A compaixão do pai no centro do enredo da parábola do filho perdido e reencontrado (Lc 15,11-32)  
Father’s compassion at the center of the plot of the parable of the lost and found son (Lk 15,11-32) 

 

Ildo Perondi*
Fabrizio Zandonadi Catenassi**
*Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Contato: 
ildo.perondi@pucpr.br 
**Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). É docente do curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: fabriziocatenassi@gmail.com 
Voltar ao Sumário

 

Resumo:

Este artigo objetiva investigar a parábola do filho perdido e reencontrado (Lc 15,11-32), mais conhecida como do “filho pródigo”, pelo método da análise narrativa, demonstrando a centralidade da compaixão paterna na perícope. A análise do narrador segue as categorias de Genette e os demais operadores de leitura da narrativa são analisados a partir de Ska e de Marguerat e Bourquin. O enredo foi divido em três cenas, as quais colocam os personagens em relação com a casa paterna e com o próprio pai. No enredo, a atitude de “mover- -se de compaixão” (v. 20) configura-se como o ponto de mudança da narrativa, pois dá início a uma série de transformações que solucionam o conflito da trama. Lucas constrói um jogo de releituras e analepses que colocam em posição central a acolhida do pai ao filho. Pelo efeito de acúmulo construído pelo uso de três parábolas em uma sequência narrativa, e pela identificação do narrador e narratário intradiegéticos, fica claro que a opção do relato não é pela proposta de rechaço feita pelo filho mais velho, mas pela compaixão do pai, já que a própria opção o de Jesus é acolher os pecadores e com eles compartilhar a vida (Lc 15,3).  

Palavras chave: Evangelho de Lucas; Parábola; Análise narrativa; Filho pródigo; Filho perdido e reencontrado  

 

Abstract
This article aims to investigate the parable of the lost and found son (Lk 15,11-32), best known as the “prodigal son”, through the method of narrative analysis, demonstrating the centrality of paternal compassion in the pericope. The analysis of the narrator follows Genette’s categories, and the other narrative operators of reading are analyzed through Ska and through Marguerat and Bourquin. Plot was divided into three scenes, which put the characters in relation to the paternal house and to the father himself. In plot, the attitude of “moving by compassion” (v. 20) is configured as the turning point of the narrative, once it initiates a series of transformations that solve the conflict of the intrigue. Lucas builds a set of rereadings and analepses that place the welcoming of the father to the son in a central position. From the accumulation effect built by the use of three parables in a narrative sequence, and from the identification of intradiegetic narrator and narrator, it becomes clear that the narrator’s option is not for the proposal of rejection made by the eldest son, but for the compassion of the father, since Jesus’ own option is to welcome sinners and share his life with them (Lk 15,3). 

Keywords: : Gospel of Luke; Parable; Narrative analysis; Prodigal son; Lost and found son 

Introdução

Aaplicação dos métodos da teoria literária na interpretação de textos bíblicos do Novo Testamento tem colocado em evidência a arte de narrar dos autores bíblicos e o uso de instrumentos refinados de retórica narrativa, tanto na inspiração da estrutura linguística judaica quanto na assimilação de recursos linguísticos e literários correntes na época da redação dos textos bíblicos. 

Isso é particularmente evidente quando os textos evangélicos são analisados como narrativa. Kermode (1997, p. 408) afirma que a narrativa é uma preocupação muito importante dos Evangelhos e um traço característico dos relatos sobre Jesus, já que não se pode imaginar um cristianismo não narrativo. Para o autor, “o impulso narrativo assumiu formas individuais, e os evangelistas gozavam de um grau considerável de liberdade de composição na invenção e disposição de elementos narrativos” (KERMODE, 21997, p. 409). 

Lucas é um dos autores literariamente mais habilidosos entre os evangelistas e tem despertado estudos da dinâmica narrativa de textos de seu Evangelho. Catenassi e Perondi (2019, p. 344-345) valorizam o uso das cenas-tipo por Lucas e ressaltam seu senso artístico e o seu conhecimento de construções retóricas gregas. Ao analisar Lc 7,36-50, Mendonça afirma que a técnica narrativa lucana está a serviço da busca pela identidade de Jesus feita tanto pelos atores do relato quanto pelos leitores, revelando uma evidente finalidade cristológica (MENDONÇA, 2019, p. 180). 

A análise literária do Evangelho de Lucas feita por Drury coloca a parábola do filho perdido e reencontrado (Lc 15,11-32) junto a do bom samaritano (10,30-35) como modelares para ilustrar o poder de inovação da narrativa lucana. Para o autor, são uma amostra de traços típicos das parábolas de Lucas, especialmente seu “realismo, humanismo e concepção mais otimista da história” (DRURY, 1997, p. 464). 

A parábola conhecida comumente como do “filho pródigo” é parte de uma sequência narrativa que valoriza a dinâmica da perda e do reencontro em alegria, presentes no cap. 15 do Evangelho de Lucas. Por esse motivo, será denominada aqui a parábola do “filho perdido e reencontrado”. Entretanto, mesmo que o tema que guia a história seja a saída e retorno do filho, a centralidade narrativa repousa nas reações a suas ações, especialmente no sentimento compassivo do pai, que gera atitudes de acolhida e restauração da dignidade. 

O protagonismo do pai e sua ação paradigmática na história caracterizam a ação de Jesus em relação aos pecadores convertidos. Esse argumento, ao lado do caráter modelar da parábola para a compreensão da habilidade literária lucana, justificam um olhar narrativo para a perícope, buscando esclarecer o papel central da compaixão na parábola e no contexto da controvérsia de Jesus com os fariseus sobre a refeição com pecadores (Lc 15,1-13). Sendo assim, esse artigo tem como objetivo o estudo da parábola do filho perdido e reencontrado (Lc 15,11-32) a partir do método da análise narrativa, demonstrando a centralidade da compaixão paterna na perícope 1 . A análise do narrador é feita nas categorias de Genette (1995) e os demais operadores de leitura da narrativa são analisados a partir de Ska (2000) e Marguerat e Bourquin (2009). 

1. Contexto literário  

A parábola do filho perdido e reencontrado é uma perícope do capítulo 15 de Lucas, o qual retrata um contexto de controvérsia e ensinamento de Jesus. Em 15,1-2, duas categorias de personagens são apresentadas em evidente oposição: por um lado, publicanos e pecadores, por outro, fariseus e escribas. Os dois grupos são colocados no cenário diante de Jesus que discursa em parábolas, constituindo-os narrador onisciente intradiegético e narratários intradiegéticos, respectivamente. Ainda assim, as atitudes que os caracterizam conferem valências distintas aos personagens. 

O narrador indica que os cobradores de impostos e pecadores estavam em um movimento na direção de Jesus, “aproximando-se dele” (15,1) e seu comportamento era de acolhida da mensagem, pois estavam ali “para ouvi-lo” (15,1). Os representantes oficiais da religião, por outro lado, não são indicados próximos de Jesus. Seu comportamento é oposto aos outros personagens, como indica o v. 2, iniciado com a conjunção kai, com sentido adversativo: “mas murmuravam...”, reprovando a atitude de acolhida dos pecadores feita por Jesus.  

A reação de Jesus é de mestre que ensina e, surpreendentemente, seus discípulos são justamente os pecadores. Inicia-se uma sequência narrativa formada de três parábolas que colocam como centro do ensinamento a alegria pelo encontro daquilo que estava perdido. Com elas, o Evangelho de Lucas consegue manifestar o desejo salvífico de Deus para com os marginalizados que é manifesto na atitude de Jesus de comer com os pecadores para trazê-los à salvação (15,2). 

Ao retratar um público intradiegético e ao oferecer de antemão sua própria resposta, favorável, à questão da acolhida dos pecadores, Lucas diminui os elementos subjetivos na interpretação do relato e orienta o leitor a posicionar-se contra o grupo de fariseus e escribas. Dessa forma, a parábola não funciona como uma primeira narrativa, aberta a diferentes interpretações e sem leitores implícitos (FUNK, 1988, p. 35), mas ganha uma função pragmática para o leitor na macronarrativa. 

Antecedem a parábola do filho perdido e encontrado duas histórias contadas por Jesus. A primeira (15,4-7) trata de uma ovelha que se perde do rebanho de cem ovelhas e do cuidado absoluto do pastor para encontrá-la e reintegrá-la ao grupo, curada de suas feridas. A segunda (15,8-10) conta a história de uma mulher que perde uma de suas dez moedas e a procura com zelo até encontrá-la. Em ambas, o final é alegre: o encontro do que estava perdido é digno de celebração (15,7.10). 

A parábola do filho perdido e reencontrado é colocada na sequência destas duas parábolas, em uma estrutura progressiva. Na primeira parábola, a ovelha se destaca de uma multidão; na segunda, a moeda é uma entre outras; então, a história se afunila para o retrato de somente dois personagens. O filho mais novo que pedirá a herança do pai é apenas um indivíduo de uma dupla, comparado com uma moeda entre dez (15,7-10) e com uma ovelha entre cem (15,4-7), o que contribui para o interesse intrínseco da narrativa, assim como para seu apelo dramático (GREEN, 1997, p. 578). 

Além disso, as parábolas anteriores trazem um animal de um pastor e um objeto inanimado de uma mulher, mas, ainda que ambos sejam valiosos, não alcançam a força dos laços familiares representados na parábola do filho perdido e reencontrado. Esta retrata como a dinâmica de perda-encontro é significada em termos familiares (GREEN, 1997, p. 578) e a aplica com vivacidade na dimensão dos laços humanos. Assim como o filho mais novo se afasta da família e depois deseja ser tratado como o servo, a história também mostra como o filho mais velho estava trabalhando e não quer entrar na casa e celebrar com sua família a volta de seu irmão. 

Esta história, portanto, é uma resposta de Jesus aos que o questionam sobre seus companheiros nas refeições e pede que o leitor se posicione. No contexto, responder de maneira positiva à celebração pelo retorno do filho é também entender os publicanos e pecadores como aqueles que retornaram a Deus, justificando a alegria por sua volta. Ao mesmo tempo, também há uma identificação dos fariseus e escribas que permaneciam nas proximidades de Jesus: querem eles também unir-se à celebração ou ficarão fora da casa como o filho mais velho? Nesse sentido, Bock (1994, p. 1306) é mais rígido, afirmando que a parábola funciona como uma condenação ao protesto daqueles que reagem contra tamanha generosidade divina. 

2. Delimitação e tipo de enredo 

As duas parábolas precedentes são finalizadas com uma conclusão de fundo moral (Lc 15,7.10). A parábola da dracma perdida apresenta: “Eu vos digo que, igualmente, há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (v. 10). Da linguagem discursiva em forma de aforismo, uma nova unidade narrativa é apresentada no v. 11, retomando o discurso de Jesus e preparando a colocação de uma nova história com ei=pen de, (“E disse”, no sentido de “continuar”). À partícula introdutória, segue a exposição do novo relato, apresentando novos personagens (o homem e seus dois filhos). No v. 32, o narrador repete o mesmo fechamento que havia apresentado no v. 24, dando o sentido teológico dos acontecimentos e resolvendo conclusivamente a questão da postura quanto aos pecadores convertidos: é preciso festa e alegria, porque da morte passam à vida e se encontra o que estava perdido. Em Lc 16,1, abre-se uma nova perícope com a fórmula introdutória “E dizia ainda para seus discípulos”, passando do discurso do pai na parábola para a narração, retomando a fala de Jesus e inserindo os discípulos como novos personagens, iniciando o conto de uma nova parábola. 

Em relação ao enredo, a parábola levanta a questão da refeição com os publicanos e pecadores na controvérsia contra os fariseus e escribas (15,2-3), ilustrando o ensinamento de Jesus em termos do comportamento divino para os pecadores. O foco da parábola está no comportamento compassivo e acolhedor do pai, como será explicado adiante, colocado como exemplar em relação aos marginalizados. 

A primeira parte da parábola (15,11-24) mostrará a relação de distanciamento-aproximação do filho mais novo com relação ao pai. Na segunda parte (15,25-32), o personagem do primogênito, que já aparece no v. 11 e permanece em suspenso até este momento da narrativa, começa a atuar, discutindo com o pai a recolocação do filho mais novo no seio da família. O conflito levantado no v. 13 se refere ao afastamento do jovem em relação à casa paterna e à conversão dos títulos de propriedade em capital para a viagem, com o consequente desperdício da herança. O filho mais velho é inserido no início da narrativa, porque será a voz antagônica à reação de acolhida do pai, mas sua fala ainda está em relação ao seu irmão mais jovem, dando unidade temática à perícope, uma vez que dá o sentido de resposta à controvérsia levantada nos vv. 1-3. Além do mais, veremos adiante como o narrador aguça a curiosidade do leitor no v. 24 para que espere uma nova dramatização na trama. 

O enredo da parábola, portanto, é de ação, representando uma mudança de conflito para solução do conflito, podendo ser dividido nas seguintes etapas: 

3. Elementos estilísticos e narrativos

Apresentamos, a seguir, uma discussão acerca dos principais elementos estilísticos e narrativos da perícope, organizados a partir das características do enredo. 

4.Exposição (v. 11)  

Da mesma forma que o relato do samaritano, a exposição da parábola do filho perdido e reencontrado começa com o breve “E disse” (15,11). O narrador tem consciência que os leitores acompanham a sequência narrativa iniciada em 15,1-3 e não lhes permite conhecer nenhum detalhe sobre a reação dos interlocutores. Isso faz com que as três parábolas tenham que ser interpretadas sequencialmente e que o sentido da última seja dado a partir de um efeito de acúmulo das duas anteriores. A apresentação: “Certo homem tinha dois filhos” também é lacônica e simplesmente se ocupa de inserir os personagens em uma nova trama, sem indicação de espaço, tempo ou descrição dos novos agentes. 

A exposição ampla indica a referência principal da leitura inicial da parábola: o pai. É ele que tem dois filhos e vê o mais novo solicitar parte dos bens e afastar-se da casa. A imagem é poderosa quando vista na macronarrativa lucana. Uma representação primária de Deus na viagem para Jerusalém era como Pai, já presente anteriormente no Evangelho de Lucas (11,1-13; 12,22-34). Green (1997, p. 579) ensina que o desenho lucano destoa da imagem de pai encaixada nos horizontes do mundo romano: nessa sociedade patriarcal, as características atribuídas ao pai geralmente se remetiam ao autoritarismo e controle legal ao invés de cuidado e compaixão. O leitor pode, então, procurar no pai da parábola características que ajudam a ilustrar a figura de Deus nos discursos de Jesus. Além do mais, a informação de que “tinha dois filhos” (v. 11) é completada no final do v. 12 por “dividiu entre eles o patrimônio” (v. 12). Estas informações preparam a estrutura bipartida da parábola (FITZMYER, 1986, p. 677). 

5. Início da ação e conflito (vv. 12-13)

O início da ação é caracterizado no v. 12: o filho mais jovem solicita sua parte referente à herança. Seu pedido não feria as leis agrárias e de herança do primeiro século da era cristã, uma vez que, ainda que desaconselhável (cf. Eclo 33,19-23), um jovem poderia pedir a parte que lhe competia de uma herança ainda em vida (BOVON, 2004, p. 64). O ideal de vida israelita era estar em uma família numerosa, como meio de sobrevivência, cooperação econômica e proteção dos bens, uma vez que o usufruto de uma propriedade permanecia com o pai, ainda que o título houvesse sido passado para o filho. Na lógica da parábola, o pai poderia relacionar sem prejuízo as partes da herança para os dois filhos em um documento, porque se o jovem decidisse vender seus bens, o comprador só teria acesso ao terreno depois da morte do pai. Contudo, quando o pai falecia, o filho perdia todos os direitos sobre o capital e sobre o usufruto (FITZMYER, 1986, p. 678). Assim, o melhor mecanismo para manter as propriedades de uma família era a vida comunitária, trabalhando na terra sem loteá-la de acordo com os direitos de cada filho na herança (PERONDI; CATENASSI, 2014, p. 182-183). Por isso, o pedido do filho não soa como injusto diante dos leitores, mas certamente como imprudência. 

Bovon (2004, p. 60) nota que a liberdade do filho mais novo não seria concreta sem a aprovação do pai, que se rendeu aos desejos do jovem e acatou seu pedido (v. 12), dividindo to.n bi,on entre os filhos. A escolha de bi,oj para designar “patrimônio” é salutar (com o mesmo significado em Lc 8,43; 21,4), já que o termo primariamente designa a vida e, por assimilação, as preocupações básicas que mantêm alguém vivo, também representando os meios de subsistência na forma de propriedades. Dessa forma, os bens repartidos pelo pai eram garantidores da vida do filho mais jovem quando estivesse fora da casa paterna. 

O v. 13 traz uma notação temporal que denota a urgência da partida do filho mais novo, mostrando suas medidas abruptas e surpreendentes, que formam o conflito no relato. O jovem deixa a casa do pai com pressa, “depois de não muitos dias” – um litotes, expressão ou frase suavizada ou negativa para expressar uma afirmação (HENRIQUES, 2011, p. 150). Mais ainda, se a solicitação da herança mesmo com o pai vivo não era um problema para o judaísmo, a transformação dos títulos de pertença em um capital transportável (como indica o “ajuntando tudo”, sunagagw.n pa,nta) era muito mais dramático (HARNISCH, 1998, p. 177). 

Assim, o conflito fundamental da parábola manifesta-se na saída fugaz e no afastamento do filho da casa paterna, o que combina bem com a temática do cap. 15, da perda-encontro. Como vimos, na sequência narrativa que comporta as três parábolas, a perda do pai é acentuada em relação às perdas anteriores, uma vez que perder um filho de dois representa 50% de perda, enquanto as razões da ovelha e da moeda em relação ao todo constituem um prejuízo menor (LEONEL; TONIOLO, 2020, p. 264). A perda do filho mais novo por seu pai remete ao início do capítulo, quando Jesus é questionado sobre sua relação com os que estão “perdidos”, ou seja, desvinculados da religião oficial por termos legais. Nesse sentido, o foco do leitor recai na questão da legitimidade da relação com aqueles que, por variados motivos, estão marginalizados do culto e são infratores da Lei. O conflito da parábola se estende para além do abandono da casa paterna, referindo-se ao rompimento deliberado de suas relações com o pai. 

Assim, durante todo o relato, à luz do comportamento de Jesus, o leitor esperará a reação do pai diante do filho que se afastou. O início da ação, então, convida o leitor a colocar-se no ponto de vista do pai e acompanhar os acontecimentos que seguem. Muitos autores consideram o pai como autêntico protagonista da parábola (FITZMYER, 1986, p. 673; GOURGES, 2005, p. 117-120; MARSHALL, 1978 p. 604), ainda que ocupe o papel de actante somente a partir do v. 20. 

O v. 13 também salienta o deslocamento espacial do jovem, que se dirige “a uma região distante”. Dessa forma, a primeira cena abandona o ponto de vista do pai, mas o mantém como referencial para interpretar a história a partir do ponto de vista do filho mais novo. O narrador estabelece uma crise que se desenvolve em uma crescente: reúne seus bens, parte para região longínqua e dissipa sua herança. A partir do v. 13, o narrador começa a estabelecer seus julgamentos sobre o comportamento do filho, mostrando um tom moralmente indignado e um vocabulário crítico (BOVON, 2004, p. 60) que demonstra as consequências do afastamento e “perda”. O juízo de valor é claro: sua vida era dissoluta, licenciosa, ainda que só no v. 30 seja esclarecido a que a afirmação se refere. 

6. Primeira e segunda dramatizações (vv. 14-19)  

As consequências diretas do afastamento da casa do pai constituem a primeira dramatização (vv. 14-16), descrita em termos de uma crise generalizada que levará à miséria. O “ajuntando tudo” (sunagagw.n pa,nta) do v. 13 corresponde antiteticamente ao “tendo gasto tudo” (dapanh,santoj ... pa,nta) do v. 14. Rapidamente, o relato mostra a perda total da herança paterna. O tempo da narrativa é sinalizado com esta breve anotação, caracterizando uma omissão ao deixar de descrever como os bens vão chegando ao fim além da menção à vida dissoluta do jovem. O relato é direto e preciso quando simplesmente diz que o afastamento da casa do pai para uma vida sem valores gerou a miséria extrema. A diferença entre o tempo da narrativa e o tempo do discurso desloca o foco da perda para a releitura da vida sob os cuidados da casa paterna e para o caminho de reencontro. 

A consequência da falta dos bens que garantiam a vida foi uma carência progressiva. O filho “começou a passar necessidade” (v. 14) até que chegou um estado de total insatisfação e privações, e então, “queria saciar-se” (v. 16), pois passava fome. A fome que sobreveio na região é descrita com o termo limo.j (15,14), usado na LXX, fazendo pensar na escassez do tempo de José (BOVON, 2004, p. 66). De fato, Drury (1997, p. 465) sinaliza a parábola do filho perdido e reencontrado recorrendo a vários elementos da história de José do Egito. 

Como contraste à vida cheia de cuidados na casa do pai, o texto enumera as duras consequências de perder-se e afastar-se de lá (v. 15). O produto é a dependência de um estrangeiro e um trabalho indigno para o mundo judaico. Sair da região e dirigir-se aos campos para cuidar dos porcos significa afastar-se ainda mais de seu espaço de origem. A narrativa diz que o jovem se uniu a um cidadão (evkollh,qh e`ni. tw/n politw/n) daquela região nos mesmos termos de At 10,28, citando a legislação que julga o judeu unido a um gentio (kolla/sqai h ' prose,rcesqai avllofu,lw|). O trabalho com os porcos é condenado pelo judaísmo (cf. Lv 11,7; Dt 14,8; 1Mc 1,47). Fitzmyer recorda a imprecação rabínica: “Maldito seja o criador de porcos e maldito o que instrui seu filho na sabedoria grega” (FITZMYER, 1986, p. 680). Esse tipo de trabalho e a união com os estrangeiros configura a situação jurídico-religiosa do filho perdido aos cobradores de impostos e pecadores, que também estavam à margem da Lei e da religião judaicas por sua profissão ou por suas atitudes. 

Após descrever os acontecimentos que sucederam, a voz narrativa guia o leitor para a vida interior do filho perdido, detendo o tempo do discurso. Em quatro versículos, oferece a interpretação do jovem sobre sua situação e a construção da decisão de retornar à sua origem. O narrador sumariza a experiência no trabalho indigno ressaltando a fome do jovem e permitindo conhecer seu desejo: quer as alfarrobas que os porcos comiam. No entanto, fora de casa não há cuidado: ninguém dá (evdi,dou, v. 16) ao rapaz o essencial para a vida. Eis aqui mais um contraste com a figura paterna: para o pai, o filho havia pedido que desse (diei/len, v. 12) a ele os bens que lhe eram correspondentes e seu pedido foi atendido. Enquanto o pai acolhe o que ele deseja, em meio ao afastamento, ninguém lhe dá nada. 

A necessidade crescente alcança seu clímax quando, no v. 16, o jovem se junta aos animais de forma que deseja o mesmo que eles porque não pode satisfazer seus desejos vitais (HARNISCH, 1989, p. 178). Assim, mostra o processo de desumanização, que combina bem com a perda dos bens: se esse patrimônio são os meios de manutenção da vida humana (bi,oj, v. 12), perdê-los transforma seu desejo em apelo por sobrevivência, ainda que em termos dos animais fortemente impuros para o judaísmo. Ao perder-se e perder todos os bens, o jovem também “perde” sua condição inicial de filho, com a qual a narrativa é aberta, e passa a viver primeiro como servo e, então, como os animais – ou ainda inferior aos porcos, porque estes tinham comida e ele nem podia alimentar-se. 

A segunda dramatização (vv. 17-19) apresenta uma cena de reflexão, permitindo ao leitor conhecer com profundidade o mundo interior do personagem a partir de uma cena de transição que preparará o cume e a resolução do conflito, com a volta do jovem para sua casa. O narrador diminui significativamente sua presença no relato, abrindo caminho para que os personagens guiem a história. No v. 17, um monólogo interior oferece a comparação da situação imediata de servidão com aquela vivida na casa do pai, o que transformará o projeto do filho, mas agora com uma modesta ambição, uma vez que este só deseja o que corresponde ao seu último emprego (BOVON, 2004, p. 61). 

O jovem entra em si mesmo (v. 17) como contraponto à sua competição com os porcos por comida, como acentua a conjunção de,, aqui com valor adversativo: “Mas entrando em si mesmo...”. A expressão é parte do vocabulário religioso da época e, para o judaísmo helenístico e para o cristianismo, é uma etapa decisiva da conversão (meta,noia), do retorno a Deus (BOVON, 2004, p. 67; FITZMYER, 1986, p. 680-681). Contudo, mesmo que represente um momento da contrição, as informações do relato não descrevem uma penitência com sentido pleno. 

Em primeiro lugar, o cair em si leva à comparação com os empregados da casa do pai. Na reflexão, o jovem não busca restaurar sua condição filial anterior, mas deseja ser tratado como o operário do campo (mi,sqioi, 15,17.19), amenizando a situação tão frágil na qual se encontrava e conseguindo o básico para sua sobrevivência (HARNISCH, 1989, p. 178). O termo grego identifica o trabalhador do campo e não o servo; este primeiro recebia o misqo,j ao terminar o dia (cf. Lv 25,30; Jó 7,1; Tb 5,14), porém, em termos de status, estava muito menos seguro que um servo (GREEN, 1997, p. 581). Ainda assim, os mi,sqioi tinham uma condição melhor na casa paterna do que o jovem sofrendo nas mãos de um estrangeiro. 

“Entrar em si mesmo” expressa o momento em que a mudança de intenções começa a acontecer, desencadeando atitudes que darão uma nova direção para o relato. Dessa forma, não constitui o ponto de mudança da história, especialmente em relação ao tema central do conflito: a saída do jovem da casa desperdiçando, assim, a herança e sua condição filial. No contexto do cap. 15, o foco está na acolhida alegre do que foi perdido, de forma que a cena reflexiva do filho prepara o clímax do relato discutindo a viabilidade do retorno à casa e denotando a incerteza sobre como será acolhido. Isso leva o leitor à discussão central levantada pelos fariseus e escribas nos vv. 1-3: qual deve ser a postura de Jesus frente aos pecadores? 

Para discutir esta questão, o narrador apresenta primeiro o plano de regresso à casa do pai, dando a conhecer os motivos de sua elaboração e suas etapas. Assim, os vv. 18-19 funcionam como um solilóquio com função proléptica, porque antecipam os eventos que irão acontecer e o discurso que será feito pelo filho mais jovem. O plano de ir até o pai é uma prolepse verbal de um ato não-verbal e o planejamento da fala é uma prolepse verbal de um ato verbal (FUNK, 1988, p. 202-203). 

O verbo poreu,w no indicativo futuro (“irei”, v. 18) não é usado só para indicar o que acontecerá, mas para sublinhar as intenções programáticas do jovem. Há um plano do retorno, em contraste à vigorosa e urgente decisão anterior de afastar-se da casa familiar. O narrador permite conhecer o processo de arquitetura do plano e sua motivação interior, nos seguintes termos: 

a) “Pequei contra o céu e contra ti”: uma confissão de pecados direcionada em primeiro lugar à ordem estabelecida por Deus, prejudicando também seu próprio pai e, assim, o reconhecimento de seu fracasso na tentativa de emancipar-se. Bovon (2004, p. 68), baseado no Pastor de Hermas, indica que pecar contra o Senhor e contra os pais é uma falta grave. 
b) “Não mereço ser chamado teu filho”. O reconhecimento da consequência mais impactante de sua decisão: perder a condição filial. Ainda que o narrador use o verbo “chamar” (kale,w, 15,19), a dimensão do versículo entrevê uma condição ontológica. O que está em questão não é a nomenclatura, mas a dignidade filial perdida com a decisão de afastar-se da proteção paterna. 
c) “Trata-me como um de teus empregados”. O pedido de um novo posto de trabalho que permita que ele subsista. A volta não reflete um retorno à condição original, mas supõe uma condição penosa para ele, uma continuação da degradação sofrida com sua decisão de ir para o estrangeiro (HARNISCH, 1989, p. 179). O movimento é pessimista e descendente e simplesmente adapta sua condição atual a perspectivas mais dignas para a vida, mas não muda seu status como servo. 

7. Ponto de mudança (v. 20)

A mudança de cenário e o retorno do pai na ação principal caracteriza a abertura de uma nova cena, que mostra o ponto de mudança do relato (v. 20) e a primeira resolução do conflito (vv. 21-24). Essa segunda unidade acontece próxima da casa do pai, mas ainda um pouco distante. Os cenários são montados tendo o pai como referência: é o afastamento ou a aproximação dele que cadencia o relato e estrutura os conflitos, já que a distância implica sofrimento (LEONEL; TONIOLO, 2020, p. 265). O reestabelecimento da relação com o pai, mediado por sua compaixão imerecida, é o que supera o conflito. 

O plano é levado a cabo com o mesmo dinamismo da primeira saída. Se no v. 18 o filho mais novo propõe a si mesmo levantar (avnasta.j) e partir, o v. 20 mostra o cumprimento: ele levantou (avnasta.j), sem tergiversação. Entretanto, a partir do v. 20, as ações do filho mais novo se esgotam e o pai começa a aparecer como sujeito dos verbos e sua posição torna-se central na narrativa. O leitor que acompanhou as parábolas anteriores, cheias de alegria pelo reencontro, agora pode questionar: Qual seria a reação do pai? Receberia o filho com dignidade? Castigaria suas más condutas? Permitiria que o jovem ingrato trabalhasse em seus campos novamente? Em última instância, vale a pena acolher um pecador com erros tão significativos? 

 Mais uma vez, o narrador não esconde de qual lado está: ele havia condenado a vida dissoluta do filho e agora aprova o bem manifesto pelo pai. Para o leitor, aqui está a chave para a resolução da controvérsia entre Jesus e seus adversários. A reação do pai está no centro do relato como o grande ensinamento que reflete a condição dos perdidos diante de Deus e o comportamento de Jesus para com os publicanos e pecadores. A grande questão era sobre a legitimidade da convivência com estas pessoas em condição legal e religiosa desfavorável. A parábola do filho perdido e reencontrado não deixa nenhum rastro de dúvidas sobre a postura do pai com relação ao jovem ingrato e que havia pecado contra o céu e contra ele (15,18.21), bem descrita em 15,20: quando estava ainda longe, o pai o vê, é movido de compaixão e vai ao seu encontro correndo. 

Na última cena da parábola, o afastamento do filho é descrito como morrer e seu retorno como reviver (vv. 24.32). É justamente a compaixão do pai ao vê-lo regressar que dá condições para que o filho recobre sua dignidade de vida, configurando, portanto, o ponto de mudança do relato. A partir dessa ação compassiva, o narrador faz uma viva descrição dos desdobramentos práticos desse sentimento que move o pai até o filho pecador. O pai também tem um projeto, que suplanta o do filho, o qual é iniciado pela compaixão, que é central no relato e leva a atos simbólicos concretos de restauração (GREEN, 1997, p. 582-583). 

Tal acolhida do pai é estruturada a partir de uma cena-tipo, também usada para as outras ocorrências do verbo splagcni,zomai (“mover-se de compaixão”) no Evangelho de Lucas, a saber, na reanimação do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17) e na parábola do samaritano compassivo (Lc 10,29-37). Os elementos que demarcam essa cena-tipo são (CATENASSI; PERONDI, 2019, p. 352-354): (a) um conflito expresso pela semântica da morte; (b) o protagonista vê a situação; (c) é movido de compaixão; (d) aproxima-se da situação de morte; (e) e faz ações transformadoras que geram vida. Esses elementos, orbitando ao redor do verbo splagcni,zomai, caracterizam a centralidade da ação compassiva como ponto de mudança dos relatos. Na parábola do filho perdido e reencontrado, a surpresa não está em que o pai aceite o filho, mas em que aceite de tal maneira compassiva! 

8. Primeira resolução (vv. 21-24)

Os elementos que caracterizam a solução do conflito são vivos e afetivos: o pai se lança em um abraço e beija o filho. Na tradição bíblica, o beijo pode ser visto como um símbolo de perdão (cf. 2Sm 14,33). A reação do filho é colocar em prática seu indecoroso plano tripartido que culmina colocando-se a serviço do pai como um dos empregados. Portanto, faz sua confissão de pecados e costura a ela o reconhecimento de sua indignidade e fracasso (v. 21). Contudo, quando o discurso seria arrematado com a proposta do filho de manter-se na condição de trabalhador, o narrador interrompe o discurso. Ao invés de ouvir seu desejo de trabalhar como um dos servos, o pai retoma a ação e fala com seus próprios servos para que tragam sinais concretos do resgate da condição filial de seu filho mais novo. 

Para Bovon, a reação do pai é de uma pressa que é suscitada pelas emoções, o que faz que interrompa o discurso do filho no meio (BOVON, 2004, p. 61). É verdade que a ilustração do pai é de alguém profundamente emocionado com o retorno de seu filho perdido, mas a elipse da última parte do discurso do filho é mais significativa. Para o pai, é suficiente que o filho reconheça que sua empreitada não funcionou como desejava. O importante não é o remordimento das dores do caminho ou um gesto penitencial alongado que comprove com marcas concretas a conversão interior do jovem. Muito menos que se coloque inferior à sua dignidade inicial para auto infligir um merecido castigo por suas ações ruins e aceitar sua própria condenação. O pai havia sido movido pela compaixão e não escolhe o castigo como caminho pedagógico, mas preocupa-se, sobretudo, com a proximidade e restauração da dignidade outrora perdida 

Dessa forma, o pai restaura no jovem o status de filho e, como resultado concreto de sua compaixão, reconcilia-o com seu papel de membro da família, com um amor transbordante e uma indulgência notável (HARNISCH, 1989, p. 180). A dignidade filial é bem identificada com a restituição da túnica, definida com prw,thn (v. 22), podendo indicar a túnica “primeira” em sentido cronológico, como a veste filial que teria ficado guardada pelo pai ou também a “melhor” veste, a mais bonita, dedicada aos hóspedes de honra. O anel está ligado a um símbolo de poder (cf. Gn 41,42) e, diferente dos visitantes que tiravam o calçado, o jovem recebe um calçado. Para a simbologia israelita, pisar calçado em um terreno significava tomar posse dele (BOVON, 2004, p. 70). 

Esta primeira parte encerra-se com o chamado à celebração. Este é o fechamento mais ilustrativo da relação de Deus com os pecadores, não em termos de condenação, mas de alegre acolhida pelo primeiro sinal do anseio à conversão 2 . A acolhida do filho na casa paterna é feita publicamente, o que é marcado quando corre ao encontro do filho (pelo formato espacial dos vilarejos na Palestina), quando mata o novilho (produzindo carne para um número grande de pessoas) (JEREMIAS, 1974, p. 159) e quando faz uma grande celebração para comemorar sua volta. O novilho que estava sendo cevado para uma festa especial é a grande marca da generosidade do banquete que, por sua vez, reflete a própria generosidade do pai que beira o desmedido, que doa sem contar as consequências, com uma alegria absoluta pelo filho que volta. 

A generosidade tem um motivo claro: acontece porque o filho estava morto e reviveu (v. 24). O adjetivo “morto” certamente tem o sentido metafórico conectado à vida moral corrompida (FITZMYER, 1986, p. 684). A outra caracterização no v. 24 é do perdido que foi encontrado, harmonizando com as duas parábolas anteriores. Assim, a parábola sinaliza para a resolução do conflito sobre a acolhida dos errantes: os pecadores que decidem voltar à casa do Pai devem ser recebidos com alegria e celebração. 

O final do v. 24 poderia ser o fechamento de todo o relato e encerrar a unidade narrativa, já que conduz a uma pausa narrativa e é quase uma conclusão (BOVON, 2004, p. 61). Contudo, ainda permanecia em suspenso a informação trazida pelo v. 11: “um homem tinha dois filhos”, o que exige a inserção do outro filho no relato. No final do versículo, o infinitivo euvfrai,nesqa é precedido por h;rxanto: “começam a festejar”. É só o início da festa, algo mais pode acontecer. 

9. Terceira dramatização (vv. 25-30)

Uma nova cena (vv. 25-32) é aberta, mais uma vez tomando o pai como referencial e a posição dos personagens em relação à casa. Há uma terceira dramatização (vv. 25-30) colocando o filho mais velho fora da casa e levantando problemas quanto à acolhida do filho mais jovem. A forma das parábolas anteriores apontava para um desfecho ressaltando a alegria e festa no céu pelo encontro do que estava perdido (Lc 15,7.10). A parábola do filho perdido e reencontrado quebra essa sequência e, após uma primeira resolução, a inserção do novo personagem e da retomada do conflito trazem um novo elemento de surpresa, levando a história a um novo clímax e uma nova resolução (SKA, 2000, p. 28). Isso atrasa a conclusão e gera um suspense final ao leitor. 

O filho mais velho, embora próximo ao pai, também se encontra perdido em virtude do posicionamento assumido, o que é exemplificado em sua recusa de entrar na casa (LEONEL; TONIOLO, 2020, p. 271). No contexto literário amplo, o comportamento do filho mais velho é uma boa representação dos líderes judeus. Para Bock (1994, p. 1306), esta seção funciona como um “espelhamento parabólico” da situação real apresentada no Evangelho, uma vez que é parte da queixa dos fariseus (15,1-3). A atitude do filho maior caracterizaria os fariseus e doutores da Lei; estes ficam alegorizados em alguns detalhes na fala do filho mais velho, como “sem desobedecer nunca uma ordem sua” (15,29) ou “tantos anos que te sirvo” (15,29) (FITZMYER, 1986, p. 674; MARSHALL, 1978, p. 611). 

Gourges (2005, p. 118) prefere ver uma correspondência antitética entre as duas seções. Harnisch (1989, p. 180) afirma que o relato segue uma construção em paralelo, aproximando e contrastando o comportamento do filho mais novo (A) e do mais velho (A’) (quanto à situação, tomada de consciência, reação) e a interação com o pai com o caçula (B) e com o primogênito (B’) (iniciativa do pai, atitude do filho e reação do pai). De fato, essa seção é construída com uma série de aproximações à seção anterior. O primogênito, assim como seu irmão, também está fora de casa e não quer entrar. Também estava trabalhando no campo. O diálogo com o servo parece um espelhamento do monólogo do irmão mais novo. O pai também vem ao seu encontro com palavras de consolo. Contudo, um diálogo amargo, ainda que respeitoso por parte do filho e afetivo por parte do pai (vv. 28-32) substitui os abraços silenciosos (v. 20). 

O servo que dialoga com o irmão mais velho ocupa a função de narrador hipodiegético e, com uma analepse, retoma a volta do irmão mais novo e o acolhimento do pai em forma de festa. Repetir os eventos e as intenções é um recurso para que o leitor reconheça a importância deles. O servo diz que o filho mais novo foi encontrado “com saúde” (u`giai,nonta, v. 27), um termo que está em estreita ligação com o sentido de uma qualidade cristã, assim como “recuperar” (avpolamba,nw, v. 27) também recebeu um sentido espiritual no cristianismo primitivo (FITZMYER, 1986, p. 685). A reação do filho mais velho no v. 28 é clara: sente cólera diante da festa que vê. Em geral, os gestos de ira no Novo Testamento são condenáveis (cf. Mt 5,22; Tg 1,20) (BOVON, 2004, p. 71). Também o narrador não se coloca ao lado do filho mais velho. Uma vez mais, resgata o protagonismo do pai, que sai ao encontro do filho para solucionar a situação. 

No discurso do primogênito retratado no v. 29, são dignos de nota dois aspectos fundamentais: (a) a relação do filho com o pai é desenhada mais em termos de deveres que de afeto; (b) o uso desdenhoso de “este teu filho” (o` ui`o,j sou ou-toj) ao invés de chamá-lo de “irmão”. A fala do filho mais velho constitui uma analepse que é iterativa, resgatando elementos já narrados pelo servo mas também singulativa, uma vez que apresenta elementos desconhecidos pelo leitor: sua fidelidade e o desperdício da herança pelo filho mais novo com prostitutas. Traz uma nova luz aos eventos já narrados e um novo ponto de vista, retratando a suposta injustiça do pai. O discurso modifica a informação de que o jovem havia sido recuperado com saúde, enfocando as características de seu pecado. Enquanto o pai age movido pela compaixão, em antítese, o filho mais velho age com cólera e não enxerga a força da conversão, mas os bens gastos de forma vil e a falta de uma punição correspondente. 

10. Segunda resolução (v. 31) e desfecho (v. 32)  

Uma segunda resolução (v. 31) é apresentada, novamente a partir da resposta do pai, acolhedora e generosa. Uma nova analepse recorda o retorno do filho mais jovem, dando a intepretação correta dos acontecimentos, moldando-os sob uma nova perspectiva. Inicia-se de forma afetiva, com o vocativo “filho”. Note-se que “filho”, ocorre várias vezes no texto como ui`o,j, porém, no v. 31, o pai o chama de te,knon, que tem o mesmo significado, mas com sentido mais forte; te,knon é aquele que foi gerado das entranhas, então seu uso revela a aproximação com o verbo splagcni,zomai, “ser movido de compaixão” (v. 20). Em outras passagens, o termo te,knon é empregado para exprimir sentimentos de compaixão (cf. Mt 9,2). 

O pai novamente reforça os laços filiais e recorda o papel do filho no seio da família: “Tudo o que é meu é teu” (pa,nta ta. evma. sa, evstin, v. 31). Por isso, para manter a integridade das relações, também facilita sua reconciliação com o irmão. Primeiro, coloca o júbilo pela volta do jovem não como eletivo: o comportamento diante do pecador que se converte exige, faz necessária (e;dei, 15,32) a festa e a alegria e deixa a celebração aberta para a participação de todos. O pai corrige a colocação do jovem nas relações familiares com uma recapitulação dos vv. 23-24 no v. 32. Nela, “este teu irmão” (v. 32) substitui o “este teu filho” (v. 30). 

Mais uma vez, retoma-se a interpretação da situação não pelo filtro da cólera, mas da compaixão, apresentando o desfecho (v. 32), uma conclusão teológica do relato: a alegria é necessária quando se passa da morte para a vida, quando se reencontra o que estava perdido (15,33). O final não mostra a resposta do filho mais velho. Trata-se de um método de suspensão da história, interrompendo-a a fim de deixar certa expectativa no leitor. Marguerat e Bourquin (2009, p. 63) mostram que Lucas é especialista nesse tipo de suspensão da narrativa (Lc 4,1- 13; 7,36-50; 15,11-32; At 28,30-31). Nesse caso, torna-se um convite para que o juízo negativo sobre a refeição com os pecadores feito pelos fariseus e escribas (vv. 1-3) seja definitivamente rejeitado pelo leitor e que a compaixão seja assumida como forma de vida que aproxima o cristão a Jesus e ao Pai.  

Considerações finais 

Esse artigo realizou uma análise narrativa da parábola do filho perdido e reencontrado (Lc 15,11-32), com o foco na posição central do sentimento de compaixão apresentado pelo pai na história. A divisão do enredo foi feita a partir de três cenas, as quais colocam os personagens em relação espacial com a casa paterna e com o próprio pai. Na primeira (vv. 11-19), o filho mais novo afasta-se da casa do pai; a segunda (vv. 20-24) mostra o retorno à casa e o encontro com o pai no caminho; a terceira (vv. 25-32) retrata o diálogo entre o pai e o filho mais velho fora da casa. 

O enredo foi retratado a partir do binômio conflito-solução. O conflito fundamental da parábola é o afastamento do filho mais jovem da casa paterna e a dramatização retrata o sofrimento por estar longe, sem os bens que dão sustento à vida, entendidos para além do suporte material. A resolução do conflito começa com a acolhida do pai na ocasião do retorno. No enredo, a atitude de “mover-se de compaixão” (v. 20) configura-se como o ponto de mudança da narrativa, pois dá início a uma série de transformações que levam a narrativa ao descanso, após uma dramatização apendicular. Nesse sentido, a atitude compassiva do pai é colocada como a chave de leitura dos acontecimentos que seguem. 

A narrativa apresenta padrões contrastantes de resposta à volta do filho mais novo. Lucas constrói um jogo de releituras que levam o leitor a dois diferentes pontos de vista: por um lado, o do pai – reiterada pelo ser vo –, indicando a compaixão como o nicho revitalizador dos pecadores; de outro, o do irmão mais velho, indignado, que entrevê a necessidade de punição e a rejeição à celebração. O pai é colocado como o intermediador do conflito apresentado nos dois filhos e o uso extensivo de analepses reforça que a resolução derradeira e paradigmática do conflito é encontrada em sua atitude: a compaixão que gera a restauração da vida, pedindo a celebração como resposta. O pai dá a verdadeiro interpretação da história com seu discurso e com sua ação compassiva. 

No início do cap. 15, Jesus foi apresentado como narrador onisciente intradiegético (Lc 15,3) e os narratários também são identificados no relato. A partir do efeito de acúmulo construído pelo uso de três parábolas em uma sequência narrativa, fica claro que a opção do narrador não é pela proposta de rechaço feita pelo filho mais velho, mas pela compaixão do pai, já que a própria opção de Jesus é acolher os pecadores e com eles compartilhar a vida (Lc 15,3). As alegorias de Lc 15, em geral, são descobertas somente com esforço do leitor, como na parábola da ovelha perdida, que compara a alegria do reencontro com a alegria do céu. Na última parábola, elas são atenuadas, pois a aplicação do conflito de perda-encontro é feita em termos eminentemente humanos. 

O leitor atento encontrará o pai como modelo de Deus que se expressa em Jesus, o irmão mais velho como representação do judaísmo do tempo de redação do Evangelho e o irmão mais jovem como exemplo do cristianismo “pecador” que se converte de fora do judaísmo. Dessa forma, a ênfase da parábola recai sobre a dimensão humana dos personagens. É um contraste com os animais e objetos inanimados das duas parábolas anteriores. A vida interior dos personagens é descrita com sutileza e detalhes, destacáveis no modelo judaico de narrar. No íntimo do ser humano, Jesus convoca o nascimento da compaixão como marca de identificação com o céu. Cabe ao leitor decidir se entra novamente na casa do pai ao escutar a música tocando. É um convite para uma festa na qual somente quem se move de compaixão consegue celebrar. 


Referências

BOCK, P. L. Luke 1:1–9:50. Grand Rapids: Baker Academic, 1994. 

BOVON, F. El Evangelio según San Lucas. Vol. III. Salamanca: Sígueme, 2005. 

CATENASSI, F. Z.; PERONDI, I. Bíblia e ciências da linguagem: recursos literários e cenas-tipo no Evangelho de Lucas. Teoliterária, São Paulo, v. 9, n. 17, 2019: 338-358. https://revistas.pucsp.br/index.php/teoliteraria/article/view/39397/28507 

DRURY, J. Lucas. In: ALTER, R.; KERMODE, F. Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação da Editora da Unesp, 1997, p. 449-471. 

FITZMYER, J. A. El Evangelio según Lucas. Vol. III. Madrid: Cristiandad, 1986. 

FUNK, R. W. The poetics of Biblical narrative. Sonoma: Polebridge Press, 1988. 

GENETTE, G. O discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Veja, 1995. 

GOURGES, M. As parábolas de Lucas: do contexto às ressonâncias. São Paulo: Loyola, 2005. 

GREEN, J. B. The gospel of Luke. Grand Rapids: Eerdmans, 1997. (The New International Commentary on the New Testament).

HARNISCH, W. Las parábolas de Jesús: una introducción hermenéutica. Salamanca: Sígueme, 1989. 

HENRIQUES, C. C. Estilística do discurso. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 

JEREMIAS, J. Las parábolas de Jesús. 3. ed. Estella: Verbo Divino, 1974. 

KERMODE, F. Introdução ao Novo Testamento. In: ALTER, R.; KERMODE, F. Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação da Editora da Unesp, 1997, p. 403-415. 

LEONEL, J.; TONIOLO, R. C. As voltas do filho pródigo, de Autran Dourado, e a parábola bíblica. Cerrados, Brasília, v. 29, n. 53, 2020: 250-283. https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/issue/view/1944/529 

MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. MARSHALL, I. H. The gospel of Luke. Carlisle: The Paternoster, 1978. 

MENDONÇA, J. T. A construção de Jesus: a dinâmica narrativa de Lucas. São Paulo: Paulinas, 2019. PERONDI, I. A compaixão de Jesus com a mãe viúva de Naim (Lc 7,11-17): o emprego do verbo splangxizomai na perícope e no Evangelho de Lucas. Tese (Doutorado em Teologia Bíblica). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2015. 

PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z. Quando se vive como irmãos há bênção e vida para sempre! Uma análise do salmo 133. Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 31, n. 122, 2021: 175–188. https://revista.abib.org.br/EB/ article/view/253 SKA, J. L. “Our fathers have told us”: introduction to the analysis of Hebrew narratives. Roma: Editrice Pontificio Istituto Biblico, 2000.  

Notas

[1] O texto revisa, amplia e modifica a seção da tese de Perondi (2005, p. 209-223). 

[2] Para Green (1997, p. 578), ainda que o ponto de mudança da parábola esteja intimamente relacionado à atitude afetiva do pai, este amor é expresso em aceitação e júbilo. Para que o júbilo seja completo, há o convite para que o irmão mais velho se reconcilie com o mais novo e, então, também se una à festa. Dessa forma, o autor defende a centralidade do tema da “celebração”, enraizado em todo o capítulo 15 (vv. 6.9.26-24.27), mas em estreita relação com celebrar a recuperação do que estava perdido.