O Evangelho Segundo Júlio de Queiroz
The Gospel According to Júlio de Queiroz 

Charles Vitor Berndt
Emivaldo Silva Nogueira**
*Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Programa de Pós-graduação em Literatura – UFSC. Contato: charlesatlantis@hotmail.com 
***Doutora pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Titular Aposentada, de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contato: salmaferraz@gmail.com

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Resumo:

Júlio de Queiroz é um escritor brasileiro, nascido no Espírito Santo, que residiu muitos anos em Santa Catarina, cuja obra compreende contos, poemas, crônicas e ensaios. Em sua literatura, o escritor demonstra uma relação próxima com a cidade de Florianópolis, principal cenário de seus contos. Além de contribuir para divulgação da obra deste escritor pouco conhecido e estudado no Brasil, este trabalho, partindo de uma análise situada dentro dos estudos de Teopoética, busca discutir o modo como a sua obra literária dialoga com a narrativa bíblica, principalmente no que diz respeito aos Evangelhos do Novo Testamento. Para tanto, são analisados dois contos do livro Encontro de Abismos (2002), a saber: “Escuridão no meio-dia” e “Enigma no entardecer”. Aproximando literatura e teologia, conclui-se que a obra de Júlio de Queiroz estabelece uma série de relações intertextuais não só com a obra de escritores canônicos da literatura ocidental, mas também com a Bíblia e com a própria cultura cristã. Assim, percebe-se a presença de um procedimento bastante comum em suas narrativas, que é o de escrever nas frestas, nas fissuras, do discurso bíblico, explorando o caráter literário e plurissignificativo desse texto tão importante e relevante para a cultura ocidental. 

Palavras chave: Júlio de Queiroz. Teopoética. Evangelho. Bíblia. Contos. 

Abstract

This article aims at analyzing and reflecting upon some aspects of Júlio de Queiroz’ work, a Brazilian writer from Espírito Santo (Southeast Brazil) who lived many years in Santa Catarina – place where he published many books, among which outline his literary works, such as short stories, poems, crônicas and essays. In his literary work, Júlio de Queiroz shows a close relationship with the city of Florianópolis, main setting for his short stories. Besides disclosing the work of this little known and studied author in Brazil, this article intends to analyze and discuss the way Júlio de Queiroz’ work dialogues with the biblical narrative in an intertextual way. For such, an analysis based on the studies of Theopoetics is adopted. To do so, we analyze two short stories from the book “Encontro de Abismos”, first published in 2002: “Escuridão no meio-dia” and “Enigma no entardecer”.The main conclusion we can develop by reading these short stories is the dialogue that Júlio de Queiroz’ work establishes with other writers who also dialogue with the Bible and Christian culture. We can also point out the recurring procedure in his short stories of writing texts that explore the literary and multiple-meaning character of the Bible. In that sense, the author’s texts explore spaces and passages that allow the reader build his own readings and interpretations. 

Keywords: Júlio de Queiroz. Theopoetics. Gospel. Bible. Stories. 

Introdução  

A Bíblia ou o que se convencionou denominar de Bíblia Sagrada é um dos textos mais importantes do ocidente e não há como ignorar esta ideia, sobretudo quando pensamos em cultura e em literatura ocidentais. De alguma forma, todos aqueles que habitam esta parte do mundo são inegavelmente influenciados enquanto sujeitos pelos costumes, pela moral, pelo imaginário e pelas narrativas da Bíblia e da cultura cristã. Assim, enquanto um texto extremamente polissêmico, rico e complexo, a narrativa bíblica não se limita aos ambientes religiosos, mas está presente em diferentes espaços do saber e do pensar, sendo objeto de estudo, nas universidades, em diferentes áreas, entre as quais destacamos a historiografia, a filosofia e a crítica literária. Interessa-nos, dessa maneira, compreender a Bíblia como um texto, um texto literário, “levando em conta tramas, personagens, estética, densidade, narrativa, etc.” (MAGALHÃES, 2008, p. 14). 

José Carlos Barcellos (2019), em um verbete no E-dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia, salienta que as relações entre teologia e literatura são bastante complexas e somente recentemente têm sido objeto de estudo, muito embora muitos dos grandes escritores – Dante Alighieri, Gil Vicente, Luís de Camões, John Milton, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Fiódor Dostoiévski, Guimarães Rosa, José Saramago, entre muitos outros – sempre recorreram à narrativa bíblica e lá encontraram inspiração para muitos de seus textos. Em outras palavras, o diálogo e a intertextualidade com a Bíblia são constantes na literatura. 

Dessa maneira, para além do aspecto dogmático e historiográfico1, é importante que estudemos, também, o texto bíblico sob o ponto de vista literário, percebendo o quanto se trata de uma narrativa extremamente rica em sua tessitura, em suas tramas, em seus personagens etc. Em outras palavras, 

[...] a Bíblia está entre os maiores best-sellers de todos os tempos e é uma obra clássica da literatura mundial; a bem verdade não se trata apenas de um livro único, mas de uma antologia de livros do judaísmo (Velho Testamento) e de uma antologia de livros do cristianismo primitivo (Novo Testamento). No Velho Testamento encontramos o relato do mais antigo protagonista bíblico – Deus, yahweh elohim, edonay [...] A Bíblia relata a História de Jeová do Velhos Testamento e a História de Cristo (Deus encarnado) no Novo Testamento (FERRAZ, 2012, p. 14)

Seja como for, Magalhães (2008) acentua que 

[...] o literário da Bíblia não pode ser compreendido em profundidade sem que se leve em consideração que a narrativa [bíblica] é constituída por concepções religiosas e teológicas [...] Não é possível nem desejável estabelecer uma diferença abissal entre o que é teológico e o que é literário na Bíblia, pois os âmbitos se confundem, interagem de forma densa e complexa. Seria a mesma coisa se quiséssemos estabelecer a diferença nítida entre mito religioso e mito literário em Homero. (MAGALHÃES, 2008, p. 3)  

Portanto, vale, ainda, retomar Karl-Josef Kuschel, em seu famoso estudo Os escritores e as Escrituras: retratos teológico-literários, e situar nossa discussão dentro do que autor denomina de Teopoética, procurando aproximar a teologia da literatura e dos estudos literários: 

Objetiva-se aqui uma teologia que procure o diálogo com a literatura em favor do próprio discurso teológico acerca de Deus, sem incorrer, de sua parte, em mera adaptação cultural ou na nivelação anuladora de uma ausência de contornos claros para si mesma. Objetivase uma teologia com estilo diverso: o estabelecimento de critérios literários para um discurso confiável acerca do Deus cristão. Objetiva-se, assim, expressar o objeto da teologia cristã com auxílio de critérios literários de estilo, de modo que a lealdade aos textos cristãos fundamentais possa associar-se à interpretação da realidade proposta pela alta literatura. Em suma: com o pensamento em termos de correspondências almeja-se a conquista de uma teopoética, uma estilística do discurso adequado para falar de Deus nos dias de hoje (KUSCHEL, 1999, p. 223).

Nesse sentido, Erich Auerbach, em seu célebre livro Mimesis, não deixa de comparar e igualar a Bíblia a dois dos mais importantes e fundamentais textos literários da cultura ocidental, a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Ora, para o crítico alemão, de modo distinto ao que observamos nas epopeias homéricas, a Bíblia, muito mais próxima da oralidade, caracteriza-se por uma narração suscinta, em que as situações e as personagens são descritas quase sempre de um modo bastante econômico, caricatural. Desse modo, se é sucinta nas descrições, a narrativa bíblica é complexa na tessitura de suas personagens, quase sempre psicologicamente complexas, ambíguas, conflituosas, como é o caso das personagens de David e Absalão, no Velho Testamento. Segundo o autor: 

Em Homero seria inimaginável uma multiplicidade de planos nas situações psicológicas como a que é mais sugerida do que expressa na história da morte de Absalão e no seu epílogo. [...] O mais importante, contudo, é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem; isto é dificilmente encontrável em Homero, quando muito na forma da dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais, a multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão, no revezamento das paixões; enquanto que os autores judeus conseguem exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas da consciência e o conflito entre as mesmas. (AUERBACH, 2004, p. 10)  

Sendo assim, as grandes histórias como as de Esaú e Jacó, do rei David ou a de José e seus irmãos são “narradas de forma curta, ao mesmo tempo primam pela complexidade e intensidade” (MAGALHÃES, 2008, p. 15). O autor defende que na Bíblia temos um novo uso da linguagem, o “proclamativo”, que exige que o leitor faça parte da história, ou seja, o texto bíblico se caracteriza pela “intensidade das tramas e personagens, tendo como objetivo incluir o leitor nos temas, nas opções das personagens, em seus dilemas éticos” (MAGALHÃES, 2008, p. 15). 

Na esteira desse movimento e dessas discussões, no Brasil e no mundo têm surgido, nas últimas décadas, diversas pesquisas acadêmicas que buscam ressaltar a importância e a relevância desse campo de estudo, que possibilita perceber e discutir a relação e o diálogo da Bíblia e da cultura cristã com a literatura e com a arte de modo geral2 . Partindo, portanto, dessa concepção, que busca compreender a Bíblia como um texto plurissignificativo, polissêmico, nosso principal intuito é discutir e analisar o modo como Júlio de Queiroz – um escritor brasileiro ainda pouco conhecido e que continua a carecer de maior atenção da academia e da crítica literária brasileira –, estabelece uma série de relações intertextuais com as narrativas bíblicas. 

Dessa forma, importa salientar que Júlio de Queiroz nasceu em 18 de fevereiro de 1926, na cidade de Alegre, no estado do Espírito Santo, e faleceu no dia 30 de maio de 2016, na cidade de Florianópolis, em Santa Catarina. Foi um importante pensador, tradutor, filósofo e escritor, tendo publicado livros de poemas, crônicas, contos, ensaios e diversos textos filosóficos. Destacamos, assim, da sua vasta obra, Umas passageiras; outras crônicas (1976), os livros de contos Encontro de Abismos (2002), Amor e Morte (2013) e em Companhia da Solidão (2014), bem como os livros de teor filosófico e ensaístico, Iluminando o Morrer (2007) e Pelas Frestas da caverna (2014). 

Tendo se diplomado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1953, Júlio de Queiroz aperfeiçoaria seus estudos e conhecimentos em universidade alemãs, nas cidades de Bonn e Munique. De volta ao Brasil, em 1958, moraria durante algum tempo na futura capital federal, trabalhando na NOVACAP, na recepção de estrangeiros convidados da Presidência da República. Só viria para Florianópolis nos inícios da década de 1970, onde trabalharia como assessor do então Governador Colombo Salles, elaborando textos oficiais. 

Num discurso proferido no ano de 2012, na ocasião em que receberia o Prêmio de escritor Desterrense, pela Academia Desterrense de Letras, publicado no livro Pelas frestas da Caverna, o autor de Encontro de Abismos leria, com bastante emoção, um poema escrito no ônibus, quando estava a chegar pela primeira vez à capital catarinense: 

Ainda me é a cidade ao longe adormecida, um baralho não aberto. 
Ainda me são as ruas labirintos 
Ainda me são as casas armadilhas e, 
Nelas, se escondem indiferentes 
Para os quais nem mesmo a lembrança leve de mim um sorriso traz; 
Ainda me são os nomes língua desconhecidas 
E nenhum pão se partiu em mim pensado; 
Ainda nenhum abraço me une, arquivado na memória, 
A um morador daqui. Mas alguém, invisível, no passado, 
Tomou-me pela mão, dizendo: “- Vai, é tempo chegado, 
Sorrisos até então não formados 
Desabrocharão em ti gestos e compreensões”. 
Isso serão amanhã, 
Pois hoje ainda é o todo um nada envolvido em segredos. 
(QUEIROZ, 2014, p. 369) 

A relação de Júlio de Queiroz com Santa Catarina e, mais especificamente, com Desterro3 , isto é, com a cidade de Florianópolis, é algo que ocupa um lugar central em sua obra, sobretudo em seus textos literários, os poemas, as crônicas e os contos. Na lombada da segunda edição do livro Encontro de Abismos, publicada no ano de 2006, lemos as seguintes palavras, escritas pelo escritor Silveira de Souza: “Parece ter sido em Florianópolis que Júlio de Queiroz encontrou o vagar necessário para ir publicando a sua obra literária que, a cada livro mostra o talento de um espírito sensível e versátil”. Portanto, unindo a sua relação afetuosa com a cidade onde moraria até o fim da vida e a educação religiosa que recebeu dos monges beneditinos, durante seu período de estada na Alemanha, Júlio de Queiroz construiu uma obra permeada por elementos da cultura florianopolitana e por uma religiosidade que, ainda nas palavras de Silveira Silva, “transcende rituais”, isto é, uma religiosidade que alcança uma dimensão popular, distante dos altares, de uma visão de fé dogmática e institucionalizada. 

Uma das principais marcas da literatura de Júlio de Queiroz e pela qual, nesta discussão, demonstramos maior interesse, é o seu diálogo com o sagrado, sobretudo com os textos da cultura cristã e com as narrativas bíblicas. Portanto, não é difícil inserir Júlio de Queiroz na tradição literária da qual fazem parte diversos escritores de língua portuguesa, que dialogaram proficuamente com a Bíblia, entre os quais destacamos Eça de Queiroz, autor de O crime do padre Amaro (1875), romance de tom anticlerical, que denuncia a hipocrisia do clero português do século XIX, e de textos como A Relíquia (1887), novela em que se vê a construção literária de um verdadeiro evangelho apócrifo, sob os olhos de um narrador irônico e sarcástico, que revisita, por meio de um sonho, a paixão de Cristo; Machado de Assis, autor do romance Esaú e Jacó (1904), verdadeira atualização oitocentista da rivalidade bíblica dos filhos de Isaac; e, ainda, José Saramago, com o seu Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), romance que não só conta a história da principal figura do Cristianismo de um outro modo, mas a desconstrói, ao mesmo tempo em que lança uma ferina crítica ao catolicismo. Noutras palavras, tal como Machado de Assis, Eça de Queiroz, José Saramago, entre muitos outros, Júlio de Queiroz explora a dimensão literária do discurso bíblico, suas múltiplas possibilidades de interpretação, suas frestas, suas brechas, os espaços deixados em aberto, em que o leitor pode, facilmente, construir uma leitura própria, distante da interpretação canônica e dogmática da Bíblia. 

Josué Chaves, na dissertação Versões e reverberações do Sagrado em Júlio de Queiroz, salienta que o escritor, sobretudo em muitos de seus contos, na verdade, “[...] desapropria narrativas e personagens conhecidos do Ocidente, desvirtuando-os das posições que ocupam nas narrativas bíblicas e na hermenêutica cristã” (CHAVES, 2009, p. 20). Dessa forma, é nas frestas, nas brechas, nas fissuras, na soleira do discurso bíblico e da literatura, entre o sagrado e o profano, que Júlio de Queiroz constrói seu evangelho, sua obra literária. 

Acreditamos que os melhores exemplos do modo como o escritor Júlio de Queiroz explora de modo intertextual e vale-se dessas frestas da narrativa bíblica, bem como em alguma medida lança mão de um anticlericalismo, aproximando-se de textos como A Relíquia, de Eça de Queiroz, são os contos do livro Encontro de Abismos, publicado pela primeira vez em 2002. A seguir, portanto, buscaremos analisar, ainda que brevemente, dois dos três contos deste livro – “Escuridão no meio-dia” e “Enigma no entardecer” –, de modo a perceber sua dimensão intertextual com a Bíblia e o modo sutil, embora certeiro, como esse escritor, que marcou para sempre as letras de Santa Catarina, constrói textos que podem ser analisados e estudados dentro do universo da Teopoética. 

“Escuridão no meio-dia” – o anticlericalismo e a crítica à institucionalização da fé

O conto “Escuridão no meio-dia”, publicado no livro Encontro de Abismos, cuja primeira edição data de 2002, tem uma epígrafe interessante: “Palavras sozinhas jamais chegam ao céu”4 (QUEIROZ, 2006, p 13). Trata-se de uma frase dita por Cláudio, na peça Hamlet, de Shakespeare. Nessa cena, numa espécie de oração, a personagem confessa seu crime: o assassinato do Rei da Dinamarca, pai de Hamlet, com intuito de usurpar seu trono. Convencido de que não há perdão divino para aquele pecado, a personagem, portanto, profere a frase em questão e a cena se conclui dessa forma. Sem dúvida, essa ideia expressa na peça shakespereana faz referência a duas passagens bíblicas, uma do Evangelho de Mateus e outra do livro de Tiago. Assim, em Mateus, lemos: “Toda árvore que não produz bons frutos é cortada e atirada ao fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis” (MATEUS 7: 19-20. Bíblia de Jerusalém). Já em Tiago, por sua vez, deparamo- -nos com a seguinte afirmação: “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras? Porventura a fé pode salvá-lo?” (TIAGO 2: 14. Bíblia de Jerusalém). O conto de Júlio de Queiroz, então, em sua epígrafe, adianta ao leitor que se debruçará sobre esse tema, sobre a ideia bíblica e cristã de que uma “fé sem obras é morta” (TIAGO 2: 17. Bíblia de Jerusalém). É, no mínimo curioso perceber que o escritor não citou o evangelista Mateus nem o livro de Tiago, mas Shakespeare. Observamos, assim, o quanto a obra de Queiroz estabelece, também, um profícuo diálogo intertextual com a tradição literária, sobretudo com aquela que dialoga com a Bíblia e com a cultura cristã. 

Desse modo, a personagem principal do conto é um homem a quem conhecemos inicialmente pela alcunha de “Monsenhor Lustosa” (QUEIROZ, 2006, p. 14). Trata-se, evidentemente, de um homem religioso, que ocupa o cargo eclesiástico de Monsenhor. A história se inicia com a chegada deste homem, que vive em São Paulo, embora seja de origem alagoana, a Florianópolis, onde participaria de um evento teológico sobre a figura do “Jesus Histórico”: 

Quando seu cardeal lhe abrira a possibilidade de vir ele participar do Encontro sobre “O Jesus Histórico”, havia tergiversado inicialmente. [...] Porém não tivera entusiasmo pelo evento. Somente depois que o folheto explicativo lhe fora trazido é que se encorajara. Pelas informações, estariam presentes historiadores e professores de algumas universidades estrangeiros [...] Além disso, a escolha do lugar para o Encontro fora-lhe uma agradável recordação. Lembrava de Florianópolis como sendo uma cidade encantadora, da qual guardava algumas boas lembranças visuais, pois estivera nela reiteradas vezes, intermediando entendimentos com um ex-clérigo, seu colega de seminário maior, que, depois de ter abandonado a vida sacerdotal, havia se mudado para lá (QUEIROZ, 2006, p. 14)

Assim, a relação da obra de Júlio de Queiroz com a capital catarinense é evidenciada neste conto, sobretudo quando o narrador, heterodiegético, descreve a geografia da região, os lugares por onde caminha a personagem de Monsenhor Lustosa. Seja como for, a principal intenção do narrador, desde o início do conto é caracterizar a personagem principal como um homem que, apesar de seu estatuto de religioso, de sacerdote católico, não se sente confortável nessa posição, bem como se afasta, em inúmeros momentos, dos ensinamentos doutrinários da fé e da religião cristã. Dois desses momentos se dão durante o evento em Florianópolis e em ambos o leitor percebe sua impaciência, sua falta de traquejo e compreensão com as pessoas, sua pouca habilidade para ouvir e aconselhar aqueles que o procuram e solicitam conselhos morais e religiosos. 

Num desses momentos, vemos o Monsenhor tratar com impaciência e soberba a camareira do hotel onde estava hospedado, uma mulher bastante angustiada, que o procura para conversar sobre um sobrinho deficiente que nascera em sua família, pedindo-lhe, inclusive, para que reze a Deus para a criança morrer. Incapaz de lidar com tamanha aflição e desespero, o sacerdote se limita a dizer: “Não posso lhe ajudar em nada. Eu não tenho de ouvir tais barbaridades! Aconselhe-se com o padre de sua paróquia. Isto aqui é um hotel. Eu sou um hóspede!” (QUEIROZ, 2006, p. 30). 

Nesse conto, então, acreditamos que Júlio de Queiroz esteja bastante próximo de Eça de Queiroz, sobretudo no que se refere ao romance O crime do padre Amaro (1875) e à novela A Relíquia (1887), como já foi mencionado. O mesmo anticlericalismo e o sentimento antirreligioso presentes nos textos do autor oitocentista podem ser percebidos no conto “Escuridão no meio-dia”, título que de um modo simbólico já anuncia a crítica social e religiosa, direcionada às práticas sacerdotais católicas da contemporaneidade, ainda não muito afastadas daquelas que os olhos de Eça presenciavam no século XIX. 

Antonio Nery (2013), importante estudioso da obra de Eça de Queiroz, no estudo A Relíquia (Eça de Queiroz): Anticlericalismo e (anti) religiosidade para além da paixão de Cristo, aponta que o sentimento antirreligioso e a crítica direcionada ao clero na obra do escritor realista tem relação com o pensamento da própria Geração de 70, em que se destaca o pensamento de Antero de Quental, quando este, no discurso “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos”, culpa o catolicismo pelo atraso econômico e científico de Portugal, mas não deixa de valorizar e defender, através do que chama de “Igrejas Nacionaes”, as práticas religiosas desvinculadas de instituições (NERY, 2013, p. 34). Noutras palavras, tanto Antero em seu discurso filosófico como Eça, em sua literatura, não atacam a existência de uma fé ou de práticas religiosas, místicas e transcendentais, mas sim a corrupção, o falso-moralismo, a hipocrisia e o desejo de poder da Igreja enquanto instituição. Acreditamos que um procedimento muito semelhante pode ser percebido em muitos textos de Júlio de Queiroz, sobretudo em “Escuridão no meio-dia”. 

Aproximando-se do desfecho do conto, a personagem principal, o Monsenhor Lustosa, acaba retornando à São Paulo de ônibus, devido a uma tempestade que assola a Argentina e o sul do Brasil, impossibilitando a decolagem de aviões. Ainda no hotel, ele fica a saber que viajará na companhia de um colega, o Professor Roriz, um historiador que também participou do evento sobre a figura do “Jesus Histórico”. Os dois chegam juntos ao Terminal Rita Maria, onde o sacerdote católico tem a oportunidade de explicar ao professor a origem do curioso nome da estação rodoviária de Florianópolis: 

É o de uma vivandeira que manteve sua barraquinha de comidas por esses arredores, muito antes da construção do Terminal. Um administrador público sem medo de demonstrar sensibilidade humana a homenageou, em vez de algum general. Está no folheto do hotel – informou didaticamente o Monsenhor. (QUEIROZ, 2006, p. 36)  

No interior da estação, os dois homens encontrarão, ainda, um outro participante do evento, um pastor evangélico, que também regressará a São Paulo de ônibus. Trata-se do Pastor Nivaldo, um homem descrito como “metódico, minucioso e perfeccionista” (QUEIROZ, 2006, p. 37). Com a ajuda de “um homem de aspecto humilde, postado atrás deles na fila de atendimento” (QUEIROZ, 2006, p. 39), que lhes diz ter um assento livre ao seu lado, os três estudiosos da figura de Jesus conseguem se sentar em lugares próximos dentro do ônibus, apenas tendo, aos olhos do Monsenhor Lustosa, “um desses operários, com certeza, dos faladores” ao seu lado (QUEIROZ, 2006, p. 39). 

Desse modo, ao lado do generoso sujeito, que o narrador nos diz em seguida se tratar de um carpinteiro, um jovem que aprendera marcenaria e que estava a ir para São Paulo em busca de trabalho, os três especialistas em Jesus viajariam juntos e realizariam uma espécie de conversa teológica itinerante, em que cada um tentaria impor sua crença, sua visão religiosa e teológica, já que “[..] é velha de muitos séculos a afirmação de não haver intransigência mais rancorosa do que a de teólogos em discussão” (QUEIROZ, 2006, p. 39). 

Durante a viagem o contraste entre os três teólogos e o carpinteiro que segue ao seu lado torna-se central na narrativa. Os três homens debatem de um modo agressivo, discutindo a natureza humana ou divina de Jesus, um dos principais temas do evento ocorrido em Florianópolis. Em diversos momentos, o debate caloroso dos estudiosos é interrompido, seja por conta de uma criança que chora ou de uma mulher grávida que passa mal dentro do ônibus e que ameaça vomitar, preocupando o Monsenhor Lustosa: “– Se isso acontecer, vai ser um desastre. Esse ônibus não tem qualquer dispositivo para limpeza. Vamos ter de aguentar o cheiro forte de azedo e pessoas pisando no vômito. Vai ser um horror!” (QUEIROZ, 2006, p. 45). 

Em todos os casos, é o jovem aprendiz de marcenaria quem socorre tanto a criança que chora quanto a mulher grávida que enjoa na viagem: “Pouco depois, o companheiro de assento do Monsenhor levantou-se, foi até a senhora grávida, inclinou-se para ela, disse-lhe baixinho umas poucas frases e, ao longo do corredor a acompanhou até o banheiro” (QUEIROZ, 2006, p. 45). No meio da viagem, o ônibus faz uma pausa para que as pessoas possam jantar, em um restaurante, no meio da estrada. Os três religiosos se sentam para jantar e veem, antes de pedir suas refeições, uma família do lado de fora do restaurante, que aparentemente não possuía dinheiro para comer: 

Um casal, vestido muito modestamente, acompanhado por duas crianças raquíticas, ficou caminhando ao longo da varanda do lado de fora do bar. Num determinado momento, a menininha dirigiu-se à senhora, certamente sua mãe, como se fizesse um pedido. Esta trocou com quem parecia ser seu marido, que sorriu, constrangido, e, abaixando-se, explicou qualquer coisa à menina, passando-lhe uma mão nos cabelos. Continuaram o vai- -e-vem da caminhada, sem entrar no bar. (QUEIROZ, 2006, p. 46)

Diante dessa situação, os três homens se restringem a comentar a situação dos pobres no país, ora lamentando a existência de desempregados, ora demonstrando incômodo com os “migrantes desocupados” de São Paulo (QUEIROZ, 2006, p. 46). Mais tarde, quando novamente o ônibus faz uma parada para um lanche, eles veem o jovem aprendiz de carpintaria jantando com a família de desempregados: 

Efetivamente, numa mesa pouco distante daquela em que os três estavam sentados, o casal de supostos migrantes que não consumira nada na parada para lanches estava à mesa com o companheiro de Monsenhor Lustosa, mas por sua gesticulação discreta, era este quem correria com a despesa. Pela pouca deferência do garçom deveriam ter escolhido qualquer prato na categoria de canja magra. Feito o pedido, afastado o garçom, o carpinteiro inclinou-se até a sacola de pano que havia levado consigo e colocado ao pé da cadeira em que se sentava. Dela tirou um pão redondo e escuro, de produção caseira, e o pôs sobre a mesa. Logo após isso, inclinou-se de novo e, desta vez, levantou uma garrafa comum, sem rótulo, e a colocou ao lado do pão. Era vinho, também de produção doméstica. Em seguida, serviu um pouco de vinho no copo à frente de cada um na sua mesa e, tomando do pão, partiu-o com gestos lentos, quase rituais, não sem antes ter levantado os olhos, como que curta oração. (QUEIROZ, 2006, p. 48)  

A relação alegórica entre esse jovem e a figura de Jesus é, com o avançar do conto, cada vez mais evidente. Assim, uma vez mais, ainda que fora dos evangelhos, o leitor se depara com a solidão do carpinteiro Jesus, novamente na companhia dos pobres, dos excluídos socialmente, novamente partindo o pão e desconhecido por aqueles que, em teoria, conheciam tão bem a doutrina e as leis dos textos sagrados. 

Torna-se nítida, portanto, a crítica anticlerical e o sentimento antirreligioso deste conto, isto é, a crítica à hipocrisia do clero, dos sacerdotes cristãos e de todos aqueles que, de alguma maneira, têm oportunidade de conhecer os ensinamentos de Jesus e não o praticam. Tal como a personagem de Shakespeare, Cláudio, o Monsenhor Lustosa e seus dois companheiros de viagem, também estudiosos da figura de Jesus, só têm palavras vazias, nenhuma ação concreta que as faça chegar “ao céu” ou, parafraseando o que lemos em Tiago 2:17, sua fé e seu conhecimento, sem obras, são mortos. No desfecho do conto, quando chegam a São Paulo, o jovem aprendiz de carpintaria se levanta antes dos três especialistas e o narrador declara: “Nenhum dos três O havia reconhecido” (QUEIROZ, 2006, p. 49). 

Enigma no entardecer – o homem nu do Evangelho de Marcos

O conto “Enigma no Entardecer” é o segundo do livro Encontro de Abismos e nele se conta a história de Demétrio, um rapaz grego da cidade de Esparta, que foi transformado em escravo após Roma conquistar sua cidade. Desta vez, estamos diante de um narrador homodiegético e a história se passa por volta do ano 33 d.C. Em verdade, o leitor logo descobre que a história a qual se vai narrar passou-se muitos anos atrás, quando o narrador-personagem era jovem: “Nós, gregos, estamos em todos os lugares do mundo conhecido [...]. Nasci espartano. Quando nos conquistou, foi um duro golpe para mim e meus conterrâneos, os filhos de Esparta, a terra da disciplina severa do quartel e do cultivo do corpo masculino” (QUEIROZ, 2006, p. 52).

O conto possui uma epígrafe, também retirada de Shakespeare, desta vez da peça Rei Lear: “A roda já completou o círculo, e eis-me aqui”. Trata-se de uma frase dita por Edmundo, filho bastardo do Conde Gloster, que, numa narrativa paralela à história de Lear e suas filhas, engana ao pai e o faz acreditar que o irmão, Edgar, deseja matá-lo. No desfecho da peça, os dois irmãos se encontram, para um duelo final. Então, a ideia de que a sorte, o destino ou a fortuna conduz os homens, levando-os para lugares e situações dos quais não podem fugir ou que mudam drasticamente suas vidas, é fundamental para que se compreenda este texto de Júlio de Queiroz. 

Dessa maneira, após ser transformado em escravo, Demétrio, já em Roma, é vendido para Aspásia, proprietária de uma espécie de prostíbulo ou lupanar, frequentado por figuras ilustres do Império Romano: “Por quatro anos, todas as tardes e noites, trabalhei na cozinha, lavando panelas e vasos de barro” (QUEIROZ, 2006, p. 56). Com o passar do tempo e conforme se torna mais velho e bonito, Demétrio é “educado para os festins”, onde acabaria por se tornar amante do senador romano Juno Valério, que se apaixonaria por ele e o compraria, garantindo que estivesse “permanentemente à sua disposição” (QUEIROZ, 2006, p. 58). 

A vida de Demétrio parecia ter melhorado e ele se via, inclusive, afeiçoado ao seu novo Senhor: “Eu já tomara afeição por ele. Era gentil, com maneiras extremamente esmeradas e, sobretudo, fulgia nele o autocontrole viril, a gravitas, que os romanos tanto prezam” (QUEIROZ, 2006, p. 64). Contudo, a roda da fortuna continua a girar, e o escravo grego, ao fim de dois anos, se vê novamente numa situação difícil, sendo levado, sem grandes explicações, a um acampamento romano, repleto de soldados. Lá, acaba por descobrir que fora dado como presente a um centurião, amigo de Juno Valério. Revoltado e acreditando que os deuses o perseguiam, numa espécie de vingança, Demétrio faz um discurso ao seu novo senhor: 

Não sei em que minha terra provocou a ira dos deuses para que sua vingança me fizesse escravo aos dez anos de idade, quando eu ainda me exercitava em todas as artes dos homens. Um dia, lutarei numa arena para ou morrer como guerreiro, ou ganhar a liberdade [...] Nasci livre e hei de morrer livre’’ (QUEIROZ, 2006, p. 68)  

Comovido com a coragem do rapaz grego, o Centurião não só o liberta, mas faz dele um soldado romano: “Se falaste inspirado pelos deuses, sairás da cozinha, não apenas com a barriga cheia, mas liberto. Se ensaiaste a cena, também estarás liberto, mas o Centurião poderá fazer-te a vida tão miserável que orarás aos teus deuses para voltar à escravidão” (QUEIROZ, 2006, p. 68). Dessa maneira, Demétrio torna- -se um soldado e parte para a Judéia, região sob o domínio de Roma naquele momento. 

Aos olhos do jovem espartano, Jerusalém é descrita como “uma casa de loucos” (QUEIROZ, 2006, p. 70) e os judeus, em sua maioria, como “[...] Sujos, barbudos, briguentos” (QUEIROZ, 2006, p. 71). Novamente, o narrador comentará sobre suas aventuras sexuais, desta vez como homem livre. É interessante perceber o modo como o conto de Júlio de Queiroz aborda as relações homossexuais entre homens, presente não só na vida dos romanos, mas também dos judeus, que apesar de as condenarem, conforme suas escrituras, viviam-nas clandestinamente: 

Também, por algum entendimento secreto, mas, perfeitamente transmissível, judeus que não desprezavam a beleza de um homem conseguiam fazer-me chegar mensagens para encontros furtivos. Samuel, um dos servidores do Templo, era um deles [...] Quando, buscado pela guarda, eu o encontrava, costumava ele, em sussurros, marcar encontros em um dos montes da cidade, o Horto das Oliveiras, contanto que fosse tarde da noite e que subíssemos por caminhos separados. Eu divertia-me com esses cuidados. O que fazíamos, à noite e às escondidas nas grutas do monte, poderia ser realizado, com dignidade e às claras, em qualquer casa de banhos em todo o Império, e, entre gregos, mesmo nos templos dedicados a Zeus e a Apolo. Porém, emendar duas pontas opostas: o prazer dos homens e os ditames do Templo parecia ser uma necessidade para os judeus. O Horto das Oliveiras era o lugar preferido para desabafos entre homens, que, durante o dia, protestavam virilidade e recato, queimando carneiros e ovelhas ao rancoroso deus dos judeus, mas que, à noite, sacrificavam-se, em gemidos, nos invisíveis altares de Apolo. (QUEIROZ, 2006, p. 73)

Demétrio nos diz, ainda, que este lugar é onde se encontram muitos sicários5 , “[...] pequenos grupos rebeldes, cujo sonho era libertar sua terra e destruir Roma” (QUEIROZ, 2006, p. 73). Percebemos o quanto o conto de Júlio de Queiroz, de alguma forma, dessacraliza um lugar bíblico, o Horto das Oliveiras, onde Jesus foi beijado por Judas e preso, em seguida. Estamos diante, mais uma vez, de um procedimento de desapropriação, conforme Chaves (2009), em que há o desejo de lançar novos olhares e novas significações para determinados personagens, enredos e lugares bíblicos, muitas vezes engessados em uma única interpretação e visão dogmática.  

Por fim, a maior desapropriação e dessacralização presente neste conto pode ser percebida através da paixão que o jovem grego desenvolve por uma importante personagem dos Evangelhos. Demétrio apaixona-se desde o primeiro momento em que o vê, quando chega a Jerusalém montado em um jumento, seguido por uma multidão que o chamava de “Messias”: 

Mesmo montado num asno, havia nele uma dignidade que faltava a seus seguidores. Vestia-se simplesmente: uma túnica tecida circularmente, sem costuras, e, em sua volta, um manto. Não era o vestuário que se lhe notava grandeza ou poderio. Era no seu rosto. Eu já me acostumara com as feições judias. E belas um grego jamais as acharia. Mas, não as daquele judeu. Se Apolo, o mais belo de todos os deuses, tomasse feições humanas, certamente seriam as daquele homem. Senti por ele, instantaneamente, o mesmo sentimento de pertença que me dominava quando eu estava junto de Junio Valério. Revestia ambos uma dignidade viril, uma gravitas, que o resto do mundo masculino não tinha. (QUEIROZ, 2006, p. 80)

Fascinado e encantado pela beleza daquele judeu, Demétrio então se vê arrebatado quando acredita que seus olhares foram correspondidos: 

Firmei meus olhos no seu rosto. E o fiz de tal modo, tão insistentemente, que o montado acabou por olhar para mim. Era ele! Eu não sabia se iria salvar seu povo, ou se era enviado pelos deuses do Olimpo [...] Só soube, naquele momento, que ele era o ser para o qual eu havia sido criado’’ (QUEIROZ, 2006, p. 81).

A partir desse momento, desse (des)encontro, o leitor acompanha Demétrio em sua fascinação pela figura daquele rabi nazareno, que sem dificuldades descobrimos se tratar de Jesus. Demétrio segue, de longe, todos os seus passos e os de seu cortejo, acompanhando todos os episódios da Paixão, desde a Santa Ceia, na casa de um patriarca, em Jerusalém, até a prisão no Horto das Oliveira e depois a Crucificação, no “Morro da Caveira” (QUEIROZ, 2006, p. 94), isto é, no Monte Gólgota. 

Contudo, somente quando Júlio de Queiroz reconstrói a cena em que Jesus e os discípulos estão no Horto das Oliveiras, pouco depois do beijo de Judas, é que nos deparamos com a passagem bíblica a qual parece ter sido o gérmen do conto “Enigma no Entardecer”. Trata-se do momento da prisão de Jesus e de uma passagem curiosa, no Evangelho de Marcos, quando lemos: “E um certo jovem o seguia, envolto em um lençol sobre o corpo nu. E lançaram-lhe a mão. Mas ele, largando o lençol, fugiu nu. E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e ajuntaram-se todos os principais dos sacerdotes, e os anciãos e os escribas” (MARCOS 14: 51-53. Bíblia de Jerusalém). No conto, Demétrio segue Jesus e os discípulos até aquele local sagrado para os judeus e, na esperança de poder estar só com o homem que amava, por quem havia se apaixonado, estende um lençol branco no chão e fica completamente nu: 

Busquei agilmente um atalho para a gruta. Num recôncavo, parei. Tirei rapidamente toda minha roupa, ficando apenas com as sandálias. Estendi o lençol grosso sobre o chão, deitei-me, e, cobrindo com uma de suas pontas apenas uma parte de minhas pernas, deixando nu o peito e o ventre, pretendi estar adormecido. Ouvi as passadas do rabi que se aproximava. Prelibei mentalmente o encontro; a surpresa do homem amado, o desejo nascente nele e meu próprio fingir acordar-me para, com gestos, convidá-lo a aproximar-se. Nisso percebi que o rabino havia parado. Mais que ter parado, voltava com passadas decidias pelo caminho que viera. Eu estava tão absorto no enigma dos movimentos do rabi que não notei que uma tropa que, apesar de calada, não teria podido se aproximar em silêncio completo. Num relance, lá estava, outra vez, o rabi ao lado dos três homens recém-acordado. Enrolado no lençol de campanha, eu havia descido a encosta para poder presenciar todo desenrolar-se da cena. (QUEIROZ, 2006, p. 92)   

Então, nesse momento, Demétrio está finalmente preparado para um ato amoroso, lânguido, à espera do homem que amava e desejava. Não compreendera ele, ainda, que o amor que vira nos olhos de Jesus era um amor de outra natureza, muito mais divino e eterno. Assim, em seguida, observamos a reconstrução fiel da cena na qual um homem nu quase é preso junto a Jesus: 

Eu estava tão envolvido em acompanhar os inesperados acontecimentos tão próximos de onde eu me achava que não notei que uma vintena de guardas fechava um círculo em volta de todos. Inclusive de mim. Foi, então, que, alertado para o perigo que corria, tentei rapidamente voltar ao lugar no qual havia deixado minha roupa. Entretanto, a alvura do lençol delatou-me, chamando a atenção de um dos guardas, que correram, tentando me agarrar também. Eu, porém, deixando o lençol nas mãos deles, fugi, nu, esgueirando-me morro acima. (QUEIROZ, 2006, p. 93)

A partir de um versículo aparentemente estranho ou desconexo dos outros acontecimentos narrados naquele momento, no Evangelho de Marcos, Júlio de Queiroz construiu a história de Demétrio, no conto “Enigma no Entardecer”. Percebemos, assim, o quanto o escritor escreve nas frestas do discurso bíblico, explorando seus silêncios, suas aberturas, suas fissuras, isto é, as passagens que permitem interpretações múltiplas e possibilitam que o leitor lance mão da imaginação, da ficção, para criar suas próprias leituras. Júlio de Queiroz, seguindo, claramente, a tradição literária da qual fazem parte inúmeros outros escritores, escreveu textos que estabelecem relações intertextuais com a Bíblia, seja para criar uma paródia ou mesmo para desvelar e explorar o caráter literário dos textos que compõem essa escritura sagrada. 

Em 1991, José Saramago publica O Evangelho Segundo Jesus Cristo, romance que, sem dúvida, contribuiu para que fosse, em 1998, agraciado com o Nobel de Literatura. Nessa narrativa, o escritor português não só conta a história de Jesus de um outro modo, mas inverte completamente os acontecimentos narrados nos evangelhos. É o que identificamos, por exemplo, na cena da crucificação de Cristo, quando este diz a Pilatos que é, de fato, o Rei dos Judeus, na tentativa de frustrar os planos de Deus. No entanto, muito mais inteligente e perspicaz do que Jesus, a personagem do Criador consegue, no romance, concretizar seu sonho de poder e de criação de uma nova religião: 

Jesus morre, morre, e já vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, tu és o meu filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens perdoai-lhe, porque ele não sabe o que faz. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes-me dar todas as respostas. (SARAMAGO, 2006, p. 444)  

Nesse sentido, Salma Ferraz (2012) compreende o romance de Saramago como uma espécie de “(des)evangelho” e a cruz passa significar algo negativo, “o afastamento definitivo dos seres humanos de Jesus” (FERRAZ, 2012, p. 200), isto é, a manobra de Deus, no desfecho da narrativa saramaguiana, frustra a humanidade que Jesus, filho do carpinteiro José, queria para si. Acreditamos, assim, que de um modo um pouco mais sutil, Júlio de Queiroz também dialoga com os Evangelhos e, embora também explore, tal como Saramago, o caráter plurissignificativo e literário da Bíblia, não chega a criar um texto que poderia ser considerado herético ou uma espécie de “desenvangelho” (FERRAZ, 2012, p. 200). Antes, o conto “Enigma no entardecer” dialoga com o Evangelho de Marcos, cita-o, cria uma história e uma identidade para a misteriosa personagem do homem nu, com a intenção de reforçar uma mensagem que pode ser lida como cristã ou evangélica, basta lembrarmos, por exemplo, de uma passagem das cartas de Paulo: “Não há judeu nem grego, escravo livre, homem ou mulher; porque vós sois um em Cristo Jesus” (GÁLATAS 3:28. Bíblia de Jerusalém). Em suma, como bem aponta Silveira Silva na lombada da edição a qual recorremos, esse conto dá conta de evidenciar a valorização por parte da obra de Júlio de Queiroz de uma fé que “transcende rituais”, de uma visão religiosa que supera e transgrede os dogmas. 

A desapropriação desse episódio e dessa personagem bíblica parece ter como principal interesse chamar atenção para uma mensagem de acolhimento que é inerente a todas as narrativas bíblicas e ao próprio Cristianismo. É por isso que o narrador enfatiza o fato de Jesus retribuir o amor do soldado: “Louco ou um semideus, tornou a envolver-me em promessas de amor!” (QUEIROZ, 2006, p. 96). Jesus o acolhe com um olhar fraterno, ama-o, não num sentido sexual, evidentemente, mas como um ser humano, como seu semelhante, e nos faz lembrar de uma outra passagem, desta vez do Evangelho de Mateus: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (MATEUS 22:39. Bíblia de Jerusalém). 

Conclusão

Nesta discussão, nosso objetivo foi lançar vistas para a obra de um escritor ainda pouco difundido e estudado no Brasil, o escritor Júlio de Queiroz. Acreditamos que conseguimos explicitar, ainda que de um modo breve, a relação da sua obra com a cidade de Florianópolis, onde viveu grande parte de sua vida e escreveu seus textos literários. Em muitos de seus contos, Júlio de Queiroz costuma não só evocar as paisagens e a cultura da capital catarinense, mas evidencia uma característica importante de sua literatura como um todo: a constante intertextualidade com a Bíblia e com o imaginário da cultura cristã. Por isso, esta análise e discussão pode ser lida, primeiramente, como um convite para que mais pessoas conheçam a sua obra e possam estudá-la, bem como continuem a discutir, no âmbito da Teopoética e dos Estudos Literários, as diversas relações que se pode estabelecer entre teologia e literatura. 

Nesse sentido, no conto “Escuridão no meio-dia”, Júlio de Queiroz lança mão de um sentimento anticlerical e antirreligioso, e critica, de uma maneira bastante semelhante ao que faz Eça de Queiroz em grande parte da sua obra, a conduta hipócrita e antiética de muitos membros do clero católico e de outras religiões cristãs, incluindo os intelectuais, os teólogos, ou seja, vislumbramos uma crítica à distância e à indiferença que muitos desses sujeitos apresentam com relação ao povo, às pessoas simples, humildes e marginalizadas da sociedade contemporânea. Assim, através da figura de um generoso carpinteiro, pobre e trabalhador, o narrador do conto nos faz refletir sobre a real mensagem do Cristianismo e a própria natureza de Jesus, a principal figura do Novo Testamento e da religião cristã. 

O conto “Enigma no entardecer”, por sua vez, dá uma identidade e uma história a uma personagem enigmática e misteriosa do Evangelho de Marcos, um homem nu, que se levanta e corre no momento da prisão de Jesus, no Horto das Oliveiras. Aqui, a nosso ver, não importa tanto discutir e trazer à tona a exegese que os teólogos desenvolveram para essa passagem bíblica, mas atentar para o procedimento de rasura, de fissura, que o conto apresenta, explorando a dimensão literária da Bíblia, as múltiplas interpretações e sentidos que podem surgir a partir da sua leitura. Escrevendo nas frestas da Bíblia, explorando as suas passagens ambíguas e contraditórias, Júlio de Queiroz desvela o quanto o texto bíblico é complexo e polissêmico, como qualquer texto literário. 

Nesse sentido, vale enfatizar, através das releituras e dos diálogos que estabelece com as narrativas bíblicas e com a cultura cristã, acreditamos que boa parte da literatura de Júlio de Queiroz, sobretudo no que concerne a esses dois contos, atua como uma espécie de texto auxiliador dos evangelhos, em que, mais do que desconstruí-los e dessacralizá-los, sobressai-se a tentativa de chamar atenção para uma das mensagens principais do Cristianismo: a fraternidade, a solidariedade e o acolhimento dos pobres, dos desfavorecidos e dos marginalizados – isso fica evidente tanto no conto “Escuridão no meio-dia”, através do comportamento do jovem carpinteiro, que, diferentemente dos teólogos, acolhe e auxilia os necessitados, bem como no conto “Enigma ao entardecer”, quando Jesus encara Demétrio com “amor”, com compreensão e compaixão. 

Se com relação à obra de escritores como José Saramago, estamos diante de textos literários que se pretendem heréticos e podemos, em alguma medida, pensar no conceito de “desevangelho” (FERRAZ, 2012, p. 200), no caso do escritor capixaba, acreditamos que estamos diante de uma literatura que não abre mão – pelo menos não completamente – de uma mensagem comprometida com a filosofia e a ética cristãs, valorizando uma fé para além de dogmas e rituais, isto é, trata-se, sem qualquer ironia, do Evangelho Segundo Júlio de Queiroz.  

Referências

AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2011. 

BARCELLOS, José Carlos. Teologia e Literatura. In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos literários. Lisboa: [s.n], 2019. Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/7029/teologia-e-literatura/. Acesso em 17 mar. 2019. 

Bíblia de Jerusalém. 1ª ed. 10ª reimpressão. Tradução Benjamim Carreira de Oliveira (Judite, Eclesiástico); Euclides Martins Balacin (Eclesiastes); Luiz Inácio Stadelman (Jó) et al. Direção Editorial Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2015. 

CHAVES, Josué. Versões e reverberações do sagrado em Júlio de Queiroz. 139 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2009. 

FERRAZ, Salma. As faces de Deus na obra de um ateu. Blumenau: Edifurb, 2012. 

KUSCHEL, Karl - Josef. Os Escritores e as Escrituras: retratos teológico- -literários. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 

MAGALHÃES, Antonio. A Bíblia como obra literária. Hermenêutica literária dos textos bíblicos em diálogo com a teologia. In: Deuses em Poética. Belém: UEPA; Campina Grande: EDUEPB, 2008, p. 11-24. 

NERY, Antonio Augusto. A Relíquia (Eça de Queiroz): Anticlericalismo e (anti)religiosidade para além da paixão de Cristo. Revista do Curso de Letras da UEPA, Belém, v. 1, n. 1, 2013. Disponível em: . Acesso em 25 mar. 2019. 

QUEIROZ, Eça de. A Relíquia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. QUEIROZ, Júlio. Encontro de Abismos. Florianópolis: Insular, 2006. 

QUEIROZ, Júlio. Pelas frestas da caverna. Florianópolis: Edifurb, 2014. SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras: São Paulo, 2006. 

Notas

[1] Antonio Magalhães, no texto A Bíblia como obra literária: hermenêutica literária dos textos bíblicos em diálogo com a teologia, publicado em 2008, no livro Deuses e Poéticas, ressalta que, para além dos estudos teológicos e dogmáticos, durante muito tempo a Bíblia foi estudada, nas universidades, apenas do ponto de vista historiográfico.    

[2] Recomendamos o estudo de Antonio Geraldo Cantarela, A produção acadêmica em Teopoética no Brasil: pesquisadores e modelos de leitura, publicado em 2018, no periódico TeoLiterária, da PUC-SP, em que são elencados os principais estudos e pesquisadores desta área no Brasil. O texto está disponível no seguinte endereço eletrônico: https:// revistas.pucsp.br/teoliteraria/article/view/36644/26006. 

[3] Desterro é o antigo nome da cidade de Florianópolis. Em 1673, deu-se o povoamento oficial desta região e foi construída uma igreja em homenagem à Nossa Senhora do Desterro, de onde derivou o nome do local, que só em 1726 foi elevado à condição de vila e em 1823 tornou-se capital da província de Santa Catarina.    

[4] As epígrafes dos contos deste livro, todas retiradas de peças de Shakespeare, são traduções do próprio Júlio de Queiroz. 

[5] Sicário é um termo utilizado para definir um grupo de extremistas judeus, que tentaram expulsar os romanos de Jerusalém, no século primeiro I a.C. Eles ficaram conhecidos por este nome porque utilizavam, em seus ataques, a sica, palavra romana utilizada para descrever uma espécie de adaga, escondida em suas roupas.