Wallace de Gois Silva *
*Mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, na Área de Linguagens da Religião / Teologia e Cultura. wallacegois@aol.com
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Resumo:
A teologia é um saber interdisciplinar, e envolve questões da profundidade da existência. No Primeiro e no Segundo Testamentos, saúde é shalom: inteireza, paz, bem-estar. É plenitude de vida diante de Deus e das pessoas. Esse testemunho ilumina noções teológicas como a que propõe Paul Tillich sobre saúde, cura e doença, isto é, uma perspectiva da integração do ser humano a si mesmo e ao todo, para superar a alienação existencial e a angústia patológica, objetivo que pode ser alcançado por meio da cooperação entre as especialidades médicas, as áreas psi e o ministério religioso, que atuam em conjunto com o divino na superação das ambiguidades e da finitude que ameaçam o ser. Citações poéticas de Rubem Alves, Adélia Prado e Clarice Lispector emprestam importante sentido existencial, literário, vivencial à reflexão pela integridade. Nesse sentido, a comunidade religiosa é pensada como ambiente terapêutico, que acolhe a pessoa, restaura-lhe a integridade e promove o encontro com a Presença Espiritual – a mesma que fortalece o indivíduo a tornar-se novo-ser – e a experimentar a vida no Espírito, que integra todas as dimensões e as cura, ainda que diante das doenças, da finitude, da consciência da morte.
Palavras chave: saúde, teologia, integridade, existência, novo-ser
Abstract
Theology is an interdisciplinary knowledge and involves matters of the depth of existence. In both First and Second Testaments, health is shalom: wholeness, peace, well-being, it is fullness of life before God and people. This testimony illuminates theological notions such as that proposed by Paul Tillich on health, cure, and disease, i.e., a perspective of the integration of the human being with themselves and with the whole, to overcome existential alienation and pathological anguish, an objective that can be achieved through cooperation between medical specialties, the psi areas and the religious ministry, which work together with the divine in overcoming the ambiguities and finitude that threaten the being. Poetic quotations Rubem Alves, Adélia Prado and Clarice Lispector provide an important existential, literary, experiential meaning to reflection for integrity. In this sense, the religious community is conceived as a therapeutic environment, which welcomes the person, restores their integrity, and promotes the encounter with the Spiritual Presence – that who strengthens the individual to become a new being – and to experience life in the Spirit, who integrates all dimensions and heals them, even in the face of disease, finitude, the awareness of death.
Keywords: : health, theology, integrity, existence, new-being
“Um médico e um pastor evadido têm muitas experiências a compartilhar”
Rubem Alves (2006)
Acrônica de Rubem Alves é tão sóbria quanto engraçada. Enquanto escrevia para a Folha de S. Paulo, ele aceitou o convite de um amigo médico para tecer pequenas reflexões sobre ética na relação médico-paciente. O teopoeta encarnava tão bem a palavra que, após narrar o diálogo entre um médico e uma paciente no leito de morte, teve de se explicar na edição seguinte: “Estou bem de saúde...” (ALVES, 2006). Conquanto tenha deixado o ministério pastoral profundamente ferido pelo ambiente religioso, não perdera o dom da palavra nem a sensibilidade pela experiência humana da finitude, da esperança, da cura.
De fato, muito a teologia tem para aprender e partilhar com os saberes especializados na saúde física, mental ou espiritual. A lição que o professor Rubem deixa é conjugar teoria, poesia e corporalidade na direção de um fazer teológico pela inteireza da vida, ainda que a finitude seja uma ameaça constante. A leveza sóbria de Rubem Alves provoca a enxergar possibilidades criativas, até em face de condições adversas:
“Pensar é estar doente dos olhos”, disse Alberto Caeiro. Os olhos do poeta tinham de estar doentes porque, se não estivessem, o mundo seria mais pobre e mais feio, porque o poema não teria sido escrito. Porque estavam doentes os olhos de Alberto Caeiro, um poema foi escrito e, por meio dele, temos a alegria de ler o que o poeta escreveu. O corpo produz a beleza para conviver com a doença. (ALVES, 2000, p. 81-3)
Por falar em (falta de) saúde, lembro da faculdade de teologia onde suscitavam-se debates nas aulas de sociologia e antropologia da religião, e avaliávamos que os grupos e religiões que oferecem curas e milagres atraem muita gente. Seria porque prometem solução para a profunda necessidade humana de plenitude? Mediando o aprendizado, a professora ponderava que, por exemplo, a incapacidade de o sistema brasileiro de saúde pública atender as demandas, especialmente dos mais pobres, expõe a ferida social que as denominações religiosas se propõem, bem ou mal, a sarar.
É bem verdade que muitos abusos e oportunismos se assomam em cenários caóticos, até mesmo por parte da religião. Todavia, o fazer teológico, para ser relevante e responsável, deve tomar a saúde, a doença e a cura, não somente como partes da discussão, mas de sua práxis.
Por isso, o presente artigo se propõe a revisitar a ideia, tão utilizada por Tillich, de autointegração em face da angústia, e a ensaiar um diálogo com a perspectiva de shalom na literatura bíblica. Partindo da tradição hebraico-cristã, a passagem seguinte é pela contribuição tillichiana sobre saúde, comunidade e espiritualidade, sempre na perspectiva auto/ integradora, ou seja, da plenitude.
O momento histórico que abre os anos 2020 é, infelizmente, oportuno, pois a raça humana se defronta, como há muito não ocorria, com a doença e a finitude em escala mundial. Epidemias estouram, são agravadas ou irmanadas pelas pestes biológicas e pela ansiedade generalizada. Mas, independentemente da ocasião, saúde é matéria que nos toca, irradia-se, como quando se choca o dedo mínimo contra um móvel.
Dito de outro modo, a preocupação com a integridade mais se eleva quando se prova a falta dela, nos pequenos incômodos ou nos traumas e doenças complexas1 . O temor se sobressai ante à certeza da morte ou das incertezas constantes do desamparo e da angústia que permeiam a existência.
Nos dois Testamentos das Escrituras, saúde é shalom: inteireza, paz, bem-estar, plenitude de vida diante de Deus e das pessoas. Essa perspectiva ilumina noções teológicas como a que propõe Paul Tillich (1886-1965): saúde, cura e doença na perspectiva da autointegração do ser humano. Autointegrar-se é vencer a alienação existencial e a ansiedade patológica, processo que pode em muito ser ajudado pela ação conjunta entre as especialidades médicas, as áreas psi e o ministério religioso, pois eles, diz Tillich, cooperam com o divino, socorrem os humanos no lidar com as ambiguidades e a finitude que ameaçam o ser.
A autointegração participa da multidimensionalidade da vida, ao lado da “autocriação” e da “autotranscendência”, como explica Etienne Higuet:
Enquanto atualização das potencialidades do ser, a vida é a unidade multidimensional de três funções. A função de autointegração, baseada na polaridade da individuação e da participação, consiste num movimento de saída de um centro – sem perder esse centro – e de volta para ele, integrando os conteúdos acumulados na fase da mudança. A função de autoprodução ou autocriação conduz a vida na direção do novo, pelo crescimento do indivíduo centrado e pela criação de novos centros. Enfim na função de autotranscendência, a vida supera sua própria finitude na dimensão do espírito, por meio da experiência do sagrado. (HIGUETE, 2014, p. 169)
Teólogo do mundo moderno, Tillich vê na existência humana, e suas peculiaridades, ponto crucial para pensar a divindade. Por isso asseverou ser essencial uma ação conjunta entre as áreas do saber, incluso o teológico:
A profissão médica tem o propósito de ajudar o homem em alguns de seus problemas existenciais; aqueles que usualmente são chamados enfermidades. Porém ela não pode ajudar o homem sem a cooperação permanente de todas as outras profissões cujo propósito é ajudar igualmente o homem como homem. (TILLICH, 1999, p. 56)
Eis a importância e o papel da comunidade religiosa, de seus agentes, ministras, sacerdotes. Também de profissionais da saúde, que praticam um verdadeiro “sacerdócio universal” a serviço da salvação/cura. A comunidade é ambiente terapêutico, que acolhe a pessoa, restaura-lhe a integridade e promove o encontro com a Presença Espiritual – a mesma que fortalece o indivíduo a tornar-se novo-ser – e a experimentar a vida no Espírito, que integra e cura todas as dimensões, ainda que diante das doenças e da consciência da morte.
Em Teologia Sistemática (TILLICH, 2005), a igreja formula sua teologia no encontro com o texto bíblico, sua fonte básica para elaborar ideias e práticas teológicas, em diálogo com a história, a filosofia, a arte, a tradição. Logo, têm imenso valor as experiências religiosas e espirituais em torno das escrituras, desde que, em primeiro lugar, não sejam limitadas àquela leitura fundamentalista, mas abordada com a disposição de quem ouve a mensagem que a Bíblia contém (TILLICH, 2005, p. 22), é esta mensagem que deve vir ao encontro da existência. Jesus de Nazaré foi sendo cada vez mais reconhecido como o Cristo por seus seguidores e discípulas, pois nele encontraram respostas aos dilemas da experiência concreta. E é ali, na relação vida-escritura, que a fé cristã descobre sentido.
De fato, Primeiro e Segundo Testamentos discutem o lugar da ação de Deus e da responsabilidade humana a esse respeito, demonstrando ser a saúde uma inquietação constante e profunda. Em contrapartida, o testemunho da Bíblia inspira a experimentar o potencial salvífico e curador de uma religiosidade que reúne mente e corporalidade, subjetividade e relações sociais, sanando enfermidades e condições que obstruem o pleno viver.
Isto posto, consideremos, de saída, a ideia integradora de “unidade multidimensional da vida”, noção que, de acordo com Tillich,
é especialmente clara na saúde, na enfermidade e na cura. [...]. Todas as dimensões da vida estão incluídas em cada um deles. Saúde e doença são estados da pessoa como um todo; são “psicossomáticas”, como o indica de modo incompleto um termo técnico contemporâneo. A cura deve se dirigir à pessoa toda. (TILLICH, 2005, p. 716)
Os saberes científicos tendem a se afunilar em especializações exclusivistas, mas o convite de Tillich ainda alcança nossa época para que o aprofundamento do conhecimento não faça dissipar a noção de todo.
Há, por certo, aprendizado e contribuição, inclusive à fé, nas muitas ciências, especialmente para o fazer teológico e para a prática missional. Se o objetivo é alcançar a integridade, a noção tillichiana de multidimensionalidade requer a consciência de que seres humanos vivem a ambiguidade entre estarem doentes e saudáveis, numa ou noutra área, ou simultaneamente.
Para o teólogo alemão, a existência, por sua complexidade, tem na doença “um sintoma da ambiguidade universal da vida”, pois “uma tendência autodestrutiva está implicada no processo criativo da vida; o processo integrativo está ameaçado de desintegração.” (HIGUET, 2014, p. 170).
“Nunca as Sagradas Escrituras foram tão salvadoras quanto neste momento.”
Adélia Prado (2020)
Confessou a poetisa octogenária numa entrevista, em abril de 2020 (GABRIEL, 2020), no interior de um rigoroso isolamento social por causa da pandemia do século. Naquele momento, segundo ela, estivemos com a “consciência aguilhoada”, forçada à reflexão e ao recolhimento propício da Quaresma, diga-se de passagem. Da janela sempre observou o mundo, o sagrado, o poético, a vida cotidiana. Reza, escreve, suspira, vê a luz. Adverte, contudo, convicta: é tempo de ler a Bíblia. E Adélia é isto: “lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei, não dos homens, mas de Deus”, dizia seu amigo Carlos Drummond de Andrade (PRADO, 2017, p. 481).
Muitas pessoas religiosas se identificariam com sua poesia, ainda mais quando versa sobre o divino, a experiência corporal, as Escrituras. Fonte de consolo que transcende a limitação humana, as sagradas letras são, também, registro da humanidade que nos antecede e da qual ainda somos parte.
Segundo Tillich: “A Bíblia é tanto um evento original quanto um documento original; ela dá testemunho daquilo de que é parte.” (TILLICH, 2005, p. 51). Nesse sentido, ela guarda e registra vivências, rascunhos, impressões de gentes de diversas origens que se denominaram “povo de Deus” ao acolherem a revelação daquela Presença Divina. Ainda que a reconstituição arqueológica apresente inúmeras fragilidades, importa- -nos buscar entender a teologia, isto é, o que diziam os seres humanos sobre si mesmos e sobre o divino, ressignificando e contextualizando o que chegou até aqui, sempre à luz da vida, da fé, da razão, da experiência espiritual: ler a Bíblia em nosso tempo.
Em termos bíblicos, a noção de integridade remete ao conceito hebraico de shalom, normalmente traduzido por “paz”, embora vá muito além:
é uma palavra muito rica, significando uma série de atitudes e desejos do ser humano. Paz significa integridade da pessoa diante de Deus e dos outros. Significa também uma vida plena, feliz, abundante (Jo 10,10). [...] é sinal da presença de Deus [...] (Jz 6, 24; Rm 15,33). (MESTERS; OROFINO; LOPES, 2015)
Shalom excede o entendimento comum de paz. De fato, nas mais de 250 vezes em que aparece no texto hebraico, em “quase dois terços de suas ocorrências, shālôm descreve o estado de plenitude e realização, [...] resultado da presença de Deus.” (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1573 apud RUBINI, 2015, p. 32). A língua portuguesa carece de palavra que traduza totalmente o significado, mas o termo aspira completude, saúde, prosperidade, segurança, tranquilidade, abundância. O sentido se complementa, ainda, na raiz shālēm como inteireza, preservação, harmonia, realização.
Na versão grega da Bíblia Hebraica – a Septuaginta – shalom é traduzido por hyguiés (“saúde”), mas é utilizado também como “paz” (Js 10,21), “sarar”, “curar” (Is 38,9.21), evidenciando “a relação intrínseca entre vida biológica e vida diante de Deus (ver também Os 6,2 e Ecl 30,14)” (REIMER, p. 42). Visto ser a versão das escrituras disponível no primeiro século, a forma e a compreensão grega se somarão à judaica nos escritos cristãos (Mc 5,34; Mt 12,13; At 4,10). Jesus a utiliza em sentido metafórico, como em Lc 5,3: “Os que têm saúde não precisam de médico, mas sim os doentes” (NTLH).
O deuterocanônico Eclesiástico (38,1-21), composto no período helenístico, faz um “louvor à saúde”, erigida acima de qualquer riqueza. Recuperar a saúde, naquele contexto, era dádiva de Deus, de quem provinham também o médico e a medicação. Mesmo estando ainda sob um manto de sacralidade, a influência helênica na comunidade judaica já cindia as práticas religiosas das terapêuticas (REIMER, p. 42).
Nas orientações rituais da Torá, preocupações sanitárias com o culto mesclam-se a uma dimensão sagrada da integridade dos corpos social, religioso e individual, prezando por longevidade e fertilidade, tanto da terra como dos animais e humanos. Rememoram relatos ancestrais, da Criação e da peregrinação pelo deserto, para estabelecer diretrizes à comunidade que se reunia em torno da divindade israelita. Saúde e doença eram resposta direta de Deus às ações humanas. Em verdade, as regras sacro-salutares da Torá sobre alimentação, higiene, vestimenta, relações sexuais e sociais, de tão importantes, se tornariam uma marca identitária do povo judeu.
A sabedoria proverbial e poética, especialmente na novela de Jó, dá voz ao sofrimento e à angústia na forma de prece, cântico, prosa, poesia, salmos.
Por meio desses poemas, o ser humano exprime diante de Deus sua angústia, sua súplica, sua sede, seu louvor, sua gratidão e alegria. Enquanto texto bíblico, é, também e ao mesmo tempo, palavra de Deus que acolhe, consola e afaga, mostra sua misericórdia, mas também sua intolerância com a perversidade e a duplicidade de coração (Sl 12,2) (TORQUATO).
Igualmente, a boca dos profetas clama por justiça e retidão, verbaliza o imperativo do cuidado aos pobres e às excluídas, sempre à luz da consequente retribuição da divindade que restaura a integridade às pessoas, à comunidade, à nação que a obedece.
Como observa Hasel,
a visão do Antigo Testamento sobre “cura” [...] está diretamente relacionada à restauração daquele abrangente estado [inicial] de bem-estar e relacionamento pacífico com Deus, com o eu, com os semelhantes e o meio ambiente, compreendidos no conceito holístico de “saúde” do AT. (HASEL, 1983, p. 197, tradução nossa)
A ideia de shalom/shalem é fortalecida no contraponto com palavras hebraicas como hala’ (2Cr 16,12) e halã (1Rs 15,23) que denotam, respectivamente, “enfermo/doente” e “fraco/adoentado” (UITTI, 1991, p. 48).2 Uitti elegerá como temas-chave de leitura das Escrituras hebraicas os conceitos de self (o “eu”, o indivíduo corporificado em corpo/alma), shabbat (sábado, como mandamento a lembrar do passado de escravidão para não repeti-lo; e como criatividade divina e humana) e shalom, todos na perspectiva da integridade:
O conceito do self hebraico indica [...] totalidade e indivisibilidade do ser individual e social. O impulso por trás [da ideia] do shabbat como uma instituição pode, assim esperamos, inspirar a encontrar motivação renovada e oportunidades para a libertação re-criativa periódica e contemporânea de tudo o que nos invade e limita nossa real integridade. E, finalmente, o rico conceito de shalom pode despertar em nós o anseio e o empenho pela visão mais fundamental de todas. (UITTI, 1991, p. 57, trad. nossa).
No dizer da teóloga Ivoni Richter Reimer (2021, p. 25), com “grandes dificuldades, os evangelhos, [...] ‘nascem’ no seio de comunidades cristãs, como narrativa testemunhal a partir da fé vivenciada e da práxis vivida.” Por serem escritos pós-pascais, são registros do Jesus de Nazaré, crido por muitos como o Messias prometido. Revelam a perspectiva de comunidades cristãs diversas e plurais, ainda em formação, naquela sociedade mediterrânea do século 1, e que se viam representadas nas narrativas. Reimer explica que, em si,
Os textos não são aquilo que aconteceu, [...] [mas] estão embutidos de intenções e efeitos narrativos [...]. Enquanto narrativas elaboradas subjetivamente, que pretendem ser verdadeiras, elas apresentam versões sobre fatos realmente acontecidos, procurando dar respostas para necessidades atuais. (REIMER, 2021, p. 58)
É por isso que importa tanto observar o sentido teológico do testemunho do povo da Bíblia enquanto ferramenta que ressignifica a realidade, traz à memória o que dá esperança (cf. Lm 3,21). Assim, achar-se-á no querigma, isto é, na Palavra celebrada no texto, o sentido existencial que conforta, desafia, inspira uma experiência integral do ser.
Fenômenos místicos e práticas de curas, muito frequentes no texto bíblico, ocorreram também em diversas outras culturas, épocas e circunstâncias, inclusive “no Mediterrâneo antigo, em particular em contextos camponeses e populares entre judeus, gregos e romanos [...]. Doenças e dores eram atribuídas a causas espirituais e ligavam-se à exclusão do convívio social” (REIMER, p. 7).
Em tal contexto, faz todo sentido que, por exemplo, o “exorcismo pode ser compreendido como narrativas carregadas de emoção, da perspectiva dos subalternos, cujo objetivo é [o] reimaginar do espaço social livre da opressão social e da ocupação militar romana” (REIMER, p. 7).
Então, não é de estranhar a “acusação a Jesus de práticas mágicas, de Belzebu”, sugerindo que taumaturgos como o Nazareno, que empoderava pessoas traumatizadas e excluídas, eram “vagabundos, charlatães ou criminosos, todos desviantes e desrespeitadores de normas” (REIMER, p. 7). Nos evangelhos, de fato, as curas operadas por Jesus e seus discípulos eliminavam fatores de exclusão social e religiosa, e sinalizavam a operação de um Reino que já estava entre eles, mas que ainda teria muito a realizar.
Por sua vez, nas cartas apostólicas, a questão da saúde aparece, literalmente, no indivíduo que enfrenta a enfermidade (Fp 2,27), e na distinção da “sã doutrina” (Tt 2,1), isto é, entre o “ensino saudável”, e as filosofias gnósticas (Cl 2,8) e dos grupos judaizantes que dicotomizavam o humano, reproduziam relações sociais opressoras, legalistas, excludentes. O epistolário também denuncia a valorização das riquezas em detrimento dos dons espirituais, inclusive o de curar (1Co 11 e 12); de igual modo, censura as crenças idolátricas em poderes e coisas terrenas usurpando o lugar do Deus onipresente (Rm 1,25), reduzindo-o à forma do imperador3 e a seus “principados e potestades” que emulavam uma paz que nunca poderiam efetivamente realizar.
“A prova de que estou recuperando a saúde mental, é que [...] cada minuto [...] eu me permito mais liberdade e mais experiências. E aceito o acaso. Anseio pelo que ainda não experimentei. [...] Estou felizmente mais doida.”
Clarice Lispector (1978)
Lispector, como Tillich, escreve mergulhando nos mistérios do existir, das situações vivenciais, corporais. Do vazio, da esperança, da ambiguidade, do arbitrário, das decisões. Todas emergem (ou pelo menos permeiam) a preocupação mais profunda, a que o teólogo chama de fundamento religioso.4
Tillich concebe a cura no sentido evangélico de salvação, acontecimento que se desdobra no tempo e na história. Ela extrapola o campo das ideias ou da contemplação:
Salvação se deriva de salvus, “saudável” ou “completo”, e pode ser aplicada a todo ato de cura: à cura da doença, da possessão demoníaca, da servidão ao pecado e ao poder último da morte. A salvação, neste sentido, ocorre no tempo e na história, assim como a revelação. (TILLICH, p. 156)
Contudo, é preciso ressaltar que, em Tillich, a salvação é, sim, descrita como cura, “mas não como cura total e absoluta, pois é algo relativo, isto é, o ser inteiro, total, é curado mas a cura em si mesma não é total ou absoluta.” (PEREIRA, 1999, p. 89). É despropósito pressupor o ser humano particionado, como se as dimensões da vida fossem áreas independentes e desligadas. Entretanto, cura plena não se caracteriza como total ausência de doenças, angústias ou, tampouco, da morte.
Em A coragem de ser (TILLICH, 1992), o temor permanente é, justamente, a impossibilidade de realização plena do indivíduo, ou de sua cura definitiva quando confrontado pelas doenças; esta é a constante ameaça do “não-ser”, que cerceia, limita, intimida a potência de ser. Tal ameaça se manifesta absoluta na morte – extinção definitiva do indivíduo –, e de forma relativa na ameaça do “destino”, isto é, das contingências como imprevistos, acidentes, carências, necessidades, instabilidades etc. que desafiam cada aspecto da vida.
No artigo The meaning of health (O significado de saúde), de 1961, Tillich aponta a perene ambiguidade entre saúde e doença, visto que
O conceito de saúde não pode ser estabelecido sem relação com o seu oposto – a doença. Mas, não se trata apenas de um problema de definição. Na realidade, saúde não é saúde sem que haja a possibilidade essencial e a realidade existencial da doença. Nesse sentido, saúde é a doença desbaratada, o positivo eternamente vencendo o negativo. Este é o sentido teológico mais profundo da medicina. (TILLICH, 1961, p. 100, trad. nossa)
Seja como for, parece-nos que a ameaça de não-ser alimenta a ansiedade (no alemão Angst, i.e., angústia, temor), que pode chegar a níveis patológicos. Ela “é onipresente e produz ansiedade mesmo onde uma ameaça imediata de morte está ausente. [...] Está por trás dos ataques que sofre nossa potência de ser, no corpo e na alma, por parte da fraqueza, enfermidade e acidentes.” (TILLICH, 1992, p. 37).
Eis a razão pela qual, segundo Etienne Higuet, Tillich afirma que reconhecer tal condição é um caminho para superá-la: “Solidão e insegurança, alienação, doença e morte são constantemente superados na medida em que são voluntariamente aceitos como a herança de todas as criaturas.” (HIGUET, p. 174). A complexa escrita tillichiana faz parecer mais fácil vencer a ambiguidade que compreendê-la. Talvez seja possível. É preciso, portanto, “coragem” para se autoafirmar apesar das limitações erigidas pelo não-ser e pelo destino:
A coragem não afasta a ansiedade. Uma vez que a ansiedade é existencial, não pode ser afastada. Mas a coragem incorpora a ansiedade de não-ser dentro de si. Coragem é autoafirmação “a despeito de”, a saber: a despeito de não-ser. Aquele que age corajosamente toma, em sua autoafirmação, a ansiedade de não-ser sobre si mesmo. (TILLICH, 1992, p. 52)
Em sua eloquência interdisciplinar, chama atenção para dois tipos de angústia: a existencial e a patológica ou neurótica. A elas, dizia o teólogo, o olhar de ministros religiosos e profissionais da saúde falhava em observar, pois “relutantes em cuidar da ansiedade neurótica como atendem à enfermidade do corpo, quer dizer, como um objeto de ajuda médica.” (TILLICH, 1992, p. 57). Numa visão holística do ser humano, males como a angústia patológica não seria considerado algo fora do corpo, desintegrada da biologia, abstrata, etérea.
Tillich insiste em distinguir a angústia existencial (uma versão não doentia), inerente à condição humana, que não deveria ser passível de medicalização:
O psiquiatra, que afirma ser a ansiedade sempre patológica, não pode negar a potencialidade da doença na natureza humana, e tem que levar em conta os fatos da finidade, dúvida e culpa em cada ser humano; tem que, em termos de sua própria pressuposição, levar em conta a universalidade da ansiedade. Não pode evitar a questão da natureza humana, uma vez que praticando sua profissão ele não pode evitar a distinção entre saúde e doença, ansiedade existencial e patológica. (TILLICH, 1992, p. 56).
A cura é sempre fragmentária, limitada a uma doença e à própria finitude. Contudo, além de saúde e doença guardarem uma relação dialética – a cura/adoecimento de uma dimensão pode adoecer/curar outra dimensão e vice-versa – existe também a “impossibilidade de qualquer tipo de terapia salvar o ser humano da necessidade da morte e, por conseguinte, da necessidade [...][de] encontrar a sua preocupação última e incondicional (Higuet, 1999).” (SILVA; HOLANDA, 2010, p. 79)
Ficam postos os limites terapêuticos das especialidades biológicas, psicoterapêuticas ou religiosas, mas Tillich arrisca dizer que “o ministro, ou outra pessoa qualquer, pode tornar-se um auxiliar do médico” e “irradiar poder de cura para a mente e para o corpo e ajudar a remover a ansiedade neurótica” (TILLICH, 1992, p. 58).
“Aprendi que hoje as pessoas procuram os terapeutas por causa da dor de não haver quem as escute. Não pedem para ser curadas de alguma doença. Pedem para ser escutadas. Querem a cura para a dor da solidão.”
Rubem Alves (2012)
Nas narrativas cristãs, o Nazareno envolvia pessoas para tomarem parte na operação de milagres, na libertação de gentes oprimidas, doentes ou em vulnerabilidade. Depois, as agregava ao círculo da comunidade de salvos, isto é, de pessoas curadas ao se encontrarem com a Presença Espiritual. Tudo isso porque os
processos terapêuticos pressupõem uma relação interpessoal de fé/confiança entre a pessoa doente/possessa e a divindade/seu agente. Nisto se reflete não apenas o poder divino de perdoar e curar, mas também a importância e a abrangência de poderes em relação: a fé é uma expressão de poder que, intercedendo, articula e ‘libera’ o poder (dynamis) da divindade/seu representante, possibilitando uma poderosa dinâmica de libertação e superação do Mal. Esta relação de poderes articulados entre pessoa doente/possessa, a coletividade e a divindade é que atua também na (re)construção de identidades após a cura. (REIMER, p. 76)
Infere-se que a dinâmica neotestamentária do milagre não é apenas a intervenção divina ou a tentativa humana de induzir magicamente a ação do transcendente. Parecia estar, como dito acima, na relação de poderes, na confluência de forças e intenções.
Se a visão de Tillich soa idealista, em que integrar-se ao ambiente da comunidade, inclusive religiosa, terá grande poder curativo, tal como foi entre os primeiros cristãos e cristãs, também recorre à corporalidade da experiência de alteridade, e ao senso de pertença a um todo, caracterizados como terapêuticos:
Só pelo contínuo encontro com outras pessoas é que a pessoa se torna e permanece uma pessoa. O lugar deste encontro é a comunidade. A participação do homem na natureza é direta, tão longe quanto ele é uma parte definida da natureza através de sua existência corporal. (TILLICH, 2005, p. 70)
A vivência coletiva do religioso, nos espaços em que se busca a realização do encontro com a questão mais profunda é, para Tillich, fundamental. Mais ainda se se pressupõe, como Tillich, religião como espaço de inclusão, cujo potencial de cura superaria até mesmo a terapia medicinal. É aí que ela se torna reflexo do que Deus, por graça e amor, opera em cada pessoa, e desemboca em acolhida de si e das outras; é o ponto em que, nas palavras do teólogo,
a “aceitação de ser aceito” religiosa transcende a cura médica. A religião apela para a fonte básica do poder que cura pela aceitação do inaceitável, apela para Deus. A aceitação por Deus, seu ato que perdoa ou justifica, é a única e fundamental fonte de uma coragem de Ser que é capaz de incorporar a ansiedade da culpa e condenação. (TILLICH, 2005 p. 138).
Tomar parte nos processos, perceber-se indivíduo e corpo, permite ir mais adiante do que meramente ser qualificado por teorias “epistemológicas”: o sujeito está em busca de conquistar espaços – sejam físicos ou sociais e culturais – e preservá-los. Considerando isso, sentencia Tillich, “Não ter espaço significa não-ser. Assim, em todos os domínios da vida, a luta por um espaço é uma necessidade ontológica. É uma consequência do caráter espacial do ser finito e uma qualidade da bondade criada. E finitude, não é culpa.” (TILLICH, 2005, p. 203)
O processo terapêutico, portanto, se assemelharia à libertação de que Jesus falava, e esta não pode se sobrepor à premissa holística de “que cada parte e cada função que constitui o ser humano como um eu pessoal participa de sua liberdade. Isto inclui também as células de seu corpo, na medida em que participam da constituição de seu centro pessoal.” (TILLICH, 2005, p. 193), e prossegue: “Quando tomo uma decisão, é a totalidade concreta de tudo o que constitui meu ser que decide, e não um sujeito epistemológico. Isto se refere à estrutura corporal, aos impulsos psíquicos e ao caráter espiritual.” (TILLICH, 2005, p. 194)
Nesse horizonte, o sofrimento no qual se encontra sentido pode ser agregador para o sujeito – e, talvez, seja esta a tarefa da comunidade que anseie ser terapêutica – uma vez que experienciar a dor e a delícia da finitude (e não sentir culpa nisso) é uma forma de assimilar o sofrimento, assumi-lo como intrínseco à complexidade da existência. O ser espiritual absorve a angústia e a torna crescimento. Vence-se, assim, o pecado, a alienação. No dizer de Tillich,
[...] podemos falar do tipo de sofrimento em que podemos perceber um sentido, em contraste, por exemplo, com o sofrimento que carece de sentido. O sofrimento tem sentido na medida em que reclama proteção e cura no ser que é atacado pela dor. Ele pode mostrar os limites e as potencialidades de um ser vivo. Se o sofrimento desempenha ou não essa função depende certamente do caráter objetivo do sofrimento, mas depende também da forma como é suportado pelo sujeito que sofre. (TILLICH, 2005, p. 364)
Ainda pensando a relação do ser com as limitações próprias dos humanos, Tillich dirá que o encontro com o divino, com o mistério, é possível justamente por causa do “estigma da finitude”, do “choque” que a ameaça do não-ser provoca. Mais do que inerente, é um
elemento necessário da revelação. Sem ele, o mistério não seria mistério. Sem o “eu estou perdido” de Isaías em sua visão vocacional, não pode haver experiência de Deus (Is 6.5). Sem a “noite escura da alma”, o místico não pode experienciar o mistério do fundamento. (TILLICH, 2005T, p. 123).
É nesse bojo que, em contraste com a negatividade – com aquilo que falta –, que a positividade poderá aparecer na forma de potencial, do que pode vir a ser. A revelação se dá exatamente quando a nossa mais profunda preocupação se manifesta. Também a própria natureza é mediadora da revelação, ou em termos tillichianos, há inúmeros “meios naturais de revelação”, tantos que formam
uma constelação de caráter revelatório: os movimentos do céu, a mudança do dia e da noite, o crescimento e o declínio, o nascimento e a morte, as catástrofes naturais, as experiências psicossomáticas, tais como a maturação, a doença, o sexo, o perigo. (TILLICH, 2005, p. 131).
Revelação, como dirá mais adiante em sua Teologia Sistemática,
não é uma informação a respeito de coisas divinas; é a manifestação extática do Fundamento do Ser em acontecimentos, pessoas e coisas. Estas manifestações têm o poder de abalar, transformar e curar. São eventos salvíficos em que está presente o poder do Novo, embora ele só esteja presente de forma preparatória, fragmentária e sempre suscetível à distorção demoníaca. Mas está presente e cura onde quer que seja realmente aceito. A vida da humanidade depende destas forças de cura, porque elas impedem que as estruturas autodestrutivas da existência mergulhem a humanidade numa aniquilação completa. (TILLICH, 2005, p. 451)
Quer dizer, a revelação não vem de uma força totalmente estranha, pelo contrário, as mais triviais condições da natureza, inclusive do nosso corpo, são importantes canais de comunicação do mistério, do desvelamento divino ao mundo. Espiritualidade, então, não se reduz a uma prática ascética ou daquele “espírito” imaterial, recolhido ao mundo das ideias. Há que se superar essa dicotomia, a sobreposição idealista do espírito ou da alma sobre o corpo, pois
O espírito não está em contraste com o corpo. A vida como espírito transcende a dualidade de corpo e mente. Transcende também a triplicidade de corpo, alma e mente, em que a alma é o poder vital concreto e a mente e o corpo são suas funções. A vida como espírito é a vida da alma, que inclui a mente e o corpo, mas não como realidades ao lado da alma. O espírito não é uma “parte”, nem uma função especial. É a função oniabrangente em que participam todos os elementos da estrutura do ser. (TILLICH, 2005, p. 255-6)
Tendo em mente que a angústia provocada pelo destino (entenda- -se contingências que se impõem e antecipam, de certa forma, o temor da morte que intensifica a ameaça do não-ser), Tillich retorna à Bíblia e atribui certa complementaridade entre o destino e a liberdade de ação:
O Novo Testamento leva muito a sério o elemento de destino na descrição do Cristo. Sua hereditariedade e sua existência corporal constituem objeto de especulação e investigação nos evangelhos sinóticos. Jesus não está isolado; ele é o elo central na cadeia das revelações divinas. [...] Nos textos bíblicos, mencionam-se muitos fatores que contribuem para determinar o destino de um ser humano. O que acontece a Jesus é sempre uma consequência de seu destino, mas também é um ato de sua liberdade. (TILLICH, 2005, p. 418)
Nesse sentido, pretende conectar a experiência de Jesus à nossa, elencando os aspectos inerentes à vida humana na esteira da vida de Jesus:
Como todo ser humano, Jesus experimenta a ameaça da vitória do não-ser sobre o ser, como por exemplo nos limites do tempo de vida dado a ele. Como todos os seres finitos, ele experimenta a falta de um lugar definido. Desde seu nascimento, ele parece um estranho e um desterrado no mundo. Ele sente a insegurança corporal, social e mental, está sujeito à carência e é excluído por seu povo. Em relação às demais pessoas, sua finitude se manifesta em sua solidão, tanto em relação às massas como em relação a seus familiares e discípulos. Ele luta para fazê-los entender, mas jamais o consegue durante sua vida. Seu frequente desejo de ficar só nos mostra que muitas de suas horas diárias eram preenchidas pelas diversas preocupações finitas produzidas por seu encontro com o mundo. Ao mesmo tempo, sente-se profundamente afetado pela miséria das massas e de todos aqueles que recorrem a ele. Ele os aceita, embora vá ser rejeitado por eles. (TILLICH, 2005 p. 419)
Retomando nossa questão introdutória, o desafio da religião é ter uma leitura criteriosa dos textos e narrativas sobre milagres, sem negligenciar aquela percepção mágica, “supranatural”, própria dos tempos antigos, muito menos perder de vista que as escrituras sagradas expandem significado para além das limitações espaço-temporais e culturais. Por isso é indispensável mentalizar que
Os relatos de cura, sobretudo, mostram a superioridade do Novo Ser em Jesus sobre a possessão da mente e suas consequências corporais. Jesus aparece como o vencedor sobre os demônios, sobre as estruturas supra-individuais de destruição. Tanto Paulo como a igreja primitiva insistiram neste ponto. O poder salvador do Novo Ser é, primordialmente, um poder exercido sobre as estruturas escravizantes do mal. Em períodos posteriores, o ensino e a pregação cristã frequentemente esqueceram este sentido fundamental dos relatos de milagre e, em seu lugar, enfatizaram seu caráter miraculoso. Esta é uma das desafortunadas consequências do quadro de referência supranaturalista em que a teologia tradicional viu a relação entre Deus e o mundo. (TILLICH, 2005, p. 446)
A abordagem cristológica de Tillich, converge ao relato dos evangelhos em que o Cristo é, antes de mais nada, a representação do Novoser: mesmo diante da ameaça do não-ser, da constante alienação da existência (i.e, do pecado), cria e recria a vida, integra-se. A aceitação de Cristo como salvador faz a pessoa sair à vida disposta a enfrentá-la em sua totalidade, mas ao invés de dominada pelo temor e pela angústia, a coragem de ser é o que a move a transcender.
Tillich, como o teólogo da fronteira que dizia ser, reconhecia a importância dos entrelugares, das intersecções, das conexões entre as diversas e possíveis manifestações da vida humana – dentre as quais a dimensão mística da “vida no Espírito” – foi devidamente valorizada e reconhecida em sua obra.
Há cura pela fé nas igrejas cristãs bem como em grupos e círculos particulares. Orações intensivas e frequentemente repetidas são o principal meio de cura, ao que se acrescentam práticas sacramentais, como ajuda psicológica. Como orações e intercessões pela saúde fazem parte da relação normal entre o ser humano e Deus, é difícil traçar uma linha divisória entre a oração determinada pelo Espírito e a oração mágica. Falando em termos gerais, podemos dizer que a oração determinada pelo Espírito busca levar o próprio centro pessoal, incluindo a preocupação com a saúde própria ou a de outrem, diante de Deus e que ela está disposta a aceitar a aceitação divina da oração, quer seu conteúdo seja atendido ou não. Mas uma oração que se resume a uma concentração mágica no alvo desejado e usa Deus para sua realização não aceita uma oração não-atendida como oração aceita, pois o objetivo último na oração mágica não é Deus e a reunião com ele, mas o objeto da oração, por exemplo, a saúde. Uma oração por saúde, em fé, não é uma tentativa de cura pela fé, mas uma expressão do estado de ser possuído pela Presença Espiritual. (TILLICH, 2005, p. 718)
Tillich vê em elementos como os sacramentos, além de simbologia religiosa e manifestação da questão profunda, “ajuda psicólogica”. Noutro giro, a experiência extática que se dá no contato com o Espírito de Deus, ao qual também chama de “Presença Espiritual”5 , levanta um ponto que inquieta muitos acadêmicos das ciências seculares ou teológicas, pois o papel e o lugar da oração – bem como da crença em intervenção divina – escapa a muitos dos contornos que a razão iluminada estabelece, embora Tillich adiante que esta Presença não anula a racionalidade humana, mesmo que a transcenda.
Por mais que muitas coisas permaneçam mistério, não se pode ignorar o poder curativo que a fé exerce sobre pacientes, seja no restabelecimento da saúde, seja na cura do ser, ainda que em face da impossibilidade de cura. Tillich aposta na combinação entre fé e amor. A fé exerce “a função receptiva do ser humano”, enquanto a “função efetivadora é o amor”. Fé e amor abrem caminho para uma “vida-sem-ambiguidade”, para um abrir-se ao potencial, à despeito da finitude (TILLICH, 2005, p. 719).
A proposta tillichiana não explica como (e se) milagres podem acontecer, mas aceita que uma vivência que integra saúde física e psicológica é verdadeiramente espiritual e pode curar o ser inteiramente. Esse estado de integridade inclui, também, a consciência de que
Nem mesmo o poder curativo do Espírito pode modificar esta situação. Sob a condição da existência, a cura permanece fragmentária e está sob o princípio do “apesar de” cujo símbolo é a cruz do Cristo. Nenhuma cura, nem mesmo a cura sob o impacto da Presença Espiritual, pode libertar o indivíduo da necessidade da morte. Por isso, a questão da cura, e isso inclui a questão da salvação, vai além da cura do indivíduo e se estende até a cura através da história e para além da história; ela nos conduz à questão da Vida Eterna tal como é simboliza da pelo Reino de Deus. Só a cura universal é cura total - salvação para além do ambíguo e do fragmentário. (TILLICH, 2005, p. 720)
Uma espiritualidade terapêutica não só contribui para o bem-estar do corpo e da mente em questões pontuais, como, também, aponta para um espectro mais amplo, que abraça o conjunto da existência, dando a ela plenitude.
Saúde, shalom e integridade são termos muito próximos em significado, embora encontrem aplicações distintas, ainda que complementares. Na leitura aqui proposta, veem-se atravessar a literatura bíblica e a teologia de Tillich, encontrando-se na perspectiva de autointegração, salvação, cura.
Conquanto desafiador, penso ser tema propício em tempos de despersonalização, desintegração. A vida plena da Bíblia, no pensamento tillichiano (deveras entusiasta e, talvez, otimista) sobre a religião, se realiza apesar da ambiguidade, da finitude, da cura impermanente e não- -definitiva.
Pausa para uma breve digressão: a poesia, que floresce pelo artigo, o integra porque torna a existência, se não mais palatável, ao menos mais perto de ser expressa. Pensadores profundos como Paul Tillich talvez só devam ser lidos ao lado de uma boa literatura poética, e em diálogo com a vida e com a humanidade as pessoas. Neste trabalho tentamos rascunhar isso.
Antes de decidir a versão final desta escrita, pedi a alguns amigos, leitores ou não de Tillich, para indicarem suas impressões: ortografia, clareza, uso adequado de terminologias, algo mais que lhes saltassem aos olhos.
Dos retornos amigáveis, chegaram-nos atualizações quanto à ten- — 293 dência cada vez mais aceita nas traduções de textos de Tillich no Brasil: preferindo intercambiar o inglês anxiety por “angústia” em vez de “ansiedade”, o que nos levou a revisar o texto (e algumas aplicações conceituais), pois a intenção do teólogo estaria mais próxima de expressar angústia ou temor, presentes no conceito e na palavra alemã Angst.
É inescapável falar de saúde, cuidado, salvação em tempos tão sombrios e insalubres, em que nascem ou se espalham doenças desde a dimensão mais celular do corpo, passando pelas que comprometem a saúde mental, até àquelas não necessariamente biológicas ou psíquicas, mas que convertem em demoníacas a dimensão histórica e social.
Faz-se necessário enfrentar a temática da coragem, observou um amigo, mesmo que o conceito seja de particular complexidade, tanto quanto se vê rara sua abordagem em trabalhos acadêmicos e teológicos. Quem sabe a intenção de Tillich não era exatamente nos levar a pensar que “coragem de ser” é, no fundo, “coragem de não-ser”? O poder de não poder... já que encarar a realidade, a ambiguidade, a finitude, é deparar-se com obstáculos intransponíveis.
A potência do Novo-ser coloca em evidência o quanto ainda “não- -somos”, o quanto de angústia ainda impede a autointegração e ameaça até mesmo a possibilidade de sobreviver, tanto mais de encontrar sentido, possuir-se de Presença Espiritual, transcender. Ao mesmo tempo em que Tillich nos acende lampejos de um outro modo de vida possível, deixa-nos ainda mais angustiados por falar da necessidade de ir em busca da autointegração, e do quanto ainda se multiplicam as forças desintegradoras, que podem tornar a existência insuportável e talvez inviável.
Nesse compasso, revisitar aquilo que promove o bem comum, e de cada pessoa em particular, conforta o coração e produz, mesmo que sob os limites das molduras acadêmicas e das abstrações da teologia, efeitos do estado de novo-ser, numa tensão escatológica entre o que já podemos ser e fazer, e o que, em esperança, perseverança e coragem – espera-se – haverá de ocorrer.
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[1] Como veremos ao longo desse artigo, Tillich adota a seguinte visão sobre doença e cura: “Uma ferida numa pequena parte do corpo (por exemplo, um dedo machucado) sempre causa algum impacto na dinâmica biológica e psicológica de uma pessoa como um todo, embora não torne essa pessoa doente, e a cura possa ser limitada (por exemplo, através de uma cirurgia). O grau de unidade ou independência das dimensões decide a forma mais adequada de cura. Ele decide, sobretudo, quantos tipos de cura devem ser usados em conjunto ou, inclusive, se não é melhor, para a saúde da pessoa como um todo, que uma determinada doença não seja submetida a uma tentativa de cura (por exemplo, no caso de certas compulsões neuróticas). Tudo isto se refere à cura nas diferentes dimensões da vida, sem considerar o poder curativo da Presença Espiritual, e evidencia quão variado é o entrelaçamento de interdependência e independência dos fatores que determinam a saúde, a doença e a cura.” (TILLICH, 2005, p. 717).
[2] Para o ato divino de “curar”, o verbo bíblico do AT é rafa, como em Gn 20,17 e Zc 11,16, encontrado também em diversas variantes e cognatas no sentido de “sarar”, “cuidar”, “restaurar”, “aliviar”, “salvar” (UITTI, 1991, p. 48).
[3] Citando Kierkegaard, Tillich fala de Nero como alguém que “corporifica as implicações demoníacas do poder ilimitado; ele representa o indivíduo que conseguiu vincular à sua pessoa o universo mediante o exercício de um poder que utiliza em proveito próprio tudo aquilo que lhe aprouver. Kierkegaard descreve o completo vazio interior desta situação que conduz à determinação de causar a morte a tudo o que encontra, inclusive a si próprio.” (TILLICH, 2005, p. 347).
[4] Sobre as aproximações entre Tillich e Lispector, vide a tese A “coragem de ser” Clarice: a centralidade da existência humana como expressão da religião de Clarice Lispector estudada a partir da teologia da cultura de Paul Tillich (TADA, 2015, 176 p).
[5] “A Presença Espiritual cria um êxtase [...]; o espírito humano é levado para além de si mesmo sem ser destruído em sua estrutura essencial, isto é, racional. [...] Embora o caráter extático da experiência da Presença Espiritual não destrua a estrutura racional do espírito humano, ela realiza algo no espírito humano que este não poderia fazer por si mesmo. Quando ela se apodera do ser humano, cria vida sem ambiguidade.” (TILLICH, 2005, p. 568)