Miserere, de Adélia prado, e o livro de Jó: uma aproximação intertextual  
Adelia Prado’s miserere and the book of Job: an intertextual approach  

 

Giovanni Marques Santos 
*Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR). Contato: 
giomarques@yahoo.com.br  
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Resumo:

O presente artigo realiza uma aproximação entre literatura e teologia no esforço de ler o repertório bíblico como literatura e na literatura. A arte literária é lugar teológico na própria Bíblia e em toda a tradição poética por ela impactada. Desse modo, para além de uma exegese histórico-crítica, efetua-se uma leitura poética do Livro de Jó, a partir dos recursos narrativos e líricos do texto tomado em sua integridade, conforme a proposta de Moshe Greenberg. O Livro de Jó assim considerado emerge como um compósito de narração e poesia, em que a ruptura entre gêneros representa igualmente uma disrupção e um confronto entre duas teologias sapienciais: uma sabedoria palaciana e tradicional, alicerçada numa noção de imutabilidade cósmica e legal, segundo a qual os bons são premiados e os maus, castigados; uma sabedoria em crise, que se indigna diante da realidade do sofrimento dos inocentes. Em seguida, avalia-se a relação intertextual do lirismo do Livro de Jó nos poemas de Miserere, de Adélia Prado. Nesta obra, a poetisa mineira encontra no poeta profundo do Livro de Jó o fundamento para a sua teopoética em busca de sentido para a experiência do sofrimento humano. 

Palavras chave: Livro de Jó; Adélia Prado; intertextualidade; sofrimento. 

 

Abstract
This article brings together literature and theology in an effort to read the biblical repertoire as literature and in literature. Literary art is a theological place in the Bible itself and in the entire poetic tradition impacted by it. Thus, in addition to a historical-critical exegesis, a poetic reading of the Book of Job is carried out, based on the narrative and lyrical resources of the text taken in its entirety, as proposed by Moshe Greenberg. The Book of Job thus considered emerges as a composite of narration and poetry, in which the rupture between genders also represents a disrupt and a confrontation between two sapiential theologies: a palatial and traditional wisdom, based on a notion of cosmic and legal immutability, according to which good ones are rewarded and bad ones punished; a wisdom in crisis, which is indignant before the reality of the suffering of the innocent. Then, the intertextual relationship of the lyricism of the Book of Job in the poems of Adelia Prado’s Miserere is evaluated. In this work, the author from Minas Gerais finds in the deep poet of the Book of Job the foundation for her theopoetics in search of meaning for the experience of human suffering. 

Keywords: Book of Job; Adélia Prado; intertextuality; suffering. 

Introdução

Nas últimas décadas, como assinalam Zabatiero e Leonel (2011, p. 11-39), tem-se assistido a um esgotamento do paradigma histórico-filológico-literário de leitura da Bíblia, calcado, de um lado, na proposição do “contexto histórico” como chave hermenêutica fundamental do texto bíblico e, de outro, na intelecção filológica das línguas originais, de suas sutilezas semânticas e gramaticais, dos gêneros literários dos textos bíblicos. Esse modelo, que produziu e ainda produz um imenso volume de conhecimento a respeito da literatura bíblica, tem sido posto em xeque enquanto única via de interpretação da Sagrada Escritura, dadas as novas perspectivas surgidas tanto no campo da História quando dos Estudos da Linguagem. 

Novos modos de fazer história para além da história sociopolítica têm emergido como pano de fundo para a leitura do repertório bíblico: emergem a Nouvelle Histoire (Le Goff), a História das Mentalidades (Delumeau), a História Cultural (Chartier), interessadas em reconstituir, mais que um encadeamento de fatos econômicos e políticos ou um recenseamento de achados arqueológicos, a grande memória humana, a um só tempo individual e coletiva, numa interface bastante fecunda com a antropologia cultural e as manifestações artísticas dos mais diversos gêneros. 

Do ponto de vista dos Estudos da Linguagem, não se pode desconsiderar que muitos outros modos de ler um texto, para além da abordagem histórico-filológica, surgiram desde a emergência da Linguística no século XX. Particularmente as novas propostas teórico-literárias contemporâneas como a Narratologia (Greimas, Eco) e a Neocrítica (Eliot, Warren), assim como as abordagens textuais da linha do dialogismo, da intertextualidade e da interdiscursividade (Bakhtin, Kristeva) têm muito a contribuir para o desvelamento de sentidos no texto bíblico. 

Nesse horizonte de renovação, a convergência epistemológica entre Teologia e Literatura, por seu caráter profundamente antropológico, como bem observa Bingemer, mostra-se necessária enquanto esses “dois polos relacionais” fazem “o ser humano mais humano e a vida mais digna de ser vivida” (BINGEMER, 2015, p. 22). Desse modo, dois campos se abrem para a pesquisa em teologia bíblica: ler a Bíblia como literatura, analisando-se sua constituição narratológica, efeitos poéticos, camadas intertextuais e interdiscursivas; ler a Bíblia na literatura, uma vez que, como diz o crítico literário canadense Northrop Frye, nenhuma outra matriz textual exerceu tanta influência sobre a literatura ocidental que o repertório bíblico (2004, p. 18). 

Villas Boas ressalta, todavia, que o diálogo entre teologia e literatura deve se realizar segundo o paradigma da “união sem confusão”: “a fim de salvaguardar a legitimidade de ambas as áreas [...], a teologia, ao dialogar com a literatura, permanece teologia, assim como a literatura não deve ser instrumentalizada pela teologia (VILLAS BOAS, 2016, p. 30). Na literatura brasileira, é difícil encontrar melhor exemplo de coexistência entre poesia e teologia que na obra da mineira Adélia Prado (1935-). A poesia de Adélia é uma poesia crente: a fé e uma espiritualidade encarnadas no cotidiano atravessam toda a sua obra. Em sua coletânea mais recente, Miserere, publicada em 2013, encontra-se realçada a experiência de Deus que se faz na aridez espiritual e no sofrimento: 

Previsão do tempo 
O espírito de rebelião 
também chamado de tristeza e desânimo 
começou de novo sua ronda sinistra. 
Sua treva e seu frio são de inferno. 
Por causa de maio, esperava dias felizes; 
e ensolarado até agora só o recado de Albertina, 
escolhida para cantar Jesus é o pão do céu. 
Pão sem manteiga, Albertina, 
é bom que o saiba. 
É com ervas amargas que o comemos. (PRADO, 2015, p. 27)

Os poemas de Miserere ecoam a dor e o grito de Jó, o crente espicaçado pelo drama da fé confrontada com o mistério do mal e do sofrimento. Jó e Adélia, através da poesia, tentam responder à pergunta: como crer num Deus cujo amor parece fracassar? O comentário contemporâneo do livro de Jó, a exemplo de Leveque (1987) e Murphy (1985), é unânime em levantar suspeitas sobre a teologia da retribuição a que parecem corresponder o prólogo e o epílogo do livro de Jó: nessas seções (Jó 1–2; 42,7-17), Jó tem a sua fé testada para depois ter sua fidelidade premiada. Segundo a hipótese de Leveque, o autor poético do século V tomou um conto primitivo, provavelmente originário da região de Edom, para nele inserir, como que levantando os dois panos de uma cortina, um riquíssimo diálogo poético de índole sapiencial que culmina no capítulo 28, quando todo o saber humano e suas indagações sobre o mal são relativizados perante a experiência da transcendência divina – aquela mesma que inspira e move Adélia a confessar “Estou viva. É só isto que eu sei.” (PRADO, “Espasmos no santuário”, p. 61), mesmo quando Deus não lhe fala “nenhuma palavrinha das que sussurra aos santos” (PRADO, “O pai”, p. 73). 

Ler a poesia de Adélia à contraluz da poesia de Jó e vice-versa constitui um exercício interessante para um posicionamento diante do problema tão antigo e tão novo da experiência humana do mal. 

Dada a relevância da questão do mal e do sofrimento para a experiência religiosa e para a reflexão teológica, justifica-se uma tentativa de leitura intertextual entre as poesias de Adélia Prado e do autor do livro de Jó, aproveitando-se o rico diálogo que se pode estabelecer entre Teologia Bíblica e Literatura, ambas as disciplinas alicerçadas na inspiração, na palavra e na condição humana, como assinala Bingemer (2015, p. 16-21). 

Nesse sentido, o presente trabalho objetiva a efetuar um exercício de diálogo interdisciplinar entre Teologia e Literatura, realçando os aspectos fecundos dessa interação para ambas essas disciplinas. Num primeiro momento, será feita a experiência de ler o Livro de Jó como literatura, compósito de prosa e poesia pleno de recursos literários que desenvolvem uma manifestação, a um só tempo, do sublime artístico e do místico teológico. Em seguida, será feita uma leitura de Adélia Prado como palimpsesto da teopoética de Jó. Dessa maneira, procurar-se- -á evidenciar como a teologia presente nos diálogos poéticos do livro de Jó, debruçada sobre o escândalo do mal, atualiza-se nos versos de Miserere, de Adélia Prado.   

1. Ler o Livro de Jó como literatura  

Que significa ler a Bíblia como literatura? Gabel e Wheeler chamam a atenção para a importância de se ler a Bíblia como um construto artístico da mente humana, “um conjunto de escritos produzidos por pessoas reais que viveram em épocas históricas concretas”, que 

usaram suas línguas nativas e as formas literárias então disponíveis para a autoexpressão, criando, no processo, um material que pode ser lido e apreciado nas mesmas condições que se aplicam à literatura em geral, onde quer que seja encontrada (GABEL; WHEELER, 2003, p. 17).

Sob esse ponto de vista estritamente literário, Greenberg considera o Livro de Jó como um monumento da poética universal: “uma expressão clássica, na literatura mundial, do anseio irreprimível pela ordem divina, frustrada, mas nunca sufocada pela desordem da realidade” (GREENBERG, 1997, p. 324). O mesmo Greenberg teceu um sucinto, porém denso comentário do Livro de Jó que procura captar seu sentido para além das delimitações exegéticas, históricas e filológicas: pretende lê-lo tal qual se apresenta ao leitor, na sua integridade, considerando-o como um todo significativo, mesmo diante da hipótese bastante plausível de que seções inteiras do texto sejam acréscimos posteriores. Esse ensaio de Greenberg é que nos servirá de arrimo na abordagem que faremos de uma leitura literária do Livro de Jó. 

O piedoso Jó é mencionado por Ezequiel (Ez 14,12-20), ao lado de Noé e Daniel, como um modelo de retidão. Nota-se, desse modo, que a figura de Jó era proverbial entre os exilados na Babilônia (século VI a.C.). Também no Novo Testamento, Tiago louva a paciência de Jó (Tg 5,10-11). Mas a que Jó esses textos se referem? “Jó, o paciente”, herói da estrutura em prosa (Jó 1–2; 42,7-17) ou “Jó, o impaciente”, figura central do diálogo poético? 

Na história em prosa, Jó, o paciente, suporta todas as calamidades para ter a sua piedade testada e, ao final, recompensada com redobrada prosperidade. Temos aí a camada mais antiga da história, que remonta a um conto folclórico, supostamente conhecido do público exilado de Ezequiel, conforme a já mencionada hipótese de Leveque (1987). Mais tarde, contudo, um pensador bem mais profundo, um sobrevivente do exílio e de sua decorrente crise de fé, teria utilizado o infortúnio do herói para cenário do seu poema, que questiona radicalmente a sabedoria convencional do conto tradicional. 

Aqui é preciso abrir parênteses para a consideração que faz Líndez (1999, p. 59-136) sobre dois momentos fundamentais da chamada “sabedoria de Israel”. 

Há uma sabedoria antiga ou internacional, partilhada por todo o Crescente Fértil Antigo, que se apresentava como “um sistema de valores, uma compreensão total do mundo por parte do homem”, que “acredita possuir da realidade [...] um conhecimento firme, seguro, sem fissuras, comparável a uma pedra de granito” (1999, p. 59). Nessa corrente, predominante no ambiente palaciano, vigora uma doutrina da retribuição, segundo a qual os bons são premiados e os maus, castigados. Esse tipo de sabedoria mais tradicional encontra-se exemplarmente representado, no cânon bíblico, pelos livros dos Provérbios e do Eclesiástico:  

A maldição de Iahweh está na casa do ímpio 
mas abençoa a morada dos justos. 
Ele zomba dos zombadores insolentes, 
mas aos pobres concede o seu favor. 
A honra é a herança dos sábios, 
mas os insensatos herdam a ignomínia! (Pr 3,33-35) 1 
A ciência do sábio aumenta como uma inundação 
e o seu conselho é como uma fonte viva. 
O coração do insensato é como um vaso rachado, 
não retém saber algum (Eclo 21,13-14). 

Em momento posterior, todavia, emerge em Israel uma sabedoria em crise, que coloca em xeque as posições conservadoras da sabedoria palaciana 2 . Irrompe um espírito crítico, que se dá conta do fracasso dos bons e do triunfo dos malvados. Os polos se invertem, a ordem do mundo parece enlouquecida e a sabedoria tradicional, inconsistente, apresenta-se como um fracasso total. Não há retribuição alguma: o destino de todos é o mesmo. Aos olhos dessa sabedoria em crise, realista, polarizada nos livros de Jó e do Eclesiastes (ou Coélet, em hebraico: “o que sabe”), o único permanente é Deus; tudo o que resta é vaidade: 

Vaidade das vaidades — diz Coélet — vaidade das vaidades, 
tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho 
com que se afadiga debaixo do sol? (Ecl 1,1-2) 
Há uma vaidade que se faz sobre a terra: 
há justos que são tratados conforme a conduta dos ímpios 
e há ímpios que são tratados conforme a conduta dos justos. 
Digo que também isso é vaidade (Ecl 8,14). 
Assim, todos têm um mesmo destino, 
tanto o justo como o ímpio, 
o bom como o mau, o puro como o impuro [...] (Ecl 9,2). 
Já ouvi mil discursos semelhantes, 
sois todos consoladores importunos. 
“Não há um limite para discursos vazios? 
Que há que te incita a contestar? [...] 
Entretanto, voltai-vos todos, vinde: 
não acharei sequer um sábio entre vós! [...] 
Querem fazer da noite, dia: 
estaria perto a luz que afugenta as trevas. 
Ora, minha esperança é habitar no Xeol 
e preparar minha cama nas trevas. [...] 
Pois onde, onde então, está minha esperança? 
Minha felicidade, quem a viu? 
Descerão comigo ao Xeol, 
baixaremos junto ao pó? (Jó 17,2-3.10.12-13.15-16) 

São essas duas “sabedorias” que se encontram em confronto no Livro de Jó: a sabedoria tradicional, antiga e conservadora, serve de matriz para o prólogo, o epílogo e para as intervenções dos amigos de Jó, que tencionam dissuadi-lo de seu desespero da bondade e da justiça de Deus; já os questionamentos e clamores de Jó, na seção poética do livro, constituem expressão dessa “sabedoria em crise”. 

No prólogo do Livro de Jó, Greenberg (1997) detecta cinco movimentos. No primeiro movimento, Jó é um magnata do Leste (não israelita), com uma riqueza tipificada em números que representam a plenitude, a bênção e a abundância (7 + 3). É “homem íntegro e reto, que temia a Deus e se afastava do mal” (Jó 1,1). É também um fiel escrupuloso, que oferece sacrifícios em favor dos filhos temendo que um simples descuido possa retirar a bênção que recaía sobre a família (cf. Jó 1,5). No segundo movimento, Deus, numa assembleia periódica da corte celestial, conversa com o Adversário 3 , que louva a Jó, mas põe sua piedade em xeque, porque está amparada com muitos bens. Se ele for privado de tudo – considera o Adversário – também lançará uma “bênção” (eufemismo para blasfêmia) no rosto de Deus. Dessa maneira, Deus concede ao Adversário testar a piedade de Jó. No terceiro movimento, o Adversário aplica uma sequência de calamidades sobre Jó, que destroem sua fortuna e família. Jó fica enlutado, mas com uma “bênção de Deus” 4 parada em seus lábios, pois não blasfema. As expectativas do Adversário se realizam, porém de modo invertido, frustrando-o. No quarto movimento, novamente na assembleia celeste, Deus e o Adversário ajustam um teste final para Jó: uma doença de pele que o obriga a coçar-se com um caco de cerâmica. Frente à blasfêmia da mulher que o manda maldizer a Deus e morrer de uma vez, Jó responde, na forma de pergunta retórica: “Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” (2,10) Ao chamar de “males” aquilo que vem de Deus, o sábio talmúdico registra que Jó, “apesar disso, não cometeu pecado com seus lábios” (2,10). Ou seja, teria Jó pecado ao menos em seu coração? Estaria aí a prefiguração do Jó impaciente do poema? Por fim, no quinto movimento, chegam os amigos de Jó (também de linhagem abraamita, extraisraelita) para consolá-lo, compartilhando sua dor e fazendo-lhe companhia em silêncio durante sete dias antes de falar. 

É interessante notar que os verbos utilizados no primeiro movimento estão no modo durativo: “costumavam celebrar”, “mandava-os chamar”. Essa placidez é quebrada pelas disjunções temporais a partir do segundo movimento. Nessa primeira parte em prosa, inúmeras figuras poéticas como paralelismos, referências proverbiais e repetições enfáticas são reiteradamente empregadas. Os relatos dos mensageiros que comunicaram as catástrofes a Jó também seguem um padrão, em estrutura paralelística. Alternam-se destruidores humanos e naturais; os filhos ficam para o fim. A aquiescência de Jó também é verdadeira poesia, revelando paralelismo, densidade e equilíbrio musical: 

Nu saí do ventre de minha mãe 
e nu voltarei para lá. 
Iahweh o deu, Iahweh o tirou, 
bendito seja o nome de Iahweh (Jó 1,22). 

Em suma, o que a primeira parte em prosa nos diz sobre Jó? Diz-nos que Jó é um homem virtuoso. O que nem ele nem seus amigos sabem é que está sofrendo para ter a sua fidelidade testada. 

Já no capítulo 3, abre a boca, em uma torrente de versos paralelística e metricamente equilibrados, um Jó impaciente, maldizendo a luz (metáfora para a vida) e o dia em que nasceu. Por que Deus deixa nascer aquele que vai sofrer? – interroga-se. Seria melhor que tivesse sido natimorto, desfrutando da paz do Xeol. Sua piedade e sacrifícios não serviram, enfim, para preveni-lo do mal. 

O fortíssimo paradoxo estabelecido entre os dois primeiros capítulos e a seção que se abre com o terceiro, muito mais do que configurar uma ruptura estilística e temática sugestiva de um processo de redação por acréscimos, amplifica exponencialmente o efeito trágico da narrativa. A exibição hiperbólica do drama do mal só é obtida pelo leitor do Livro de Jó colocando-se em suspenso a hipótese das camadas redacionais do texto e contemplando o enredo na ordem em que se descortina, segundo o projeto do redator final. 

O desabafo de Jó surpreende seus amigos, que não definitivamente não vieram para um debate teológico. Elifaz de Temã (Jó 4–5) dá início à diatribe, recuperando a teologia da retribuição: não há castigo sem um pecado que o exija, e todos os homens são, por natureza, demasiado abjetos para serem inocentes diante de Deus. Esmagado por uma vida célere e curta (“esmigalhados entre a manhã e a noite”: Jó 4,20), o homem não tem sabedoria para entender seu destino. Elifaz conclui dizendo que não compensa lançar invectivas contra Deus; pelo contrário, deve-se louvá-lo, pois feliz é o homem a quem Deus disciplina. Caso ele aceite o sofrimento, ainda poderá ter a expectativa de ser curado e voltar a ser feliz. Tudo isso tem sido provado pela experiência. 

Para Greenberg, trata-se de um debate que já nasce de posições avançadas: Jó é o “porta-voz de todos os desgraçados da terra”, expressando seu “desejo de morte com paixão descontrolada”; as respostas dos amigos – Bildade (ou Baldad) de Suás e Sofar de Naamat – seguem o padrão de Elifaz: “um prólogo, contestando Jó, seguido de uma defesa multitemática da justiça distributiva de Deus” (GREENBERG, 1997, p. 309). Recorrem nas falas dos amigos os seguintes temas: 

a insignificância do homem diante de Deus; a fugacidade e (consequente) ignorância; o chamado para voltar- -se para Deus em penitência; o louvor de Deus; o propósito disciplinador do infortúnio; a felicidade do penitente; a afirmação de possuir uma sabedoria maior que a de Jó (GREENBERG, 1997, p. 310).

Um traço comum entre as intervenções retóricas de Jó e de seus amigos é o movimento da desgraça particular de Jó para a situação da humanidade como um todo. A diferença é que Jó estrutura sua visão a partir de sua desgraça particular, enquanto os amigos julgam o caso de Jó a partir da doutrina geral da justiça distributiva. Essa perspectiva antitética também amplifica a experiência dramática do protagonista. 

No capítulo 6, Jó pede a seus amigos que apenas mostrem seu erro e parem de usar argumentos insípidos. Ele parodia o salmo 8, aplicando um novo sentido ao texto salmódico, para realçar a sua insignificância perante Deus em sentido negativo, não para exaltar a grandeza do criador, mas para justificar a indiferença por quem sofre. As réplicas de Jó, por padrão, são sempre mais longas que as de seus amigos. O que mais irrita Jó é a exatamente a teologia generalizante de Elifaz, secundada pelos demais amigos: seu sofrimento pessoal nada conta perante a ordem universal estipulada pelo governante divino por eles invocado. 

Magoados pela ironia e pela contumácia de Jó, os amigos, de consoladores, transformam-se em contendores rabugentos: 

Elifaz sugere que Jó é um pecador; Bildade diz abertamente que seus filhos morreram por seus pecados; Sofar assegura a Jó que seu sofrimento é menos do que ele merece. Entretanto, cada um deles termina com a promessa de um futuro brilhante se Jó apenas reconhecer sua culpa e implorar perdão a Deus. Embora eles não proporcionem consolo direto a Jó, enxovalhando seu caráter eles o tiram do torpor do desespero e animam nele o desejo de se afirmar (GREENBERG, 1997, p. 313).  

Após a intervenção de seus três interlocutores, Jó os acusa de serem manipuladores de Deus, o que constitui a falta mais grave de todas: eles é que devem temer o juízo de Deus. O discurso da justificação religiosa do mal é desumano e, portanto, imoral, pecaminoso (cf. Jó 13,6- 12). Após esse surto de energia, Jó mais uma vez se rende ao peso da justiça divina e, esgotado pela dor, implora a Deus para deixar-lhe viver em paz o tempo que lhe resta. Na conclusão do primeiro ciclo de debates, após muita lamentação e desespero, Jó anseia pela renovação de sua intimidade com Deus, a quem ainda tem por máxima referência existencial. 

A segunda rodada de debates (Jó 15–21), aberta por Elifaz, tem como foco provar o pecado de Jó. Elifaz introduz o tema para Sofar lançar a invectiva: as riquezas de Jó teriam sido escusamente obtidas (Jó 20). De modo próximo à crueldade, Baldad repassa com Jó, ainda que indiretamente, a perda de seus bens e de sua família como um castigo endereçado ao homem ímpio (Jó 19). Em resposta a essa segunda série de invectivas, Jó reitera que foi afligido apesar de sua inocência e, num ímpeto de esperança, “consola-se com a certeza de que, embora abandonado no presente, seu Defensor (go’el) está vivo e, no fim, aparecerá para vindicá-lo” (GREENBERG, 1997, p. 314). Ainda replicando a Sofar, Jó chama sua atenção para algo terrível: o destino dos ímpios não é tão ruim assim, pois eles têm vida longa e próspera. 

Do ponto de vista da construção textual, o modo como Jó parodia os amigos é, no mínimo, curioso. Ele cita os amigos, parodia suas palavras, inverte-lhes o sentido, antecipa o que dirão: confessa que, se estivesse no lugar deles, diria as mesmas banalidades (cf. Jó 16,4). Elifaz volta à arena uma terceira vez (Jó 22) e começa a fabricar acusações contra Jó 5 . Incrível e injustamente, acusa-o de impiedade e crueldade para com os pobres. Para voltar a Deus e se tornar o favorito dele, precisa eliminar sua confiança no ouro e orar a Deus. Jó lhe responde (23–24) dizendo que gostaria de encontrar a Deus para que o examinasse, uma vez que estaria certo de que sairia inocentado. Baldad resume o discurso de Elifaz em apenas seis versículos (Jó 25): na forma de uma doxologia irônica, amplifica ao máximo a tensão do debate ao louvar a Deus ao mesmo tempo em que chama Jó indiretamente de “verme” (25,6), como posteriormente fariam as cantigas medievais de escárnio. Neste passo do livro, embora alguns comentadores e editores contemporâneos apresentem Jó 26,5-14 como uma continuação do discurso de Baldad 6 , Greenberg propõe que, numa perspectiva dramática, sejam lidos como prosseguimento do discurso do próprio Jó, que subitamente interrompe Baldad e conclui ironicamente a doxologia de seu interlocutor, ridicularizando a retórica do companheiro (Jó 26). 

Sofar nada fala dessa vez. Então, Jó conclui a segunda série de discursos (Jó 27) invocando “o Deus vivo que [lhe] nega justiça” (27,2). Ele diz que permanecerá fiel ao Deus que não compreende, e que ainda ensinará aos amigos “acerca do poder de Deus” (27,11). O ritmo dramático é interrompido por um poema sobre a Sabedoria (Jó 28), no qual Jó, assumindo um tom sereno e contemplativo, mostra o homem como incapaz de encontrar as origens mesmas da sabedoria, embora lhe seja dado perscrutar as profundezas do mundo natural e superar seus obstáculos para extrair-lhe a riqueza 7

No longo solilóquio entre os capítulos 29 e 31, Jó realiza um flashback sobre sua vida de magnata, a estima que granjeara por sua solicitude para com os pobres, e conclui retomando seu lamento. Lista suas virtudes, reafirmando seu espírito inquebrantável. Logo após, tendo já cumprido seu papel e apresentado seus argumentos, os amigos silenciam-se; o próprio Jó também se silencia e a cena assume o aspecto que tinha antes de o diálogo começar. Paira, contudo, uma tensão no ar: irá Deus responder às invectivas de Jó? 

Antes disso, entra em cena o jovem e impetuoso Eliú de Buz, que, irado contra o fato de Jó pretender ter razão contra Deus, intervém com uma longa sequência de irados e meticulosos discursos (Jó 32–37). Principia denunciando a incompetência dos debatedores mais velhos em persuadir Jó. Em tom grandiloquente e floreado, todavia, pouco acrescenta ao que já disseram os amigos. 

Após Eliú, é Deus mesmo quem intervém (38–41) e responde a Jó “no seio da tempestade” (Jó 38,1), que aqui pode indicar tanto um cataclismo teofânico como uma metáfora para o sofrimento absurdo e angustiante experimentado por Jó. No clímax do livro, se até agora era Jó quem provocava a Deus com interrogações, agora é Deus quem enumera para Jó uma longa sequência de perguntas irrespondíveis sobre a estrutura e o funcionamento dos elementos cósmicos. No cosmos tão complexo, nada depende do homem; ele é peça descartável 8 . Em vez de confessar sua ignorância e sua presunção, Jó responde (40,1-5) ser demasiado insignificante para retrucar: ele nada pode dizer, cabendo-lhe apenas o silêncio:  

Nenhum homem pode compreender a Deus, cujas obras desafiam categorias teleológicas e racionais; portanto, condenar sua supervisão dos eventos humanos porque ela não se conforma às concepções humanas de razão e justiça é impróprio (GREENBERG, 1997, p. 322).

Citado por Greenberg, o comentador targúmico Saadya Gaon, no século X, reconhecia aí uma resposta ambígua de Jó: “Quando um interlocutor diz a seu parceiro ‘Não posso lhe responder’, isso pode significar que ele concorda com a posição do outro, equivalente a ‘Não posso contradizer a verdade’; ou pode significar que ele se sente subjugado por seu parceiro, equivalente a ‘Como posso lhe responder se você tem o domínio?’” (GREENBERG, 1997, p. 321). Não se sabe, neste momento, se o silêncio de Jó se dá por humildade perante Deus ou por imposição da violência divina. Literariamente, é importante que não se saiba: o leitor partilha a suspensão do juízo, a epoché experimentada por Jó. 

Jó finalmente submete-se à grandeza divina (42,1-6). Não apenas ouviu falar de Deus – o conhecimento sapiencial, por tradição, papagueado pelos amigos – mas agora viu-o com seus próprios olhos – obteve cognição direta, experiencial de sua natureza. Para a humanidade, portanto, “a sabedoria consiste em temer a Deus e evitar o mal; mais do que isso não se pode saber” (GREENBERG, 1997, p. 322). 

Desse modo, a narrativa encaminha-se para o desfecho: Jó derrota o Adversário, pois não rejeitou a Deus (apenas agarrou-se a ele em dúvida e desespero) nem se arrependeu por ter vivido retamente, descobrindo exatamente nisso o sentido da existência e o consolo para todas as dores e sofrimentos. Em suma, viver bem, em amizade com Deus e em solidariedade com todos, é o que conta. 

No epílogo em prosa (Jó 42,7-17), Deus rejeita de si uma concepção como responsável moral pelo sofrimento de Jó, como autor de acusação ou punição de qualquer injustiça virtualmente cometida pelo protagonista. Condena, na verdade, a impiedade dos amigos de Jó, porque se atreveram a falar de algo que não sabiam, amplificando o sofrimento do protagonista, cuja intercessão devem agora solicitar para que seu pecado seja expiado. 

Ecoando a teologia da retribuição, o epílogo mostra Jó tendo sua fortuna e família restauradas. Greenberg assinala que, por mais que a exegese considere essa conclusão despropositada ou mesmo um clichê, ela não causa espécie ao leitor comum, já acostumado às muitas inversões e reveses de um texto que se estrutura por meio de um padrão de oposições. Integrado ao plano literário, o epílogo é uma confirmação da certeza de que Deus é o fundamento de sua existência, de sua fidelidade e de sua segurança antes, durante e depois da dor. 

2. Ler Jó na literatura: o Miserere, de Adélia Prado 

A poetisa mineira Adélia Prado possui, no repertório literário bíblico e nas múltiplas cosmovisões que ele engendra, o fundamento primeiro de sua criação literária. Ela realiza, como poucos autores na literatura brasileira, a percepção de Frye (2004, 9-22), segundo a qual a Bíblia impacta insuperavelmente a produção literária ocidental e, por consequência, a leitura crítica e a fruição estética dessa mesma produção. O lirismo de Adélia Prado não se funda, contudo, numa erudição exegética ou teológica, mas na recepção do repertório bíblico filtrado pela vivência religiosa cotidiana, partilhada junto de sua família e de sua comunidade local, na cidade mineira de Divinópolis. Villas Boas acrescenta que 

sua experiência de fé se dá no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como ‘vale de lágrimas’, um mundo que é marcado pela dor que é o próprio pecado, que, se não é parte da natureza humana, é parte da sua condição em que viver é doer (VILLAS BOAS, 2016, p. 390).

O lirismo pradiano assume caráter sapiencial, enquanto busca religiosa por sentido para a via prazerosa-dolorosa da vida, com todas as suas ilógicas contradições: 

A experiência poética permite alargar a hermenêutica da experiência de Deus, dando-lhe outra imagem, ajudando o ser humano a não se perder em meio à sua dor, provocando o desejo de Deus como resposta à vontade de sentido com uma imagem que faz sentido ao indivíduo contemporâneo. Resposta essa também para a angústia, reencanto da alegria de viver, sendo essa imagem recebida numa apropriação subjetiva, uma vez que o anseio a ser respondido emerge da própria subjetividade. A dimensão bíblica da tarefa poética pradiana, portanto, é de reinventar poeticamente a imagem de Deus na trajetória semântica do Antigo para o Novo Testamento (VILLAS BOAS, 2016, p. 391).

Publicados em 2013, os poemas de Miserere apontam para um amadurecimento do eu lírico pradiano. Como observa Alves (2014, p. 129), os temas recorrentes de sua lírica – o amor, o erotismo, a vivência da fé, o cotidiano com suas epifanias, a metalinguagem – confluem numa compreensão do sofrimento capaz de conferir-lhe um sentido transcendente. Esse movimento se dá numa clara relação de intertextualidade com a literatura sapiencial bíblica, particularmente com os salmos e com o Livro de Jó. 

Lidos à contraluz do Livro de Jó, os poemas de Miserere recusam alinhar-se com a sabedoria tradicional evocada pelas seções em prosa de Jó e pelos discursos de Elifaz, Bildade, Sofar e Eliú, mas com o pensador profundo que engendra em verso o grito do Jó impaciente e sofredor. Confira-se isso na voz do próprio eu lírico pradiano, no poema de abertura do livro, intitulado “Branca de Neve”:  

[...] 
Cheiramos mal, a maioria, 
e sofremos de medo, todos. O corpo quer existir, 
dá alarmes constrangedores. 
Me inclino aos apócrifos como quem cava tesouros. [...] 
O verdadeiro é sujo, 
Destinadamente sujo. 
Não são gentilezas as doçuras de Deus. [...] 
Demoro a aprender 
que a linha reta é puro desconforto. 
Sou curva, mista e quebrada, 
sou humana. Como o doido, 
bato a cabeça só pra gozar a delícia 
de ver a dor sumir quando sossego (PRADO, p. 9-10). 

Como o poeta profundo do Livro de Jó, Adélia também se rebela contra o senso comum de que Deus castiga os maus e premia os bons. O sofrimento está reservado para o homem porque o caos é humano: “cheiramos mal”, porque “o verdadeiro é sujo”; a pessoa humana é “curva, mista e quebrada”. É por meio da constatação dessa desordem profunda, no “seio da tempestade” (Jó 38,1), que se encontra Deus, com sua “delícia” e “doçuras” paradoxalmente unidas à experiência do “desconforto” e da “dor”. Essa aprendizagem não se adquire na catequese da “linha reta”, da ordem e do status quo a manter: é preciso vasculhar os “apócrifos”, a sabedoria que mostra que a ordem é “puro desconforto”, pois não fomos feitos para ela: o homem é “destinadamente sujo”, a despeito das invectivas iradamente conservadoras do jovem Eliú. Não é na placidez inalterável e inumana, mas é na dor indissociável do existir como homem que se faz a experiência mais viva de Deus conosco, Defensor, go’el que está vivo e ama-nos (cf. Jó 19,25): “É excruciante o amor,/ mas por nada no mundo trocarei sua pena” (PRADO, “A sempre- -viva”, p. 13). 

Em “A paciência e seus limites”, a epiderme lírico-amorosa do poema revela-esconde a substância mística de sua mensagem: 

Dá a entender que me ama, 
mas não se declara. 
Fica mastigando grama, 
rodando no dedo sua penca de chaves, 
como qualquer bobo. 
Não me engana a desculpa amarela: 
‘Quero discutir minha lírica com você.’ 
Que enfado! Desembucha, homem, 
tenho outro pretendente 
e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio 
que esse seu verso doente (p. 11). 

O eu lírico feminino queixa-se do amado que apenas “dá a entender” que a ama, “não se declara”, rumina a incerteza de amar (“fica mastigando grama”), mas sem deixar de querer se impor como quem detém o poder e manda (“rodando no dedo sua penca de chaves”). Um amor assim – se é que é amor – é “bobo”, não é digno de crédito, não deve ser levado a sério (“não me engana”). 

Os discursos vazios (“discutir minha lírica”, “verso doente”) não convencem, mas aprofundam o descrédito e o tédio, empurrando o eu lírico para “outro pretendente”. “Mais vale” ver o amado “cuspir no rio”, reafirmar sua presença viril, parceira, companheira, arraigada na realidade da vida. Esse lirismo amoroso, porém, abre-se em uma chave mística quando o título, numa obra flagrantemente intertextual com a sabedoria bíblica, traz a noção de “paciência” com seus “limites”. Evoca-se aí a imagem anedótica do Jó paciente, que logo se desfaz no tom crescentemente indignado dos primeiros versos, que culminam na exclamação “Que enfado!”. O eu lírico se cansa diante de um Deus que se propõe amoroso, mas que não dá provas desse amor: um Deus indeciso e indiferente, que se limita a afirmar sua onipotência por meio de uma teodiceia vazia e “boba”, nada convincente. Adélia Prado pede um Deus capaz de “cuspir no rio”, fazer-se próximo, companheiro no fluxo difícil da vida, representada pela metáfora fluvial. Basta de “versos doentes”, construtos meramente teóricos que oferecem uma abstração no lugar de um Deus vivo. A erótica mística de “A paciência e seus limites” evoca inevitavelmente o Cântico dos Cânticos, sobremaneira na leitura que lhe deu o poeta espanhol João da Cruz, em seu Cântico espiritual. 

No poema “Uma pergunta”, Adélia contempla como as pessoas olham com estranha revolta e dor para os pais que os geraram para a existência – analogia que pode ser estendida à relação entre os homens e Deus, simbolizada pela indignação do impaciente Jó. É humano irritar- -se contra quem nos lançou nessa cilada de existir, ainda que por amor: 

Vede como nossos filhos nos olham, 
como nos lançam em rosto 
uma conta que ignorávamos. 
Não cariciosos, convertem em pura dor 
a paixão que os gerou. 
Por qual ilusão poderosa 
nos veem assim tão maus, 
a nós que, tal como eles, 
buscamos a mesma mãe, 
concha blindada a salvo de predadores. (p. 17) 

No entanto, assim como Jó, Adélia proclama que a sabedoria consiste em entregar para Deus o que não se entende e cumprir o melhor que se pode as tarefas do cotidiano, como se lê no poema “Quarto de costura”: 

Um óvulo imaginado, 
espesso, fosco, amarelo, 
pólen e penugem 
que a mais potente das máquinas 
ainda não inventada 
abriria em universos. 
O que parece indivíduo é vários. 
Fosse boa cristã 
entregava a Deus o que não entendo 
e arrematava o bordado esquecido no cesto. 
Tenho labirintite. Amei Aristóteles com fervor. 
E por longo tempo deixei-o por Platão. 
Enfadei-me, saudosa de carne e ossos, 
acidez de sangue e suor. 
O que deveras existe nos poupa perturbações, 
sou uma vestal sem mágoas. 
Terei o que desejo, carregando minha cruz 
e morrendo nela. (PRADO, p. 21) 

A intertextualidade que se estabelece entre o Livro de Jó e Miserere atinge seu nível mais explícito no poema “Jó consolado”, em que o eu lírico divino, como que no epílogo de Jó 42,7-17, abraça o cansado homem, “miserável e eterno”, espicaçado de todas as dores da existência, mas certo de que nada vale mais a pena que a aventura de existir, a “excelsa vida”, com sua “cicatriz perfeita” de quem foi homem e não passou a vida em plácido repouso: 

Desperta, corpo cansado; 
louva com tua boca a cicatriz perfeita, 
o fígado autolimpante, 
a excelsa vida. Louva com tua língua de argila, 
coisa miserável e eterna, 
louva, sangue impuro e arrogante, 
sabes que te amo; louva, portanto. 
A sorte que te espera 
paga toda vergonha, 
toda dor de ser homem. (PRADO, p. 23)

Considerações finais 

A atualidade de Jó revive em Adélia, num mundo que tem tanta dificuldade para lidar com a dor, que já pouco grita contra Deus, mas não raro prefere abandoná-lo como uma hipótese desnecessária. Elifaz, Bildade e Sofar hoje travestem-se de comerciantes, artistas e publicitários, que nos oferecem o sagrado como remédio epidérmico do consumo para a dor de existir. Desde seus púlpitos midiáticos, prosseguem colocando a culpa no próprio e empobrecido Jó, que não teria se esforçado bastante ou empreendido o suficiente, que não teria pago os dízimos devidos para alcançar a retribuição de que necessita. O jovem Eliú veste-se de cores nacionais em vários países e sai gritando pelas ruas pedindo mais ordem, mais privilégio, mais exclusão, lamentando a incompetência de seus velhos antecessores em brandir a espada de um hipócrita conservadorismo moral. Dói para o crente viver num mundo assim: só lhe resta perseverar na fé de que seu “Redentor vive”, sem perder a esperança de encontrá-lo no seio de tão fechada tempestade. 

Referências

ALVES, J. H. P. De Bagagem a Miserere: a “inominável corisca poesia” de Adélia Prado. Scripta, Belo Horizonte, v. 18, n. 35, 2014: 125- 142. 

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010.

BÍBLIA DO PEREGRINO. São Paulo: Paulus, 2011. 

BINGEMER, M. C. Teologia e literatura: Afinidades e segredos compartilhados. Petrópolis: Vozes, 2015. 

FRYE, N. O código dos códigos: A Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo, 2004. 

GABEL, J. B.; WHEELER, C. B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2003 

GIRARD, R. A rota antiga dos homens perversos. São Paulo: Paulus, 2009. 

GREENBERG, M. Jó. In: ALTER, R.; KERMODE, F. (Org.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997. p. 305- 326. 

LÍNDEZ, J. V. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. 

LEVEQUE, J. Jó: O livro e a mensagem. São Paulo: Paulinas, 1987. 

MURPHY, R. E. Jó e salmos: encontro e confronto com Deus. São Paulo: Paulinas, 1985. 

NEWSON, C. The Book of Job: Introduction, commentary and reflections. In: The New Interpreter’s Bible Commentary. Nashville: Abingdon Press, 2015. v. 3, p. 17-270. PRADO, A. Miserere. Rio de Janeiro: Record, 2015. 

SANTOS, G. M. O demônio no corpo das palavras: O endemoninhamento do discurso em Lavoura arcaica. Dissertação (Mestrado). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2011. 

SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, L. Um caminho através do sofrimento: O Livro de Jó. São Paulo: Paulinas, 2011. 

TERRIEN, S. Jó. São Paulo: Paulus, 1994. 

VILLAS BOAS, A. Teologia em diálogo com a literatura: Origem e tarefa poética da teologia. São Paulo: Paulus, 2016. 

ZABATIERO, J. P. T.; LEONEL, J. Bíblia, literatura e linguagem. São Paulo: Paulus, 2011. 

Notas

[1] As citações bíblicas deste artigo são feitas a partir da Bíblia de Jerusalém (2010). 

[2] A distinção entre sabedoria tradicional e sabedoria em crise, realizada por Líndez (1999), foi incorporada a partir da síntese realizada por Santos (2011, p. 21-25), em sua dissertação de mestrado. 

[3] Aqui o Adversário é o precursor do Satã tardio, anjo cuja tarefa seria vagar pela terra e denunciar as transgressões humanas. 

[4] Mais uma vez um eufemismo para maldição ou blasfêmia. 

[5] Para René Girard, não se trataria de acusações fabricadas. Em A rota antiga dos homens perversos (2009, p. 6-15), o antropólogo francês apresenta Jó como a vítima sacrificial de uma comunidade inconformada com o acúmulo escandaloso e ilícito de riqueza de que o protagonista seria o expoente. Embora interessante e coerente com a cosmovisão de Girard, tal hipótese de leitura parece não ser corroborada pelo conjunto total do texto, levando-se em conta o contexto mais amplo do movimento sapiencial, como apreciado por Líndez (1999, p. 133-165). 

[6] A inversão entre as seções formadas entre os versículos de 1 a 4 e de 5 a 14, sugerindo ser a segunda continuação do discurso de Baldad e a primeira a intervenção irônica de Jó, encontra-se formulada, por exemplo, nos comentários de Terrien (1994, p. 205-209) e pelos tradutores-editores da Bíblia de Jerusalém (p. 832-833) e da Bíblia do Peregrino (p. 1107-1109). Já Schwienhorst-Schönberger (2011, p. 133-136) concorda com Greenberg, optando por lê-lo como uma justificativa teológica da incompetência das objeções de Baldad e de seus demais interlocutores. Newson (2015, p. 175-178) adota uma postura intermédia, também literariamente interessante, em que os versículos de Jó 26,5-14 seriam uma nova interrupção de Baldad na fala de Jó, que o interrompera para ironizá-lo, enriquecendo o aspecto dramático da interação entre as personagens. 

[7] Murphy indica que esse poema, “com toda a sua singularidade e beleza, apresenta- -se separado, em relação ao capítulo anterior e ao seguinte, mostrando-se completo em si mesmo. No texto masorético, não há nenhuma introdução, e, por isso, era encarado como parte do discurso de Jó. Os comentaristas geralmente o encaram como inserção posterior, feita pelo autor ou outros, já que parece uma composição independente, e ainda porque aborda um novo ponto de vista: ‘Onde deve ser encontrada a Sabedoria?’ [...] O estilo é calmo. O tópico sobre a personificação da sabedoria está na tradição de Provérbios 8 e de Eclesiástico 24” (1985, p. 89). 

[8] Aqui se inverte a teleologia antropológica que se observa em Gn 1 e em seus ecos, o Sl 8 e o Sl 104: para Jó, Deus já não mais apresenta o homem como o píncaro da criação.