Grupo Literatura, Religião e Teologia da PUC-SP 
Literature, Religion and Theology Group at PUC-SP  

 

Antonio Manzatto*
Glaucio Alberto Faria de Souza**
*Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina (Louvain-laNeuve, Bélgica. Professor na Faculdade de Teologia da PUC-SP, onde é titular na área de Teologia Sistemática, coordenador do Grupo de Pesquisa Lerte. Contato: amanzatto@pucsp.br 

**Doutorando em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI e membro do Grupo de Pesquisa- Lerte. Contato: gafsteologo@gmail.com 
Voltar ao Sumário


Resumo 

O texto a seguir, como se fora uma crônica, enumera as principais atividades do Grupo Lerte, da PUC-SP em seu trabalho na interface teologia e literatura. Destaca que o grupo privilegia no estudo o chamado método antropológico, baseado na compreensão da revelação divina acontecendo em categorias humanas, e finca bem suas raízes na proposta de uma reflexão teológica que leve a sério o humano afirmado na literatura. Daí a necessidade de uma análise literária séria e consequente, aliada a uma hermenêutica que seja igualmente de qualidade e que possibilite a relação entre teologia e literatura. Por isso o apelo ao pensamento de Paul Ricoeur, cuja filosofia não afirma apenas a necessidade da compreensão do texto, mas sim a possibilidade de se compreender no mundo a partir do texto. Do ponto de vista da elaboração teológica, sua reflexão precisa ser, igualmente, séria e consequente, e por isso as referências ao pensamento de Rahner, Gesché, ao espírito do Concílio Vaticano II e à tradição teológica latino-americana. 

Palavras-chave: Teologia e literatura, método antropológico, Lerte, Ricoeur, Gesché

Abstract 

The following text, as if it were a chronicle, enumerates the main activities of the group of LERTE, from PUC-SP in its work at the theological and literary interface. It gives preference in its study to the so-called anthropological method, based on the understanding of divine revelation taking place in human categories, and puts down well its roots in the proposal of a theological reflection which takes seriously the humanity affirmed in literature. From this comes the need for a serious and consistent literary analysis, allied to a hermeneutics that is also of quality and that makes possible the relationship between theology and literature. Hence the appeal to the thought of Paul Ricoeur, whose philosophy does not only affirm the necessity of understanding the text, but rather the possibility of understanding oneself in the world through the text. From a theological elaboration point of view, his reflection needs to be, equally, serious and consequent, and for this reason the references to the thoughts of Rahner, Gesché, to the spirit of Vatican Council II and to the Latin American theological tradition. 

Keywords: Theology and literature, anthropological method, Lerte, Ricoeur, Gesché

Um pouco de história 

Narrar é um ato de humanidade e, talvez, humanizador. É próprio do ser humano narrar histórias que remetem ao seu processo existencial, tanto individual quanto coletivamente. Narrar é uma condição para ser humano e por isso gostamos de ouvir histórias que nos chegam através de manifestações artísticas as mais diversas: filmes, novelas, pinturas, canções e, claro, literatura. Em verso ou prosa, as narrações nos cativam porque nos ensinam quem somos e como somos; ela supre ausências, realiza presenças e liberta das agruras do existir. Muitos são os que já teorizaram sobre a importância da narração, e aqui nos propomos a narrar um pouco da história do Grupo de Pesquisa Literatura, Religião e Teologia da PUC-SP. 

O Grupo LERTE da PUC-SP foi constituído em 2009, logo após a Faculdade de Teologia de São Paulo ser reintegrada ao convívio universitário, e em 2010 foi certificado pela instituição e registrado junto ao CNPQ. Do grupo inicial faziam parte os professores Antonio Manzatto,da área de teologia, Afonso Maria Ligório Soares e Waldecy Tenório, da área de Ciências da Religião, todos professores da PUC-SP na época; Carlos Ribeiro Caldas Filho, então atuando na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e Alex Villas Boas de Oliveira Mariano, doutorando na PUC-Rio. 

O grupo então constituído e ainda organizando seus trabalhos e atividades, compreendia sua proposta de trabalho, e solicitava seu registro junto às instâncias acadêmicas, com essas palavras: 

A busca do Transcendente e/ou de Deus é característica do ser humano, e se elabora também pela arte e nela se expressa. Narrações a respeito de mitos e de tradições culturais dos povos passam pela produção artística, sobretudo a literária e, no mais das vezes, constitui aquela tradição. Certo parentesco entre a produção literária e a teológica, ou mais amplamente, entre o artístico e o religioso, está afirmado e estabelecido por muitos estudos de várias áreas do conhecimento. Suas relações permanecem, no entanto, como novo mundo a ser explorado, cheio de promessas e possibilidades. A proposta é pensar o teológico e o religioso, em suas múltiplas dimensões, em e pela arte, em especial a literária (2010). 

Uma característica interessante do grupo pode ser notada já em seu nascimento, que é a de se compreender como um grupo que reúne, livremente, pesquisadores oriundos de diferentes áreas e instituições e pertencentes a diversas tradições religiosas. Por isso ele não se configurou apenas como pesquisando teologia e literatura em sentido estrito, ainda que isso seja sua base e atividade mais significativa, mas abriu-se para a realidade mais ampla da reflexão sobre o fenômeno religioso à luz de diversas e diferentes expressões artísticas. 

O grupo permanece ativo e realizando atividades que se desenvolvem, sobretudo, no âmbito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mantém, evidentemente, contatos com as outras instituições às quais pertencem sua variada gama de pesquisadores, e realiza atividades em conjunto com tais instituições, mas sua base operacional continua sendo a PUC-SP. Sua presença junto ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da universidade é bastante significativa, responsabilizando- -se ainda, também em nível interinstitucional, pela edição da Teoliterária, a Revista de Literaturas e Teologias, sem dúvida o periódico mais importante da área de Ciências de Religião e Teologia no que toca a interface entre teologia e literatura. 

Muitos pesquisadores já passaram e foram formados na dinâmica do grupo, com destaque para os que foram orientados por Antonio Manzatto. Ocorre que houve modificação na situação daqueles professores que faziam parte da fundação do grupo. Infelizmente, o Prof. Afonso Soares faleceu em 2016; já o prof. Waldecy Tenório aposentou-se definitivamente das atividades acadêmicas. Por sua vez, os professores pertencentes a outras instituições preferem organizar suas orientações e inclusive publicações no horizonte de seus próprios grupos de pesquisa, ficando a maior parte das orientações do LERTE sob a batuta do professor Manzatto. Não obstante, estudantes e pesquisadores de outras instituições ainda integram o grupo, fortalecendo sua característica de diversidade. 

Das orientações realizadas ou em vias de realização destacam-se, evidentemente, aquelas relativas ao mestrado em teologia, curso que já existia na Faculdade de Teologia quando o grupo iniciou suas atividades. Atualmente, podem ser acrescentadas orientações de iniciação científica, possibilidade surgida com a inserção da Faculdade de Teologia na universidade e que, realizadas, possibilitam a divulgação de atividades que resulta em uma procura constante de estudantes que buscam participar de pesquisas na área. Ainda mais, recentemente a Faculdade obteve da Capes a recomendação para abertura do curso de doutorado em teologia, e com isso novas perspectivas de orientação foram abertas, e candidatos ao doutorado se apresentaram assumindo pesquisas que se inscrevem nas atividades do grupo. Finalmente, embora não se trate propriamente de orientação, o grupo enriqueceu-se com pesquisas de pós-doutoramento, normalmente no horizonte do PNPD como é o caso no momento, mas também com pesquisas sem fomento. E já houve, também, a oportunidade de abrigar uma pesquisa de livre-docência, levada e êxito na própria PUC-SP. 

Em seus anos de existência, o grupo costuma incentivar seus membros, sobretudo os jovens pesquisadores, a participarem de congressos e outras atividades semelhantes. Ele mesmo organiza, no final de cada ano, sua Jornada de Estudos, abrindo-se nesse momento à participação de outros grupos de pesquisa da instituição e pesquisadores vindos de fora. Embora se trate da Jornada de Estudos do Lerte, ela costuma ser procurada por quem se interessa pela temática contemplada. A prática de realizar a Jornada anualmente nasceu com a organização do Congresso de Teologia e Literatura realizado em 2012 sob a batuta da Alalite. O Congresso foi realizado na PUC-SP e o grupo Lerte foi o agente executivo dessa realização, tratando-se do primeiro evento de porte internacional a acontecer no Programa de Pós-Graduação em Teologia. Seus efeitos, diga-se de passagem, permanecem até hoje e um dos seus desdobramentos mais sensíveis foi a transferência da Teoliterária para a responsabilidade do próprio Programa, tarefa assumida pelo líder do grupo e que conta com a colaboração de outros membros pesquisadores. 

Atualmente o grupo continua em atividade sendo procurado, inclusive, por pesquisadores de instituições outras uma vez que suas realizações passam a ser cada vez mais conhecidas. Também o fato de, por conta da pandemia da Covid-19, as reuniões do grupo se realizarem de maneira remota, ocasiona facilidade de participação no grupo sem a necessidade de deslocamentos ou despesas. Por isso, atualmente reunimos não apenas pesquisadores que atuam na área de Ciências da Religião e Teologia, mas também na área de Letras, Literatura e outras, sempre no horizonte das ciências humanas, pois a relação entre a transcendência e as artes hoje é vista com mais naturalidade e esse campo de estudo passou a ser contemplado como um horizonte de possibilidades de conhecimento a ser explorado. 

Alguns referenciais epistemológicos

O Grupo Lerte iniciou suas pesquisas contemplando questões que permitem, ou dificultam, o relacionamento entre teologia e literatura. A pergunta inicial era: pode-se fazer teologia a partir de textos literários? Se sim, como e de que maneira? Desde cedo, se quis deixar claro que o lugar de referência onde se situa é o discurso teológico, até mesmo por estar inserido no interior de uma Faculdade de Teologia e, por isso, no que diz respeito às questões de crítica literária ou caminhos para o estudo da literatura, se coloca em posição de escuta e estudo. Isso não impede discursos sobre questões e aspectos literários, mas a base para tais argumentação lhe vem, como deve ser, dos espaços específicos de estudo e elaboração de literatura ou, mais genericamente, de obras artísticas. 

Anteriormente à formatação do grupo, vários trabalhos já relacionavam teologia e literatura aqui mesmo no Brasil, em uma espécie de antecedentes das pesquisas que seriam realizadas. Com efeito, a área passou a ter espaço acadêmico a partir da publicação de Teologia e Literatura, obra de Antonio Manzatto (1994) que inaugurou a temática no Brasil. Porém, antes dela, outros estudos, ainda que dispersos e elaborados no exterior, já existiam e permanecem como referência. Entre as inúmeras obras que poderíamos citar, encontram-se os textos do cônego Charles Möeller (1953), teólogo belga e um dos que mais promoveu a aproximação entre teologia e literatura na metade do século XX, ao escrever sua volumosa coleção de que relaciona a literatura e a vivência do cristianismo. Ao lado dele, encontramos Pie Duployé (1965), Jean Pierre Manigne (1969) e, depois, o interesse pelo tema de Jean-Pierre Jossuá (1985) e de Adolphe Gesché (1994), além da contribuição importante de Karl-Josef Kuschel (1999). A seu modo, também se interessaram pela questão Hans Urs Von Balthasar (1984) e Luis Alonso Schökel (1971). No contexto latino-americano, também existe produção a respeito, desde as obras dos desbravadores Pedro Trigo (1987), em língua espanhola, e do próprio Antonio Manzatto (1994), em língua portuguesa, até os escritos mais recentes de Antonio Carlos Mello Magalhães (2000) e Carlos Caldas Filho (2001), passando por Gustavo Gutierrez (1982), José Carlos Barcellos (2000), Maria Clara Bingemer e Eliana Yunes (2004) e outros ainda. Múltiplas foram as formas de aproximação promovidas por eles entre teologia e literatura, segundo os diversos campos de atividade e de preocupação de cada um deles, e seu trabalho desabrochou em novas pesquisas levadas a cabo atualmente. 

Se os estudos de teologia, próprios do grupo, são assegurados pela sua inserção na Faculdade de Teologia, os referenciais de crítica literária precisam ser buscados em seu domínio específico. A referência a obras clássicas e fundamentais podem possibilitar um efetivo diálogo entre os dois campos de conhecimento. Para o estudo da literatura, em especial da literatura brasileira, a passagem por Hênio Tavares (1967), Wilson Martins (1952) e Proença Filho (1999) é obrigatória, sem esquecer os fundamentais Alfredo Bosi (1970), Antonio Cândido (1965), Afrânio Coutinho (1960) e Alceu Amoroso Lima (1956). Em termos mais abrangentes, permanece a relevância de outros teóricos da literatura como Georges Bataille (1957), Umberto Eco (1965), Georg Lukács (1968), Tzvetan Todorov (1970), Roland Barthes (1966), Theodor Adorno (1970) e Mikhail Bakhtin (1978). Não se pode esquecer que a leitura das obras literárias, sua compreensão a partir da crítica e sua interpretação, se completam com a produção daqueles que trabalham as questões ligadas à hermenêutica e a interpretação de textos. Nesse sentido, o trabalho de Paul Ricoeur (1983) é fundamental. Mas outros autores são igualmente importantes na mesma linha, desde Dilthey, passando por Heidegger, até gente do porte de Hans G. Gadamer (1982) e Jean Ladrière (1984). Com tal referencial, o grupo passou a efetivamente caminhar no trabalho de pesquisar possíveis caminhos de diálogo entre teologia e literatura. 

Seu primeiro foco de estudos foi a compreensão dos métodos disponíveis para efetivamente estabelecer o diálogo entre teologia e literatura. Guardando sempre sua preocupação mais propriamente teológica, o grupo debruçou-se sobre o estudo de tais métodos com destaque para o chamado método antropológico, de Antonio Manzatto. Segundo ele, o ponto de partida é a convicção, própria da fé e da teologia cristã, de que Deus se revela e por isso é possível um discurso a seu respeito. Tal revelação acontece na história e se dá em categorias humanas, a fim de que o humano possa compreendê-la (RAHNER, 1969). A base bíblica que fundamenta essa compreensão é a afirmação de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, conhecendo o humano, se pode conhecer melhor a Deus (GESCHÉ, 2003). O argumento vai de encontro à realidade da encarnação do Verbo de Deus pois, como diz o evangelho de João, “quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Solidamente ancorada na Escritura, essa percepção também está presente em pronunciamentos magisteriais, como aquele expresso por Paulo VI no encerramento do Concílio Vaticano II, quando afirmou que “para conhecer a Deus, é preciso conhecer o homem” (PAULO VI, 1965). No pensamento de Manzatto (1994), o conhecimento do humano também pode ser realizado através das manifestações artísticas, aí incluída a literatura que tem, aliás, o humano como sua referência. Longe de concorrer com outras formas de conhecimento, a literatura refere-se sempre ao humano, mesmo que de forma ficcional. Nesse sentido, Deus se revela ao humano na história e nas histórias que os povos narram, porque o humano não é apenas aquilo que é dado historicamente, mas também o que é sonhado, pensado ou imaginado. Os caminhos que Deus utiliza para revelar-se ao humano são sempre caminhos de humanidade, por isso múltiplos e diversos. Trata-se, então, de perceber o humano presente na obra literária, seja ele histórico ou personagem de ficção, porque, exatamente por ser humano, será imagem e semelhança de Deus. O procedimento parece claro e lógico, mas não dispensa a hermenêutica, porque não se trata de pensar a teologia do autor literário. Por isso será preciso respeitar a literatura como tal para que a teologia permaneça, igualmente, ela mesma. É claro que outros métodos de aproximação entre teologia e literatura são possíveis, como o de teopoética ou o de correlação e, segundo o objetivo do estudo, são bastante pertinentes. A opção por um método dependerá do que se quer do estudo, mas também de qual obra literária se quer estudar. Um romance é bem mais longo que um soneto, por exemplo; uma biografia tem características distintas de uma novela ou de uma crônica, e por isso uma gama variada de métodos que implementam o diálogo entre teologia e literatura se justifica. Nenhum deles, porém, dispensa o trabalho hermenêutico. 

Em um segundo momento, por essa razão, o grupo debruçou-se sobre o estudo da hermenêutica de Paul Ricoeur. Vários elementos justificam tal estudo, seja pela proximidade do pensamento do filósofo com a teologia e a religião, por um lado, seja pelo privilégio dado às narrativas e à ficção, por outro. A obra literária pode ser vista como uma metáfora e, por esse caminho, adquirir significados novos a cada leitura. Por isso uma narrativa de ficção não é simplesmente mentirosa em sua comparação com a realidade, mas é dela um símbolo, uma metáfora do existir humano em determinada situação. Se o conceito de narrativa é bastante trabalhado nos estudos literários assim como o de ficção, Ricoeur (1975) como que os eleva a um patamar mais significativo ao perceber nisso uma dimensão ontológica. Dois aspectos presentes em seu trabalho se tornaram importantes para as pesquisas do grupo. O primeiro é o da compreensão da tríade mundo do autor, mundo da obra e mundo do leitor. O autor está presente em sua obra, mas não determina o sentido do texto. Embora seja como que a motivação para a existência da obra, ela o ultrapassa e vai além, adquirindo sentidos e significados em outros tempos e em outros lugares. Por isso não é o autor o determinante do sentido da obra, até porque existe a objetividade do texto que é preciso respeitar. A obra literária não esgota seus significados no contexto de seu autor, mas se constitui como uma obra, portanto dotada de realidade, objetividade e complexidade. Ela não é simples instrumento de comunicação entre o autor e o leitor porque desfruta de uma existência em si mesma, e pode ser lida por diversos leitores que, nela, percebem vários sentidos. Daí que o leitor não pode atribuir à obra quaisquer significados, exatamente porque existe a objetividade do texto. Se a obra se completa apenas com sua leitura e o leitor tem papel determinante em sua compreensão, ele não é o único sujeito que atribui significações à obra, já que há que permanecer fiel ao texto estabelecido e que é objetivo. A interrelação entre autor, obra e leitor é significativa para se compreender a produção artística. O segundo aspecto se ancora exatamente aí, porque diante do texto o leitor não apenas o compreende, mas se compreende. O processo de interpretação não se esgota em entender algo, mas se entender diante do mundo da obra. Não se trata de psicologizar a atividade de leitura, mas em perceber que o leitor é afetado pela obra pois pode rever seus conceitos ou convicções, pode aprender além de fruir da leitura, pode perceber como é possível transformar seu mundo à luz dos personagens ou situações apresentados na obra literária. Percebe-se, por aqui, como a reflexão teológica pode avançar a partir de seu diálogo com a literatura que ajudou, inclusive, a poder ler a Bíblia com métodos de análise literária (GABEL, 1993) e a enxergar a realidade mais atenta aos “sinais dos tempos”. 

É preciso ainda elencar as principais referências teológicas trabalhadas pelo grupo. Afinal, não é qualquer teologia que é capaz de diálogo com as artes e, especificamente, com a literatura, mas é preciso reconhecer que existem, sim, teologias que podem fazê-lo, normalmente aquelas com características mais progressistas. A primeira sinalização talvez seria, como é comum, aludir-se à uma reflexão teológica sobre a cultura como acontece em diversos outros grupos. A forma de fazê-lo é em referência ao Concílio Vaticano II e a teologia que dele decorre. É certo que o Concílio não faz, propriamente, uma teologia da cultura, mas estabelece um diálogo entre a modernidade e a reflexão teológica que, ao mesmo tempo que renova a teologia e coloca a Igreja em estado de aggiornamento com relação à sociedade, abre caminhos para que a reflexão crítica sobre a fé caminhe por novas estradas, mesmo que por mares nunca dantes navegados. Dois referenciais são importantes aqui: uma é a teologia comprometida com a virada antropocêntrica realizada pelo trabalho de Karl Rahner (1969), e outra é a tradição teológica latino-americana que aqui se estabeleceu depois do Concílio. Na esteira do pensamento de Rahner, o trabalho de Adolphe Gesché (1995), no que toca à antropologia e à literatura, é extremamente relevante para as atividades do grupo; na teologia latino-americana, são referenciais os clássicos, evidentemente, mas também a forma atualizada dessa teologia se elaborar, sobretudo sob o pontificado de Francisco. A teologia que daí decorre é não apenas atual e pertinente, mas comprometida com a Igreja de agora em sua atividade de cuidado para com os mais pobres. 

Atualmente, permanecendo ainda com tais referências, o grupo trabalha questões relacionadas à música, mais especificamente à letra de canções. Sabe-se que uma canção não é apenas uma poesia musicada porque existem elementos de leitura que não se esgotam na simples percepção das normas poéticas. Porém, a análise das letras das canções coloca facilmente os elementos de diálogo com a literatura a que nos referimos anteriormente. É claro que existem elementos de análise, sobretudo da melodia, que precisam ser levados a sério, e uma primeira abordagem dessa realidade pode ser feita através de procedimentos de semiótica. Afinal, o ritmo, a entonação do canto, o tipo de instrumentos utilizados, o arranjo e outros elementos que compõem o universo musical podem ser determinantes para a compreensão de significados que a canção traz em si. E nas questões de semiótica, a referência a Peirce (2005) é fundamental e atual, sobretudo com o auxílio de Santaella (2019). Sendo a atividade atual do grupo, muito desse estudo se encontra em desenvolvimento, mas frutos já foram produzidos em termos de pesquisa e de publicações. Afinal, a música normalmente está ligada às práticas religiosas, sobretudo as músicas sacras e as litúrgicas, que servem bem à oração e à catequese pela compreensão da “lex orandi, lex credendi”. O interessante é ver como canções não religiosas, ditas profanas, podem expressar elementos que podem ou devem ser contemplados pela reflexão teológica. Aqui, como alhures, há que se evitar o perigo do círculo vicioso, aquele em que a leitura da canção vai buscar elementos de religiosidade que a própria religião ali depositou. Por isso é muito mais interessante olhar para as canções populares, mesmo as comerciais, para se perceber formas de ver e ser no mundo que não são aquelas costumeiramente trabalhadas pela teologia. É como o estudo de obras literárias que não são confesionalmente religiosas e, por isso, deixam perceber seu oferencimento à teologia de algo que não está nela, pois senão o desvio pelas artes seria desnecessário e ineficaz. 

Ainda muito resta a fazer e diversos caminhos ainda precisam ser explorados nas atividades do grupo de pesquisa. Pouco se fez em termos de leitura de artes plásticas, por exemplo, e aqui a experiência que nos ajuda é a de Wilma Tommaso (2017). Também pouco se fez na leitura de obras cinematográficas, embora algo se tenha produzido em termos de teatro e televisão. O universo dos quadrinhos foi recentemente aberto por iniciativa de Carlos Caldas (2017), e produziu interessantes estudos publicados pela Teoliterária em 2019, em dois dossiês. Com isso se quer dizer que existem ainda caminhos inexplorados que relacionam teologia e arte, e mesmo especificamente teologia e literatura. O grupo, por isso, continua trabalhando e renovando seus projetos de pesquisa, mantendo sempre a elaboração teológica como seu foco específico. 

Trabalhos realizados

Dois elementos são importantes de se ter em mente quando pensamos na produção acadêmica do grupo de pesquisa Lerte. O primeiro é que ele segue as possibilidades abertas e ofertadas pela vida universitária. Integrando a Faculdade de Teologia, o horizonte da universidade surgiu em 2010, abrindo possibilidades de trabalhos acadêmicos no nível de mestrado. Mais tarde surgiu a possibilidade de pesquisas de Iniciação Científica, campo que não existia a princípio. O mesmo para o curso de doutorado em teologia, que passa a existir em 2019 e só então possibilita estudos nesse nível. Outro elemento importante a destacar é que, abrigando pesquisadores de outras instituições e pertencentes também a outros grupos de pesquisa, decidiu-se respeitar a vinculação do pesquisador para cômputo de sua produção. Assim, destacamos a seguir apenas alguns números relacionados às atividades do grupo no horizonte da PUC-SP e a ela vinculadas, para evitar sobreposições de dados. 

Em vista disso, as orientações aqui anunciadas referem-se ao trabalho do professor Antonio Manzatto que, como líder do grupo, orienta pesquisas que se desenvolvem no interior da PUC-SP. Em seus anos de existência, o grupo já assistiu a cerca de trinta dissertações de mestrado concluídas, sendo dez com temática específica do relacionamento da teologia com as artes. Na iniciação científica foram onze os trabalhos de alunos orientados, somados a mais doze trabalhos de conclusão de curso de graduação. Acrescentem-se a isso mais duas pesquisas doutorais e outras duas de pós-doutoramento, além daquela de livre-docência. 

Atualmente são acompanhados cinco projetos de pesquisa de doutorado e mais nove de mestrado, estando abrigados no grupo três projetos de pesquisa sobre teologia e música, dois sobre teologia e literatura e um sobre teologia e teatro. Os outros trabalhos, ainda que em temática lateral, são desenvolvidos também no interior do grupo. Quanto à graduação, cinco estudantes elaboram seus trabalhos de conclusão de curso, sendo dois na temática específica. São acompanhadas, ainda, duas pesquisas de pós-doutorado, sendo uma já em exercício e outra em preparação. A isso acrescente-se outro fenômeno interessante advindo recentemente, talvez por conta da pandemia que nos obrigou à realização de reuniões remotas, que é o fato de pesquisadores, professores e estudantes, de outras instituições e de diferentes lugares do Brasil solicitarem participação no grupo para acompanhar suas atividades. São professores da área de letras ou ciências da religião e que acompanham estudantes em seus trabalhos; e são estudantes que estão realizando suas pesquisas orientados por professores de sua própria instituição. Com isso, atualmente temos no grupo mais de vinte pesquisadores desenvolvendo projetos de pesquisa relacionados à área, e já passaram pelo grupo mais de trinta estudantes que se formaram nos diversos níveis da academia. 

Quanto às publicações, grosso modo podemos falar em mais de cinquenta artigos publicados em periódicos, em cerca de dez livros e outros quinze capítulos de livros elaborados por membros do grupo que mantêm vínculo com a PUC-SP, como professor ou como estudante. Como as atividades na área cresceram bastante nos últimos tempos, é comum encontrarmos em periódicos da área de ciências da religião e teologia a organização de dossiês que contemplam a relação entre arte e religião, o que facilita a publicação de trabalhos de quem pesquisa tal relação. Acrescente-se a isso uma grande proliferação de eventos de diversos tipos, congressos e seminários, também devido ao fato de que, atualmente, praticamente todos os programas de pós-graduação em ciências da religião e teologia no país possuem um grupo que estuda as relações entre religião e arte ou realizam eventos que contemplam a temática. Com isso são organizados vários eventos ao ano, facilitando a participação de pesquisadores e estudantes que trabalham na área e que querem partilhar seus trabalhos e pesquisas.

Dos grandes congressos realizados no país, cabe destacar o da Soter e o da Anptecre, onde sempre existe um grupo ou uma sessão de estudos que contempla o tema. No nível internacional, os congressos realizados pela Alalite são importantes, sendo que atualmente organiza- -se, também, a sessão Brasil da Alalite. Em todos esses eventos existe a participação, ao menos com comunicações, de diversos membros do grupo. E não podemos deixar de mencionar a Jornada de Estudos do Grupo Lerte que acontece todos os anos, sempre no final do ano, e reúne pesquisadores também de outros grupos de pesquisa e mesmo de outros horizontes. Dessa Jornada todos os membros do grupo participam, apresentando o resultado de seus trabalhos desenvolvidos ao longo do ano. 

Considerações finais

Com isso pode-se dizer que o Grupo Lerte continua bastante ativo e criativo em suas propostas. Vários de seus membros são convidados a participarem de eventos em outras instituições, contribuindo para a produção acadêmica e a disseminação do conhecimento. No momento em que assistimos ao recrudescimento do fundamentalismo religioso, inclusive com suas influências políticas nefastas que conduziram o país à triste situação em que se encontra, faz-se necessário perceber a importância de uma reflexão teológica de qualidade. Se, de um lado, existe o cuidado de perceber que não é qualquer manifestação dita artística que se relaciona com a religião, de outro lado é forçoso perceber que não é qualquer reflexão teológica que é capaz de um diálogo efetivo com as artes, especificamente com a literatura. O trabalho, portanto, é o de, em se abrindo à produção artística, construir uma teologia que seja dialogante, reconhecedora da alteridade e respeitosa das diferenças; que saiba ser plural e ecumênica, sem deixar sua fidelidade ao Evangelho de Jesus; uma teologia a serviço da misericórdia e da vida, em autêntica saída de seus muros para encontrar o Deus que se revela na vida da humanidade. Uma teologia em saída, parafraseando a palavra do Papa Francisco, que possa clamar, exatamente porque a partir da arte, a dor do sofrimento e a esperança de humanização daqueles que são descartados pela sociedade. É nessa direção que impulsiona a teologia que dialoga com a obra literária, porque, como diria Fernando Brant, “o poeta é o que sonha o que vai ser real”. 

Referências

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1970. 

BAKHTIN, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978. 

BALTHASAR Hans Urs Von. La dramatique divine. Paris: Dessain et Tolra, 1984. 

BARCELLOS, José Carlos. Literatura e teologia. in Numen, v.3, n.2, 2000, p.9-30. 

BARTHES, Roland. Critique et vérité. Paris: Seuil, 1966 

BATAILLE, Georges. La littérature et le mal. Paris: Gallimard, 1957, BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970. 

CALDAS, Carlos. Das HQ’s como discurso teológico. in Teoliterária v. 7, no 14, 2017, p. 70-90. 

CALDAS, Carlos. Teologia e cultura. In Fides Reformata (São Paulo), v. VI, 2001, p. 139-153 

CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. 

COUTINHO, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1960. 

DUPLOYÉ, Pie. La réligion de Péguy. Paris: Klincksieck, 1965 ECO, Umberto. L’oeuvre ouverte. Paris: Seuil, 1965. 

GABEL John B; WHEELER, Charles. A bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 1993. 

GADAMER, Hans Georg. L’art de comprendre. Paris: Aubier-Montagne, 1982. 

GESCHÉ Adolphe, La théologie dans le temps de l’homme. Littérature et Révélation; in Jacques Vermeylen (dir.), Cultures et théologies en Europe: jalons pour um dialogue; Paris: Cerf, 1995, p. 109- 142. 

GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. São Paulo: Paulinas, 2003. 

GESCHÉ, Adolphe; BIANCIOTTI, Hector. Littérature et théologie; in La foi et le temps, 24 (1994), p. 57-62. 

GUTIERREZ, Gustavo. Entre las calandrias. Lima: Cep, 1982. 

JOSSUÁ, Jean-Pierre. Pour une histoire religieuse de l’expérience littéraire. Paris: Beauchesne, 1985. 

KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras. São Paulo: Loyola, 1999. 

LADRIÈRE, Jean. L’articulation du sens. Paris: Cerf, 1984. 

LIMA, Alceu Amoroso. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Agir, 1956 

LUKÁCS, Georg. La théorie du roman. Paris: Denoel, 1968. 

MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2000 

MANIGNE, Jean Pierre. Pour une poétique de la foi. Paris: Cerf, 1969. 

MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura. São Paulo: Loyola, 1994. 

MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952. 

MÖELLER, Charles. Littératures du vingtième siècle et christianisme. Paris-Tournai: Castermann, 1953-1993. 

PAULO VI, Discurso na última Sessão Pública do Concílio Vaticano II. em 07/12/1965. Disponível e: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/ speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651207_epilogo-concilio.html . Acesso 27.06.2021. 

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005. 

PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1999. 

RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969 

RICOEUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Seuil, 1975. 

RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983 

SANTAELLA, Lucia. Estética e semiótica. Curitiba: Intersaberes, 2019. 

SCHÖKEL, Luis Alonso. La parole inspire. Paris: Cerf, 1971 

TAVARES, Hênio. Teoria literária. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1967. 

TODOROV, Tzvetan. Littérature et signification. Paris: Larousse, 1970. 

TOMMASO, Wilma Steagall de. O Cristo Pantocrator. São Paulo: Paulus, 2017. 

TRIGO, Pedro. Cristianismo e história en la novela mexicana contemporânea. Lima: Cep, 1987. 

YUNES Eliana; BINGEMER, Maria Clara. Murilo, Cecília e Drummond. São Paulo: Loyola, 2004.