Teotopias como lugar comum entre teologia e literatura
Theotopies as a common place between theology and literature

* Alex Villas Boas
*Pós-Doutorado em Teologia pela Pontifica Universitá Gregoriana (Roma), Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro (PUC Rio), professor na Universidade Católica Portuguesa (UCP) e Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR). Contato: alexvboas@ucp.pt
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Resumo
O presente artigo pretende apresentar uma possibilidade de resgate semântico do topos como lugar de unidade entre a poética e a política, como propõe Giorgio Agamben. Tal unidade pode ser lida como desdobramento da relação entre poética e retórica desde Aristóteles, recuperando a ideia de poíesis da pólis, assim como tal relação é constituva de uma visão antitrágica da póetica cristã, como também sugere Agamben, e que pode ser idenfiticada no imaginário teológico narrativo do autor russo Vladimir Korolento.

Palavras chave:Teologia e Literatura; Poética e Política, Giorgio Agamben; Vladimir Korolenko.

 

Abstract
This aim of this paper is to present a possibility of topos´ semantic rescue as a place of unity between poetics and politics, as proposed by Giorgio Agamben. Such unity can be read as an unfolding of the relationship between poetics and rhetoric since Aristotle, recovering the idea of poíesis of the polis, just as this relationship constituted an anti-tragic view of Christian poetry, as also suggested by Agamben, and which can be identified in the imaginary theological narrative by Russian author Vladimir Korolento.

Keywords:Theology and Literature; Poetics and Politics, Giorgio Agamben; Vladimir Korolenko.

Entre o locus theologicus e a teotopia

A ideia de lugar é comum tanto a tradição dos estudos literários, quanto à tradição teológica, contudo, nem sempre comungam da mesma compreensão. O uso da palavra grega topos em Aristóteles evoca o sentido que o sofista Trasímaco da Calcedônia (c. 459 – 400aC) fazia de uma posição específica do início de um discurso, um “ponto de partida” (aformé), expressão utilizada no título de sua obra Aformai retoriké, como sugere a Suda, enciclopédia bizantina do séc. X (IV, 462; V, 572, 16-18). O termo foi sendo utilizado como ponto de partida de um “argumento” (epicheirema), até se consolidar em sua forma de evocar uma metáfora espacial para se habitar um tema, um topos, expressão essa que Aristóteles incorpora em sua retórica (PERNOT, 1986, p. 255-257), obra essa que é revisitada no tratado retórico de Cícero que ficou conhecido como Tópica, em 44aC, em que traduz o termo por locus e aplica as regras retóricas no âmbito do debate político e jurídico.

Na tradição teológica, o teólogo luterano Philip Melanchton (1497 – 1560), que como retórico humanista e estudioso da literatura clássica grega, oferece uma exposição argumentativa a respeito dos princípios bíblicos da reforma contra a autoridade papal, distinguindo-se retoricamente no modo como interpreta os Sententiae de Pedro Lombardo. Ele organiza as questões por meio dos topoi bíblicos sob a influência dos loci aristotélicos, porém em perspectiva de uma retórica dialética influenciado pelo De Inventione dialectica, publicado em 1515 por Rudolf Agricola (1443 – 1485), teórico de grande imporância para os humanistas do século XV e XVI (AGRICOLA, 1515, p. 20-34; KÜHLMANN,1994)

Tal como Erasmo de Rotterdan aplica o método de Agricola em seu Methodus (1516), Melanchton assim o faz em sua magistral obra em 1521 intitulada Loci communes rerum theologicarum seu hypotyposes theologicae ou simplesmente Loci communes, de grande importância para o que ficou conhecido como escolástica protestante (SCHMIDTBIGGEMANN, 2012, p. 77-94). A reação da contra-reforma católica será feita pelo dominicano Melchior Cano (1509 – 1560), depois nomeado bispo, é o autor conhecido pelos seus De locis theologicis em 1563 em que desloca a ideia de argumento de inspiração aristotélica do método dialético para uma compreensão analógica de tópico em que o locus é uma fonte dogmática, dinâmica essa que levou a um debate entre a defesa da autorictas bíblica e a defesa da auctoritas papal de interpretar a Bíblia, em que a primeira visa refutar a segunda dialéticamente, e a segunda se esquiva para a referência à tradição dogmática. Essa disputatio também repercutiu nos estudos de teologia e literatura em que a possibilidade de pensar poíesis ou a literaura de modo geral como um locus theologicus fora questionado por Jean-Pierre Jossua e José Carlos Barcelos em que visto pelo ângulo do bispo dominicano a literatura seria “testemunho alheio” que apenas serviria para confirmar as outras fontes, e portanto, seria apenas uma nova forma de pensar uma relação ancilar com a teologia (JOSSUA; METZ, 1976, p. 5; BARCELLOS, 2000, p. 9s)

Entretanto, a partir de Hans R. Jauss (1921 – 1997) é possível identificar no processo de recepção da literatura medieval na Modernidade uma confusão entre a teologia do mesmo período, ou mais precisamente com a segunda escolástica que faz fronteira com o período moderno, e a particularidade deste período literário. Com isso, por meio de uma certa alergia teórica à teologia do período, toda sua riqueza cultural é dexada de lado, e com isso não se valorizou, segundo Jauss, a “modernidade da literatura medieval” que tem seu “locus na vida” e apresenta uma “alteridade supreendente” pela capacidade de surpresa do prazer da experiência estética do texto, sendo o texto um verdadeiro interlocutor, em que o prazer e o desprazer do leitor revelam a correlação entre o mundo do texto e a experiência do cotidiano pela capacidade da poesia alegórica de ser uma “poética do invisível”, dando personalidade às virtudes, valores, ideias, no universo imaginário (JAUSS, 1977, p. 22-25). Com a segunda escolástica a alegoria, inerente ao método teológico patrístico, perde seu status de teotopia ou de locus revelationis, e com isso o intrincado debate entre dialética protestante e a analogia católica, acaba por colocar Deus não somente no mundo das ideias, mas no fogo-cruzado da teologia escolástica.

Ao recuperar a o topos para pensar o theós, há que se escavar para além deste modo histórico de engessar a potencia poética da teotopia engessada no locus theologicus do século XVI. Tal recuo arqueológico demanda sim, voltar à tentativa de compreender o papel da retórica, mas devolver a ela sua relação com a poética, ao invés da dialética. Aristóteles classifica os topoi entre lugares comnuns (koinós topoi), enquanto uma descrição geral de coisas que se supõe serem entendidas como boas e justas, adequadas à busca da excelência da vida (areté) e específicos (protaseis), classificando estes em discurso deliberativo, epideítico e jurídico (Retórica I.2, 1358a2-35). Entretanto, a Topica ciceroniana parece distanciar a relação que Aristóteles estabelece entre rethoriké e poetiké. A poíesis, como chamou Aristóteles (384-322 a.C.), compõe juntamente com a rethoriké sua Arte Retórica e se dirige diretamente ao pathos. A relação entre pathos e poíesis é um pressuposto da poética antiga, como pode-se verificar em Horácio e Longino (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2005, 55-68; 69-114). A poesia, portanto, está em função de compor a diké, o juízo da consciência (Retórica I, 20), mobilizando por meio da arte de provocar uma experiência que una o leitor/ouvinte à atitude perante a vida. Se a Poética é a arte que se dedica a mobilizar os afetos (pathos), a retórica vai identificar possíveis relações entre topos e pathos, e estabelece nessa metáfora espacial, o lugar em que habita o poeta.

Assim, na Retórica, Aristóteles parece procurar descrever nos topoi o pathos do ouvinte, dada a necessidade de encontrar um lógos adequado para cada paixão, entendidas aqui como estados psíquicos ou afetivos, a saber: cólera, calma, temor, segurança (confiança, audácia), inveja, impudencia, amor, ódio, vergonha, emulação, compaixão, favor (obsequiosidade), indignação e desprezo. Há, na alma aristotélica, tal qual na alma platônica (República, 439c-440a), um princípio ativo e um passivo, e a ação provocada pela paixão sofrida é mediada pelo lógos que conduz ao bem, de modo que a ignorância ou ausência de lógos ao pathos conduz à hybris, e consequentemente à maldade.

A poética tem uma função de sedução do desejo e a beleza [kalos] da poesia e sua força de mobilização [dinamis] se encontra na composição [sinístasthai] do mito, portador do caráter ético em que por suas ações revelam os valores da cultura. O método [methodou] de composição do mito se dá ao indagar-se pelas coisas primeiras [próton] (Poética I, 1), a saber que toda a poesia [epopeia, tragédia e poesia ditirâmbica] é uma imitação [mimésis], distinguindo-se apenas pelo fato de imitarem por meios (prosa ou verso), objetos (homens melhores, piores e “iguais a nós”) e modos (tragédia e comédia) diversos (I, 2). A poesia é a “invenção da imitação” do caráter, das paixões e das ações (I, 3-4). De modo que, diz o Estagirita, se alguém compuser em verso um tratado de medicina ou física, este é somente chamado “poeta” no sentido vulgar (II, 5).

O poeta, para Aristóteles, é aquele que imita o ser humano a partir de pessoas “melhores”, “piores” ou “iguais a nós”. A tragédia ou o drama se dirige especialmente à imitação das melhores pessoas e suas ações [drontas], ao passo que a comédia procura imitar os piores homens (III, 9-11). A imitação é congênita no ser humano, e ao mesmo tempo ele é o imitador por excelência [mimetikótaton], e por imitação aprende [mathésis poeitai] e chega até mesmo a entender que o ser humano é agraciado [kairéin] na arte da imitação [mimésis poietai] (IV, 13), ao provocar a “purificação das paixões” [pathemáton kátharsin] (IV, 27).

Porém, o elemento mais importante para Aristóteles é a “trama dos fatos” [pragmáton sístasis] (VI, 31), pois a tragédia não se destina à imitação de homens tanto quanto à imitação de “ações e vida” [práxis kai bios] que levam à felicidade ou à infelicidade. A “finalidade” [telos] da vida é a “ação” que os seres humanos praticam. Logo, a poiésis da Tragédia, composta pelas ações e o mito (portador das ações), está em função da práxis, finalidade da vida, e “a finalidade é de tudo o que mais importa” (VI, 32). Por isso o terceiro elemento da poiésis é o pensamento [dianoia] pelo qual se revela [apofaínontai] a consciência na qual é gerada a ação (VI, 36). O pensamento é o processo que produzirá o efeito desejado no pathos demonstrando, refutando ou suscitando a percepção afetiva de onde emerge o desejo da ação (XIX, 113).

O pensamento poético na Tragédia se situa como mediação entre o “nó” e o “desenlace” da trama, de modo que o “nó” é “aquele lugar onde se dá o passo para [skáton] a boa ou má fortuna” (XVIII, 105), integrando assim as quatro partes da tragédia, além da trama, a peripécia, o reconhecimento de caráter e o sofrimento que se impõe como fatídico [patétike] (XVIII, 106; XXIV, 151). O pensamento poético se constitui como um princípio de ação, o que permite que a tragédia seja a imitação de uma “ação completa”, ou ainda de um “todo”, isto é, aquilo que tem “princípio, meio e fim” [archén kai méson kai teleutén]. A categoria “princípio” não se limita à origem, mas sim ao processo pelo qual algo se une ao seu fim, no qual há uma mediação [meio] que integra esses dois estágios (princípio e finalidade), compondo o todo da ação, ou seja, sua totalidade de sentido. Por isso, os mitos não devem começar e terminar ao acaso, mas sim devem se conformar aos princípios (VII, 43) e fundamentalmente ao que melhor revela tais princípios, o “belo” [kalón] que torna o mito um “ser vivente” [Zóon] a partir da “grandeza e ordem” [megéthei kai taxei] no qual consiste no belo aristotélico (VII, 44).

O Estagirita afirma que não é bem o “ofício do poeta narrar o que aconteceu”, mas há no poeta um ofício de esperança, pois deve “representar o que poderia acontecer”, e por isso a poiésis é “mais filosófica” que a história, pois se remete ao “universal” [katholou], ao passo que a segunda, ao “particular” (XIX, 50). No entanto, o poeta acessa o universal a partir da concretude da imitação, pois devem viver “as mesmas paixões” [en tois páthesin] (XVII, 100) dos personagens.

Em Platão, porém, a virtude ou a busca da excelência da vida [areté], capaz de lutar com as paixões, está vinculada ao lógos, sobretudo em Mênon, mas não há possibilidade de uma passagem da paixão ao lógos, sendo antes o que faz com que se ignore o lógos, segundo Meyer, e assim fortalecer a força da vontade de não se deixar guiar pelas paixões simplesmente numa dinâmica de estímulo-resposta. Contudo, para Aristóteles, o saber apodídico sobre o qual se formam as afirmações do lógos é insuficiente para conduzir o pathos à virtude. Desse modo, o exercício do lógos é uma ascese não somente sobre o pathos, mas a partir do pathos, e, sendo assim, se a contradição pretende ser eliminada nos procedimentos lógicos do Organon, na poética é apenas a constatação de um ponto de partida da situação pática, buscando uma orientação a partir do lógos para a virtude. Em Aristóteles, portanto, o pathos é capaz do lógos, porém é mais suscetível ao lógos poético por sua capacidade de mobilizar o pathos à práxis por meio da mimésis e seu efeito cathársico de purificar a ilusão das paixões para o kalós, e diríamos aqui para uma paixão mais bela, na medida em que expressa melhor o bem. O pathos aristotélico é sua voz da contingência, a voz que revela a essência de si, e ao mesmo tempo o que ainda não é a potência do ser que almeja o ato do devir. Como aponta Michel Meyer no prefácio da Retórica das paixões, o pathos pede o desvelar de um telos, de uma finalidade no qual se desdobra o devir (ARISTÓTELES, 2003, XXII-XXXIII).

Contudo, o lógos objetivo não é suficiente, mas há que se encontrar a razão da paixão, o que afeta e ao mesmo tempo define o sujeito, de modo que esse lógos tem em vista a práxis do sujeito, como um desvelar do que corresponde à voz da paixão, em busca da construção de um ethos que permita integrar a contingência do desejo. O pathos, como capacidade humana de ser afetado, se torna paixão como expressão concreta da natureza humana que pede uma ação significativa, mediado por um lógos personalizado, ou, se preferirmos, que atenda demandas pessoais.

A paixão aristotélica, portanto, diferentemente de Platão, ou do que foi visto nele, identificando-a como causa da desordem, é exatamente a sede da ordem, de onde deve emergir a construção da pólis, a organização política da sociedade, por sua capacidade de ser afetada pelo outro, estabelecendo uma relação com o outro em que se cria uma representação do outro a partir do que ele provoca no indivíduo, ou do que se é atribuído ao outro como responsável pelo efeito produzido. É aqui que se dá a união ou desunião entre pessoas, na condição afetiva humana, mediada por um lógos que dê condições de respostas à situação pática entre os indivíduos, de modo que o lógos seja uma paixão refletida e subordinada a um fim refletido, a busca do Bem na pólis.

O lógos da poíesis não se restringe a afirmações, mas implica uma dinâmica contemplativa e ativa de modo que seja o lógos contemplação para ação, provocado pela mimésis, que tem como ponto de partida exatamente o pathos e como finalidade a depuração deste para um ethos, diríamos, que se move do passional ao empático, que a contemplação está em função de refazer a imagem que se tem do outro e a imagem que o outro tem de si, epicentro das paixões, bastante evidentes na paixão da cólera, por exemplo, em que é alimentado por uma autorrepresentação de superioridade em relação ao outro, desprezado de sua condição de par e reduzido a um inferior. Sendo assim, a paixão não somente é subjetiva, mas também, e sobretudo, é afetada por outro, em que as imagens são mutuamente criadas a partir de seus contextos, de modo que cada paixão na Retórica precisa ser considerada em três pontos: 1) em que disposições estão as pessoas afetadas; 2) contra quem se dirigem; e 3) por quais motivos. Aristóteles cita como exemplo exatamente a paixão da cólera e menciona que, se um ou dois desses pontos fossem conhecidos, seria impossível inspirar [empoiein] a cólera, enquanto recurso retórico que incita a essa paixão (Retórica II, 30; 1,25).

Assim, se a rethoriké procura descrever as paixões nos koinos topoi e as situações que as inspiram, a poiésis está em função de mover o pathos para a práxis individual sim, mas que compõe uma nova atitude política e assim o faz pela mimésis, ou seja, pela imitação da vida em função de provocar uma katharsis de modo que o cidadão [politai], ao identificar-se com o personagem da tragédia purifique a diké, ou seja, o juízo que permite um novo lógos em relação ao pathos.

A poiésis da mimésis está em função de reavivar o pathos das pessoas no personagem, pois os mitos devem ser apreensíveis pela memória (VII, 44), recordando assim a identidade a partir da revelação katharsica do pathos, ou seja, a verdade se desvela como uma ação sofrida mobilizando a uma [re]invenção [poiésis] da consciência [diké]. A poiésis, portanto, em Aristóteles pode ser vista como pathodiké, como formação da consciência a partir do pathos, ou ainda, a partir da subjetividade que compõe a intersubjetividade da polis. Recuperado o papel poético do topos a teologia e a literatura podem coabitar esse lugar comum pela confluência interna de ambas em se pensar como locus revelationis.

A poética como lugar político da teologia

Agamben faz uma leitura da modernidade1 que passa pela questão da poesia, arte, estética, história e morte até chegar à questão da ética e da política, sendo a linguagem seu fio condutor, tendo como núcleo central a crise da poíesis, e o homem sem conteúdo, que nela se situa, chamado assim, pois não consegue se entender diante do conteúdo da obra de arte, em geral e da literatura em particular. Na medida em que a arte começa a ser retirada do espaço comum e passa a ser colecionada nos museus, perde assim sua relação originária entre a religião e a política. Surge, assim, o “homem de gosto”, capaz de observar a fazer um juízo da obra em um regime de apreciação desinteressada, ou dito de outra forma, uma experiência artística desinteressada, distinta da poíesis antiga, convidativa a uma experiência vital, uma “promessa de felicidade” e perturbadora da ordem política, pois a arte é apresentada como verdade por ser desveladora de sentido, e, portanto, potencialmente contestadora por desvelar novas formas de se relacionar com a pólis, razão da expulsão dos poetas da Republica platônica (AGAMBEN, 1970, p. 1258).

Contudo, para o filósofo italiano, a solução nietzschiana, de uma arte interessada para e por artistas, de recuperar a capacidade de espanto e horror, potencialmente perigosas, mas que incide sobre uma discussão política sobre, ao enfatizar o “como” do labor do artista, seu “estatuto prático” (1970, p. 356), acaba por reduzir a poíesis à práxis, que se torna, por sua vez, o lugar do indivíduo na modernidade

Para Agamben, a modernidade perde a noção do “estatuto poético” da humanidade sobre a terra, na medida em que a produção poética é reduzida à produtividade da práxis. Para a Antiguidade grega, apesar de poíesis e práxis se orientarem para a ação, esta última se relaciona com a experiência da vontade, em seu processo de agir volitivo, ao passo que a poesia se relaciona com a experiência da presença produtora, de algo que vem do não ser e desvela o ser. A práxis, tal qual entendida por Aristóteles, se relacionava à necessidade, desejo, apetite que caracteriza a vida, ao passo que a poíesis se relaciona com a proximidade da verdade, que dinamizava a ação, pois estar na presença era acolher a energéia, que se desdobrava em uma ação como efeito real (érgon). Já a modernidade, herdeira da Tradição metafísica que entende o Ser supremo como actus purus unifica ontologicamente efetividade e ato, determinado pela vontade, que ganha seu real valor na liberdade e criatividade (1970, p. 1644).

Deste modo, Nietzsche que é evocado para exorcizar o platonismo, ao martelar a metafísica de uma razão legitimadora de uma vontade divina anuladora da vida, para reabilitar a vontade criativa humana, expressão de sua liberdade, contra o platonismo das massas instalado nas formas de religião ocidental se torna a base e ao mesmo tempo motor de transformação da sociedade por meio da de uma filosofia da práxis que converge na ascensão da “força do trabalho” marxiana. A poíesis, entáo, é ofuscada em uma filosofia da práxis, dinamizada pela vontade de justiça e de liberdade, para uma nova obra de arte, a saber construção de uma nova história, entendida como sociedade. Tanto em Nietzsche quanto em Marx não cabem um ateísmo, mas a dispensa de uma teologia racional inibidora da vontade e de mudanças (AGAMBEN, 1970, p. 1672).

A poíesis transformada em práxis doa um sentido de mística aos processos de transformação social, entretanto, perde a dinâmica de distanciamento da realidade para reelaboração criativa que retorna à realidade inspirando a práxis. Ao se fundir com a práxis, a poíesis deixa de ser dinamizadora da pólis, e se converte em ideologia da práxis, em razão criativa, porém apologética.

A práxis, entretanto, transformada em vontade do Estado desenha o homem novo da nova sociedade como sua principal criação, em sua radical imanência e vontade soberana tem o corpo, e não a pessoa, como sujeito da política, moldável pelas instituições. Agamben vê no campo de concentração o paradigma da política contemporânea, Estado de Exceção por excelência que manipula os corpos a fim de adestra-los, dociliza-los e aproveitar suas forças, sendo a criatividade uma forma sofisticada de utilização de novas tecnologias para a biopolítica, como controle de corpos. Há ausência de poíesis na pólis, e especialmente sua conversão em ideologia resulta em uma circularidade imanente do Estado moderno, tal qual a circularidade transcendente das Teocracias Antigas, promovendo apenas a manutenção de formas de platonismo das massas, ideias que não conduzem ao espanto que mobiliza e transforma a falta em busca, o carente em protagonista.

A ausência da poíesis e especialmente sua transformação em razão criativa apologética de um ideal produz a presença de um fetiche, o substituto de um objeto ausente e inacessível e ideal, utopia da revolução bolchevique, ou a retrotopia dos regimes fascistas e nazistas, que enfeitiça por sua ausência, um fantasma do desejo. Situado assim, em um “conflito entre a percepção da realidade que obriga a renunciar seu fantasma, e seu desejo, que impulsiona a negar a percepção” (CASTRO, 2016, p. 289). Agamben, ainda evoca a acidia patrística, para a compreensão de um eros perverso no narcisismo que é incapaz de disposição para o labor criativo, uma vontade de sentido, porém indisposto a trilhar a via que a ele conduz, uma indisposição poética que revela a indisposição política contemporânea, pois se manifesta como indisposição ética (1977, p. 264), por gerar uma dinâmica autoreferencial a um sistema e modo de pensar incapaz de autocrítica.

O lugar da teologia na poesia

Agamben propõe uma análise da poética cristã em Dante, e um elemento tipicamente cristão que é o fato do escritor italiano atribuir a sua obra o distintivo de ser uma comédia, diferente do sentido clássico e moderno em que o uso é empregado, mas entendido como anti-tragédia. Para ele, então, a teologia cristã estabelece as bases para as categorias pelas quais a cultura moderna deveria interpretar o conflito trágico, expressos na compreensão de comédia, tal qual apresenta o próprio Dante Alighieri: “Comédia tem um princípio turbulento, é cheio de barulho e discordâncias, e conclui em paz e tranquilidade” (AGAMBEN, 1996, p. 57;168)Ademais, a Comédia do poeta italiano é vista como Divina por Boccaccio por sua identidade entre poesia e teologia (BOCCACCIO, 1994, p. 728-730; HOLLANDER, 1997, p. 72) com a ideia de movimento que não é aleatória mas historicamente significante em uma época de imobilismo social. Para o escritor italiano em sua Difesa dela poesia, no capítulo XXII, Dante é teólogo, pois “a teologia não é outra coisa que a poesia de Deus”, e ainda “não somente a poesia é teologia, mas ainda a teologia é poesia”, e por isso os poetas são os “primeiros a fazer teologia”, pois Deus fala pelas “alegorias” nas Escrituras, que não são senão “ficções poéticas” (BOCCACCIO, 1995, p. 20). Nesse sentido, a poesia dantesca, ou a via poética cristã, cumpre também, além da função de antitragédia, a unidade agambiana entre pensamento reflexivo e pensamento poético. O que permite que essa unidade manifeste melhor manifeste a Divindade pela ficcção que assume o que Levinas chamou de “encarnação da teologia” em oposição ao processo de “espiritualização da teologia” que o platonismo ocidental promoveu. E assim, produz uma imaginação da presença “concreta” [sacramental] de um modo de ser do Mistério, especialmente a Beleza da Misericórdia, promotora de uma cultura de reconciliação interpessoal, social e internacional, pois a globalização que se instala será digna e nobre na medida em que promove itinerários de reconhecimento.

A via poética cristã na prossa russa de Vladimir Korolenko

Vladimir Korolenko (1853-1921), escritor russo e ativista dos Direitos Humanos, crítico do czarismo e sua legitimação teológica expressa na tríade, “Deus, czar e lei”, e ao mesmo tempo crítico ao Regime Bolchevique, do qual fizera parte inicialmente, por julgar poder oferecer um elixir de vitalidade das forças transformadoras da sociedade para uma parcela da população ao mesmo tempo que administra o mesmo pharmaco como “veneno mortal” para outra parte da sociedade. Critica assim, uma forma de governo que supõe a irreconciliação da sociedade, e que se manifestará na intolerância a autocrítica, e usará aos seus próprios filhos a receita de desqualificar como traição aquele que pede a volta do regime às suas origens. A transição do autoritarismo czarista para o autoritarismo bolchevique é para o escritor russo, a tragédia russa, ambos incapazes de conhecer de ouvir seus profetas, pois são incapazes de ouvir o Deus dos poetas. A pertinência da crítica de Korolenko é apresentada pela biografia que Rosa Luxemburgo escreve em uma espécie de patrística bolchevique, em que o sentimento religioso que une Deus e a compaixão pelos pobres são constitutivos (LUXEMBURGO, 2015, p. 1100).

Korolenko é um ótimo exemplo de via poética cristão pela retomada da ideia de comédia dantesca de antitragédia, como aposta de que o mal não é a palavra final da história, e incorpora à ideia de comédia um estilo tomado do jornalismo britânico, a saber a ironia e sua capacidade de redenção, de nos devolver a consciência da ridicularidade constitutiva, um antídoto a pretensão de perfeição das formas de idealismos, que não passam de vernizes narcísicos. Aquele que é capaz de rir de si, é capaz de rir com outro, e instaura um espaço de alteridade. Quem prefere rir do outro, alimenta em si um pequeno czar ou um general soviético, que são a mesma coisa.

Em seu conto Sonho de Makar, narra o Natal em uma aldeia pobre da Sibéria e retrata a vida dos camponeses russos, esquecidos pelos czares e pelos bolcheviques, mas não esquecidos por Deus. Makar comia pão duro todo dia. E bebia muita vodka para enfrentar o frio e a tristeza. No Natal, não tinha esperança de ter comida, pois não podia trabalhar naquele dia. Decide ir até outra aldeia, visitar “deportados políticos” que vinham de longe. E lhes ofereceram algum dinheiro para lhes trazer lenha. Makar gastou tudo com vodka. Ficou bêbado e foi jogado para fora do bar, machucando-se inclusive. Disse para a mulher, “esquecendo completamente que ela não tinha tomado vodka”, que havia caído em uma armadilha de raposa, porém tomou um “terrível pontapé” da sua mulher (Sonho de Makar, III).

Teve a infeliz ideia de pegar alguma raposa na armadilha do vizinho, que, por sua vez, descobriu e brigaram, e ainda lhe rouba o gorro e o manto, o deixando no frio do inverno de uma floresta na Sibéria, onde Makar não resiste e morre. Ao se dar conta que havia morrido, esperava que sua alma saísse do corpo, pois assim acabaria o frio, mas ela não saia. Se encontra com o Padre Ivan, que havia morrido em um acidente em sua casa inclusive, devido a ter tomado muita vodka e caído na chaminé que tentara consertar. Ele lhe diz que Makar tem que ir ao encontro do Grande Toyon (chefe), para o grande tribunal, narrando ali um iter dantesco russo. No caminho encontra vários homens carregando suas penas (Sonho de Makar, IV-V).

Ao chegar ao Tribubal do Grand Toyon o reconhece, mas lembrava que no ícone da Igreja que visitara, também tinha um filho, que pelo jeito tinha saído fazer alguma coisa. Veio, então uma pomba e se sentou no colo do Grande Toyon que a acariciava. Tem início o julgamento de Makar. Os anjos pegam a Grande Balança para pesar os pecados de Makar, e o Gran Toyon pede que o Padre Ivan, que carregava um grande livro contasse os pecados de Makar que ali estavam registrados, pois essa era a pena que o Pe. Ivan deveria pagar por ter morrido embriagado na chaminé de Makar. Os pecados que o Pe. Ivan relata ao julgamento começam com: 21.933 vezes que Makar enganou alguém em sua vida, sobretudo vendendo lenha; bebeu 400 garrafas de vodka, etc. Na medida em que o Pe. Ivan contava os pecados aumentava o peso da balança de Makar. Este ao tentar segurar com o pé a balança ao ver que estava ficando muito pesada, é descoberto por um anjo que o denuncia, o que irrita muito o Grande Toyon, que resolve condená-lo a voltar a vida como um cavalo de um dono que o maltrata (Sonho de Makar, VI).

De repente a porta se abre e aparece o Filho do Grande Toyon, e diz:

Eu ouvi seu veredicto Pai. Vivi muito tempo na Terra e conheço bem aquilo. Esse pobre será muito desgraçado na casa de seu dono. Deixa somente que nos conte algo de sua vida. Fala, pobre homem! (Sonho de Makar, VI, p. 3080)

E então algo acontece,

Makar em sua vida nunca tinha pronunciado mais de 10 palavras seguidas, e de repente se sentiu um orador, e que ele mesmo escutava assombrado (Sonho de Makar, VI, p. 3080).

Todos escutavam atentamente a sua eloquência, até os anjos. Na dor do personagem Makar, Korolenko narra a vida sofrida dos camponeses da Sibéria, as esposas e crianças que morriam de frio e fome que o Czar nunca se importou, os jovens filhos que morreram na guerra bolchevique que a Revolução nunca sequer agradeceu.

Makar também se defende da falsa acusação de ter tomado 400 garrafas de vodka, pois não tinha dinheiro para isso, e, portanto, três quartos de cada garrafa de vodka estavam cheias de água, de modo que, Makar só havia tomado 100 garrafas!

O Grande Toyon ouvindo a história da vida daquele pobre e sofrido homem, que “trabalhva com lágrimas nos olhos” e Seu Filho defendera, começa a rever a sua condenação, porém receia em salvá-lo, porque era muito feio, e diz a Makar: Tua cara é escura, teus olhos sombrios, suas roupas farrapos, teu coração duro. Eu amos homens virtuosos e me aparto dos homens como tu.

E lhe responde, Makar:

De que homens virtuosos fala o Grande Toyon? Se tratava daqueles que viviam na terra na mesma época que Makar? [...] Esses homens tinham olhos claros porque não tinham chorado nunca, porém Makar não cessava de chorar, seus rostos estavam limpos porque os lavam e os perfumavam, suas roupas eram bonitas porque outros trabalhavam para eles (Sonho de Makar, VI, p. 3177).

O Grande Toyon escutando tudo aquilo se perguntava, se pergunta: “como conseguia suportar tudo aquilo?”:

Provávelmente porque guardava a esperança de dias melhores. Mas a vida tinha acabado e a esperança havia esvanecido. Esse pensamento O encheu de amargura”. E disse: Pobre homem! Já não está na terra. Vem comigo: aqui encontras justiça! (Sonho de Makar, VII, p. 3194)

Korolenko encerra o conto com Makar estremecido de emoção, pois ninguém nunca o tratou com palavras afetuosas e chorou. O Velho Toyon também chorava, e com ele todos os anjos, testemunhando a beleza da misericórdia que ali se manifestava no abraço de Deus aquele homem marcado pelo sofrimento da vida.

Conclusão

Para Korolenko, a tarefa do escritor consiste em habitar um topos teológico, a saber amalgamar a perspectiva do autor sob o ângulo de Cristo a fim de mostrar a dor dos camponeses aos poderosos, czares e revolucionários. O exercício de uma imaginação da presença “concreta” [sacramental] de um modo de ser do Mistério, chamado Deus pela semântica cristã, especialmente a Beleza da Misericórdia, que enxerga o sofrimento da humanidade e a humanidade que sofre, é melhor enxergado por aqueles que se sabem pequenos, os pobres camponeses que descobrem Nele um amigo, o único que aquecia seus corações para insistir em viver, e que com eles sofria, muito distinto do pantocrator que nunca sorria para homens. A possibilidade de reconciliação como ação antitrágica reside em Korolenko como uma imagem plástica avant la lettre da crítica que Fredric Jameson faz aos ideologemas, aos discursos políticos que atuam como crenças inabaláveis e que são irresolúveis, para apontar outro lugar de análise política, que a literatura tem um papel fundamental, mostrar a “dor da história” (JAMESON, 1992, p. 32; 75-92), enquanto necessidades históricas não atendidas, especialmente por aqueles que prometeram a salvação como transformação social desde a abertura cultural de acolhida da alteridade e capacidade de autocritica, antídoto antitrágico para as tentações de pensar a realidade dialeticamente, bem como de suas representações políticas.

A insistência de uma ação antitrágica, veiculada pelo ofício das letras e a sensibilidade com os que mais sofrem, se-me parece, constituem-se uma teotopia por excelência, o lugar onde Deus poeticamente nos fala, e assim nos chama à empatia política de dar voz e imagem àqueles que mais sofrem, como elemento necessário ao discernimento cultural, político e social, que com frequência pouco importa aos mecanismos condicionantes, que receberam tantos nomes ao longo da histórica e que nomeadamente hoje, mercadológicos, que atuam como ponto cego em nossa percepção da realidade, e consequentemente do que chamamos de Deus, como diria o Aquinate: “Um erro acerca do mundo, redunda em um erro acerca de Deus” (Tomás de Aquino, Suma contra os Gentios, II, 3), pois Deus na compreensão cristã não é indiferente ao mundo e sua dor. Ademais, em Korolenko é possível identificar não somente uma forma ativa de antitragédia na poética cristã da misericórdia, assim como o exemplo da desejável unidade cultural entre poética e política em que a liberdade e pluralidade poética se tornam instância crítica às pretensões biopolíticas de controle dos corpos, não somente biológicos, mas também literários. Em Korolenko, a unidade entre poética e política ocupam o mesmo locus revelationis em que imagem revelada do Mistério traduz um realismo crítico, porém grávido de esperança e justiça, sobretudo aos que mais sofrem.

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Francisco Buarque de Hollanda é um artista completo, daqueles que caracterizam uma época e uma cultura. Carioca nascido em 1944, despontou para o universo cultural brasileiro através da música ainda muito jovem, com seu primeiro álbum sendo lançado em 1966. Depois firmou-se como um dos nomes de maior relevância no cenário artístico nacional. Trilhou caminhos no teatro e no cinema, desafiou os poderosos meios de comunicação, manteve seu sucesso e reconhecimento e, depois, navegou pelas águas do romance. Um artista completo, sim, mas cujo talento especial se desenvolveu na consagração à palavra. Compositor, articula muito bem letra e melodia produzindo canções memoráveis cujo sucesso popular permanece mesmo depois de várias décadas. Nos tempos atuais em que as melodias são mais dançantes, rítmicas e monocórdicas, suas canções elaboradas com grandes doses de erudição permanecem como referência na música brasileira. As letras de suas canções são tão significativas, tão bem construídas que já foram objeto de estudo de especialistas das mais diversas áreas. Seu teatro, elaborado também em parceria com artistas versados na arte, tem jogo de cena marcante e nas palavras seu ponto crucial. Da mesma forma seus romances, elaborados não apenas com arte de saber contar, mas sobretudo pelo trabalho de fazer com que essa narração seja plena de significados1.

Não é de espantar, por isso, que seu trabalho seja reconhecido praticamente no mundo todo e que a consagração maior da língua portuguesa lhe tenha vindo através da atribuição do prêmio Camões, bastante significativo e que será colocado junto a outros tantos prêmios já conquistados, como o Jabuti, Grammy e outros tantos. No Brasil sua obra é admirada por todos, sobretudo suas canções, e na maior parte das vezes é impossível separar o artista de sua obra. Engajamento político e conscientização social são características do compositor e de suas composições, e por isso constituiu em determinada época verdadeira unanimidade nacional, sendo o artista verdadeiro porta-voz de um povo. Recentemente a guinada política brasileira o fez, novamente, perseguido pelas ideologias fascistas e pela censura que sustenta tais posições e regimes políticos. Não obstante ele segue em frente, impávido colosso da expressão da voz popular e da cultura que ele ajudou a plasmar.

Muito se tem escrito sobre sua obra, ainda mais sobre suas canções. A beleza das letras e das melodias, suas ou em parcerias, motivaram não poucos estudos e escritos. Estudiosos de ciências sociais, psicologia, religião, política, música, letras, filosofia e outros mais já se debruçaram sobre suas composições e mostraram aspectos de significação nem sempre perceptíveis à primeira vista2. O pequeno texto que apresenta mos aqui quer apontar uma constante na obra buarqueana que pode se relacionar, indireta e comparativamente, com questões religiosas ou, mais precisamente, com aspectos de teologia.

Características da obra de Chico Buarque

Não poucos estudantes têm-se consagrado a decifrar a obra buarqueana, desde sua gênese criativa, as constantes melódicas, os assuntos mais relevantes que ele aborda, suas referências teóricas básicas. Na verdade, sua criatividade é imensa a ponto de criar melodias para um poema de João Cabral de Mello Neto (Funeral de um lavrador, 1965) e rearranjar, também com melodias, a tragédia de Medeia (Gota d’água, 1975) ou ainda estilizar a música clássica com a Ópera do malandro (1978). Criatividade misturada com muita cultura, erudição capaz de emocionar e significar para toda a gama de seus ouvintes, fãs e seguidores.

Chico Buarque não é exatamente avesso aos meios de comunicação, mas não se preocupa em tornar-se notícia ou estar continuamente presente nas notícias da imprensa. Atualmente sua presença nas redes sociais é ínfima, prezando por sua privacidade. Em outros tempos, tornou-se notícia não porque o tenha buscado, mas pelo interesse despertado por sua obra mais que por seu comportamento. Normalmente apresentado como tímido, é avesso às fofocas que querem continuamente devastar a vida de celebridades. Coloca sempre sua obra como objeto de estudo e conversa, e não sua vida pessoal. Por tempos chegou a desafiar o poder dos grandes meios de comunicação, em especial a Rede Globo, quando durante algum tempo recusou-se até a conceder entrevistas àquela emissora que apoiava o regime militar que o perseguia, sobretudo pela censura imposta à sua obra. Aliás, por conta dessa censura, chegou a assinar várias canções com pseudônimo e, cume do absurdo, as canções foram aprovadas enquanto, se assinadas com o nome Chico Buarque, seriam proibidas.

Suas posturas políticas são, evidentemente, perceptíveis em sua obra. Suas canções militaram contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, tornando-se símbolos da resistência aos desmandos e à repressão violenta, e suas composições mais características se situam exatamente nesse período no qual se manifestava o pleno vigor de sua criatividade. Seus outros trabalhos também podem ser lidos a partir de tal perspectiva, de forma que sua obra contém, como característica marcante, a crítica social e a conscientização popular. Canções como Vai passar (1984), Cálice (1973) ou Apesar de você (1970), além de outras tantas, contêm tal crítica de maneira explícita que chega a ser mesmo estruturante daquilo que se diz na canção.

Veja-se o exemplo de Apesar de você (1970)3

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal

Conta a história que, na volta de seu autoexílio na Itália, Chico pensou que a situação política no Brasil tinha melhorado no sentido de se restabelecerem as liberdades democráticas, mas, confrontado com a realidade, desapontou-se e lançou o samba em 1970. O sucesso foi imediato e a censura, inicialmente, entendeu que a canção falava de uma briga de namorados. Não foi senão mais tarde que os chefes militares do governo Médici entenderam o recado que a canção trazia à ditadura e proibiram a canção, confiscando os discos gravados e fazendo com que Apesar de você fosse liberada apenas 8 anos mais tarde4 . Diz-se que, perguntado pelos censores quem era o “você” da canção, Chico teria respondido “é uma mulher muito mandona, muito autoritária” Werneck, 1989). Podemos entender essa mulher como a ditadura, que tem as características apontadas pelo Chico. Existe também o comentário de que a canção teria visado especificamente o Ato Institucional número 5, aquele que caçou completamente a liberdade no Brasil e que foi elaborado em 1968, e seu autor, Luís Antonio da Gama e Silva. Seja como for, a canção é uma crítica ao regime político, mas é uma canção leve, bem construída, sem aquele peso das canções de protesto, dogmáticas e cheias de palavras e ordem. Aqui uma diferença significativa entre a composição do Chico e a de Geraldo Vandré, por exemplo. Não obstante, ela tem um alcance político definido e isso, unido à crítica social, é uma das marcas características das composições de Chico Buarque.

Há um segundo elemento, entre outros, que poderia ser destacado e que também é bastante conhecido e comentado pelos estudiosos: Chico é um artesão da palavra. Suas composições não são apenas rimadas, e às vezes nem o são. Não é a rima que faz o poema, mas a metáfora5 , já se sabe disso. Chico constrói suas canções pela da busca incessante pela palavra certa, aquela que pode ter um significado direto ou em um segundo grau, e que além de tudo se encaixe perfeitamente na melodia. Existe um jogo de palavras em suas obras, é indiscutível. Assim, por vezes a palavra manifesta exatamente o contrário, como em Samba do grande amor (1983) ou O velho Francisco (1987), outras vezes sentimentos desencontrados, como em Madalena foi pro mar (1965) ou Noite dos mascarados (1966), ou ainda fina ironia como em Não sonho mais (1979) ou Não existe pecado ao sul do equador (1972). Há também o jogo de palavras simples que evoca um som marcante, como em Morena de Angola (1980) e talvez em Pedro Pedreiro (1965), ou em Bárbara (1972)6 . Mas há que se convir que existe uma elaboração artesanal que dá vida às suas composições, como se percebe magistralmente em Construção (1971) ou Corrente (1976).

Em Construção, Chico elabora os possíveis e variados significados da canção através do jogo de troca das proparoxítonas finais de cada verso, sobre isso já se falou muito7 . Corrente (este é um samba que vai pra frente), por sua vez, é elaborado de forma que possa ser cantando em ordem direta ou inversa, como aliás foi feito na gravação que lançou álbum Meus caros amigos (1976). Na canção, cada verso é escrito quase de forma independente, o que possibilita que também sejam cantados de trás para frente, o que denota o trabalho artesanal do compositor, uma das características da obra buarqueana.

Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente.

O trabalho de valorização e lapidação das palavras em busca da palavra perfeita para expressar a ideia, também foi vislumbrado por Ronaldo Cavalcanti (2018, p. 333) quando aponta para o fato de Chico utilizar palavras existentes em língua portuguesa, mas pouco usadas na linguagem corriqueira. Não é sempre que isso acontece, mas quando acontece aponta para a valorização que se faz das palavras, em um trabalho quase que de garimpagem de significados feito pelo compositor.

Poucas palavras

Discorrendo sobre essa característica da obra buarqueana e afirmando a pluralidade de seus significados, Cavalcante lembra o conceito de “obra aberta”, trabalhado em sua leitura por Umberto Eco, e a análise semiótica, sobretudo a partir de Charles Peirce. Assim, como obra aberta, todo texto literário, incluindo as letras de canções, exige o trabalho interpretativo do leitor uma vez que o significado da obra não vem fechado na intencionalidade do autor. Ademais, referindo-se à análise semiótica, ele lembra que a leitura de significados abrange também o não dito, formas não verbais de comunicação e significação que podem estar presentes nas obras literárias, como o fato de compor servindo-se de palavras não usuais em canções.

Cavalcanti faz um grande elenco de tais palavras. Realmente algumas chamam bem a atenção, como harpejo em Realejo (1967), escafandristas em Futuros amantes (1993), malocam em As Caravanas (2017), desmilinguindo em A história de Lily Braun (1982), acetato em A voz do dono e o dono da voz (1981); homérico em Cálice (1973) e outros ainda. A lista é imensa e indica exatamente esse trabalho de garimpagem em busca da palavra certa, que diga e chame a atenção para aquilo que diz. De um lado, isso demonstra uma grande técnica e o grande conhecimento que Chico Buarque tem da língua portuguesa. Trata-se, em verdade, de um compositor que conhece e utiliza o idioma sendo também capaz de fazer jogo de palavras com outros idiomas como em Joana francesa (1973), ou utilizar palavras estrangeiras como em A história de Lily Braun (1982) e ainda palavras específicas para o sotaque lusitano em Fado tropical (1972) ou em Tanto mar (1978).

Por outro lado, e isso é digno de nota, trata-se de um autor que valoriza a palavra, cada palavra, e por isso a trata com cuidado, com esmero. Tal ideia se encontra expressa em Uma palavra (1981):

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d’agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Aqui a palavra é tratada em toda a sua dignidade. Não mera forma de dizer algo, como se fosse apenas um meio de comunicação entre dois seres, o emissor e o destinatário. Palavra é mais que comunicação, é até mais que arte, é forma de “habitar o coração do pensamento”, é ato humano de ser, mais do que de designar. Por isso o trabalho com as palavras precisa ser respeitoso para que as rimas não se construam de qualquer maneira, sempre rimas pobres, mas sim que sejam mais do que rimas, mesmo que ricas, que sejam formas de ser. Entende-se porque é importante o trabalho de garimpagem da palavra certa e também a razão da construção não apenas do poema ou da canção, mas dos significados que podem e precisam ser múltiplos para indicar a multiplicidade de formas possíveis de habitar o mundo pela palavra.

Em teologia

A palavra tem especial destaque em ambientes religiosos e mais especificamente na teologia cristã. A palavra falada, por exemplo, tem importância especial na cultura e na religião guarani (Brandão, 1990, p.75), tanto que xamãs e profetas precisam dominar, de certa forma, a arte da palavra não apenas no sentido de articular o discurso, mas também no de remeter à divindade. Em outras religiões não é diferente, e com os monoteísmos acontece a mesma coisa. No Islã, a importância da palavra contida no Alcorão é conhecida, e o judaísmo também a tem em alta conta em sua forma de compreender a Torá. No cristianismo a palavra tem relevância pois faz parte da afirmação de fé e é constitutiva da elaboração teológica propriamente dita.

Cabe destacar, em primeiro lugar, a relevância que a palavra adquire em sentido de correção, seja em teologia fundamental, seja na dogmática. Por um lado, a exatidão gramatical é exigida e a ela corresponde, por outro lado, a exatidão lexical (Sesboué e Wolinski, 2002, p. 48ss). Assim, por exemplo, em cristologia se diz que Jesus é uma pessoa em duas naturezas, e não de duas naturezas. A variação não é pequena em termos de significado, embora o pareça em termos de grafia. Se fosse de duas naturezas, Jesus seria um ser composto e não sem dificuldade seria afirmada sua unidade pessoal, pois a gramática remeteria ao nestorianismo e seus aparentados (Frangiotti, 1995, p. 128ss). Dizendo que o Cristo é uma pessoa em duas naturezas se afirma sua unidade pessoal ao mesmo tempo em que se confessa sua divindade e humanidade. A precisão gramatical é exigida para a correta confissão de fé e afirmação do dogma que, por sua vez, é a perenização do que não pode ser esquecido e precisa ser guardado em relação à significação daquilo que se afirma crer (Segundo, 1991, p.25). Da mesma maneira, quando se diz que Deus é Uno e Trino, o que se afirma é que ele é Trindade de pessoas em uma única natureza. Mas é preciso discernir que a unidade se diz em relação à natureza, e a distinção em relação à constituição pessoal. Portanto, não se diz que ele é um e três na mesma coisa, mas em referências diferentes: natureza e pessoa. A construção gramatical e a significação lexical são importantes para a exatidão do dogma em relação com a compreensão da fé.

Além disso, e talvez por isso mesmo, cabe ressaltar a importância que possui a exatidão da palavra. Quando dizemos Deus, não dizemos Ser, mesmo porque, segundo Ricoeur, há mais na palavra Deus que na palavra Ser (Ricoeur, 2006, p. 65). Quando dizemos criação não dizemos emanação ou outros significados aparentados, e da mesma forma quando dizemos escatologia ou ressurreição. Em alguns casos o uso da palavra acaba como que escondendo ou esvaziando seu significado. Assim, por exemplo, com a palavra caridade, que acaba sendo compreendida não como amor ou graça, mas como esmola; o mesmo vai acontecendo hoje em dia com a palavra comunidade, ou outras ainda. Esvaziada de seu significado, a palavra perde exatidão e, portanto, já não remete à confissão de fé primitiva ou à experiência fundante. Ressurreição, assim, não é simplesmente revivificação de cadáver, como teria sido a de Lázaro segundo o relato de João (Jo 11,1-45), mas remete à realidade do Reino de Deus e, por isso, a insistência em seus aspectos de historicidade. Percebe-se a mesma realidade com relação à palavra encarnação, cujo significado permanece a ser percebido e, muitas vezes, é devedor de posições predefinidas tanto teológica quando ideologicamente.

A palavra pertence sempre a uma cultura onde adquire importância e relevância. Nesse sentido, toda palavra é situada não apenas geográfica e cronologicamente, mas também culturalmente. Seu significado em uma cultura pode não ser o mesmo em outra, e os procedimentos de tradução sempre são, na verdade, ações de adaptação e de aproximação de conceitos. A palavra pode também transformar sua significação por conta das transformações culturais e da passagem do tempo, exigindo que sempre haja cuidado na atualização de significados. Não é diferente com a teologia que necessita, também ela, de contínuo trabalho de atualização para guardar e afirmar significados ainda que em palavras outras, diferentes, criativamente inovadoras. Se a teologia precisa ser fiel à tradição para permanecer ainda na mesma corrente de fé e manter sua ortodoxia, ela também precisa ser fiel à situação, e pela mesma razão. Guardar unicamente formalismos pode não ser a manutenção do que é essencial em termos de compreensão e afirmação de significados que sejam pertinentes para as pessoas e a vida de fé que levam nos tempos atuais.

Aqui há uma outra percepção da importância da palavra em cristianismo. Se foi dito da importância da exatidão das palavras e de sua concatenação gramatical, agora passamos para a importância de compreender um dos fatos mais essenciais do cristianismo, exatamente a encarnação da Palavra de Deus. A exatidão de conceitos escondidos atrás dos vocábulos mostra aqui sua importância. Não é fácil perceber a profundidade de significado que a compreensão de encarnação tem para a fé, e mais ainda do que seja a encarnação do Verbo, da Palavra. O cristianismo conheceu diversas maneiras de se afirmar a encarnação do Filho de Deus, algumas que foram consideradas insuficientes, outras que foram assumidas pela grande Igreja (Manzatto, 2019, p. 27). Ao longo de séculos as formas de interpretação do que significa a encarnação se sucederam, e o que continuou sempre a ser dito, de maneira tradicional, pela fé da Igreja foi que Jesus é a encarnação da Palavra de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano. A encarnação em nada diminui a natureza divina ao mesmo tempo em que em nada diminui a natureza humana, a ponto de, já no símbolo niceno, se dizer que o Filho Unigênito se fez homem. Não se trata, pois, de uma humanidade simbólica ou de uma divindade diminuída para penetrar na história humana, mas sim a percepção de que Jesus é a encarnação do próprio Deus. Sua humanidade não é apenas aparente, é integral, em tudo semelhante a nós, exceto no pecado (Hb 4,15), e sua divindade não é diminuída ou mitigada para possibilitar a encarnação. Nesse sentido, o Filho de Deus não está em Jesus, mas ele é Jesus. A encarnação precisa ser compreendida em toda sua intensidade, e inclui seu nascimento, sua vida e sua morte, pois tudo isso faz parte da existência humana, inclusive da do Filho de Deus.

Mas quem é o Filho de Deus? A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade é chamada no Quarto Evangelho de Verbo: o Verbo se fez carne (Jo 1,14). Verbo quer dizer Palavra, sabemos disso. Então, a Palavra se fez carne, aquela mesma Palavra por quem tudo fora criado agora se faz presente na história humana pela realidade de um ser humano, em sua carne. Trata-se do “sermo in carne”, segundo a forma de dizer de alguns padres da Igreja, como Tertuliano (Contra Praxeas 27,5). Afirma a fé cristã, pois, que a Palavra de Deus penetra a história humana tornando-se um ser humano. Não é o poder de Deus que se encarna, nem seu Espírito, nem sua vontade: é sua Palavra. A Palavra de Deus se faz história na história de Jesus mostrando qual a maneira preferida de Deus habitar o mundo dos seres humanos. A encarnação é própria do Filho de Deus, do Verbo de Deus, da Palavra de Deus, formas de identificação da mesma realidade divina que se faz ser humano específico em Jesus de Nazaré.

Essa maneira de entender fez com que a teologia cristã ao longo dos séculos se debruçasse sobre as formas possíveis de interpretação do significado daquilo que se afirma ainda que na variação das épocas e das culturas. A cada momento é necessário ressignificar as verdades fundamentais da fé para que permaneçam pertinentes à vida das distintas sociedades. Esse trabalho não pode abrir mão da exatidão de referência à experiência fundante, e se as figurações aparecem de forma diferente, elas devem remeter sempre àquela exatidão de significados e de construção gramatical à qual se aludiu e que fazem parte da identidade da confissão de fé tradicional. Em tal sentido, há um trabalho artesanal que se faz com as palavras para que seu significado seja garantido, conhecido e afirmado. Palavras não apenas comunicam, mas significam, como lembra a análise semiótica (Santaella, 2008, p. 95) e, com isso, fazem pensar, sendo e indo além do que é o símbolo. Para dizer como Ricoeur, o símbolo faz pensar (Ricoeur, 1959).

Nisso que está dito se percebe uma correlação interessante entre os trabalhos de Chico Buarque e o da teologia: o trabalho artesanal, verdadeira garimpagem que se faz para encontrar a palavra exata e para possibilitar-lhe significações. Pode-se insistir destacando que Chico Buarque reconhece e afirma a dignidade da palavra e, com isso, a percebe como forma de habitar o pensamento, como presente na citada Uma palavra. A correlação com a teologia parece evidente porque reconhece ela também uma dignidade especial na Palavra, não apenas na palavra dita, mas na Palavra encarnada. Em muitos ambientes a referência à Palavra de Deus é compreendida como a Escritura, e efetivamente é assim. Na Escritura, conforme ensina a fé cristã, nos deparamos com a Palavra de Deus, aquilo que Deus diz à humanidade e, em especial, aos crentes. Mas, sejamos consequentes, o significado da palavra de Deus contida na Escritura nos é dado pelo Cristo, já que é a partir dos relatos do Segundo Testamento que, para os cristãos, o Primeiro Testamento adquire real significado. Sendo Deus presente no meio da humanidade e o Revelador de Deus, Jesus é a verdadeira, total e completa Palavra que Deus tem a dizer à criação toda, em especial aos seres humanos. Assim, se pode dizer que Jesus é a Palavra de Deus que se faz ser humano e aponta para a maneira de Deus habitar o mundo dos seres humanos. É a forma preferida de Deus, e os crentes são convidados não a corrigi-lo, mas a aceitá-lo. Daí que a forma de existência de Jesus, da qual os evangelhos nos dão testemunhos, é a maneira de Deus conviver com os seres humanos, e reconhece-lo dá aos crentes mais do que um exemplo de como devem viver suas vidas, mais do que um modelo a ser seguido, lhes dá a possibilidade de compreender as maneiras de habitar também o mundo de Deus porque, afinal, o jeito de Deus ser está plena e completamente revelado em Jesus.

Conclusão

Colocou-se lado a lado, como para possibilitar interações, uma maneira de se ler as composições de Chico Buarque no que se refere à sua forma de trabalho realizado com as palavras, e o labor que a teologia cristã assume em sua ação com as palavras. O que se buscou foi perceber como que uma intersecção não exatamente no texto, como se fora um intertexto, mas na forma de elaboração do trabalho de composição. Chico Buarque não compôs especificamente canções religiosas, embora algumas delas apresentem vocabulário ou temática próxima do religioso, como as composições de O grande circo místico, feitas em parceria com Edu Lobo, e que trazem temática religiosa explícita, como Sobre todas as coisas (1982), ou alusão a perspectivas religiosas ainda que de passagem, como em Sob medida (1979). No entanto, o trabalho de Chico com a temática humana, sua maneira de compreender o ser e o comportamento humanos podem ser interessantes para a teologia e o discurso religioso, como já foi demonstrado em outras situações (Cavalcanti, 2019, passim; Villas Boas, 2020, p. 26ss).

Aqui apontamos para uma outra perspectiva, aquela da elaboração da composição em relação com a elaboração teológica. De um lado, a busca incessante de Chico pela palavra exata e pela construção de significados que possam conter ainda outros significados. A teologia, se não tem exatamente o mesmo proceder, não está distante pois também lida com a exatidão de conceitos e de gramática, além de recorrer sempre a significados mais que a descrições. Por outro lado, Chico conhece e afirma a dignidade da palavra e a compreende como forma de habitar o centro do pensamento, muito mais do que uma simples maneira de dizer o pensamento. Por sua vez, a teologia conhece a dignidade da Palavra de Deus porque a confessa encarnada e, com isso, a tem como referência para a compreensão do humano e do divino, e para perceber formas de viver no mundo humano e no mundo de Deus. Claro, não se trata exatamente da mesma coisa, o que faz Chico e o que faz a teologia, mas em termos comparativos pode-se enxergar similaridade mais do que distância. Talvez porque, mais uma vez, uma perspectiva e outra se refiram à forma de compreender e dizer o que significa ser humano e, no horizonte da fé, a partir daí compreender a Revelação de Deus.

Referências

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CAVALCANTE, Ronaldo (org.). Cultura, religião e sociedade em Chico Buarque de Hollanda, São Paulo: Recriar, 2019.

CAVALCANTE, Ronaldo. O som secular da religião: elementos religiosos na linguagem aberta e estética da prosa-poética musical buarqueana; Teoliterária, v. 8, no. 16, 2018, p. 322-347.

FRANGIOTTI, Roque. História das heresias, São Paulo: Paulus, 1995.

HOMEM, Wagner. História de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009

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WERNECK, Humberto. Chico Buarque de letra e música, São Paulo: Cia das Letras, 2004.

Notas

[1]A saber em O homem sem conteúdo (1970), Estâncias (1977), Infância e história (1978) e A Linguagem e a morte (1982).