Renato Russo e o desencanto político-existencial dos anos 80  
Renato Russo and the political existencial disenchantment of the 80s   

Ingrit Jeampietri Paiva*
Carlos Eduardo Calvani** 
*Doutoranda em Sociologia no PPGS - UFS (Universidade Federal de Sergipe). Contato: ingrit_design@hotmail.com
**Doutor em Ciências da Religião (UMESP, 1990) e Professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Contato: cecalvani@hotmail.com 

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Resumo:

O artigo pressupõe que muitas canções produzidas por bandas de rock brasileiro no início dos anos 80 nos ajudam a compreender o desencanto político e existencial de muitos jovens da época. O texto recupera informações sobre esse momento histórico da cultura brasileira, delimitado como marco temporal (anos 80 até meados dos anos 90), focalizando na produção poético-literária de Renato Russo, compositor, letrista e vocalista da banda Legião Urbana. O artigo sustenta que Renato Russo oferecia em suas letras um verdadeiro retrato de uma fatia da juventude de classe-média da época, principalmente jovens nascidos e/ou criados na Capital Federal (Brasília) que enfrentaram a situação contraditória de serem filhos de funcionários-públicos e estatais em pleno vigor da ditadura militar. O clima cultural de desencanto, burocratização, pressões e conflitos familiares foi muito bem percebido pelo letrista que, através das canções da banda expressava essas angústias e anseios de liberdade. O texto busca pistas para compreender que o grande sucesso de Renato Russo junto aos jovens da época, deve-se ao fato de ter conseguido oferecer em suas letras o desencanto político e existencial dessa geração.    

Palavras chave: Rock brasileiro; Legião Urbana; Renato Russo; Anos 80 

Abstract

The article assumes that many songs produced by Brazilian rock bands in the early 1980s help us to understand the political and existential disenchantment of many young people of the time. The text retrieves information about this historical moment of Brazilian culture, delimited as a time frame (80s until the mid-90s), focusing on the poetic-literary production of Renato Russo, composer, lyricist and vocalist of the band Legião Urbana. The article argues that Renato Russo offered in his lyrics a true portrait of a slice of the middle-class youth of the time, especially young people born and / or raised in the Federal Capital (Brasília) who faced the contradictory situation of being the children of public officials and state agencies in full force of the military dictatorship. The cultural climate of disenchantment, bureaucratization, pressures and family conflicts was very well perceived by the lyricist who, through the band’s songs, expressed these anxieties and yearnings for freedom. The text seeks clues to understand that the great success of Renato Russo with the young people of the time, is due to the fact that he managed to offer in his lyrics the political and existential disenchantment of this generation.     

Keywords: Brazilian Rock; Legião Urbana; Renato Russo; The 80 

Introdução 

No início dos anos oitenta, o que se convencionou denominar “Música Popular Brasileira” passava por um momento de certa indefinição quanto aos seus rumos e à sua renovação. Os grandes compositores que despontaram nos anos sessenta (Caetano, Chico Buarque, Gilberto Gil) já beiravam os quarenta anos. Os novos compositores que surgiram no decorrer dos anos setenta, como Djavan, Oswaldo Montenegro, Belchior, João Bosco, Alceu Valença, Milton Nascimento e os mineiros do “clube da esquina” (Lô Borges, Beto Guedes e o grupo 14-Bis), a despeito de seu inegável talento tinham um público seleto. No final da década de setenta a juventude brasileira apreciadora de música se dividia entre “politizados” que ouviam Milton e Chico, “odaras” que preferiam os baianos (novos ou velhos, incluindo Tom Zé), “psicodélicos” que viajavam entre herdeiros dos Mutantes (e nessa tribo cabiam Serguei, O Terço, Casa das Máquinas, Rita Lee e o Tutti Frutti, e até os Secos e Molhados), os que curtiam o “rock rural” de Sá, Rodrix e Guarabira e um grupo com certa inclinações para a linguagem mística, esotérica e apocalíptica de Raul Seixas e Zé Ramalho além dos que queriam simplesmente curtir e dançar com a febre de grupos e/ou intérpretes brasileiros que gravavam em inglês (Pholhas, Morris Albert, Michael Sullivan). Enfim, um cenário que permitia a diversos jovens da época expressar certa identidade e também certa marginalidade acompanhando o crescente processo de midiatização fonográfica. 

Esse cenário impulsionou muitos jovens e adolescentes que buscavam estilos diferentes e mais próximos à sua realidade, a formar bandas para divulgarem seus anseios, poesias e dramas particulares (conflitos com os pais, incertezas quanto ao futuro, dificuldades de relacionamento, de inserção política e social, etc.). Por volta de 1981 e 1982 algumas rádios do Rio de Janeiro começaram a divulgar fitas “demo”, enviadas por esses grupos com gravações realizadas em garagem e estúdios improvisados. A receptividade foi imediata. Logo as grandes gravadoras perceberam que ali estava um novo filão a ser explorado. Além disso, eram rostos novos, a maioria com menos de vinte e cinco anos. Nascia uma nova geração de artistas (Blitz, RPM, Barão Vermelho, Titãs, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Barão Vermelho, Legião Urbana, Lulu Santos, Ultraje a Rigor, Lobão, entre outros), que aos poucos ficou conhecida como “Brock”. 

Estudar esse período significativo é de vital importância para compreender nossa história cultural, pois ao invés de lamentar o passado ou utopizar o futuro, havia a preocupação em retratar o presente, geralmente com respingos de niilismo, dúvida, rebeldia, ansiedade e angústias diversas. 

Este artigo se concentra na produção artística de um desses grupos, a Legião Urbana, objetivando destacar elementos próprios de seu estilo a partir da análise de letras1 e da experiência de inquietação existencial que ocupa as obras de Renato Russo. 

1. A voz de uma Legião: Renato Russo 

Renato Manfredini, nascido em 1960, criado até os treze anos no Rio de Janeiro e o restante da adolescência em Brasília, era um típico jovem de classe-média, filho de funcionários-públicos, que enfrentou problemas com drogas e alcoolismo. Caracterizou-se como letrista polêmico e questionador traduzindo inquietações, dilemas e angústias próprias de sua geração2 . Paul Tillich, filósofo e teólogo teuto-americano, distingue em seu livro “A Coragem de Ser” (1950/1972) três tipos de angústia de acordo com as direções em que o não-ser ameaça o ser: angústia ôntica (do destino e morte), a angústia moral (de culpa e condenação) e a angústia espiritual (do vazio e perda de significação) e lembra que, em geral esses tipos se intensificam em épocas específicas quando as estruturas de poder, crença e significação desintegram-se, deixando o indivíduo com métodos de proteção conhecidos, mas ineficazes, dada a situação geral de incerteza que caracteriza uma civilização em crise3 . Essa tipologia da angústia ajuda a compreender algumas letras de Renato, carregadas pelo primeiro e terceiro tipos (angústia ôntica e angústia espiritual) A principal influência literária de Renato Russo foi a geração de poetas beats americanos (Jack Kerouac, Gregory Corso e Allen Ginsberg). 

Dentre as características da geração beat, Dóris Peçanha (1988) destacou a rebelião contra o american way of life, desde a sua filosofia do conforto à sua confiança histórica, passando por todas as instituições; conversão dessa revolta em um estilo de vida marcada pelo nomadismo e identificação com as minorias raciais e culturais marginalizadas; interesse pela tradição mística anglo-saxônica e do pensamento oriental, tendência reforçada pela apologia ao consumo de drogas como vias alternativas para novas experiências sensoriais; ligação com a cultura popular e as massas juvenis através da música popular (jazz e rock); ausência de confessionalidade literária expressas na intencional deformação da linguagem clássica, e necessidade da criação de outras linguagens capazes de expressar novas experiências. Muitos desses elementos podem ser encontrados na poesia de Renato Russo, Cazuza e outros compositores de sua geração que angariaram admiradores entre os jovens e surpreenderam críticos literários devido à capacidade de expressar poeticamente a crise, os anseios, o sentimento de abandono e revolta da juventude nascida e/ou criada durante o regime militar brasileiro pós-64. 

Renato Russo traduz com bastante expressividade seu mundo e o de tantos jovens que vivenciaram com ele as mudanças na sociedade brasileira na passagem dos anos setenta e oitenta. Suas letras, mesmo longas e complexas, foram recebidas como uma grata novidade no cenário da indústria cultural brasileira. Elas mostravam que também entre os jovens crescidos durante a ditadura havia crítica, vitalidade, inconformismo e reflexão. São poesias que, embora alicerçadas em certa angústia e revolta próprias da adolescência, não deixam de revelar no próprio amadurecimento de Renato Russo, o concomitante e progressivo amadurecimento de uma geração. Quando da morte de Renato Russo, a jornalista Antonina Lemos testemunhou: 

Foi um amigo do colégio quem me apresentou ao Legião Urbana. Li as letras, achei o máximo. Aquele disco de capa branca virou a trilha sonora de 1985. Renato Russo virou nosso ídolo. Ele falava coisas que antes ninguém dizia... Era uma identificação total. O disco ‘Dois’ só reforçou isso. Aquelas coisas eram tudo o que a gente - adolescentes confusos - queria ouvir. Ele era um cara sensível que tinha conseguido se dar bem, era como um irmão mais velho carente. (LEMOS, 1994). 

Thales de Menezes, crítico musical da Folha de São Paulo reforçou o testemunho da jornalista, por ocasião da morte de Renato ao afirmar: 

A empatia de Renato Russo com os jovens não pode ser mais natural. A poesia de suas canções era alicerçada na inquietude do adolescente, essa eterna sensação de que no mundo não existe lugar para ele. O letrista conseguiu a incrível proeza de amadurecer, mesmo ainda enraizado na angústia teen... A garotada perdeu o guru. Mais do que isso, perdeu o amigo mais velho (MENEZES, 1996).

A voz de Renato Russo representou o bramido de uma legião inquieta, tal como uma “confissão coletiva” que deixou impressa na história os suspiros e os brados de muitos. Sua poesia deu voz a muitos jovens e adolescentes, permitindo que anunciassem suas aflições ante o excesso de burocratização, repressão, cobranças etc., ou seja, doou expressão artística à experiência de incerteza, desencantada e angustiada que rondava aquela geração de jovens urbanos. 

2. “Há tempos o encanto está ausente...”: retratos de um tempo  

Criado até os 13 anos no Rio de Janeiro, Renato conheceu Brasília aos após a transferência do pai, economista do Banco do Brasil, para a capital federal. Na adolescência sofreu de epifisiólise (também conhecida como “doença de Parthes”) que o deixou acamado e imobilizado por quase dois anos. Após se recuperar, formou a banda “Aborto Elétrico”, inspirada no punk inglês. As primeiras canções retratavam a vida em Brasília, explicitando o tédio e a solidão característicos da cidade sem esquinas, o consumo de drogas, a revolta contra o modelo institucional estatal-burguês dos funcionários-públicos, além das indispensáveis canções de amor. Algumas dessas canções foram retrabalhadas e reaproveitadas em álbuns seguintes da Legião Urbana. O contexto urbano dos jovens brasilienses, por exemplo, é descrito com imagens reveladoras em “Música Urbana 2”. Sem emitir juízos de valor (“não há mentiras nem verdades aqui”), Renato cita favelas, a indigência nas ruas (“mendigos com esparadrapos podres”), a agressividade dos menores desamparados e o descaso de uma sociedade que os trata como cães (“matilha de crianças sujas no meio da rua”). As instituições públicas, aparecem em tons negativos. O verbo escolhido para retratar a presença constante da polícia e do exército na capital federal dá a ideia de algo nojento e asqueroso (“PMs armados e tropas de choque vomitam...”). A atitude dos jovens que perturbam o silêncio da madrugada com suas motos envenenadas é interpretada apenas como um grito por atenção (“motocicletas pedindo atenção às 3 da manhã...”). Além disso, a menção aos viciados logo após a frase (“nas escolas as crianças aprendem a repetir...”), aponta para as drogas como uma reação ao sistema educacional que visa reproduzir o sistema (“nos bares os viciados sempre tentam conseguir... música urbana”). 

O inconformismo com uma sociedade autoritária que sempre diz o que é melhor para os jovens é reafirmado em “O reggae”, de 1982. A escola novamente é citada, dessa vez comparada a uma prisão. A educação é entendida apenas como treinamento - deve-se fazer o que os mais velhos mandam e acreditar no que recomendam. A desilusão para com o mundo recebido é expressa nas frases “nada era como eu imaginava”, e vista como motivo para encarar a vida de modo individualista (“vou ver se tiro o melhor pra mim”): 

Ainda me lembro aos três anos de idade 
O meu primeiro contato com as grades 
O meu primeiro dia na escola 
Como eu senti vontade de ir embora 
Fazia tudo que eles quisessem, 
Acreditava em tudo que eles me dissessem 
Me pediram pra ter paciência; 
Falhei, então gritaram - “Cresça e apareça!” 
Cresci e apareci e não vi nada, 
Aprendi o que era certo com a pessoa errada 
Assistia o jornal da TV e aprendi a roubar pra vencer 
Nada era como eu imaginava 
Nem as pessoas que eu tanto amava 
Mas, e daí, se é mesmo assim, 
Vou ver se tiro o melhor para mim 

Na estrofe final os motivos da rebeldia são mais claros: o jovem se sente tolhido em sua liberdade, pois é sempre um “outro” que traça seu destino, não lhe dando oportunidade de escolha. Isso é interpretado como extorsão da vida (“beberam o meu sangue e não me deixaram viver”). Em tal situação resta o sentimento de ser-e-estar indefeso diante de um mundo muito grande e burocraticamente bem-organizado. 

A rebeldia contra um modelo educacional que prepara para a inserção de reprodutores do modo de produção capitalista e a forte pressão psicológica que sofrem os adolescentes ao final do Ensino Médio aparece com tons explícitos em “Química”, de 1981, que se tornou uma espécie de “grito de guerra” de muitos vestibulandos no início da década de oitenta. A obrigação de ser aprovado no vestibular é interpretada como tortura, posto que além de sentir-se preso, é negado ao jovem até mesmo o direito ao prazer de ouvir música. O último verso da segunda estrofe é transcrito conforme aparece na letra original, impressa no encarte do CD. Na gravação, porém, a censura exigiu alterações, de modo que a frase é cantada com a expressão “nesse tal de” aparece entre parênteses. 

Estou trancado e não posso sair 
Papai já disse, tenho que passar 
Nem música eu posso mais ouvir 
E assim não posso nem me concentrar 
Não saco nada de física, literatura ou gramática 
Só gosto de Educação sexual e eu odeio química... 
Não posso nem tentar me divertir 
O tempo inteiro eu tenho que estudar 
Fico só pensando se vou conseguir 
Passar na porra do vestibular (nesse tal de vestibular) 

A última estrofe é a que melhor revela a inquietude dos pré-vestibulandos. Com diversas frases, Renato descreve o modelo educacional como máquina reprodutora da “tribo” formada por “burgueses-padrão”. É flagrante aqui também a constatação de que aqueles que, não se integram ao sistema, nunca terão acesso às promessas por ele oferecidas: 

O primeiro grande sucesso nacional da Legião Urbana foi “Geração Coca-Cola”, composta em 1978, mas gravada no primeiro álbum, de 1984. Aparece aqui a denúncia de outras estratégias de reprodução da sociedade burguesa. A receptividade dessa canção pode ser creditada à identificação experiencial e aos verbos na primeira pessoa do plural indicando que não se trata apenas da visão de um artista solitário, mas que naquele momento ele é o elemento catalisador da revolta juvenil e, ao mesmo tempo, porta-voz de uma geração que se recusa a ser tratada como máquinas programadas para repetir o lixo que lhes é oferecido. Um retrato bastante realista dos filhos da “revolução” de 64: 

Quando nascemos fomos programados a receber 
O que vocês nos empurraram 
Com os enlatados dos USA das nove às seis 
Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial 
Mas agora chegou nossa vez 
Vamos cuspir o lixo em cima de vocês 
Somos os filhos da revolução, somos burgueses sem religião 
Somos o futuro da nação, geração Coca-Cola 

O enfado e a solidão da Capital Federal são retratados em “Tédio”, de 1979. Brasília esconde, na visão de Renato, um cenário de ilusão aonde “todos vão fingindo viver decentemente... só que eu não pretendo ser tão decadente não...”. Mais uma vez, o poeta encara aquele tipo de vida como decadência da qual ele se recusa a participar. Sustentada pelo ritmo rápido da bateria, a interpretação gritada de Renato reforça a imagem da música como alternativa para enfrentar o enfado do dia-a-dia. 

Esse contexto urbano programado e tedioso provoca, na visão de Renato, um clima de excitação diante de qualquer evento extraordinário, mesmo que envolva o sofrimento humano. Esse é o mote de “Metrópole”. A canção começa com os comentários ouvidos na cena de um acidente com vítimas que, ao invés de despertar comoção apenas atrai curiosos emocionados com o prazer mórbido de presenciar um acidente de verdade. A massa de curiosos personifica aquele tipo de pessoas que sente atração por tragédias. O desastre os coloca em estado de excitação e satisfação com o “sucesso” de uma cena normalmente só vista em filmes: 

“É sangue mesmo, não é mertiolate” 
E todos querem ver e comentar a novidade 
“É tão emocionante um acidente de verdade” 
Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre 
“- Vai passar na televisão, vai passar na televisão...” 

Nas estrofes seguintes, o enfoque se desloca da massa de curiosos para os (as) atendentes de um hospital. Reunindo frases frequentemente ouvidas em órgãos públicos burocratizados, Renato denuncia a indiferença para com o sofrimento humano estampada nos funcionários mais preocupados com a burocracia, exigindo documentação, fornecendo senhas e recusando-se, em função do horário, a atender aos que precisam. A letra aparece entre aspas, tal como no encarte do vinil, mostrando que o poeta apenas está recolhendo o que ouve no cotidiano e que todos nós já ouvimos em alguma situação semelhante: 

“Por gentileza, aguarde um momento, 
Sem carteirinha não tem atendimento 
Carteira de trabalho assinada, sim senhor, 
Olha o tumulto, façam fila, por favor 
Todos com a documentação...” 
“Quem não tem senha não tem lugar marcado 
Eu sinto muito, mas já passa do horário 
Entendo o seu problema, mas não posso resolver 
É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver 
Ordens são ordens... ordens são ordens...” 

Na última estrofe, após ouvir tantas manifestações de menosprezo e desinteresse e finalmente ter sua ficha preenchida, a pessoa ainda tem que ouvir mais uma irritante solicitação de comprovação de residência e fica sem atendimento, pois o/a funcionário/a com quem dialoga tem mais pressa de chegar em casa para assistir a novela do que em ajudar o próximo: 

“Em todo caso, já temos sua ficha 
Só falta o recibo comprovando residência 
Pra limpar todo esse sangue, chamei a faxineira 
E agora já vou indo senão eu perco a novela 
E eu não quero ficar na mão...eu não quero ficar na mão...” 

Nesse habitat nada prazeroso onde o tédio e a decadência se misturam à burocracia e às pressões dos pais para que se tornem bem- -sucedidos, restam aos jovens duas opções de sobrevivência: encontrar alguém com quem dividir a angústia em um relacionamento amoroso ou o último recurso das drogas. 

Entretanto, uma frustração amorosa na vida de adolescentes ainda imaturos, pode ser motivo para uma triste tragédia. Esse é o tema da canção “Dezesseis” que embora antiga (é do início dos anos oitenta), só foi gravada no álbum “A tempestade”, em 1996. Com uma melodia leve, simples e de fácil memorização, a letra caracteriza um jovem estudante, bem-quisto em sua turma, apreciador dos grupos de rock internacional e praticante de corridas de automóvel. É exatamente em uma corrida que ele encontra a morte, mas Renato descreve os acontecimentos sugerindo que a corrida foi motivada por uma opção consciente pelo suicídio. 

Na segunda parte da canção o anúncio da morte do personagem pelo diretor da escola é sutilmente descrito como mais uma “lição de moral” para os colegas, que homenagearam o amigo com uma canção dos Beatles. Sem a preocupação em julgar a atitude do rapaz, Renato sugere que a tragédia foi motivada por uma desilusão amorosa: 

Mas não poderia faltar nessa crônica da juventude dos anos oitenta, a história de um relacionamento bem-sucedido, apesar das diferenças etárias e culturais. Esse é o tema de “Eduardo e Mônica”. Com um estilo simples que descreve o comportamento típico de jovens de classe-média, Renato compõe o perfil de Eduardo como o de um garotão saindo da adolescência que ainda anda de bicicleta (“camelo”), e se envolve com uma moça muito mais experiente – Mônica - uma jovem madura, de personalidade forte, bem-informada culturalmente e que introduz o namoradinho na vida adulta. 

A caracterização inicial das personagens sugere que seria um relacionamento fadado ao fracasso, pois além das diferenças culturais há ainda o preconceito camuflado para com relacionamentos amorosos que envolvem um jovem e uma companheira mais velha. Porém, contra todas as previsões, a vontade de estar junto crescia e vencia o preconceito, a ponto de todos concordarem que um completa o outro. Vale destacar que mesmo nessa música Renato não se entrega a uma leitura romantizada dos relacionamentos, visto que, apesar do casal contestar os padrões amorosos estereotipados, o mesmo cumpre outros sistemas já normatizados (vestibular, faculdade, família, construir uma casa, não viajar por que o filho está “de recuperação” etc.). 

Mas não apenas os relacionamentos amorosos (frustrados ou bem- -sucedidos) compõem o mundo dos jovens. Em seu habitat, as drogas aparecem como outro recurso disponível para fugir da dura realidade. Embora abordasse a questão das drogas com muito realismo, Renato nunca fez propriamente apologia ao seu consumo. Ao contrário, ao mundo das drogas ele relaciona sempre tristeza (“Parece cocaína, mas é só tristeza...”), desespero, angústia e degradação. É o que vemos em “Dado viciado”, por muitos anos censurada, que lamenta a deplorável situação de um jovem entregue às drogas e em “Clarisse”. Nessa última canção, mistura-se o desespero de uma jovem que se mutila, que é assediada sexualmente (“os homens que se esfregam nojentos no caminho de ida e volta da escola”), “sente a essência estranha do que é a morte”, e recorre a drogas (antidepressivos e calmantes) para suportar o vazio e a maldade que a rodeia: 

E Clarisse está trancada no banheiro 
E faz marcas no seu corpo com um pequeno canivete (...) 
E quando os antidepressivos e os calmantes 
Não fazem mais efeito Clarisse sabe que a loucura está presente 
E sente a essência estranha do que é a morte 
Mas esse vazio ela conhece muito bem 
De quando em quando é um novo tratamento 
Mas o mundo continua sempre o mesmo 
O medo de voltar pra casa à noite 
Os homens que se esfregam nojentos 
No caminho de ida e volta da escola 
A falta de esperança é o tormento 
De saber que nada é justo e pouco é certo 
E que estamos destruindo o futuro 
E que a maldade anda sempre aqui por perto 

O motivo maior pelo qual tantos jovens se tornaram fãs incondicionais das letras de Renato Russo talvez esteja exatamente no fato de que ele não se dirigia a eles como uma autoridade (adulto ou professor), mas na condição de igual, alguém que conhece o que se passa no seu interior e se identifica existencialmente com aquele mundo. Na canção em pauta, o artista expõe a opinião dos jovens que não vêm motivo para sujeitar-se a um tratamento de desintoxicação porque “o mundo continua sempre o mesmo... e que a maldade anda sempre aqui por perto”. Nesse caso, a falta de esperança na melhoria do mundo torna o tormento existencial ainda maior. Ao final, a informação sobre a pouca idade da garota (“Clarisse só tem quatorze anos”) indica certa tristeza com a falta de perspectivas para a juventude. A mesma lamentação aparece na frase “Ele só tinha dezesseis...”, da canção citada anteriormente. 

Ninguém como Renato Russo captou tão bem os sentimentos da juventude crescida nos anos setenta e oitenta. Mesmo após ter passado dos trinta anos, continuou como um porta-voz dos jovens, em “Aloha”, de 1996, que escancara a persistência do processo de normatização (“Nos querem todos iguais... assim é bem mais fácil nos controlar”): 

A juventude sofre e ninguém parece perceber... 
A juventude está sozinha, não há ninguém para ajudar 
A explicar por que é que o mundo é este desastre que aí está 
Dizem que eu não sei nada, 
Dizem que eu não tenho opinião 
Me compram, me vendem, me estragam 
É tudo mentira, me deixam na mão
Não me deixam fazer nada e a culpa é sempre minha 
E meus amigos parecem ter medo 
De quem fala o que sentiu, de quem pensa diferente 
Nos querem todos iguais 
Assim é bem mais fácil nos controlar 
E mentir, mentir, mentir e matar, matar, matar 
O que eu tenho de melhor: minha esperança...  

3. O desencanto político da geração “pós-64”

Renato Russo não se preocupava apenas com temas próprios da adolescência. Desde os primeiros trabalhos, sempre revelou atenção à temática social. Entretanto, seu olhar sobre as questões sociopolíticas é marcado pela fusão entre o social e o existencial. É o caso de “Fábrica”, em que as reivindicações dos operários não se focalizam apenas em questões salariais (lembremo-nos que, na época, o Brasil vivia uma sequência de greves de trabalhadores e metalúrgicos), mas estendem-se a outras demandas próprias da vida humana. “Fábrica”, porém, é uma canção tão confusa em suas propostas quanto a própria juventude da época, que “intui” que algo está errado, sem conseguir explicitar essa intuição. A esperança em transformar as relações trabalhistas negativas nasce da utopia de que “deve haver algum lugar onde o mais forte não consegue escravizar quem não tem chance”. Contudo, mesmo esse potencial revolucionário do pensamento utópico parece estar paralisado pela contagiosa indiferença que sepulta a esperança em um mundo onde o céu poluído (“antes azul, agora cinza”) reflete não apenas a degradação ambiental, mas também o cansaço existencial e político (“o que era verde, aqui não existe mais”) incapaz de suscitar qualquer proposta social concreta para o futuro. 

Em outra canção - “Mais do mesmo” - Renato dá voz a um jovem de vinte anos, negro e favelado, “típico” representante de uma classe social economicamente inferior à do próprio poeta. O eu-literário, acostumado a presenciar chacinas de adolescentes, dirige-se a um jovem branco que sobe o morro aparentemente para uma pesquisa de campo de cunho sociológico. O jovem favelado reclama que dos vinte anos vividos nenhum foi feito para ele e questiona como é possível ver-se como igual ao interlocutor (“você quer que eu fique assim igual a você... como vou crescer, se nada cresce por aqui?”): 

Ei, menino branco, o que é que você faz aqui 
Subindo o morro pra tentar se divertir 
Mas já disse que não tem, e você ainda quer mais 
Por que você não me deixa em paz? 
Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim 
E agora você quer que eu fique assim igual a você 
É mesmo, como vou crescer, se nada cresce por aqui? 
Quem vai tomar conta dos doentes? 
E quando tem chacina de adolescentes? 
Como é que você se sente?

Além da sutil menção aos vinte anos de ditadura militar, as estrofes finais apontam para a absoluta falta de perspectivas (“em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel”). O recurso à ironia está claro na última parte, em que o rapaz agradece ao jovem branco e “bem-informado” por ter lhe explicado cientificamente o que ele sente, pensa e é. A frase “eu realmente não sabia que pensava assim” insinua uma crítica às pesquisas de campo, geralmente temporárias, onde aquele que se considera “intérprete dos fatos” não consegue alcançar as profundezas das estruturas que sustentam tal realidade: 

Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel 
Sempre mais do mesmo 
Não era isso que você queria ouvir? 
Bondade sua me explicar com tanta determinação 
Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou 
Eu realmente não sabia que eu pensava assim 
E agora você quer um retrato do país mas queimaram o filme...   

O desencanto de Renato e sua geração para com o Brasil está estampado no sucesso “Que país é este?”. Composta em 1978, só foi gravada em 1987 por um motivo simples, explicado no encarte do CD: “Nunca foi gravada antes porque sempre havia esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é possível se fazer a pergunta do título, sem erros... Não nos parece coisa de gente que se esquece da realidade que o cerca”. Na estrofe inicial, ninguém escapa ao olhar de Renato: do favelado ao senador, todos estão “sujos”, contaminados pela falta de cidadania responsável. 

Quinze anos após essa canção ter sido composta, todas as transformações acontecidas no cenário político brasileiro parecem não ter modificado a visão de Renato quanto à depravação da sociedade brasileira. Ao contrário, em “Perfeição”, de 1993, imagens ainda mais contundentes são acrescentadas ao mosaico da “estupidez humana” flagrante em nosso país. A letra fala não apenas da incompatibilidade entre Estado e nação, como também denuncia a própria responsabilidade do povo que contribui para a crise com a desunião, o descaso por educação e o conformismo diante do aumento das epidemias, da falência da saúde pública, dos mortos nas estradas, etc: 

Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações 
O meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões 
Vamos celebrar a estupidez do povo, nossa polícia e televisão 
Vamos celebrar nosso governo e nosso Estado que não é nação 
Celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas, nossa desunião 

Todo esse cenário caótico, cantando com uma melodia repetitiva e sem grandes alterações nos acordes é apresentado de forma a chocar e causar indignação ao ouvinte, prenunciando uma tênue proposta de enfrentamento de um mundo em que “a esperança está dispersa” na frase final (com mudança melódica): 

Venha, meu coração está com pressa, 
Quando a esperança está dispersa 
Só a verdade me liberta, chega de maldade e ilusão 
Venha, o amor tem sempre a porta aberta 
E vem chegando a primavera, nosso futuro recomeça 
Venha, que o que vem é perfeição... 

4. “Parece cocaína, mas é só tristeza...” – o desencanto existencial

Um dos motivos que fizeram de Renato Russo o principal letrista dos anos oitenta está na sua capacidade de expressar com simplicidade a ansiedade e angústia existencial de seus contemporâneos. Já nas canções mais antigas, como “Baader-Meinhof Blues”, do primeiro álbum, encontramos o desabafo “Já estou cheio de me sentir vazio”. A ausência de sentido no mundo exige do poeta a busca de equilíbrio existencial em níveis diferentes dos propostos pela razão. Em “Sereníssima”, Renato diz que “enquanto o caos segue em frente com toda a calma do mundo”, o caminho por ele encontrado para enfrentar a situação é conseguir o equilíbrio “cortejando a insanidade”. 

A impressão de estar vivendo num mundo carente de significado e a necessidade de produzir sentido aparece com clareza em três canções: “Eu era um lobisomem juvenil”, (1990), “1965 - Duas tribos” (1989) e “Depois do começo” (1982). Na primeira, o autor revela não ver significado em tudo o que sente e assume um posicionamento existencial: “prefiro acreditar no mundo do meu jeito” e viver o dia presente como se fosse o último, o tempo oportuno, “o dia mais importante”: 

Em “1965 - Duas tribos”, a percepção do caos está na inversão de valores básicos vistos como ultrapassados em um mundo em que a ética de se levar vantagem em tudo fala mais alto. Essa situação é vista por Renato ainda com um prisma maniqueísta, de luta do bem contra o mal. Após reclamar do ouvinte um posicionamento, revela sua opção particular de posicionar-se “ao lado do bem, com a luz e com os anjos”:  

A terceira canção (“Depois do começo”) é ainda mais evidente em sua busca de moldar um mundo próprio, que corteja a insanidade. A inspiração claramente surrealista da poesia, com diversas imagens absurdas e a contraditória invocação de um “deus” dirigida por quem se autodeclara ateu, reforça a percepção do mundo como espaço caótico: 

Vamos deixar as janelas abertas, 
Deixar o equilíbrio ir embora 
Cair como um saxofone na calçada, 
Amarrar um fio de cobre no pescoço 
Acender um intervalo pelo filtro, 
Usar um extintor como lençol 
Jogar pólo-aquático na cama, 
Ficar deslizando pelo teto 
Da nossa casa cega e medieval 
Cantar canções em línguas estranhas 
Retalhar as cortinas desarmadas 
Com a faca surda que a fé sujou 
Desarmar os brinquedos indecentes 
E a indecência pura dos retratos no salão 
Vamos beber livros e mastigar tapetes, 
Catar pontas de cigarro nas paredes 
Abrir a geladeira e deixar o vento sair, 
Cuspir um dia qualquer no futuro 
De quem já desapareceu, Deus, Deus, somos todos ateus... 
Vamos cortar os cabelos do príncipe 
E entregá-los a um deus plebeu 
E depois do começo 
O que vier vai começar a ser o fim 

Na época do lançamento do vinil-CD “Quatro estações”, Renato Russo confirmou em entrevista à Revista Amiga, nunca ter renunciado ou negado as preocupações espirituais. Segundo ele, “a questão mais política do momento é a espiritual. Se você resolver esse lado, se acreditar que a bondade é ter coragem, que disciplina é liberdade e compaixão é fortaleza, todo o resto vai se resolver.” (RUSSO, 1990, p. 19). 

As palavras de Renato Russo são parte da letra da canção “Há tempos”, sucesso de 1990 e carro-chefe do álbum “As quatro estações”. Mais uma vez, o autor revela os sentimentos de sua geração: tristeza, cansaço, solidão e uma “imensa dor” que pede um grito capaz de acordar “não só a tua casa, mas a vizinhança inteira”: 

Parece cocaína, mas é só tristeza, talvez tua cidade 
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão 
E o descompasso é desperdício 
Herdeiros são agora da virtude que perdemos 
Há tempos tive um sonho, não me lembro, não me lembro... 

O pessimismo da letra com o desenrolar dos acontecimentos lembra o Kohélet (Eclesiastes). O passar do tempo parece não causar qualquer alteração significativa no mundo. A estrofe seguinte fala da maldade presente até mesmo naqueles que deveriam combatê-la: os santos e os jovens. No depressivo início dos anos noventa, em que “o encanto está ausente e há ferrugem nos sorrisos”, Renato sugere três atitudes: disciplina, compaixão e bondade. Essas palavras aparecem na canção em um modo dialético próprio (A=B), que contraria o princípio da identidade (A=A) em prol da diferença, de modo que, se invertidas pelo ouvinte atento, esse perceberá que “liberdade é disciplina, fortaleza é compaixão e ter bondade é ter coragem”. 

É grande a frequência de soluções expressas nas canções de Renato através dos conceitos de bondade, amor e compaixão. Um dos grandes sucessos do álbum “As quatro estações” foi “Pais e Filhos”, com seu refrão que aponta para a necessidade de amar urgentemente o próximo em virtude da ausência de qualquer futuro (“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não há”). Nesse mesmo álbum, Renato funde trechos bíblicos (I Coríntios 13) com o “Soneto nº 11”, de Luís de Camões. A canção exalta o amor-ágape, o desprendimento máximo em prol do outro. Parodiando o texto bíblico, é possível afirmar que em “Monte Castelo”, tudo o que, nas outras canções era visto “em parte”, aqui é revelado: o amor é apresentado como a motivação da vida, mais importante que todas as outras coisas. Não apenas como esperança para o futuro, mas como alicerce da própria existência presente. Ao final da canção, Renato afirma um estado de vigilância (“estou acordado e todos dormem...”). 

“As quatro estações” é o álbum em que Renato mais revela estar vivendo um momento de intensa busca por sentido espiritual. “Se fiquei esperando meu amor passar”, fala da necessidade de se aprender a amar e assim o mundo “passar a ser seu”. Porém, se aprender a amar é a condição para ganhar o mundo, é preciso também livrar-se dos erros (“e me via perdido e vivendo em erro”). Ao final da canção, o texto litúrgico do Agnus Dei é cantado em uma melodia pop com Renato clamando ao Cordeiro de Deus para que tire os pecados do mundo. 

É possível perceber que a busca espiritual impressa na poesia não é alienada, pois não se abstrai de questões existenciais e sociais, como o suicídio (a jovem que se joga da janela do quinto andar), o conflito de gerações (“Pais e Filhos”), o preconceito (“Meninos e Meninas”), a desigualdade e violência (“1965-Duas Tribos”), demonstrando que a busca espiritual de Renato é também busca por si, pelo outro e por uma sociedade melhor, ou seja, uma busca por superar o desencanto político e existencial. 

5. “Quando tudo está perdido...”

Os últimos álbuns da Legião Urbana revelam um Renato deprimido e com a saúde debilitada devido às complicações decorrentes da AIDS. A perspectiva da morte iminente tornou-o mais introspectivo e voltado a questões existenciais. A enfermidade o abalou muito e inseriu definitivamente em seu repertório os temas da doença, da morte e da fragilidade da existência. Em “A fonte” (1994), apesar de a esperança estar “envolta por lençóis com cheiro de doença”, Renato ainda tenta enfrentar a situação com coragem. Apesar da mistura de sentimentos de culpa, vergonha, medo e ódio revelados na canção, o artista ainda afirma continuar limpo: 
Esperança, teus lençóis têm cheiro de doença E veja que da fonte sou os quilômetros adiante Celebro todo dia minha vida e meus amigos Eu acredito em mim e continuo limpo (...) Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha Me tira essa vergonha, me liberta dessa culpa Me arranca esse ódio, me livra desse medo...  

Mas no álbum seguinte, “A Tempestade”, Renato já vive um processo de depressão aguda. Os poucos momentos de leveza do álbum são encontrados em canções que tratam de situações simples do dia a dia, como “Leila”, homenagem a uma amiga que luta sozinha com diversos problemas como buscar filhos na escola, levar o carro à oficina, pagar contas, lidar com o chuveiro que dá choque e ser enganada pelo encanador. O outro momento de leveza é “Esperando por mim”. Após declarar “digam o que disserem, o mal do século é a solidão”, Renato fala da alegria de ter caminhado na chuva com seu pai e ter “um momento de paz”: 

Hoje não estava nada bem 
Mas a tempestade me distrai 
Gosto dos pingos de chuva 
Dos relâmpagos e dos trovões 
Hoje à tarde foi um dia bom, 
Saí pra caminhar com meu pai 
Conversamos sobre coisas da vida 
E tivemos um momento de paz 

Com exceção dessas canções, “Tempestade” é um disco temperado pela tristeza. “Natália”, a faixa de abertura, apresenta com nitidez o clima do disco (“Vamos falar de pesticidas e de tragédias radioativas, de doenças incuráveis, vamos falar da sua vida...”). Uma estrofe, em especial, revela sua intimidade com a tristeza e a solidão. Apesar de insistir na necessidade de se “acreditar num novo dia”, Renato está consciente de que seu tempo de vida é breve, o que não o impede de fazer do “ainda” um motivo para lutar: 

É complicado estar só 
Quem está sozinho que o diga 
Quando a tristeza é sempre o ponto de partida 
Quando tudo é solidão 
É preciso acreditar num novo dia 
Na nossa grande geração perdida 
Nos meninos e meninas 
Nos trevos de quatro folhas 
A escuridão ainda é pior que essa luz cinza 
Mas estamos vivos ainda... 

A música escolhida para divulgar o álbum junto aos meios de comunicação foi “A via láctea”, uma espécie de “canto do cisne”, carregada de contradições. A afirmação inicial de que “quando tudo está perdido sempre existe um caminho (ou) uma luz” contrasta diretamente com a crueza da segunda estrofe, em que o artista expõe publicamente seu sofrimento. Ainda assim, seu talento poético permanece o mesmo (a frase “quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima” foi elogiada por críticos literários como uma das imagens mais originais da literatura brasileira). A proximidade com a morte é flagrante na frase “vem de repente um anjo triste perto de mim”. Ao final da canção, tomado pela convicção de que eram seus últimos dias, Renato agradece aos que partilharam de seu sofrimento: 

Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira 
E quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima 
Queria ser como os outros e rir das desgraças da vida 
Ou fingir estar sempre bem, ver a leveza das coisas com humor 
Mas não me diga isso... É só hoje e isso passa, só me deixe aqui quieto, isso passa 
Amanhã é outro dia, eu nem sei por que me sinto assim 
Vem de repente um anjo triste perto de mim 
E essa febre que não passa e o meu sorriso sem graça 
Não me dê atenção, mas obrigado por pensar em mim 
Quando tudo está perdido sempre existe uma luz 
Quando tudo está perdido sempre existe um caminho 
Eu me sinto tão sozinho quando tudo está perdido 
Não quero mais ser quem eu sou, mas não me diga isso, 
Não me dê atenção e obrigado por pensar em mim 

Poucos dias após o lançamento de “Tempestade”, o “anjo triste” da terceira estrofe levou o maior poeta da geração pós-64. Mas ainda havia um bom material inédito com sobras de gravação que rendeu o álbum póstumo “Uma outra estação”. Renato havia composto para “Tempestade”, a música “Sagrado coração”, sua última letra. A parte instrumental foi gravada, mas ele já estava muito doente para gravar a voz. No álbum póstumo temos apenas a melodia, mas o encarte trouxe a letra, de extrema densidade espiritual e que revela a herança cristã do autor recorrendo à piedade que gira em torno do “sagrado coração de Jesus” e pedindo orações em seu favor: 

Sei que tenho um coração, mas é difícil de explicar 
De falar de bondade e gratidão 
E estas coisas que ninguém gosta de falar 
Falam de um lugar, mas onde é que está? 
Onde há virtude e inteligência 
E as pessoas são boas e sensíveis 
E que a luz no coração é o que pode me salvar Mas não acredito nisso 
Tento, mas é só de vez em quando 
Onde está esse lugar? onde está essa luz? 
Se o que vejo é tão triste e o que fazemos de errado?... 
Por isso lhe peço, por favor 
Pense em mim, ore por mim, e me diga: 
- Esse lugar distante está dentro de você 
E me diga que nossa vida é luz 
Me fale do sagrado coração 
Porque eu preciso de ajuda 

Considerações finais

A importância de Renato Russo para a cultura brasileira ainda carece de mais pesquisas, embora autores mais recentes, que cresceram embalados pelas canções da Legião já se empenhem nessa tarefa. Só para a Legião Urbana, Renato compôs 82 canções, além das que foram gravadas por outros artistas e bandas como Cássia Eller, Capital Inicial e Biquíni Cavadão. Renato Russo foi o artista que revelou com mais capacidade e sinceridade o universo da juventude brasileira filha da ditadura. 

Se quisermos compreender essa geração com seus dilemas, esse poeta musicista é sem dúvida, o porta-voz mais indicado por ter conseguido traduzir aquela insatisfação que caracteriza muitos adolescentes de classe-média: “o sistema é mal, mas minha turma é legal, viver é foda, morrer é difícil.” O mundo real é percebido como universo estranho, sufocante, castrador e fazer parte dele exige sepultar ideais. O próprio Renato reconheceu em entrevista ao amigo e compositor Leoni: 

Quase todas as letras da Legião martelam esse tema da individualidade, que você deve ser você mesmo. É por isso que as pessoas se identificam, porque como quase todas as letras são escritas na primeira pessoa, quando canta a música, acaba sendo a história dela também. (LEONI, 1995, 80)

A rebelião, a conversão da revolta em um estilo de vida e a ligação com uma fatia específica de jovens urbanos são características da vida e obra de Renato Russo e de uma geração de jovens e adolescentes dispostos a lutarem (mesmo quer através da música) por sua individualidade. 

Procuramos neste artigo trazer à memória um retrato de uma parcela da juventude brasileira dos anos 80, nascida e criada nos anos de chumbo, acuada em sua subjetividade entre as pressões por integrar-se ao sistema como novas peças de uma máquina e a progressiva descoberta das contradições de seu tempo com suas dificuldades e limitações políticas. Nesse emaranhado confuso e de poucas opções, muitos se entregaram às drogas lícitas ou ilícitas, outros se renderam às pressões (vale lembrar que um político – Geddel Vieira Lima - recentemente denunciado como responsável por um grande escândalo financeiro, foi colega de escola de Renato Russo) outros ainda apostaram na pureza de um relacionamento amoroso sadio. 

Procuramos neste artigo trazer à memória um retrato de uma fatia da juventude brasileira dos anos 80, nascida e criada nos anos de chumbo, acuada em sua subjetividade entre as pressões por integrar-se ao sistema como novas peças de uma máquina e a progressiva descoberta das contradições de seu tempo com suas dificuldades e limitações políticas. Nesse emaranhado confuso e de poucas opções, muitos se entregaram às drogas lícitas ou ilícitas, outros se renderam às pressões (vale lembrar que um político – Geddel Vieira Lima - recentemente denunciado como responsável por um grande escândalo financeiro, foi colega de escola de Renato Russo4 ) outros ainda apostaram na pureza de um relacionamento amoroso sadio. Retratos de uma “grande geração perdida” (trecho da canção “Natália”) que um dia cantou “somos o futuro da nação” (trecho de “Geração Coca-Cola”... 

Referências

CALVANI, Carlos Eduardo. “Existirmos... a que será que se destina? Choque ontológico, angústia e coragem de ser na canção Cajuína”. Revista Eletrônica Correlatio, vol. 16, n. 01, junho de 2017, p. 99-113. Acesso disponível em https://www.metodista.br/revistas/ revistas-ims/index.php/COR/article/view/7785 

LEMOS, Antonina. Renato Russo foi ‘irmão mais velho’. Jornal Folha de São Paulo. Caderno Folhateen, São Paulo, segunda-feira, 6 de junho de 1994. 

LEONI, Carlos, “Entrevista com Renato Russo”. Letras, músicas e outras conversas, Rio de Janeiro: Gryphus, 1995. 

MARCELO, Carlos. Renato Russo, o filho da revolução. São Paulo, Editora Planeta, 2016. 

MENEZES, Thales de. De guru a mártir teen. Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 12 de outubro de 1996.

PEÇANHA, Dóris Lieth Nunes. Movimento Beat – abordagem literário, sócio-histórica e psicanalítica. Petrópolis: Vozes, 1988. 

PRADO, Gustavo dos Santos. A imagem e o artista: a Legião urbana dentro de sua própria arte. Anais do III Encontro Nacional de Estudos da Imagem. Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 2011. Disponível em http://www.uel.br/eventos/eneimagem/ anais2011/trabalhos/pdf/Gustavo%20dos%20Santos%20Prado.pdf 

RUSSO, Renato. “Renato Russo fala sobre o novo disco do Legião Urbana”. Revista Amiga, Rio de Janeiro, Ed. Bloch, 01 de janeiro de 1990, p. 19. 

TILLICH, Paul. A Coragem de Ser (1950). Trad. Eglê Medeiros, São Paulo, Paz e Terra, 1972. 

Notas

[1] Para uma apreciação do projeto gráfico dos álbuns e uma análise dos temas e símbolos dos encartes dos LPs e CDs, recomendamos ao leitor interessado a preciosa pesquisa de PRADO (2011).   

[2] Recentemente foi lançada uma biografia sobre a infância, adolescência e juventude de Renato Russo, apresentando narrativas e depoimentos da fase de formação de suas duas bandas – Aborto Elétrico e Legião Urbana (MARCELO, 2016)   

[3] Para uma compreensão mais específica do conceito de angústia na Teologia da Cultura de Tillich e os enfrentamentos possíveis identificados na canção “Cajuína”, de Caetano Veloso, ver CALVANI, 2017, p.99-113. 

[4] Para maiores informações ver o texto de MARCELO, 2016.