e cai no choro pela primeira vez em dezenove anos. Nesse ocorrido, a lacuna do juízo que havia sido deixada na mente do leitor pela reação do bispo começa a se preencher. Abranda-se a hesitação pelo ato do anfitrião traído pelo homem que bondosamente acolheu e, mesmo assim, absolveu e libertou: perdoando-lhe o crime e defendendo-o, livrara-o de uma nova, terrível e iminente prisão. A intenção do ocorrido começa a fazer sentido e a produzir a sensação de singular e iluminado espírito, pois o homem se transformara pela ação indulgente da sua vítima. A inquietante perplexidade do leitor que, provavelmente, hesitaria na pertinência de tamanha confiança em um infrator recorrente, talvez comece a se desfazer. Evocam-se então as boas qualidades anteriores do Jean Valjean, deixadas de lado pelo sofrimento e revolta, e a reação do personagem começa a se afigurar de uma grandiosidade e sabedoria que vai se confirmando a cada passo da vida daquele ser redimido, ou talvez dizendo melhor, renovado.
A sensação de sabedoria do bispo se confirma e se aprofunda no avançar da leitura, e após os fatos ocorridos com o garoto e sua moeda, acontece um fenômeno psíquico que lhe toma a alma. Valjean tem uma visão em que aparece a figura emblemática do bispo. O que então se observa é uma representação simbiótica: uma mistura de espectador de si mesmo com a consciência daquilo em que começara a se tornar:
Jean Valjean contemplou-se, por assim dizer, face a face; e ao mesmo tempo, através daquela alucinação, via, em misteriosa profundidade, uma espécie de luz que, em princípio, tomou por uma chama. Olhando com mais atenção para essa luz que se mostrava à sua consciência, viu que ela tinha forma humana, viu que essa chama era o bispo. Sua consciência contemplou alternadamente os dois homens assim colocados diante dele, o bispo e JeanValjean. Para enfraquecer o segundo, não fora preciso mais que o primeiro. Por um desses singulares efeitos, próprios daquela espécie de êxtase, à medida que se prolongava seu devaneio, o bispo se avultava e resplandecia a seus olhos, e Jean Valjean diminuía e se apagava. Em determinado momento, não era mais que uma sombra, e de repente desapareceu. Apenas o bispo havia restado. Preenchia toda a alma daquele miserável com um brilho magnífico (HUGO, 2007, p. 129).
A cena intensifica o poder de encantamento do leitor, unindo traços surrealistas na representação do que se passa, podendo ser vista, dentre outros enfoques, pelo ângulo da técnica, que se assemelha à abstração temática do surrealismo e à superposição de elementos do cubismo. Isso, por si, já foge do cotidiano, convidando o espírito do leitor a alcançar planos superiormente mais complexos. Consequentemente, exatamente pela técnica da arte, revela a força emocional e pode ser abordado do ponto de vista do fato psíquico que, no caso, revela a dimensão humana e seu poder transformador. Quanto à recepção, ou seja, a esse outro polo da obra, tem a provável decorrência de efetivar no leitor um sentimento otimista em relação aos valores humanos e à capacidade que o perdão tem de transformar e aprimorar seu próprio ser. Tanto que, na tomada de consciência que se segue, após reações diversas, vai se confirmando um novo Jean Valjean em profunda transformação e em cuja trajetória posterior ao ocorrido na casa do bispo mantém uma coerência essencial, patenteando um comportamento que ilustra o pensamento de Guy Rosa, quando destaca:
a exata intuição que Hugo tem do inconsciente, seu emprego preciso em termos mais tarde formalizados pela psicanálise, sua lealdade diante das obscuridades do desejo, sua atenção em relação aos estados de ausência ou de devaneio e às decisões que a vontade assume sem conhecê-las”. (ROSA, 2007, p. 17)
Do ladrão, que na verdade Jean Valjean não era, mas se tornara, nascem outros personagens que, conforme as circunstâncias, ele assume para conseguir conviver na sociedade, pois essa o excluiria se soubesse da sua identidade. Sua condição de “homem perigoso” marcado, inclusive documentalmente no passaporte, não possibilitaria viver comumente: seria sempre um marginal. Foi obrigado a mudar de nome e, com a identidade de Senhor Madeleine, foi um empresário próspero, que enriqueceu. O sucesso que favoreceu o acúmulo da sua fortuna serviu para ajudar muitas pessoas a quem oferecia sua humanidade e emprego em sua fábrica. Construiu escolas, hospitais, auxiliou necessitados. Aos muitos pobres que trabalharam na sua fábrica, tratou a todos com justiça e fraternalmente. Tamanha generosidade e tamanho discernimento cativaram a todos, e ele se tornou prefeito da cidade.
Observa-se nesse novo papel a conduta do novo homem, que se tornou motivado pela sublime interferência. É evidente que, ao incorporar o bispo, adotou intuitivamente seus hábitos e modos. E, se Monsenhor Bienvenu não travava discussões aprofundadas, assim também ele procedia. Se o bispo não discriminava os marginalizados, assim também ele fazia. Se o bispo agia com coragem e tranquilidade, a ação de Jean Valjean nele se espelhava. Parece ao leitor que o personagem tenha assimilado os modos do bispo de maneira tão transcendental como foi a cena crucial. Também, como o bispo, quando alguém questionava algo, ele igualmente nunca entrava em fervoroso debate, como se compreendesse tudo do mundo e do outro. Talvez não se trate propriamente de apenas compreender, mas de harmonizar e agir atuando para amenizar as dores, misérias e sofrimentos. Dava respostas tranquilas, assim como o seu modelo transcendente, a quem Victor Hugo dedicou vários capítulos, como dito. Neles, ainda, lembra-se aqui certo episódio, quando alguém provocou o bispo dizendo a ele, arrazoando com argumentos vãos, que a questão de amar uns aos outros era bobagem, e o bispo respondeu: “Pois bem, se é uma bobagem, a alma deve encerrar-se nela como a pérola dentro da concha” (HUGO, 2007, p. 78). E, semelhante ao bispo, Jean Valjean, de forma a simplificar todas as questões abstratas da vida, de modo natural, vivia ele satisfeito a evitar as profundas questões que chocam, mas atraem. Apenas vivia agindo e amando as pessoas. Talvez o que melhor sintetiza a natureza do bispo de quem retirou sua essência para viver é a explicação: “Aquela alma humilde amava, eis tudo”. (HUGO, 2007, p. 78).
Se tomarmos como base do seu comportamento a sua forma de lidar com o semelhante, torna-se natural o entendimento do ingrediente principal que qualifica, ao lado do amor, o Monsenhor Myriel e o personagem central: a empatia. Desse jeito especular e abstratamente sintonizado com as convicções do bispo de Digne, procede o protagonista. Exemplo ilustrativo desse empenho em seguir espiritualmente em postura nobre, vivenciando valores e atitudes dignas, dedicadas ao bem e ao necessitado, é sua relação com a personagem Fantine e com sua filha Cosette. Empregada na fábrica do senhor Madeleine, Fantine foi dispensada sem o conhecimento dele, quando uma encarregada de seção descobre seu passado. O caso de Fantine revela os valores de então e também o seu caráter generoso, cujo amor incondicional pela filha não foi capaz de superar o preconceito contra sua condição de mãe solteira. Cai em desgraça e se prostitui para manter a filha, atribuindo a culpa ao dono da empresa de que foi demitida. Esse, ficando sabendo do problema por que Fantine passou após ser demitida, empenha-se em auxiliá-la, prometendo resgatar sua filha. Contudo, a mesma já havia contraído grave doença devido aos sofrimentos e à prostituição a que se entregara para conseguir mandar dinheiro ao mercenário casal de algozes, que ela acreditava serem benfeitores e estarem cuidando bem da sua filha Cosette. Dentre tantos ocorridos, Fantine morre e o Senhor Madeleine busca sua filha depois de conferir os maus tratos por ela sofridos nas mãos do referido casal, os Thenardieu. A vida passa a ser dedicada à menina. Mas, devido ao crime, suposto e confesso de ter roubado a moeda do Gervais, é procurado pela polícia e não tem paz, vivendo a fugir e a se disfarçar com a garota. A relação de ambos é do mais puro amor paterno e reciprocidade filial.
A dinâmica da metamorfose no espírito do personagem foi se materializando ao ponto de, agora, refletir-se na incorporação da figura de pai amoroso e cuidadoso. Continua a prestar assistência a pobres, principalmente por intermédio da igreja onde os dois frequentam. Vivem uma vida simples, mas confortável e feliz. Os episódios descritos absorvem o leitor de um modo que esse fica enternecido com tamanha força espiritual, incorruptível, reta. E o efeito estético da obra alia-se ao seu valor essencial, que toca o campo abstrato das emoções e, no caso, liga-se à racionalidade de entender seus motivos e a eles aderir. Tudo isso se processa sem que o leitor apague mentalmente o que ficou em segundo plano, ou melhor, no plano superior, o monsenhor Benvindo. Este, embora não esteja ao alcance dos olhos, fica suspenso num plano mental e torna-se, mais que uma aura a contornar ações e sentimentos do personagem: é como o duplo, um alterego daquele personagem.
No lado oposto do movimento emocional da história, situa-se o inspetor Javert. Esse é, como mencionado, como um percalço, um empecilho à total realização de Jean Valjean. De temperamento austero, segue rigorosamente os preceitos da lei. E, a respeito do antigo prisioneiro, cuja vigilância agora não remonta aos tempos desse nas galés, mas à notícia do episódio da moeda do Geavais e da repercussão e dúvida sobre a prataria do bispo, a busca é implacável. Pode-se observar uma perseguição obstinada do inspetor aos limites da obsessão. Por várias vezes, inclusive, esteve bem próximo de capturar Jean Valjean, que sempre consegue escapar, revelando a dinâmica de caça e fuga e a ameaça que o inspetor representa.
A memória do bispo sempre presente, embora não explícita, vai se confirmando nas mínimas atitudes. Algumas extremas, como quando a ele é dada a incumbência de exterminar Javert, que havia se infiltrado como espião entre os revolucionários. Descoberto, Valjean que estava entre eles, na intenção de proteger Marius, amado de Cosette, é chamado para fazer a execução. Demonstrando que faria a execução, o inspetor Javert é levado por ele a um canto, de mãos atadas, mas é desamarrado e liberto. Valjean chega a explicar a Javert que sua alma havia sido resgatada e sua promessa de servir ao bem o impedia de matar quem quer que fosse. Pressente-se o bispo nesse episódio, em forma de memória e em forma de espírito incorporado. E em nome dessa memória incluem-se muitos episódios de completa doação e favorecimento dos necessitados. Destaca-se entre seus sublimes objetivos de vida o principal, Cosette, que merece todo sacrifício e sofrimento.
Sua vida por ela se justifica e se motiva. Tendo sido posto em dúvida pelo Marius, que havia se casado com Cosette, abdica de visitá-la e definha. As decorrências desse abandono evidenciam novamente a importância do espírito incorporado do bispo pelo íntimo do personagem. Quando Marius fica sabendo ser ele não um algoz, mas ao contrário, ter lhe salvado a vida durante a revolução e, por ele, ter enfrentado perigos e se mantido no anonimato, toma consciência da real identidade do sogro, da sua trajetória de generosidade e da sua grandeza de vida e de ação. Vai com Cosette ao encontro do sogro para se retratar, mas já era tarde. Jean Valjean já estava chegando ao fim, tamanho foi seu sofrimento pelo afastamento forçado de Cosette. Eis o que se sucede ao ser questionado se queria um padre, no momento que antecede sua morte:
Já tenho um – respondeu Jean Valjean. E, com o dedo, mostrou um ponto acima de sua cabeça, onde parecia ver alguém. É provável, efetivamente, que o bispo assistisse àquela cena.(HUGO, 2007, p. 604)
Posteriormente, ao explicar a Marius que o dinheiro dado como presente de casamento não era roubado, como aquele supôs e temeu, mas que fora adquirido com muito trabalho e honestidade, ele arremata dizendo que na vida havia feito o melhor que pôde, revelando mais uma vez o bispo como sua fonte de inspiração:
Há pouco escrevia a Cosette. Ela vai encontrar minha carta. É para ela que deixo os dois castiçais que estão sobre a lareira. São de prata, mas para mim era como se fossem de ouro, de diamantes; [...] Não sei se quem os deu a mim está contente, lá do alto, comigo. Fiz o que pude! (HUGO, 2007, p. 605)
O final reata as sugestões da força simbólica dos castiçais, nos quais se lê o bispo e sua poderosa atuação no espírito do personagem, agora moribundo:
Ele tombara para trás, o brilho dos dois castiçais o iluminou; seu rosto branco estava voltado para o céu, ele deixava Cosette e Marius cobrirem suas mãos de beijos. Estava morto. A noite não tinha estrelas e estava profundamente escura. Sem dúvida, na escuridão, algum imenso anjo estava de pé, asas abertas esperando sua alma. (HUGO, 2007, p. 606)
A morte de Jean Valjean traz ao primeiro plano aquele que, na verdade, nunca havia deixado de existir; ao contrário, ficara como essência e aura no personagem. O leitor, ao reencontrá-lo ao final da história, pode consolidar o cerne da sua figura, que se manteve paralela durante toda a trajetória e glória do homem cuja redenção ele propiciou. Esse vulto que se ilumina e transita entre as sombras, influencia o outro a se concretizar como ser dotado da lucidez e da bondade, prendendo a atenção do leitor, que o acompanha e o vê como um expectador cônscio e iluminado pela natureza e coerência da sua construção. Sua simplicidade, sua leveza e seu despojamento aproximam o leitor do que se costuma chamar, quando se tem consciência, pelo nome de generosidade. Mas, de tão simples e lúcida, a criação da sua natureza, mais que generosa, revela uma complexidade no conjunto da figura, que o delineia como que envolto em uma aura de santidade. E, desde o início da história do “grilheta” Jean Valjean, o bispo insurge-se como elemento constituinte e definidor da linha evolutiva da trajetória do personagem protagonista. Por isso, sua silhueta espiritual se concretiza no corpo do protagonista e o acompanha até o seu fim. E, na construção da sua trajetória, o leitor se sente apossado dos mais variados movimentos emocionais, cuja intensidade parece ser realmente um exemplo das obras capazes de confirmar o efeito psíquico descrito por Antonio Candido, sendo o bispo seu principal instrumento.
Evidencia-se, desse modo, que o poder de atuação interior da literatura está conectado ao seu potencial de representação do homem e do mundo em sua construção simbólica. Segundo Ernest Cassirer, “É inegável que o pensamento simbólico e o comportamento simbólico estão entre os traços mais característicos da vida humana, e que todo o progresso da cultura humana está baseado nessas condições” (CASSIRER, 1994, p. 51).
A metáfora do perdão vital concedido ao homem (na obra representado por Valjean) advém da sabedoria, da caridade e da bondade. Ela relaciona-se ao efeito das suas implicações, desdobramentos e constituição essencial, podendo tudo isso ser agrupado em uma metáfora global, o amor. O bispo, em atuação no interior de Valjean, torna-se a concretização daquilo que é o oposto da severidade implacável (Javert), da crueldade e desonestidade (os Thenardier); da leviandade e volubilidade (o namorado de Fantine, pai de Cosette). Ao final, conforme expressa o moribundo Valjean, esses também devem ser perdoados. A representação da vida pela literatura faz com que o homem seja o ator em um teatro onde atuam os tipos, cujas ocorrências no mundo real torna-os especulares. Como o personagem espelha o homem, o leitor se vê por intermédio dele. E nesse ponto se reforça a tendência da ideia segundo a qual a arte, quando dotada de um discurso libertador, atua no mundo de modo a melhorar o homem. Por meio da representação ficcional, mesmo que construída de modo romântico e, às vezes, considerado extremoso, o indivíduo pode se entender e entender a realidade. E, se a vida diretamente observada não emociona, a arte pode fazer esse papel e modificá-la, reinventando-a.
Nessa zona de performance, em que literatura reflete e modifica a vida e o homem, a história de Jean Valjean figura-se como modelo do ser humano, em seu poder de construção simbólica, ao mesmo tempo em que se torna modelo especular do homem em sua natureza humana. O indivíduo representa-se e se sente representado pela arte, o que decorre de seu anseio por fantasia, por fabulação. Assim, ele encontra na literatura instrumento para se ver, pensar-se, entender-se e emocionar- -se. E a construção simbólica que resulta em obras como Os Miseráveis, torna-se capaz de plasmar uma realidade redimensionada pela arte que, como sistema simbólico, traz em si a potencial formação do indivíduo pleno. A manifestação artística literária fornece ingrediente à dinâmica vital, uma vez que “é o pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem e lhe confere uma nova capacidade, a capacidade de reformular constantemente o seu universo humano” (CASSIRER, 1994, p. 104).
Por fim, pode-se dizer que Victor Hugo, por meio da história ficcional de Jean Valjean, propicia algo para além da leitura do homem pelo homem. Ele participa de uma dinâmica abstrata cujo instrumento, a obra literária, torna-se, mais que qualquer norma ou lei, capaz de alcançar os âmbitos mais íntimos do indivíduo e exercer, por isso, seu poder de influenciar em olhares e visões, sensibilizando o leitor para algo sobre o que, talvez, nunca tenha pensado e diante da qual possivelmente nunca se sensibilizara.
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