Isabelle Merlini Chiaparin*
*Mestranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Contato: isabelle.chiaparin@gmail.com
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Resumo:
Teresa D’Ávila (1515-1582) relata de modo intrigante sua relação com as letras: ao mesmo tempo em que a pena é pesada e rouba-lhe o tempo que poderia empregar no Mosteiro de São José, que acabara de reformar, também é leve, sendo via de oração e encontro com o Amado, Deus1 . A dicotomia existente no ofício das letras é reflexo de um conflito que ultrapassava os desejos e vontades de Teresa e provava sua obediência às autoridades. Padres, confessores, teólogos e filósofos - em sua grande maioria, homens - vasculharam o pensamento da carmelita ainda em vida, na tentativa de examinar cada detalhe de sua experiência mística, em busca de referências demoníacas. A escrita poética, que antes era prazer, tornou-se medo sob o duro olhar da Inquisição espanhola (1478), estampado nos escritos em prosa que a monja foi obrigada a escrever. Não mais a partir da visão masculina e inquisitória da época, mas à luz das discussões contemporâneas sobre literatura feita por mulheres, seriam os processos de escrita de uma mulher do século XVI mística ou histeria?
Palavras chave: : Literatura Feminina; Teresa D’Ávila; Mística; Poesia-de-si.
Abstract
Teresa of Ávila (1515-1582) relates in an intriguing way her relationship with the letters: at the same time that the penalty is heavy and robs her of the time she could spend at the São José Monastery, which she had just reformed, it is also light, being a way of prayer and an encounter with the Beloved, God. The dichotomy existing in the craft of letters is a reflection of a conflict that surpassed Teresa’s wishes and desires and proved her obedience to the authorities. Priests, confessors, theologians and philosophers - mostly men - searched the Carmelite’s thought while she was still alive, in an attempt to examine every detail of her mystical experience, looking for demonic references. The poetic writing, which was once a pleasure, became fear under the harsh gaze of the Spanish Inquisition (1478), stamped on the prose writings that the nun was forced to write. No longer from the masculine and inquisitive view of the time, but in the light of contemporary discussions of literature made by women, would the writing processes of a 16th century woman be mystical or hysterical?
Keywords: Women’s Literature; Teresa of Ávila; Mystique; Self-poetry.
Quando se investiga a escrita de Teresa D’Ávila (1515-1582), há de se considerar alguns elementos. O primeiro, e talvez mais significativo para a análise, é que Teresa é uma mulher. Diferentemente dos escritos feitos por homens, em que a masculinidade não é uma questão já que, como diria Simone de Beauvoir (1908- 1986), “(...) que seja homem é evidente” (BEAUVOIR, 2014, p.13), o gênero da escritora influencia – e muito – o modo e o conteúdo de sua escrita. O segundo, é a forma que a escritora escolhe para modelar a experiência mística, cume de seus escritos. Por fim, a resposta que o contexto histórico dá à uma mulher poetisa, que experiencia Deus, também deve ser levado em consideração. Estes elementos levaram a obra de Teresa D’Ávila tanto ao lugar de santidade, com sua canonização em 1622, quanto ao lugar da loucura, com Sigmund Freud (1856-1939) apelidando-a de “padroeira da histeria” (FREUD, 2010, p.230). Diante dessa grande dicotomia, o objetivo desse artigo é investigar quais são as razões que levam à tais definições da obra teresiana, bem como compreendê-la através da crítica literária.
Os modos com que o gênero da autora, a forma do texto e sua recepção influenciam nos processos de escrita é notável e podem ser percebidas em diversas nuances da obra de Teresa. Reconstruir seu percurso de escrita já indica algumas pistas para compreender seu pensamento. A primeiras obras escritas pela autora são relatos autobiográficos, pautados no plano de sua experiência com Deus e com as outras carmelitas. Vida (1565) e Relações (1560-1581) tratam de vivências interiores, consultas espirituais e anotações da vida de oração. A diferença entre eles é que Vida constitui uma obra inteiriça, escrita de maneira detalhada e metódica, enquanto Relações é a reunião de sessenta e sete fragmentos textuais, escritos em um prazo de vinte anos, reunidos para publicação. A semelhança, por outro lado, é a motivação da escrita: em ambos os casos, os textos foram “encomendados” com grandes recomendações de seus confessores, em especial do padre dominicano Pedro Ibáñez Díaz (1515-1565), que será seu diretor espiritual por vários anos.
A “forte recomendação”, em outras palavras, obriga Teresa a aceitar o convite para não ferir a obediência, um dos pilares da vida cristã, o que a leva, portanto, a escrever incontáveis páginas de suas memórias e sentimentos que seriam, posteriormente, analisados e, até mesmo, censurados. As Relações, por exemplo, não estão completas: houve um conselho, mais uma vez de seus confessores, de que não se publicasse todas, ou porque os temas eram muito espirituais ou porque referiam-se a pessoas ainda vivas. As ordens de escrita constituem uma estrutura de pensamento provinda de contexto histórico que repudia veementemente as experiências da pensadora – e qualquer experiência de modo geral: a Inquisição espanhola (1478). De fato, a vida de Teresa se torna um processo inquisitório a ser analisado, com suas vivências passando na mão de vários padres, confessores e teólogos, tais como Bartolomeu Medina (1527-1580), Dom Francisco de Salcedo (1512-1580), Gaspar Daza (XV – 1592) e Domingo Bañez (1528-1604), “(...)a fim de submetê- -las ao controle de técnicos profissionais, capazes de apurar os fatos e autenticar suas experiências interiores.” (V2 , Introdução). Interessante refletir acerca de tal controle e de suas consequências para a vida e obra de Teresa a partir de suas próprias palavras.
Para o que vou falar, não dou igual licença, nem desejo que, caso o mostrem a alguém, digam quem o escreveu, quem é nem a quem sucedeu; por isso, não direi o meu nome, nem o de ninguém, tentando escrever o melhor que puder para não ser reconhecida, e assim o peço pelo amor de Deus. Bastam pessoas instruídas e sérias para aprovar alguma coisa boa se o Senhor me der graça de dizê-la; se houver algo assim, será Dele, e não meu, porque não sou instruída, não tenho boa vida, nem fui educada por mestres nem por ninguém (porque só os que me mandaram escrever sabem que eu o faço, e no presente não está aqui); e quase furtando o tempo, e com pesar, porque me impede de fiar e porque, estando em casa pobre, há muitas ocupações... (V 10,7)
No trecho, fica evidente o peso da pena que Teresa carrega para escrever sobre si. Suas misérias e pecados ficavam à mostra, numa exposição detalhada de sua vida, pensamentos e sentimentos, que depois deveriam ser apresentados para validação tanto para seus confessores, quanto para a própria Inquisição espanhola. Isso já seria razão suficiente para que a carmelita desgostasse dessa forma de escrita. Apesar de poder – e dever – escrever longamente sobre seus erros, Teresa encontrava dificuldade em colocar em palavras a experiência mística que viveu entre os anos de 1555 e 1562, chegando a afirmar que o pensamento “Se entende, não entende como entende” (V 18, 14). De fato, como detalhar um encontro com Deus em palavras? Posteriormente, isso se dará em outro gênero textual. Mesmo assim, o esforço da carmelita gerou uma obra maciça no que diz respeito ao misticismo cristão.
As denúncias contra Teresa à Inquisição eram, predominantemente, provindas da circulação de suas obras, em especial, Vida. Embora só tenham sido publicadas depois de sua morte, os manuscritos e algumas cópias alcançavam os olhos atentos de inúmeros padres e carmelitas, o que colaborou para sua difusão. Da fundação do convento de São José em 1562 – feita depois de pelo menos cinco anos de análises dos confessores e no mesmo ano em que termina Vida - à denúncia inquisitória de 1576, muitos foram os entraves nas novas fundações, deixando Teresa, em ocasião dessa denúncia, paralisada até 1580 por ordem de suas autoridades, deixando-as com tempo para analisar a denúncia, investigando, mais uma vez, a vida de Teresa. Diversas são as interpretações do papel dos confessores durante a vida da monja carmelita. Vazquéz (2000), por exemplo, defende o papel de Bañez como autenticador e protetor da obra carmelita durante as denúncias.
(...) paralisando a continuação de sua atividade fundacional até 1580 por conflitos internos da ordem carmelita e por haver sido denunciada à Inquisição por suas obras espirituais. De novo intervém Bañes em sua defesa, advertindo-na por não controlar a difusão manuscrita de suas obras e emitindo uma opinião em 1575 sobre o livro de sua Vida, no que confirma sua ortodoxia, apoia sua atividade fundacional e assinala ‘que não é enganadora’ e que sempre esteve guiada ‘pela vontade de acertar’. (VAZQUÉZ, 2000, p.125)
Interessante pensar como a obra da priora dos carmelitas descalços seria se não houvessem tantas e tão graves interrupções, censuras e cortes. Pelo voto da obediência, Teresa a todos se sujeitou e assim também sujeitou sua obra, tanto nas reformas carmelitas quanto na redação dos escritos, à investigação. Teresa denomina o fruto de tal obediência como a virtude da humildade que, para ela, constitui-se na capacidade de “andar na verdade” (6 M 10, 7) e que gera, como consequência, uma aproximação de Deus na oração, confirmada pelas obras e virtudes, “(...) pois a verdade é endereçada à vida, não para um deleite espiritual de intelectual.” (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p.355). É possível perceber como a humildade, virtude amiga de Teresa, caminha lado a lado com a humilhação. A semelhança ultrapassa a raiz etimológica de veia latina e alcança o centro da vida cristã. O próprio Sumo Pontífice da Igreja Católica, o Papa Francisco, afirmou categoricamente que não existe humildade sem humilhação em 29 de março de 2015, durante homilia do Domingo de Ramos, e, baseando-se na leitura dos textos sagrados para o catolicismo, exortou o povo que o assistia a seguir o mesmo caminho. A virtude da humildade, entretanto, não é justificativa, especificamente, para o modo com que o pensamento teresiano foi tratado. De modo crítico, aclamar Teresa na contemporaneidade como humilde é uma afronta que visa eximir de culpa os processos inquisitórios pelos quais a pensadora sofreu no século XVI. As crenças cristãs das virtudes apoiaram Teresa no imenso sofrimento que esta passou em sua vida, uma vez que não poderia ir contra as ordens expressas da Igreja. Contudo, não é possível olhar para esta situação e enxergar nela um modelo de vida, aclamando o abuso de autoridade e poder dentro da Igreja como providência divina.
Do mesmo modo, não é possível enxergar na ação dos confessores a defesa do pensamento de Teresa e o pacífico, justo e tranquilo encaminhamento de seus processos. Com a proclamação de Teresa como Doutora da Igreja em 1970 – a primeira mulher a ser considerada como tal – e, portanto, com seus escritos sendo considerados exímios exemplos da vida na fé, extinguidos de todo e qualquer erro, seria tentador, mais uma vez, justificar a ação dos padres como um “destino” para Teresa, uma via de ascese. Durante a homilia do Papa Paulo VI, na ocasião do reconhecimento do título de Doutora, em nenhum momento a Inquisição apareceu como um fator decisivo na vida de Teresa, embora a Reforma Protestante (1517) tenha.
A sua figura surgiu numa época gloriosa de santos e de mestres, que caracterizaram o seu tempo com o desenvolvimento da espiritualidade. Teresa ouviu-os com a humildade de uma discípula e, ao mesmo tempo, soube julgá-los com a perspicácia de uma grande mestra de vida espiritual, e, como tal, estes consideraram-na. Por outro lado, dentro e fora das fronteiras da pátria, agitava-se com violência a tempestade da Reforma, lançando os filhos da Igreja uns contra os outros. Santa Teresa, por causa do seu amor à verdade e da sua intimidade com o Divino Mestre, teve que sofrer amarguras e incompreensões de toda a espécie, e o seu espírito não sabia conservar a paz diante da ruptura da unidade. “Sofri muito — escreveu — e, como se pudesse ou fosse alguma coisa, chorava diante do Senhor, suplicando que remediasse tantos males” [...] Este seu sentir com a Igreja, provado na dor que ela sentia ao ver a dispersão das forças, levou-a a reagir com o seu carácter castelhano cheio de vigor, no anseio por edificar o Reino de Deus. E, assim, decidiu-se a penetrar no mundo que a circundava, com uma visão reformadora, para imprimir nele um sentido, uma harmonia e uma alma cristã. (HOMILIA DO PAPA PAULO VI, 27 de setembro de 1970)
Na homilia, dois pontos são importantes: a causa das amarguras e incompreensões e o motivo de sua nova proposta para o Carmelo. Em um primeiro ponto, é interessante perceber como a Reforma Protestante é intitulada como uma violência, uma “tempestade” que, quase por consequência, parece ter gerado a Inquisição. A causa das amarguras e incompreensões de Teresa, segundo Paulo VI, eram a ruptura da unidade da Igreja e seu amor pela verdade. Seria possível afirmar que o processo inquisitório, pelo qual passou penosamente Teresa D’Ávila, e que a colocou em risco por diversas vezes, foi causado por seu imenso amor a Deus? Infelizmente, este argumento repete a via da humildade e da santidade como explicação para a vida de Teresa, inserindo, como elemento a mais, a Reforma Protestante como causadora de tais conflitos. Não pode ser considerado, como já dito.
Em um segundo ponto, a razão pelas qual Teresa reforma a Ordem Carmelita deve ser analisada. Da reformulação decorre a renovação dos votos de pobreza, obediência e castidade feitos pelos religiosos e religiosas, dando novo sentido à oração e à vida comunitária. O caminho da perfeição - que será também tema para a escrita da monja anos depois – foi o traçado para as freiras e monges que se dispuseram a abraçar o novo Carmelo, negando privilégios aos consagrados e os colocando em uma postura de serviço ao outros. Para Paulo VI, a reforma foi uma resposta ao mundo que se transformava e, de fato, o foi. Para além da Reforma Protestante, citada pelo Papa em questão, pode-se apontar as Grandes Navegações (XV) como elemento histórico indispensável para o movimento teresiano ocorrer.
Navegação, comércio e conquista tornaram-se lema de diversas embarcações que esquadrinhavam o céu em busca da direção pelas estrelas e exploravam novos continentes, conquistando terras, pessoas e pensamentos. A expansão marítima causa uma crise de fé, que Teresa testemunha. Isso se dá porque a Igreja católica não reconhecia, até então, a existência de outros planetas, nem sequer de outros continentes que desestabilizassem a teoria terraplanista. Com a revolução científica que acompanha as Grandes Navegações, o mundo religioso abala-se tanto quanto o filosófico. Teresa une estes dois mundos ao reconfigurar o Carmelo, reconfigurando também a via do indivíduo a Deus. Este será o tema de seu livro Moradas (1577).
Moradas faz parte da seleção de obras que constituem o ensinamento místico de Teresa. Nela, a carmelita conceitua o que é a alma, metaforicamente representando-a pela grande figura de um castelo. A busca por si mesma é feita através da descoberta progressiva do interior de tal habitação, além de conter a sempre instigante expectativa de chegar ao centro, que é habitado por Deus. A obra é construída por capítulos que simbolizam as sete habitações que a alma possui e quais passos está deve seguir para adentrar cada vez mais o interior. Da entrada do castelo e na decorrente descoberta de cada cômodo dessa (santa) habitação, Teresa percebe no caminho moradas cada vez mais claras3 e dotadas de sentido. Aos poucos, o temor e a escuridão do externo são deixados para trás em vista da tranquilidade e plenitude do interior, que atrai o indivíduo.
A partir desse caminho, Teresa move a razão de existir do indivíduo do exterior para o interior, abandonando o conhecimento de mundo da sensibilidade empírica para uma construção conceitual dialógica entre o eu interior e o Outro divino. Tal movimento também será empreendido pelo renomado René Descartes (1596-1650) – filósofo bem mais conhecido do que a carmelita –, que encaminha o sujeito a duvidar de tudo o que é possível perceber através dos sentidos.
A certeza para Teresa não é a existência individual, como nas Meditações (1641) cartesianas, mas a existência do ser com o absoluto. Diante dela, a tese da alma esposa tomará um corpo e um rosto: o do ser amado, que é Deus. Resposta para um mundo exterior que se transformava a partir da descoberta de novas terras e das diversas teorias sobre a natureza que surgem com as revoluções científicas, Teresa move seu olhar para o interior: é dele que cada indivíduo deve começar seu caminho com Deus. E Teresa começará o seu através da poesia.
Diferentemente da escrita em prosa, cujo modelo praticamente confessional a enchia de temor e também de tédio, Teresa descobre na poesia uma grande aliada em sua jornada espiritual. Através dela, a carmelita encontra um caminho de oração para com Deus, longe das censuras e também dos julgamentos inquisitórios. As Poesias (1537-1582) não foram escritas para os confessores, como Vida e Relações, nem tampouco se articulam como formação espiritual para as monjas, como Moradas. A poética teresiana reflete a intimidade da pensadora com Deus, escrito por ela, para ela e para seu Amado.
Interessante pensar o porquê da forma escolhida para a maior proximidade com Deus ser a poética. Para Carvalho (2012), a linguagem poética, por não dever explicações à realidade e à lógica, possibilita a busca por um absoluto, como conceito, sem estar necessariamente pautada em uma crença específica. A mística floresce nessa linguagem, ainda segundo o comentador, por poder nela superar a linguagem objetiva, aliando o indescritível místico com a subjetividade das palavras, que podem moldar-se à luz de metáforas, sinestesias, hipérboles, etc. Para apoiar ainda mais tal argumento, a concepção de Paul Valéry (1991) sobre o fazer poético é de muita valia. O escritor afirmava ser o papel maior da poesia dizer o indizível e conectar-se com o Absoluto. Essa seria a razão do porquê tantos recorrerem à ela para expressar o que a mera descrição em prosa não é capaz.
Entre a Voz e o Pensamento, entre o Pensamento e a Voz, entre a Presença e a Ausência oscila o pêndulo poético. [...] E, contudo, a tarefa do poeta é nos dar a sensação de união íntima entre a palavra e o espírito. (VALÉRY, 1991, p.214)
Se a tarefa do poeta é pôr em palavras o que é sensação, a da crítica deve ser, por consequência, compreender como tal processo foi construído, enxergando em cada poesia um sistema literário dotado de leis. Segundo Todorov (1979), é a partir dos mais diversos níveis - sintático, simbólico, lexical... - e de suas interligações e dependências que se pode analisar uma obra poética. Ora, Teresa escreve em diversos gêneros dependendo do objetivo da escrita. Os poemas, especificamente, que a doutora da Igreja escreve pensando nesse que é Palavra e também Espírito, infinitamente maior do que ela mesma, revelam a relação apaixonada entre um eu que ama e um outro que nasce para amar. A alma e Deus, respectivamente, tornam-se um único elemento, junção de desiguais, enamorados, como diz a própria Teresa4 . A predileção pela poética enquanto expressão de si levará Teresa a Deus, tornando o poema, portanto, um retrato da experiência mística com Deus na obra teresiana, elevando a linguagem ao divino e também ao místico.
Um duplo caminho é experimentado através da nova forma textual. Ao mesmo tempo em que a pensadora descobre a si mesma enquanto escreve sobre si e sobre o Amado, Deus, reinventa-se, aperfeiçoando- -se no caminho da santidade. Quanto mais se conhece – seus pecados, misérias e dores – mais se ressignifica e se converte novamente; quanto mais se ressignifica – refazendo a escolha por Deus e pelo caminho ascético - mais conhece a si e renova seus votos. A reinvenção da própria vida é tema recorrente das poesias, que a todo momento narram o conflito entre a vida que se vive e a que se quer viver, o momento presente e o momento ideal, em outras palavras, a vida terrena e o paraíso. Tal tensão pode ser observada na poesia “Aspirações à Vida Eterna”, também conhecida como “Glosa de Santa Teresa”. Nela, é possível apontar que, se a união é a felicidade eterna, o afastamento de quem se ama, mesmo que breve, constitui para ambos os interlocutores do poema, Teresa e o Amado, uma prisão; a esponsalidade, conceito preciso que revela a relação da alma com Deus, leva o indivíduo que ama a desejar muito mais a morte, vista aqui como vida eterna com Deus, do que a própria vida. Nesse sentido, a poetisa aponta para o abandono de tudo aquilo que não for o Tudo.
Vivo sem em mim viver,
E tão alta vida espero,
Que morro de não morrer.
(...)
Esta divina prisão
De amor, em que sempre vivo,
Faz a Deus ser meu cativo,
E livre meu coração;
E causa em mim tal paixão
Deus prisioneiro em mim ver,
Que morro de não morrer.
(Aspirações à Vida Eterna. P, I)
As antíteses presentes na estrofe retirada de “Aspirações à Vida Eterna” expressam as desigualdades entre o humano e divino e suas condições. As relações entre os substantivos “prisão” e “paixão”, revelam-se também nos adjetivos “cativo” e “de amor”: as palavras indicam tanto a força dos contrários, Deus e ser, quanto a dificuldade da relação, eterna e terrena. Marcado pelas oposições, o poema também enfatiza os pronomes possessivos “meu” e “minha”, o que transparece tanto a relação íntima com Deus, aquele que é “meu cativo”, quanto a dimensão pessoal do encontro, que “causa em mim tal paixão.”
Interessante perceber que Deus não está configurado como “salvador” da alma, mas como “prisioneiro” que habita a interioridade. A escolha de palavras não é feita ao acaso, já que Teresa deseja introduzir a figura de um Deus que também é divino e humano, sofredor ainda que perfeito. Se nos processos inquisitórios, Deus habita no tribunal, capaz de condenar o indivíduo ao céu ou ao inferno – sendo este último muito mais provável -, no texto em questão, Deus está no centro da alma ou ainda, na metáfora de Teresa, no centro do castelo interior.
A reconfiguração de Deus ultrapassa a cosmologia presente no contexto histórico da pensadora, repleta de representações da dicotomia entre o supremo bem e o supremo mal, em que figuram, predominantemente, as imagens de anjos e demônios, e atinge a dialógica da interioridade, em que o pecado logo vem seguido da misericórdia. A face de Deus com que Teresa dialoga, logicamente, é Cristo, o divino humanizado, aquele que tudo deu por amor. É nele que a filósofa reconstruirá a figura de Deus, através, especialmente dos conceitos e exemplos presentes no livro bíblico do Cântico dos cânticos que, não por acaso, é um livro constituído em linguagem poética, dividido em poemas – ou cantos – que não seguem necessariamente a ordem dos capítulos. Tal livro é utilizado por Teresa como argumento para defender a forma de relacionar-se com Deus que a pensadora propunha.
A partir do primeiro versículo do livro, “Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho” (Cânt 1, 1)5 , Teresa justifica seu tratamento para com Deus. Se um livro santo apresenta tamanha intimidade e continua sendo considerado sem nenhum erro, é possível se relacionar com Deus da mesma forma e, assim, alcançar a santidade. Ir contra este modo de se relacionar com o divino seria, consequentemente, contrariar a própria Bíblia - algo que confessor nenhum poderia fazer. Em um trecho da obra Conceitos de amor de Deus (1577), obra teresiana que comenta a poética dos Cânticos, a perspicácia de Teresa ainda questiona retoricamente o uso de tais temos, como “beijo” e “amado”: “Mas quem ousaria, Rei meu, dizer essas palavras se não fosse por Vossa permissão?” (CAD 1, 9-10)
A experiência da humanização do divino, na filosofia de Teresa D’Ávila, aproxima, portanto, Deus do ser. Essa configuração do Cristo como homem, sofredor e padecedor das mesmas misérias que toda a humanidade, faz com que o divino compreenda a realidade humana e, por isso, tenha misericórdia dos fiéis. No caminho de salvação, a chegada ao paraíso não se dará por mérito, mas por uma graça provinda primeiro da divindade (V 8, 4). A ação salvadora do Cristo crucificado remodela o rosto de Deus Pai, os unindo em um ato de solidariedade para com a humanidade. O plano de redenção, segundo PedrosaPádua (2015), é mais uma das bases que, junto aos Cânticos, justificam a concepção de Teresa sobre Deus. Segundo a comentadora da obra de Teresa: “Os mistérios da salvação são os mistérios assumidos pelo próprio Deus, que, num ato de amor libérrimo, faz-se escravo da humanidade.” (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p.301)
O Deus prisioneiro e escravo que Teresa formula nas “Aspirações à Vida Eterna” e que acompanha sua obra é resposta para um mundo em perene transformação, que já não aceita as respostas dogmáticas da Igreja católica acerca do mundo exterior. É através da interioridade que Teresa renova o catolicismo espanhol do século XVI,
Teresa não mais conseguia encontrar um Deus que era visto como responsável pela ordem do mundo, como viam alguns medievais, mas, em um mundo já confuso e confusamente percebido, buscou Deus em seu interior, como aquele que tudo ordena para um sentido de vida apaixonadamente vivido. Nessa percepção, Teresa já sentia antecipadamente os dramas da vida moderna, que ali no século XVI estavam mais que semeados, e já se podia sentir a grande dificuldade de as instituições acompanharem a conquista da autonomia e da fragilidade do indivíduo moderno. (VILLAS BOAS, 2011, p.163-134)
No espaço sagrado do ser, isto é, a alma, o divino restringe-se ao campo da interioridade humana, deixando os fatores físicos e exteriores e se comunicando como que por um silêncio contemplativo, como a própria Teresa recomendará que sejam feitas as orações6 , ainda que com muita dificuldade. A imperfeição de Teresa – e também do indivíduo, de modo geral – é o que torna a união desses dois seres tão complexa. Somente a morte poderá de fato consumir a paixão entre ambos, elevando o encontro à perfeição. De fato, a morte é passo fundamental para a salvação da alma. Antes dela, porém, o caminho para Deus é o olhar para si. Colaborando com essa interpretação, Spitzer (2003) afirma que a “(...) alma que se decidiu encontrar com o divino empenhou-se numa aventura existencial (...)” (SPITZER, 2003, p.63). De fato, o que há de mais existencial do que a oração que se encontra a todo o momento com o sentido da própria vida que, para Teresa, é Deus?
A poesia-de-si feita por Teresa reflete tanto a busca pelo sentido da vida quanto o encontro com o sentido da vida, que para a pensadora é Deus. Em sua poética, o interlocutor tanto é Deus quanto é ela mesma: a esponsalidade molda a alma e Deus em complementariedade, de modo que, ao procurar por si mesma, inevitavelmente a alma encontrará Deus. O caminho da interioridade já havia sido traçado antes por Agostinho de Hipona (354 d.C-430d.C), do qual a pensadora foi ávida leitora (V 9, 7).
O famoso trecho de Agostinho, “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei. Mas eis: estavas dentro e eu estava fora. Lá fora eu te procurava (...) Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo.” (Livro X, XXVIII)7 , partilha da mesma percepção de Teresa: Deus não está fora, na natureza, nos outros, nos fatos e acontecimentos, mas dentro da alma. O caminho oracional necessita, portanto, ser um caminho de decidida escuta interior “(...) mesmo que não se tenham forças para prosseguir, mesmo que se morra no caminho ou não se suportem os padecimentos que nele há, ainda que o mundo venha abaixo.” (C 21, 2). No caminho de uma constante conversão, a interioridade não constitui um caminho mais fácil, e sim, uma escolha árdua de deparar-se com a própria fragilidade a todo o momento, refazendo a escolha por Deus como cerne da existência todas as vezes.
O modelo de escrita confessional feito por Agostinho influenciará Vida, assim como as Poesias. A sensibilidade poética presente na prosa agostiniana, em que o autor reconstitui os próprios passos a fim de reconhecer a ação de Deus, se estende em diversos trechos que fogem à narrativa da própria vida e alcançam uma linguagem subjetiva e filosófica. Tais momentos podem ser observados tanto no início do Livro I quanto no já citado Livro X. Teresa também incluirá em suas redações em prosa diversos momentos oracionais, tal como Agostinho, em que a narração de fatos é interrompida quase que por uma suspensão do pensamento que, no auge do amor, volta-se para Deus em linguagem poética8 .
O êxtase é, definitivamente, o acontecimento decisivo que marca a vida de Teresa D’Ávila, a aproximando intimamente de Deus e a afastando dos confessores, que repreendiam veementemente tais comportamentos9 . Os padres, escandalizados pelos relatos do prazer sensorial que levavam à gemidos, proibiram Teresa de se deixar levar por tais sensações, imaginando serem diabólicas. Ainda que, novamente por obediência, a pensadora tenha de fato se esquivado de tal impulso, percebia que, quanto mais resistência oferecia, mais graças e oportunidades de estar com Deus recebia.
Quando me mandaram fazer essas provas e resistir, os favores aumentaram muito; mesmo quando queria me distrair, eu nunca saía da oração. Mesmo dormindo, tinha a impressão de estar nela, porque cresciam o amor e as queixas que eu fazia ao Senhor; eu não podia suportar não pensar nele, nem isso estava ao meu alcance, por maior que fosse o meu desejo e por mais que eu me esforçasse. No entanto, obedecia quando era possível; mas era pouco, ou nada nada, o que eu podia fazer. O Senhor nunca me disse que não obedecesse, mas, ao mesmo tempo que me mandava obedecer, me dava garantias, ensinando-me o que eu haveria de dizer às pessoas, tal como o faz ainda hoje, dando-me razões tão fortes que me deixava plena de confiança. (V 29, 7)
A resistência de seus confessores em aceitar e, até mesmo, reconhecer como divina a experiência que Teresa relatava diz muito sobre a percepção do corpo na época e tem raízes no medievalismo. A aproximação com a cosmogonia cristã na narrativa do pecado de Adão e Eva, como escrito no livro bíblico do Gênesis10, é a grande chave de leitura que justifica o desgosto pelo corpo à época de Teresa. Na interpretação medieval, o pecado original, que se torna o início da desgraça humana – e pela qual Cristo terá que sacrificar-se pela salvação de todos – torna- -se um pecado sexual11.
Tal interpretação se dá através da vinculação do corpo aos pecados do orgulho e da vaidade a partir do desafio de desobediência que Adão e Eva lançam contra Deus. Retiradas as “vendas”, isto é, tendo conhecimento sobre o bem e o mal, ao se reconhecerem nus, ambos perdem a inocência e a castidade do próprio corpo, envergonhando-se dele e devendo ocultá-lo com trajes e roupas. Esta interpretação levará os teólogos da época a formularem conclusões extremas acerca do corpo e que, séculos depois, influenciariam a recepção do êxtase teresiano como pecado e desvio.
Para a época, o prazer do corpo, que Teresa narra durante os êxtases, é veementemente censurado, sendo considerado também como um pecado, por gerar um descontrole, desviando a castidade e afastando o indivíduo de Deus. Importante ressaltar ainda que, seguindo a interpretação medievalista, a virtude da castidade, traduzida na virgindade das mulheres, retrata o mais alto grau de pureza do indivíduo, justamente por este abster-se do ato sexual, “preservando” sua inocência. Teólogos, como o próprio Agostinho, recomendarão largamente a virgindade como “pureza” e, com ela, a abstenção de todo o prazer que provenha do corpo - até mesmo no casamento.
Assim, é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos. O próprio casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. A cópula só é compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar. “O adúltero é também aquele apaixonado de modo demasiadamente ardente por sua mulher”, repetirão os clérigos da Igreja. Prescrevese, desse modo, o domínio do corpo; as práticas “desviantes” são proibidas. (LE GOFF, 2006, p.41)
As formas sexuais lícitas incluíam, no mais alto grau, a virgindade, que não significava apenas a privação do sexo, mas a recusa de tudo o que possa relacionar-se a ele, tal como beijos, abraços demorados, etc. Com a reforma monástica do século XI e XX, a Europa acolherá, especialmente pela ordem dos beneditinos, uma teologia baseada na repressão do prazer, especificamente a corporal. O desprezo pelo mundo, segundo Le Goff (2006) se traduzirá no desprezo pelo corpo. Com isso, essa reforma acentuará, por exemplo, a privação e a renúncia do domínio alimentar como modo de sacrifício e oração bem-vistos por Deus. Também estarão presentes as mortificações corporais, como a flagelação e a vigília. A imitação de Cristo, nessa corrente de pensamento, perpassa também a experiência da dor e da privação de qualquer tipo de deleite.
Como monja, Teresa jurava fidelidade a Deus por três virtudes: obediência, castidade e pobreza. Muito influenciada pela concepção medievalista dos beneditinos, Teresa anulará o corpo por diversas vezes como modo de atingir a castidade, oferecendo mortificações a Deus como forma de “resistir às tentações.” As práticas de mortificação podem ser observadas em Constituições, obra na qual Teresa redige as normas de vida para as monjas. Entre a prática do jejum por oito meses e a proibição de retirar-se o véu do cabelo, a instrução detalhada acerca da cama, lugar do repouso do corpo, merece especial atenção. Há uma regra específica para a organização da cela, onde a cama deverá ter um cobertor simples, sem tapetes no chão ou nada suspenso a volta, como adornos nas paredes ou cortinas nas janelas. A instrução de Teresa é evidente: “As camas não tenham colchão, mas um enxergão de palha; provado está que é suficiente para pessoas fracas e com pouca saúde.” (CO 13). Assim, a virtude da castidade, alcançada pela mortificação do corpo, alia-se à pobreza, desprezando as vaidades e riquezas mundanas.
Diante desse contexto, o espanto com o êxtase atinge não somente os confessores, mas a própria Teresa, que herda uma relação deteriorada com a corporeidade. De fato, o êxtase possui grandes relações com o corpo e com o erotismo, sendo este último compreendido como uma forma de amor mais baixa e pecaminosa pelo tradicionalismo cristão, concepção esta herdada do medievalismo e reavivada através da Contrarreforma (1545). O amor eros, entretanto, exprime muito bem a morte que outrora Teresa desejava em “Aspirações à Vida Eterna”: a incompletude move o indivíduo em uma busca incessante pelo preenchimento de si, que somente ocorrerá na presença do Outro que é amado; por isso, na busca pela plenitude, vida e morte se confundem.
O fenômeno chamado de erotismo constitui-se como um universo possuidor de muitas faces e expressões, desde o apelo à vida até o mergulho na ânsia de morte. Suas faces, por se formarem na incompletude, muitas vezes se escondem no que parece não lhe pertencer. Mas, vale dizer que dentro do âmbito do erotismo, os conceitos são elásticos. Assim, morte e vida são aspectos do mesmo fenômeno que é o de se perder na busca da completude absoluta, ou seja, é possível enxergar dentro desse fenômeno a face da vida que somente é quando morre, assim como também é possível tratar da morte que só é quando gera vida (...) (LIMA, 2012, p.363)
Tal fenômeno é conteúdo tanto dos relatos de Vida quanto das Poesias. A diferença da forma, contudo, influência, e muito, sua percepção. Em Vida, a descrição do êxtase se concentra na análise física do acontecimento, com a narração metódica da visão que Teresa teve em uma de suas orações. Nela, um anjo trazia nas mãos um comprido dardo de ouro que tinha, em sua extremidade, uma ponta flamejante. Com essa ponta ou seta, o anjo perfurava o coração de Teresa, transpassando-o.
A flecha que atravessa o peito de Teresa, como tão bem colocado em mármore por Bernini (1598-1680)12, transpassa também os limites da objetividade e da descrição, tornando a narrativa do fenômeno em Vida muito mais ligado às sensações do corpo, como a dor e os gemidos, do que as da alma. De fato, como o êxtase supera a ordem lógica da realidade – tal qual toda experiência com o divino – , é extremamente difícil para Teresa pontuar exatamente o que sentiu e como sentiu. A beleza mística empobrece-se com a descrição em prosa, perde a criatividade que somente a poesia poderia dar-lhe. Lendo a transcrição de Teresa, não é difícil, para acrescentar, imaginar o porquê de Vida ter sido denunciado à Inquisição espanhola.
A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava se não com a presença de Deus. Não se trata de dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, às vezes muito. [...] Quando começa esta dor de que falo agora, parece que o Senhor arrebata a alma e a leve ao êxtase, não havendo como ter mágoa ou padecer, porque o deleite logo vem. (V 29, 14)
Teresa destaca, ao definir o que sentiu durante o êxtase, que a dor suave e excessiva que experienciava não era corporal, embora o corpo participe e muito do fenômeno. Ora, o que poderia significar essa afirmação? Em primeiro lugar, que o êxtase é um fenômeno corporal. Em segundo lugar, que o corpo não é a primazia do êxtase. Teresa tem consciência da participação efetiva do corpo no fenômeno porque gasta tempo descrevendo, ainda que sem muitos detalhes, as reações corporais que sentia durante o êxtase. A questão que a interpela após o fenômeno é o que isso significaria para uma mulher do século XVI, vivendo em meio à Inquisição espanhola. Como forma de justificar-se perante os tribunais inquisitórios, Teresa reordena o corpo como submisso à alma, de modo que, se houve gemido e prazer, é porque primeiro houve um gozo divino na alma. O prazer e a dor que percorrem o corpo de Teresa são secundários em relação ao espiritual: é a alma que é arrebatada e não o corpo, é o espiritual que domina o corporal. Segundo Silva (2019), a escrita não tão descritiva em Vida tem uma justificativa evidente. Para além de Teresa não se achar “letrada o suficiente” para escrever, as palavras lançadas em papel tornavam-na réu. Essa é a razão por Vida reter explicações mais detalhadas do êxtase.
Ela sabia bem como as letras estavam muito longe de serem instrumentos de mera comunicação. E quando afirma que o outro não compreenderia sua experiência a não ser que experimentasse não se trata de uma afirmação egocêntrica e excludente. Na verdade, é bem o contrário, é por enxergar a existência de um Outro que ela sabe que, não importa o que diga, cada um entenderá de acordo com os seus próprios significantes. (SILVA, 2019, p.62)
Tal experiência, cujo relato é apresentado durante o capítulo vinte e nove de Vida, também está presente em uma série de poesias escritas por Teresa – e de forma muito mais livre. A “loucura celestial” (V 16,1), o sentimento de gozo e o descontrole do corpo parecem provir primeiro da alma, refletindo no corpo. Tal movimento pode ser melhor observado na poesia “Sobre Aquelas Palavras: ‘Dilectus meus mihi’”. Nela, Teresa reflete acerca de um dos versículos presente no livro dos Cânticos, “Meu Amado é para mim, e eu sou para meu Amado” (Cânt 6, 3).
Neste oitavo poema, o diálogo é estabelecido entre o coro e Amada. O coro pergunta à ela por onde anda o Amado, e ela, sem pestanejar, indica que o Amado desceu ao jardim. Em uma expressão do amor mútuo que gera a confiança, a Amada não precisa procurá-lo, já que ele está presente em seu coração, metaforicamente simbolizado pelo jardim, onde o Amado tanto colhe açucenas, os lírios do campo que simbolizam a pureza, quando pastoreia, indicando seu cuidado e proteção (Cânt 6, 2). Tamanho é o apaixonamento entre Amado e Amada que no poema seguinte, o oitavo, o Amado expressa: “Afasta de mim teus olhares, pois teus olhares me perturbam” (Cânt 6, 5)
Inspirada pelo sétimo poema dos Cânticos, Teresa redige uma poesia que tem, por refrão, o versículo três da obra citada. Os elementos do êxtase narrado em Vida se repetem, especialmente a presença da seta ou ponta que fere o corpo de Teresa e o sentimento de gozo posterior ao acontecimento.
Entreguei-me toda, e assim
Os corações se hão trocado:
Meu Amado é para mim,
E eu sou para meu Amado.
Quando o doce Caçador
Me atingiu com sua seta,
Nos meigos braços do Amor
Minh’alma aninhou-se, quieta,
E a vida em outra, seleta,
Totalmente se há trocado:
Meu Amado é para mim,
E eu sou para meu Amado.
Era aquela seta eleita
Ervada em sucos de amor,
E minha alma ficou feita
Uma só com o seu Criador.
Já não quero eu outro amor,
Que a Deus me tenho entregado:
Meu Amado é para mim,
E eu sou para meu Amado.
(“Sobre Aquelas Palavras: ‘Dilectus meus mihi’”, P III)
Diferentemente do sétimo poema dos Cânticos, em que o Amado é representado na forma de um pastor, Teresa representa-o nesta poesia como um caçador. A diferença no significado do termo é notável: o pastor simboliza a ternura e calma com que olha o rebanho, protegendo-o dos ataques de lobos; o caçador, por sua vez, está ativamente na busca por sua presa, revelando muito mais a aventura e o perigo do que a tranquilidade. Contudo, apesar do caçador evocar essa imagem audaz, Teresa adjetiva-o como “doce”, o que torna a busca pela Amada, que seria a presa, não desesperadora – como a caça que foge medrosa do caçador – mas aliviadora.
Ao caracterizar a seta que a atingiu, Teresa usa metáforas voltadas para a natureza, mantendo o tom campesino do poema. O “suco de amor” na qual a flecha estava embebida, alinha-se ao adjetivo “ervada”, que possui em si a ideia de envenenamento. Logo, a imagem que Teresa evoca é a do caçador que envenena a flecha com amor e, ao atingir a presa, apaixona-a. A comparação implícita é a da alma com Deus. Quando atingida por tal seta, ela descansa nos braços do Amado e ali repousa, quieta. Retoma-se aqui a ideia de que Deus vai ao encontro da alma, persegue-a em um ato de amor profundo e, ao encontrá-la, pacificam-se e apaixonam-se os dois.
O efeito do apaixonamento na alma é a fidelidade ao “Criador”, já que Teresa recusa qualquer outro amor que não seja esse. A entrega total a Deus, simbolizada na imagem do caçador, revela o quão desiguais são as forças de Teresa para com o divino: por mais que ela deseje resistir e fugir, tal como fora instruída a fazer quando das experiências com o êxtase (V 29, 7), o amor divino é mais forte e mais rápido, enlaçando-a em uma situação de apaixonamento da qual ela não pode mais soltar- -se. Entregar-se ao Amado, para Teresa, constitui um caminho profundo e sem volta. Não há como negar o apaixonamento, não há como fugir de Deus, não há como pertencer a algo ou alguém que não seja ele.
Muitas afrontas e desgostos passei por contar essas coisas, para não falar dos temores e das perseguições. Algumas pessoas tinham tanta certeza de que isso vinha do demônio que queriam me exorcizar. (...) Eu sabia quando via que os confessores tinham medo de me confessar ou quando sabia que lhes falavam de mim. No entanto, eu não podia me sentir pesarosa por ter tido essas visões celestiais, nem as trocaria uma única vez por todos os bens e prazeres do mundo; eu sempre as considerava uma grande graça do Senhor, um enorme tesouro, o que o próprio Senhor muitas vezes me garantia. (V 29, 3)
Inquisição e mística, mística e mulher, mulher e escrita. O percurso de Teresa D’Ávila como escritora atravessa o simples desejo de começar a escrever e é forçado pela obrigatoriedade e pelo temor. A descrição de suas experiências com Deus, entre elas, o êxtase, tornava-a frequentemente objeto de investigação inquisitória, tornando Vida e Relações obras praticamente confessionais, repletas de justificatórias e argumentos que lhe salvariam da condenação da Inquisição. Porém, não é possível afirmar que toda a obra teresiana é escrita sob esse mesmo peso. Na poética, Teresa dá voz aos sentimentos e projeta sua experiência para o papel. Por meio das metáforas, aliterações e antíteses, Teresa realiza jogos de palavras que possam expressar, não para outro, mas para si, o amor que possuía por Deus. Sua obra, então, revela a dicotomia entre o querer e a obrigação, o amor e o temor, que apontam para a discussão sobre para quem a escrita é sinônimo de liberdade e para quem é sinônimo de opressão. Em outras palavras, apontam para a discussão da liberdade.
É preciso considerar Teresa como uma mulher monja, escritora e filósofa no século XVI para discutir acerca de sua liberdade. Como as celas em que dormia dentro dos Mosteiros, os pensamentos e as experiências de Teresa foram muitas vezes aprisionados, diante da rigidez da Contrarreforma. Ainda assim, a coragem de escrever mais de dez obras, uma seleção de poesias e inúmeras cartas – que posteriormente seriam consideradas isentas de erro pela Igreja Católica, a partir de da obtenção do título de Doutora em 1970 – demonstram a persistência de espírito e a habilidade argumentativa que a pensadora teve ao longo da vida, concluindo com êxito não só a reforma carmelita, que perdura até os dias de hoje, mas a construção de uma nova via para Deus. O caminho de oração e a abertura para um Deus que é misericórdia, salvação e amor, inspira novas comunidades na contemporaneidade13 a adotarem Teresa D’Ávila como baluarte, seguindo seus passos.
A temática teresiana é objeto de pesquisa não só de filósofos e teólogos, como Pedrosa-Pádua (2015), mas de psicanalíticos, como Silva (2019), historiadores, como Le Goff (2019) e literatos, como a autora desse artigo, que, para além do contexto inscrito, identificam em Teresa uma pensadora que respondeu às exigências de seu tempo e até mesmo ultrapassou-as. Como mulher, Teresa desafiou os entraves de gênero da época, reformando uma ordem secular e tradicional; como mística, contestou a imagem de Deus, remodelando-o à luz da experiência pessoal e sensível corporalmente; como escritora, obedeceu ao apelo dos confessores e defendeu-se habilmente, além de deixar para a história a poesia-de-si como via existencial para o encontro com Deus.
Deparar-se com a obra teresiana é, enfim, deparar-se com as questões únicas que circundam a literatura feminina, em que a voz é silenciada e o pensamento, muitas vezes anulado. Entre as críticas de histeria, Teresa surge como um dos grandes nomes do Século de Ouro espanhol enquanto poeta. Entre as críticas de loucura, surge como grande filósofa. Em todos os títulos, Teresa ganha espaço como uma mulher que ousa pensar. Grandes são as crises sistêmicas que esse fato desencadeia.
ÁVILA, Teresa de. Escritos de Teresa de Ávila – Obras completas. São Paulo: Loyola, 2001
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2015.
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CARVALHO, V. M. DE. A poesia da mística e a mística da poesia (Poetry of mysticism and the mystic of poetry) - DOI: 10.5752/P.2175- 5841.2012v10n25p53. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 10, n. 25, p. 53-74, 20 mar. 2012.
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2010
Homilia do Papa Paulo VI em ocasião da proclamação de Santa Teresa de Jesus como Doutora da Igreja. 27 de setembro de 1970. Não paginado. Disponível em: http://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/homilies/1970/documents/hf_p-vi_hom_19700927.html
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LIMA, M. G. O erotismo místico na poesia de Teresa de Jesus: aniquilamento e êxtase na busca do absoluto. In: II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba - Sábias, Guerreiras e Místicas, 2012, João Pessoa/PB. II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba - Sábias, Guerreiras e Místicas. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012.
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PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015
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SPITZER, Leo. Três poemas sobre o êxtase. São Paulo: Cosac & Naify, 2003
TODOROV, Tzvetan. Poética da prosa. Lisboa: Edições 70, 1979
—
[1] O Deus de Teresa é um Deus cristão, especificamente, católico. Apesar de Teresa remodelar a visão de quem é esse Outro Absoluto, ultrapassando a imagem criada pelo Antigo Testamento que associava a figura divina ao castigo e à guerra, e chegando ao “Esposo da alma”, Teresa é monja em uma ordem religiosa católica milenar, o Carmelo, o que influencia – e muito – sua formação e visão de quem é Deus.
[2] O presente artigo servir-se-á da seguinte denominação para referir-se à obra de Teresa D’Ávila:
V – Livro da Vida
C – Caminho de perfeição
CAD – Conceitos de Amor de Deus
CO - Constituições
M – Moradas
P – Poesias.
R – Relações
O primeiro número indica o capítulo; o segundo, o parágrafo.
[3] Como o caminho do conhecimento interior é feito de forma literal, Teresa relaciona a luz, que vem do interior, com as certezas e a plenitude, enquanto a escuridão, que rodeia o castelo, é sinônimo dos medos e pecados. Atualmente, existem muitas discussões sobre o racismo presente no uso de tais termos. O uso dos termos “claro” e “escuro” aparece neste artigo apenas para descrição de fenômenos de luz e sombra, utilizando-se de outros termos para valorizar ou desvalorizar o que se é vivido.
[4] “Dichoso el corazón enamorado/ Que en sólo Díos há puesto el pensamiento” (Feliz el que Ama a Díos. P V)
[5] A tradução bíblica utilizada nesse projeto corresponde à edição de Jerusalém da editora Paulus, conforme indicado na bibliografia.
[6] A oração interior é um ótimo caminho para encontrar Deus na alma já que, segundo a pensadora, o recolhimento suave tem por consequência uma imensa paz e consolo. Nas palavras da carmelita, “Os nossos sentidos e as coisas exteriores parecem ir perdendo seus direitos, ao passo que a alma vai recuperando os seus, que havia perdido” (4 M 3, 1)
[7] A referência diz respeito ao número do Livro das Confissões que se diz respeito, bem como seu parágrafo. A edição utilizada da obra consta na bibliografia.
[8] V 1, 2; V 3, 4; V 5, 11
[9] R 10; V 12, 16; V 18, 15
[10] O terceiro capítulo do livro, intitulado muitas vezes como “A queda do homem”, narra o pecado cometido por Adão e Eva.
[11] LE GOFF, 2006, p.11
[12] “O êxtase de Santa Teresa” ou ainda “A transverberação de Santa Teresa” (1647- 1652) é uma obra do grande italiano Gian Lorenzo Bernini, um dos maiores escultores do século XVII. O mármore branco é esculpido para representar o êxtase vivido por Teresa, em que a santa tem o coração transpassado por uma seta do amor divino, ato realizado por um anjo.
[13] As novas comunidades são movimentos iniciados no século XX dentro da Igreja católica que visam renovar a resposta da Igreja por meio de novos carismas, partindo, especialmente da Renovação Carismática. É exemplo de nova comunidade que apresenta Teresa como baluarte da vocação a Comunidade Católica Shalom.