Osvaldo Luiz Ribeiro
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ. Professor da Faculdade Unida de Vitória. Contato: osvaldo@faculdadeunida.com.br
Resumo: Proposta de solução do conflito das intenções (intentio auctoris, intentio lectoris e intentio operis) conforme expresso em Interpretação e superinterpretação, de Umberto Eco. O caminho metodológico consiste nos seguintes passos: a) com base em Johan Huizinga, aplicar a noção de jogo à prática de leitura, estabelecendo o fato de que as regras de interpretação constituem função específica de cada jogo de leitura; b) discernir os tipos de jogos de leitura com base nos três tipos de pragmática: estática, política e heurística; c) com base em Peirce, assumir cada uma das três instâncias de sentido o papel de referencial semiótico de um específico tipo de jogo de leitura; d) concluir que a pluralidade de interpretações possíveis de um texto constitui função da aplicação das regras internas de cada jogo de leitura. Conclui-se, de um lado, que jogos estéticos e jogos políticos de leitura produzem potencialmente infinitas interpretações e que apenas jogos heurísticos de leitura efetivamente podem impor limites para a interpretação, e, de outro, que o resultado de cada um desses jogos de leitura só pode ser avaliado com base nas suas próprias regras.
Palavras-chave: intentio auctoris; intentio lectoris; intentio operis; jogos de leitura
Abstract: A proposal to solve the conflict of intentions (intentio auctoris, intentio lectoris and intentio operis) as expressed in Umberto Eco’s Interpretation and superinterpretation. The methodological path consists of the following steps: a) based on Johan Huizinga, apply the notion of game the practice of reading, establishing the fact that the rules of interpretation constitute a specific function of each reading game (play-element); b) discern the types of reading games based on the three types of pragmatics: aesthetics, politics and heuristics; c) based on Peirce, assume each of the three instances of meaning as the semiotic reference of a specific type of reading game; d) conclude that the plurality of possible interpretations of a text is a function of the application of the internal rules of each reading game. It is concluded, on the one hand, that aesthetic and political reading games potentially produce infinite interpretations and that only heuristic reading games can effectively impose limits on interpretation, and, on the other hand, that the result of each of these reading games it can only be assessed on the basis of its own rules.
Keywords: intentio auctoris; intentio lectoris; intentio operis; reading games
Interpretação e superinterpretação, disse Rabenhorst (2002, p. 14), “é um livro interessante não apenas porque condensa as principais ideias de Eco acerca da interpretação, mas também porque contém uma réplica aos seus críticos”[1]. Concordemos com Rabenhorst, e consideremos o fato de que, em suas obras, Umberto Eco concilia hermenêutica e semiótica, dois dos temas do presente artigo. Como síntese, portanto, das principais ideias de Eco sobre a relação entre intentio auctoris, intentio lectoris e intentio operis, Interpretação e superinterpretação presta-se a servir de base para a tentativa de recolocar a questão, de um lado, e, de outro, de apontar para o problema de sua insuficiente discussão e, a nosso ver, inadequada solução para o problema do “conflito das intenções”. Na obra citada, avaliando negativamente as duas clássicas abordagens hermenêuticas, intenção do autor e intenção do leitor, Umberto Eco propõe uma alternativa: “Existe a intenção do texto” (ECO, 1993, p. 29). O interesse do presente artigo é sugerir que o enfrentamento da disputada questão hermenêutica tem disso levado a termo de modo inadequado, porque tem descuidado do elemento pragmático da questão. Tem-se procurado tratar do conflito das intenções – autor, texto, leitor – sem, ao mesmo tempo, considerar a estratégia pragmática de leitura. Na prática, procura-se normatizar determinada metafísica de aproximação a textos, sem identificar, primeiro, a ação pragmática a que essa mesma leitura está contextualmente vinculada. Como resultado, finda-se por se tentar estabelecer como norma universal para qualquer ato de leitura. No presente artigo quer-se assentar a declaração de que o recurso a determinada intentio é função pragmática, sendo determinada diretamente pela estratégia pragmática de leitura adotada pelo intérprete.
Tanto o problema que Eco quer enfrentar no capítulo “Interpretação e história” de Interpretação e superinterpretação (ECO, 1993, p. 27-50), quanto a solução do semiólogo italiano para esse problema, encontra-se condensado na seguinte citação:
Poderíamos objetar que a única alternativa a uma teoria radical da interpretação voltada para o leitor é aquela celebrada pelos que dizem que a única interpretação válida tem por objetivo descobrir a intenção original do autor. Em alguns dos meus escritos recentes, sugeri que entre a intenção do autor (muito difícil de descobrir e frequentemente irrelevante para a interpretação de um texto) e a intenção do intérprete que (...) simplesmente “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” existe uma terceira possibilidade. Existe a intenção do texto (ECO, 1993, p. 29).
Eco coloca à sua direita os defensores da intentio auctoris, à sua esquerda os defensores da intentio lectoris, avalia negativamente ambas as posições hermenêuticas e, então, propõe sua alternativa: a intentio operis. Da intentio auctoris, Eco tem a dizer que sua inadequabilidade instrumental advém do duplo fato de ser difícil de determinar e de frequentemente ser inútil para a interpretação de um texto. Eco não dedicará muito esforço e tempo a essa avaliação negativa, porque seus “adversários” no capítulo em questão são os teóricos de recorte pós-moderno (ECO, 1993, p. 30; RABENHORST, 2002, p. 1-2), mais alinhados à questão hermenêutica da intenção do leitor (DANTAS, 1998, p. 159-160). O problema com que Eco se depara é a declarada infinidade de interpretações potenciais de um texto, diante de cuja tese Eco se põe de modo crítico:
Dizer que a interpretação (enquanto característica básica da semiótica) é potencialmente ilimitada não significa que a interpretação não tenha objeto e que corra por conta própria. Dizer que um texto potencialmente não tem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz” (ECO, 1993, p. 27-28).
Eco está claramente referindo-se aos postulados amiúde relacionados às escolas hermenêuticas de intenção do leitor, a respeito das quais já dissera que “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” (ECO, 1993, p. 29[2]). O “final feliz” que não estaria garantido a toda e qualquer tentativa de submeter um texto aos caprichos hermenêuticos do leitor denuncia que determinadas propostas de interpretação de um texto devem ser consideradas malsucedidas. “O que quero dizer aqui é que existem critérios para limitar a interpretação” diz Eco (1993, p. 46), referindo-se um pouco adiante à posição adversária nesses termos: “poder-se-ia dizer que um texto, depois de separado de seu autor (...) e das circunstâncias concretas de sua criação (...) flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis (ECO, 1993, p. 48), mas quanto a isso manifestando posição muito diferente: “não (se) estaria autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado sugerir” (ECO, 1993, p. 50). “Fundamentalmente, postula que há graus de aceitabilidade de interpretações” (DANTAS, 1998, p. 162). Em resumo: um texto tem potencialmente muitos sentidos, mas não todos os sentidos.
A questão contra a qual Umberto Eco se bate é o número potencial de leituras possíveis e adequadas de um texto. Sua declaração “há sentidos que seria despropositado sugerir” (ECO, 1993, p. 50) parece suportar a conclusão de que, para Eco, não há interpretações adequadas infinitas de um texto. Sem perder de vista que a questão da intenção do autor, ainda que mencionada mais de uma vez no capítulo, recebe apenas o condescendente tratamento já citado – é difícil e frequentemente irrelevante –, o problema de Eco é a implicação do potencial infinito de interpretações pressuposta na intentio lectoris, porque, como se viu acima, é aos autores defensores dessa posição hermenêutica que nosso autor se dirige. Eco é categórico em declarar que não é possível admitir que um leitor possa fazer com o texto o que bem desejar. A partir da conclusão de certo exemplo de que se utiliza no final de seus argumentos, Eco declara que o leitor “não estaria autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer coisa” (ECO, 1993, p. 50). Perceba-se a questão normativa que anima a declaração: “existem critérios para limitar a interpretação” (ECO, 1993, p. 46). Voltaremos à tendência normativa da discussão semiótico-hermenêutica. Com efeito, nas palavras de Rabenhorst (2002, p. 16), “o semiólogo italiano volta a insistir na ideia de um mínimo de aceitabilidade de uma interpretação”. A conclusão de Rabenhorst sobre essa mesma discussão é a seguinte:
O semiólogo italiano volta a insistir na ideia de um mínimo de aceitabilidade de uma interpretação na base de um consenso da comunidade. Nesse ponto, porém, não há grandes discordâncias entre as ideias de Eco e as do modelo proposto pela desconstrução. Afinal, nem mesmo o desconstrucionista mais radical negaria o fato de que a despeito de toda a polissemia, existe uma possibilidade de compreensão intersubjetiva (...). Não podemos atribuir às palavras e aos textos qualquer sentido em função dos nossos desejos, pois estamos situados em uma comunidade interpretativa que produz significados de forma pública e convencional (ROBENHORST, 2002, p. 16).
O que em Eco encontra-se menos explícito, a normatização da interpretação, em Rabenhorst vai explicitado: “Não podemos atribuir às palavras e aos textos qualquer sentido em função dos nossos desejos” (ROBENHORST, 2002, p. 16). Trata-se da interdição da criatividade do leitor e, como veremos, de seu direito pragmático de, para citar as palavras críticas de Eco, “desbasta(r) o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” (ECO, 1993, p. 29). Por que razão o leitor não tem esse direito? Porque está preso, nas palavras de Rabenhorst, a “uma interpretação na base de um consenso da comunidade”? E desde quando a situação do intérprete teve algum papel na discussão tablada por Eco? Se a posição do intérprete – sua vinculação material a uma comunidade de interpretação – pode ser usada para restringir sua liberdade, porque essa mesma posição não é alçada igualmente à condição de critério pragmático ou referencial semiótico para o enfrentamento da espinhosa questão dos limites da interpretação? Ora, se Rabenhorst está bem informado da interpretação da frase de Paul Valéry – “não há verdadeiro sentido de um texto” (RABENHORST, 2002, p. 1), segundo a qual ela significaria que “um texto pode ser utilizado da forma mais livre possível” (HABENHORST, 2002, p. 2), por que não se percebe que, nesse sentido, resulta contraditória a declaração de que “não podemos atribuir às palavras e aos textos qualquer sentido em função dos nossos desejos” (RABENHORST, 2002, p. 16)? Pode ou não o leitor usar “um texto (...) da forma mais livre possível” (HABENHORST, 2002, p. 2)? Se “não há verdadeiro sentido de um texto” (RABENHORST, 2002, p. 1)”, então deve-se concluir que qualquer leitor pode usar livremente qualquer texto e dar a ele o sentido que desejar. No entanto, ao mesmo tempo, se diz que “não podemos atribuir às palavras e aos textos qualquer sentido em função dos nossos desejos” (ROBENHORST, 2002, p. 16). O cobertor é curto demais... Resulta confusa a situação.
Rabenhorst pensa tê-la esclarecido e então resolvido com uma declaração de Umberto Eco: “se o uso de um texto é ilimitado, a sua interpretação não o é” (Rabenhorst, 2002, p. 9). E, sempre segundo Rabenhorst,
para demonstrar essa tese, Eco analisa a clássica oposição entre a interpretação como busca da intentio auctoris (o que o autor quis dizer), e a interpretação como atribuição de uma intentio lectoris (o que, no texto, o destinatário encontra com relação ao seu próprio sistema de significação). Entre a defesa do caráter autotélico de um texto e a defesa da recepção do leitor, Eco escolhe uma via intermediária, a saber, a do respeito a intentio operis (a intenção da própria obra) (RABENHORST, 2002, p. 9).
Ainda que Dantas considere que Eco “postula que há graus de aceitabilidade de interpretações e que isto resulta do devido respeito pela dialética da intentio operis com a intentio lectoris” (DANTAS, 1998, p. 162), vimos anteriormente, ratificado imediatamente acima por Rabenhorst, que Eco defende uma alternativa para as intenções do autor e do leitor – a intentio operis: “existe uma terceira possibilidade. Existe a intenção do texto” (ECO, 1993, p. 29). Descartam-se, portanto, a intenção do autor e a intenção do leitor e assume-se, universal e normativamente, a intenção da obra: “interpretar é emitir uma conjectura sobre a intentio operis, tomando o texto como um todo orgânico. Tais conjecturas são a princípio infinitas, mas a partir de um teste de coerência textual, algumas delas serão descartadas” (RABENHORST, 2002, p. 9). Nesse caso, “o limite da interpretação é dado, em primeiro lugar, pela ideia segundo a qual um texto é um todo coerente” (RABENHORST, 2002, p. 9). Observe-se que se fala do texto como um todo coerente, ao mesmo tempo em que se assenta sua condição polissêmica (RABENHORST, 2002, p. 15 e 16). Nesse sentido, a polissemia se reduz a um número limitado de jogos hermenêuticos aceitos pela comunidade de interpretação.
Insista-se: há algo de confuso na discussão. Há mesmo certa pressa em se contornar o problema da articulação entre os conceitos de polissemia textual e consenso hermenêutico. Não se discute, por exemplo, em que condições concretas de vida faz sentido falar-se de consenso intersubjetivo. Na verdade, em lugar algum da discussão se desceu ao mundo concreto da leitura, às condições pragmáticas de leitura, aos jogos potenciais de leitura. Ao menos no que diz respeito à discussão, semiótica e hermenêutica se articularam em condições ideais, quando se deveria articulá-las nas condições concretas da leitura. A discussão permanece o tempo todo em nível metafísico e tende o tempo todo à interdição do que, aos olhos dos teóricos ouvidos, parece infração de limites. Pois bem, e quem estabeleceu os limites?
A proposta do presente artigo é postular uma solução pragmática para o problema da disputada questão dos limites da interpretação. Parte-se do princípio de que a interdição retórica das interpretações com base na autoridade consensual da comunidade de interpretação constitui uma saída artificial, idealista e, de qualquer forma, deslocada da realidade. A comunidade pode classificar uma interpretação como desautorizada, mas não tem qualquer poder para, de um lado, impedir que sejam produzidas ad infinitum, e, de outro, que toda e qualquer pessoa se submeta à autoridade dessa comunidade. Tanto assim que na própria comunidade de interpretação há inúmeras escolas, produzindo diferentes leituras, cada qual eventualmente tratando as demais como infratoras dos limites por ela estabelecidos. A situação não resulta muito diferente do quadro das interpretações da Bíblia na miríade de denominações herdeiras da Reforma: cada igreja lê a mesma Bíblia que todas as demais, mas a lê de modo a produzir determinada interpretação, concluindo por infratoras da régua da correta interpretação todas as demais. Perceba-se como a conclusão dos arrazoados de Rabenhorst poderiam se aplicar perfeitamente ao mundo absolutamente confuso da hermenêutica eclesiástica: “não podemos atribuir às palavras e aos textos qualquer sentido em função dos nossos desejos, pois estamos situados em uma comunidade interpretativa que produz significados de forma pública e convencional” (ROBENHORST, 2002, p. 16). Essa declaração é válida para a interdição que, por exemplo, igrejas batistas interpõem a interpretações não batistas, mas igualmente válidas para interdições que igrejas assembleianas interpõem a interpretações não assembleianas. Trata-se de uma declaração de caráter político. Quer-se prescrever uma norma, em lugar de descrever um fenômeno e de serem apreendidas as suas leis. Não se vai resolver o problema do limite das interpretações, porque, no mundo real, as interpretações são virtualmente infinitas. O que se nos apresenta como tarefa é compreender a materialidade da questão, descrevê-la e lidar com ela.
Nesse sentido, para propor uma solução para a espinhosa questão do limite das interpretações, comecemos pelo tratamento do ato de leitura como um jogo. Já com Orlandi (1998, p. 16) se poderia falar da “importância de se pensar a língua enquanto capaz de jogo”, mas a rigor a referência é ao conceito de cultura como jogo, de Johan Huizinga (2005). “Huizinga não foi o primeiro pensador a ver o homem e a sociedade sub specie ludi” (ANCHOR, 1978, p. 63), mas “foi de fato o primeiro a ter compreendido, de modo sistemático” a relação entre aspectos da sociedade aparentemente sem relação mútua, mas que se articulavam pela função de jogo (play-element) de que se constituíam (Ehrmann; Lewis; Lewis, 1968, p. 31). Para Huizinga, a cultura humana funciona como jogo: “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve” (HUIZINGA, 2005, p. 2). O jogo seria mesmo anterior à própria cultura, uma vez que a cultura pressupõe uma sociedade humana que, por sua vez, se constitui na forma de sua distintiva capacidade de jogar (CIMIANO, 2003, p. 32).
Segundo Huizinga, toda a operação da cultura se dá com base em regras estabelecidas internamente a ela e válidas exclusivamente nesse jogo, e não necessariamente em outro. É tanto uma questão ontológica – toda cultura funciona como um jogo – quanto histórica – cada cultura estabelece as regras com que se deve jogar nessa determinada cultura. Não apenas a cultura como uma grandeza se estabelece na forma de jogo, mas as diferentes estruturas internas da cultura, também. Huizinga discute como a linguagem, as competições, o Direito, a guerra, a ciência, a poesia, a Filosofia e a arte se desenvolvem como jogos culturais, cada qual com regras próprias de funcionamento, que se alteram inclusive com o passar do tempo (ANCHOR, 1978, p. 63). Huizinga considera a funcionalidade de jogo tão relevante para a compreensão da história humana que escreveu no Prefácio de Homo ludens: “existe uma terceira função, que se verifica (...) na vida humana (...) e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura” (HUIZINGA, 2005, p. 1).
Huizinga aponta, descreve e analisa uma série de características do jogo. A que nos interessa aqui é o fato de que, nele, tudo se dá em razão das regras estabelecidas para o movimento das peças no tabuleiro, das pessoas no círculo mágico. As regras não são ontológicas: são materiais. São criadas para o jogo e só fazem sentido no jogo. Tudo é jogo, mas no xadrez, as peças se movem de uma forma, e na dama, de outro. “Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem” (HUIZINGA, 2005, p. 17). Observe-se: no domínio do jogo. Mas domínio de que jogo? De todo jogo. Mas que ordem específica e absoluta? A ordem que vale para esse jogo. E a ordem que vale para esse jogo deriva das regras desse jogo: “todo jogo tem suas regras. São estas que determinam aquilo que ‘vale’ dentro do mundo temporário por ele circunscrito” (HUIZINGA, 2005, p. 18).
A noção imediatamente acima tem implicações fundamentais para a relação entre semiótica e hermenêutica: a leitura constitui um jogo, uma pragmática. A leitura está fundada na adesão livre do leitor ao jogo de ler. E o leitor/jogador lerá/jogará conforme as regras da leitura/do jogo que ele leitor/jogador estabelece. Quando os teóricos da leitura determinam um limite para a interpretação de textos, o que, na prática, fazem, é apoderar-se do jogo como se toda e qualquer leitura fosse sempre o mesmo jogo, submetido às mesmas regras. No caso que vimos de tratar, os donos do suposto jogo universal de leitura aparecem na forma da “comunidade de interpretação” (RABENHORST, 2002, p. 16), a quem caberia o poder de, por meio de consenso, estabelecer a procedência ou improcedência de determinados movimentos de peça no tabuleiro. Mas a questão é: toda leitura é realmente sempre o mesmo tipo de jogo? Em outros termos: toda leitura está submetida às mesmas regras?
A resposta é não. Acima, deixamos de fundamentar os jogos de leitura na noção de jogos de linguagem mencionados por Orlandi (1998, p. 16), optando pela fundamentação da noção de jogos de leitura em Huizinga. Mas até mesmo quanto a regras se poderia recorrer à autora citada: “o jogo de que falo é o jogo nas regras e sobre as regras da língua” (ORLANDI, 1998, p. 16). Naturalmente, porque não se pode falar de jogo sem falar de regras. Quanto aos jogos de leitura, pode-se assumir que há três tipos fundamentais, cada qual com suas próprias regras, nos termos das quais – e apenas nos termos das quais – o resultado da leitura pode ser avaliado. O que (me) parece um equívoco fundamental da discussão sobre a questão semiótico-hermenêutica do conflito das intenções – autor, leitor, texto – é que ela se dá como se toda e qualquer leitura constituísse o mesmo tipo de jogo, ou, dito em outro recorte, fosse atualização do mesmo tipo potencial de pragmática. Mas há três tipos pragmáticos de leitura, cada qual com suas próprias regras e critérios. Nos termos com que Martins (2004, p. 52-53) discute a questão do sentido, convenções unilaterais sobre a determinação do sentido de um texto constituem “logro”[3]: “uma teoria geral da significância envolve (...) uma sintaxe, uma semântica e uma pragmática, imbricadas as três como condições igualmente necessárias” (MARTINS, 2004, p. 53)
É curioso que Eco evoque Peirce em seu capítulo aqui analisado (ECO, 1995, p. 27-28). Segundo Dosse (2018, p. 179), Peirce é um dos fundadores da tradição pragmática (MARTINS, 2004, p. 36). No entanto, citar Peirce não levou Eco a aperceber-se da solução pragmática do conflito contra o qual ele tanto se debate e para o qual chega a propor uma “alternativa”. Para o historiador francês citado, deve-se falar de uma “verdadeira guinada pragmática” (DOSSE, 2018, p. 187), para cujo aprofundamento aqui se recorre e recomenda o capítulo “Com o risco de agir” em O império do sentido: a humanização das ciências humanas (DOSSE, 2018, p. 167-195).
À luz da pragmática, aqui compreendida como jogo e não apenas como referência aos atos de fala em distinção à linguagem (MARTINS, 2004, p. 38), mas, até certo ponto[4], à “relação entre o signo e o seu utente ou intérprete” (MARTINS, 2004, p. 46), a determinação do tipo de leitura a ser experimentado é de exclusiva competência do leitor. É o que o leitor decide fazer, enquanto lê, que determina o tipo de jogo que será jogado, e, por isso, a que regras tanto o processo quanto o resultado da leitura estão submetidos. Nenhuma autoridade se situa acima da livre decisão do leitor de ler conforme determinado jogo. Não há regra ou lei anterior à própria decisão pragmática que, então, por sua vez, determinará as regras a serem seguidas nesse jogo. Se há uma “comunidade de interpretação”, também ela deve jogar e julgar segundo as regras do tipo de jogo/leitura adotado pelo leitor[5].
Relacionando os tipos de jogo de leitura às modalidades pragmáticas discerníveis na ação humana, sem qualquer ordem hierárquica, o primeiro tipo de jogo de leitura é o jogo estético. Trata-se de ler qualquer texto a partir da pragmática estética (RIBEIRO, 2020, p. 608-609). Trata-se de ler esteticamente qualquer texto. A decisão de ler esteticamente, vale dizer a decisão pelo jogo estético de leitura ou a decisão pela pragmática estética de leitura, cria determinada ordem e impõem determinadas regras à leitura, válidas apenas e tão somente para esse tipo de leitura. Trata-se de uma leitura em que o leitor se eleva a si mesmo à condição de referencial semiótico de atualização da polissemia textual. Nesse tipo de leitura, o mundo subjetivo do leitor projeta-se no tecido textual e, porque sempre encontra nele condições para isso, projeta no texto sua própria identidade. O resultado da leitura é uma hipóstase do leitor. Era esse seu objetivo e é esse seu resultado. Nesse jogo, e apenas nele, o texto funciona como um objeto estético, no qual o leitor encontra as condições ideias para projetar seu mundo, seu gosto, sua idiossincrasia, seus valores, seus sonhos, suas dores e alegrias. Cada leitor, uma leitura. A polissemia, isto é, “o sentido múltiplo” (BATORÉO, 2005, p. 237), é a característica textual que permite o fenômeno da leitura estética, do jogo estético de leitura, e a pluralidade de resultados é o produto natural dessa pragmática estética de leitura. “Na polissemia, a produção da diferença” (ORLANDI, 1998, p. 15). Não há comunidade de interpretação que possa interditar qualquer leitura desse tipo, sequer mesmo avaliá-la a partir de limites normativos, quaisquer que sejam. Pode-se até desgostar do jogo de leitura estético-pragmática, como parece ser o caso de Martins, quando declara que “nossa proposta pedagógica não nos aproxima, com efeito, da pragmática hedonista e estetizante” (MARTINS, 2004, p. 15). A decisão pelo jogo é também uma questão de gosto.
O segundo tipo de leitura encontra-se no limite do jogo que se acaba de descrever. Da mesma forma que o jogo estético de leitura, trata-se também de projetar no texto cosmovisões próprias da comunidade de leitura, mas agora não mais a de um leitor, mas de um grupo de leitores, ainda que se trate de um único leitor a ler. Nos dois casos, pode-se falar com propriedade de “dimensão pragmática da produção de sentido” (MARTINS, 2004, p. 85). No momento da leitura, e porque assim se decidiu, não é o mundo idiossincrático do leitor que se projeta no texto, mas os conteúdos ideológicos positivos do grupo a que o leitor se vincula para esse jogo. Trata-se de jogo político de leitura, vale dizer, da pragmática política de leitura ou da atualização política de um texto (RIBEIRO, 2020, p. 609-612). Estética e política são duas das três pragmáticas, e ambas são possíveis por força da polissemia textual. A diferença fundamental entre elas é que no primeiro caso trata-se da projeção idiossincrática e solipsista de um mundo particular, subjetivo, pessoal, ao passo que no caso da pragmática política trata-se de controlar o processo de leitura por meio de valores e normas estabelecidas por uma comunidade de leitura a que o leitor se submete. Dois casos: leitores que optam por fazer leituras baseadas em determinado teórico, por exemplo, uma leitura foucaultiana de A pata da Gazela, e leitores católicos de Romanos. Nos dois casos, o resultado da leitura está previamente determinado. Nesse jogo de leitura, tem-se de, conforme o caso, produzir um resultado válido para a comunidade foulcaultiana ou católica. Observe-se que, todavia, ninguém é obrigado a fazer leituras a partir de Foucault ou do Vaticano. O leitor decide livremente ler a partir desses critérios comunitários, sujeitos ao crivo avaliativo das respectivas comunidades. As regras desse tipo de leitura constroem-se no sentido de sempre garantir que o resultado da leitura esteja em plena conformidade com o que previamente a comunidade postula como um resultado procedente. Outra diferença: dado que a leitura estética tem como única regra a projeção do mundo do leitor no texto, toda leitura estética é a priori válida. No entanto, no caso da leitura política, sendo a regra do jogo a projeção no texto não dos valores subjetivos do leitor, mas da comunidade de leitura a que, por qualquer razão que seja, o leitor livremente se vincula, segue-se que nem toda leitura é adequada, de sorte que aí vale a interposição de limites de interpretação. Porque, de um lado, um texto pode ser lido de qualquer forma, de outro, qualquer texto pode ser lido ao modo foucaultiano, mas nem toda leitura de um texto é e necessariamente precisa ser foucaultiana.
Finalmente, o terceiro tipo de jogo de leitura é o jogo heurístico (RIBEIRO, 2020, p. 612-617). Nele, o que se quer não é projetar mundos no texto, seja o do leitor, seja o da comunidade de leitura. O que se quer é, em uma direção, recuperar o sentido original que o autor pretendeu dar ao texto, ou, noutra direção, compreender o texto como objeto de investigação científica. Aqui, no primeiro caso, a polissemia é um obstáculo a ser criteriosamente vencido, porque a clausura[6] da intentio auctoris encontra-se submersa na polissemia intrínseca do veículo histórico-material de sua expressão. No segundo, a polissemia é um fenômeno a ser estudado e compreendido. De qualquer forma, não estamos diante de estratégias de leitura cujo interesse é a fruição do texto a partir dos gostos idiossincráticos do leitor (pragmática estética) nem de estratégias de leitura cujo objetivo é estabelecer a identidade expressiva do texto a partir da cosmovisão normativa de um grupo (pragmática política). Na pragmática heurística, quer-se compreender seja a mensagem original do texto, seja o texto como tecnologia humana. As regras desse tipo de jogo não guardam nenhuma relação com as regras dos dois outros tipos, e os resultados serão não apenas diferentes, quanto sujeitos a distintas formas de validação, porque, nesse sentido, “a pragmática desloca (...) o conceito de verdade do domínio do enunciado para o domínio do ato de enunciação” (MARTINS, 2004, p. 85). “Verdade”, não – ressalvemos: sentido, e, para o que aqui nos interessa, “ato de enunciação” não: jogo de leitura. Portanto: a pragmática desloca o conceito de sentido do domínio do enunciado para o domínio do jogo de leitura.
A relação entre cada um desses tipos jogos de leitura e a polissemia textual finda por revelar certo parentesco com a relação entre tipos de discurso e o fenômeno da polissemia:
Isso tudo reafirma a importância de se pensar a língua enquanto capaz de jogo e a discursividade como inscrição desses efeitos linguísticos na história. A distinção que faço entre discurso ficaria assim posta: a. discurso autoritário: há contenção da polissemia (...); b. Discurso polêmico: há controle da polissemia (...); c. discurso lúdico: há a polissemia aberta (ORLANDI, 1998, p. 16).
Interpretação e superinterpretação começa com uma referência a Peirce: “em meus escritos mais recentes, elaborei a ideia peirceana da semiótica ilimitada” (ECO, 1995, p. 27-28). E, imediatamente, acrescenta: “procurei mostrar que a noção de uma semiótica ilimitada não leva à conclusão de que a interpretação não tem critérios” (ECO, 1995, p. 28). Como se viu, esse é o problema com que Eco se vê em debate. Também como se viu, Eco concluirá que existe uma intentio operis que deve servir como critério para que a comunidade de interpretação estabeleça os consensos crítico-normativos para a validação das leituras. Até aqui, considerou-se equivocada a abordagem das teorias de interpretação, porque descuidam da questão da leitura como jogo e do fato de que a leitura não constitui um único tipo de prática, sendo possível identificar três modalidades pragmáticas distintas de leitura, cada qual estabelecendo regras e critérios diferentes para a interpretação, com base apenas em que determinado tipo de interpretação pode ser avaliado. O problema do postulado do limite de interpretações de Eco é que ele constitui um caso de desconsideração pela pragmática da leitura, pressupondo uma solução universal para toda e qualquer tipo de leitura. Leitura estética, leitura política e leitura heurística são jogos distintos de leitura, válidos todos, e com regras e critérios que só valem para o tipo respectivo particular de leitura. O quadro avaliativo muda tão substancialmente que se chega a concluir necessariamente que há jogos de leitura sem qualquer limite possível, jogos de interpretação com limites previamente definidos e modos de leitura com limites extremamente rígidos, que Eco classificou como muito difíceis (ECO, 1995, p. 29). A conclusão a que Eco chega quanto a haver um limite para a interpretação de um texto resulta inadequada porque postulada como que para toda e qualquer interpretação, e no caso de interpretações pragmáticas estéticas, mas, em última análise, também para interpretações pragmáticas políticas, consideradas em seu conjunto potencial, as leituras são potencialmente infinitas e absolutamente coerentes com as regras internas de cada jogo pragmático.
É preciso agora relacionar o conflito das intenções – autor, leitor, texto – ao conceito de leitura como jogo e ao fato de que o ato de leitura se atualiza sempre em determinada e restrita câmara pragmática. O fato de Eco ter começado seu capítulo com a menção de Peirce é oportuno, porque Peirce é um dos proponentes da semiótica triádica (MARTINS, 2004, p. 31-32), com cuja noção se pode avançar na solução do problema do conflito das intenções no contexto da interpretação de textos. A semiótica de Peirce estabelece que o sentido emerge a partir de três elementos necessários: o intérprete, o objeto e o referencial, ou, nos termos do autor por último citado, “representamen, interpretante e objeto” (PEIRCE, 1995; MARTINS, 2044, p. 39). O sentido constitui uma faculdade da mente humana[7], que, à luz de um referencial, projeta-se no objeto. O sentido não está nos objetos, mas na mente humana, que, por sua vez, serve-se de um referencial para seu procedimento hipostático.
Para a questão do conflito das intenções – autor, leitor, texto – deve-se perguntar pelo papel que cada um desses três elementos representa no jogo hermenêutico. Parece adequado considerar que é justamente o papel de referencial pressuposto pela semiótica peirceana acima referida. Fujamos da tautologia: toda interpretação, obviamente, é produzida por um intérprete, de sorte que toda leitura é feita por um leitor. Mas com isso apenas se aponta para a primeira dimensão da semiótica peirceana: o intérprete. No caso da leitura de textos, esse intérprete é leitor. Logo, temos, de um lado, o intérprete: o leitor, e, de outro, o objeto: o texto. É aqui que a discussão da literatura parece negligenciar o fato de que, nomeados apenas leitor e texto, não estamos em condições de avaliar adequadamente a prática da leitura, porque falta o terceiro elemento da equação: o referencial. E é aqui que cada uma das intenções – autor, leitor e texto – exerce seu papel semiótico-pragmático fundamental.
Um leitor qualquer toma nas mãos um texto qualquer. Com base em que referencial ele atualizará o sentido do texto? Esse leitor pode eleger-se a si mesmo como referencial de leitura. Assim, o leitor lerá o texto com base em si mesmo como referencial. Esse leitor é obrigado a escolher-se a si mesmo como referencial? Não. Ele pode escolher como referencial os conteúdos positivos de determinada comunidade. Nesse caso, esse leitor não mais lerá o texto tendo por referencial a si mesmo, mas tendo como referencial um conteúdo positivo sustentado previamente por determinada coletividade a que ele se vincula. Além disso, esse leitor pode ainda escolher como referencial não a si mesmo nem a qualquer grupo, mas o autor do texto. Nesse caso, o leitor deverá atualizar o texto com base no sentido que o autor pretendeu dar – e deu – ao texto que escreveu e que agora é lido pelo leitor. Estamos diante de três jogos de leitura completamente diferentes, e que dão à discussão das intenções do autor (intentio auctoris), do leitor (intentio lectoris) e do texto (intentio operis) a consistência teórica necessária. Se o leitor adota o autor do texto como referencial semiótico, então opera-se a leitura nos termos da intentio auctoris. Se o leitor opta por atualizar o texto com base nos conteúdos positivos de uma determinada comunidade, ou se decide adotar-se a si mesmo como referencial da leitura, nas duas situações temos casos de intentio lectoris. Não faz nenhum sentido perguntar-se sobre qual das duas intenções são corretas como referencial. É o jogo de leitura, vale dizer, a pragmática de leitura que estabelece a procedência do referencial.
Há limites para a interpretação? Depende do jogo de leitura. Se o leitor lê um texto com base em si mesmo como referencial, então não há qualquer limite possível. De um lado, esse leitor projetará a si mesmo no texto, dado que o referencial de leitura é o próprio leitor. Essa leitura é perfeitamente adequada. De outro lado, haverá tantas leituras possíveis quanto leitores desse texto. Nenhuma leitura será mais adequada do que outra, porque no jogo estético de leitura o referencial é o próprio leitor. Noutro caso, porque assumindo como referencial a comunidade de sentido a que se vinculam e submetem, leitores inseridos em jogos políticos de leitura projetarão no texto o conteúdo positivo e normativo de seu grupo de vinculação, de sorte que resultará adequada justamente a leitura que expressar exatamente a identidade daquele grupo. Nesse sentido, se olhada cada interpretação em si, adequadas serão apenas as leituras que expressarem exatamente a identidade do grupo de vinculação do leitor, mas em última análise, haverá tantas leituras políticas quanto grupos de leitura houver. Nesses dois casos, não é possível dizer que haja limites para a interpretação, porque haverá tantas interpretações válidas quantos leitores estéticos (jogos estéticos de leitura) ou comunidades de leitura (jogos políticos de leitura) houver. Respectivamente, num caso de modo absoluto e, no outro, em última análise, a adoção do leitor e a adoção da comunidade de leitores como referencial de leitura desautoriza a declaração normativa de que haja limites para a interpretação. No caso da leitura cujo referencial é a própria comunidade de leitura, apenas internamente ao jogo se pode falar de um limite – limite esse estabelecido pelo próprio jogo, cuja regra diz que a leitura correta nesse caso é aquela que se expressa a partir da identidade da comunidade de leitura. Logo, é uma limitação imposta a si mesmo pelo próprio jogo, de sorte que, se olhamos para todas as atualizações sociais da leitura política, deparamo-nos com a constatação irrefutável de que sequer aí há limites. Por exemplo, todas igualmente adequadas à regra do jogo da leitura política de textos, quantas leituras diferentes não se podem flagrar nas igrejas herdeiras da Reforma? Alguma dessas igrejas deve satisfação a qualquer outra em relação à leitura que faz? A leitura batista da Bíblia constitui limite para a interpretação assembleianas?
Caso totalmente contrário é aquele em que o leitor elegeu como referencial para a interpretação que levará a termo não a si mesmo ou seu grupo de vinculação ideológica, mas o autor do texto interpretado. Nesse caso, dado que, a despeito da polissemia do texto, a fala do autor está submetida à clausura de sentido, adequada será a leitura que alcançar, na algazarra polissêmica do texto, a “voz” do autor. Nesse caso, não é que se possa sequer falar de mero limite de interpretação: nesse tipo de jogo, a regra determina que o resultado adequado da leitura deve ser a plena identidade entre a intenção do autor e a interpretação do texto. De novo: trata-se da aplicação da regra do próprio jogo, não de uma norma universal válida para toda e qualquer leitura. Estamos diante não de uma limitação imposta por uma comunidade de consenso, mas uma regra interna a esse jogo – e só a ele. Nesse tipo de leitura, o leitor só está submetido a uma severa e restritiva imposição hermenêutica porque ele mesmo escolheu jogar esse jogo: atualizar a polissemia de um texto com base na intenção original de seu autor. É essa opção de leitura que determina e regra que, por sua vez, impõe o limite de leitura.
E quanto ao caso de um leitor optar por utilizar como referencial de leitura nem a si mesmo ou ao grupo de vinculação (intentio lectoris), nem o autor do texto (intentio lectoris), mas o próprio texto (intentio operis). Segundo Umberto Eco, é justamente porque ele se arrima na intenção da obra, e não na do leitor, que se deve considerar que haja limites para a interpretação. No entanto, como conjugar, no mesmo raciocínio, o fato de que todo texto seja intrinsecamente polissêmico com a pressuposição de que haja uma intenção da obra? Se é possível falar “da polifonia, do dialogismo, da polissemia, do plural do texto” (SCHMITT, 2016, p. 5.421), e nomear-se “a polifonia, o dialogismo, a polissemia textual” (SCHMITT, 2016, p. 5.430), imediatamente arrematando a referência com a noção de “circularidade infinita da linguagem” (SCHMITT, 2016, p. 5.421 e 5.430), em que lugar dessa circularidade infinita se pode atualizar uma intenção da obra? O argumento de defesa da existência da intentio operis como alternativa ao conflito das intenções caminha na direção de considerar que a estrutura e a coesão do texto determinam sua unidade semântica, e é com base nela e na autoridade de uma comunidade de consenso que se deve operar os limites dessa interpretação. Mas a questão é: qual é de fato o referencial nessa situação? No caso de o referencial ser o leitor ou o autor, a questão é muito clara – leitores são os que leem e autores são os que escreveram ou ditaram a obra. Mas e o texto? O que se conceberá como “obra” quando se optar por eleger o texto como referencial? Se se está pensando em regras de sintaxe, redação e retórica, não se está sub-repticiamente misturando as noções de autor e texto em uma noção de “obra” que, todavia, esconde parte dos elementos envolvidos? Quanto ao ocultamente sub-reptício do autor, não foi dito que “a noção de autor é já uma função da noção de sujeito, responsável pela organização de sentido e pela unidade do texto” (ORLANDI, 1998, p. 9). O que a Eco aparece como intenção da obra aparecem para Orlandi como responsabilidades do autor da obra. E quanto ao ocultamento do leitor, não seria essa uma razão possível para, a despeito de Eco falar de intentio operis como alternativa às outras duas intenções, Dantas considerar que Interpretação e superinterpretação tributa “o devido respeito pela dialética da intentio operis com a intentio lectoris” (DANTAS, 1998, p. 162). Não se dá o mesmo caso com aquelas operações que se dizem desligadas da intentio auctoris, mas findam por interpretarem os textos com base em sua cultura de origem? Pode alguém determinar em que consista A Ilha do dia anterior para, com base nisso, estabelecer a improcedência de uma interpretação desse excepcional romance de Umberto Eco? Não estará a defesa da intentio operis como alternativa preso a um problema de aproximação teórico-metodológica do fenômeno da interpretação, tratando-o como isonômico, quando, como se viu, cada um dos diferentes jogos de leitura – estéticos, políticos, heurísticos – estabelece regras específicas e válidas apenas para cada tipo de jogo, transformando o que aparece como um problema para o semiólogo italiano no resultado adequado e esperado de determinado tipo de jogo, porque, conforme o caso, há jogos que não impõem limite algum à leitura (jogos estéticos de leitura), determinam limites relativos à leitura (jogos políticos de leitura) ou estabelecem um limite extraordinariamente rígido à leitura (jogos heurísticos de leitura)?
Como bem disse autora já citada, “procuramos defender com base num estudo de polissemia que o significado não é objeto mental estável, tratando-se antes da construção de interpretações, e que para tal são precisos critérios linguisticamente bem definidos” (BATORÉO, 2005, p. 252). Nesse sentido, com a proposta de solução para o que equivocadamente se tomava como um conflito de intenções e agora se pode tomar como nada mais do que diferentes referenciais pragmáticos de jogos de leitura específicos, se poderia sugerir resolver também, indiretamente, um problema geral da interpretação:
A resposta ao crucial problema da interpretação (isto é, a questão dos critérios de interpretação, por forma a evitar a arbitrariedade) consistirá em fundamentar empiricamente as interpretações das expressões linguísticas nas experiências individual, coletiva e histórica nelas fixadas, no comportamento dos falantes que as usam e na fisiologia do aparato conceptual humano. Tais critérios implicam, naturalmente, a observação do uso real das expressões linguísticas (SILVA, 2003b, p. 110 e SILVA, 2003a, p. 166).
Quer-se acreditar que estabelecer empiricamente critérios de interpretação a partir dos referenciais pragmáticos próprios do tipo de leitura em questão constitua ao menos uma proposta de solução para o problema da interpretação. De qualquer modo, não se resolvem todos os problemas da interpretação, mas apenas se ver diluir uma miragem hermenêutica. Permanecendo em aberto o que seria de fato uma intenção da obra, resulta assentado o fato de que, estabelecidas como referenciais pragmáticos, intentio auctoris e intentio lectoris não constituem nem problemas nem se encontram em conflito. Constituem antes critérios de produção e de avaliação de sentido a partir das regras próprias dos tipos de jogos de leitura em que funcionam como referenciais de tipo peirceano, uma vez que “a ideia dos critérios operacionais de polissemia, em si legítima, será errada enquanto esses critérios forem tomados como critérios de identificação de sentidos estáveis” (SILVA, 2003a, p. 151). Nos termos do resultado a que se postula ter chegado, o sentido na interpretação deriva dos referenciais adotados em função do tipo de jogo pragmático. Nada mais instável.
Duas observações devem ser feitas em relação à discussão a respeito da perspectiva de Umberto Eco quanto ao problema da interpretação com base na intentio auctoris, intentio lectoris ou intentio operis. A primeira, é que a questão, como colocada, precisa de reformulação. Não é possível estabelecer em termos ontológicos os limites de uma interpretação, porque a interpretação é um procedimento pragmático, operado em termos de seguir determinadas regras que valem para um tipo de leitura, mas não para outro. Leituras estéticas são absolutamente ilimitadas. Leituras políticas são limitadas em termos de cada partida, mas em última análise, ilimitadas enquanto tipo, já que tantas serão as diferentes leituras quantos sejam as diferentes comunidades ideológicas de leitura. Por sua vez, leituras heurísticas são leituras severamente restritas em seu resultado adequado, uma vez que partem da regra interna ao jogo heurístico de que o único resultado correto é aquele que exponha perfeitamente a intenção do autor. Cada jogo de leitura – estético, político, heurístico – pressupõe regras diferentes de leitura e igualmente resultados diferentes de leitura, de sorte que a tentativa de estabelecer um critério universal para todas as leituras constitui um equívoco.
Além disso, o resultado de se descartar voluntariosamente dois procedimentos legítimos de leitura, intentio auctoris e intentio lectoris, resulta na postulação de um procedimento cujo referencial seria o próprio texto e que, a despeito da condição polissêmica que lhes caracteriza, implicaria em uma intentio operis. Não parece adequado falar-se de uma intenção da obra, se, com o mesmo movimento, desconsidera-se a intenção do artista e contempla-se, isolada de sua intenção criadora, alguma coisa como intentio operis. A que se resume essa intentio operis que não seja ou a intentio auctoris ou, confessada ou não, a intentio lectoris? Há uma intenção da obra que não seja a intenção do artista, a intenção do esteta ou a intenção da comunidade? Se a obra for isolada de sua intenção original ao mesmo tempo que de sua comunidade de recepção, só se poderia falar do potencial conjunto infinito de intenções da obra, porque cada atualização polissêmica dessa peça corresponde à atualização do potencial infinito de intenções latentes no objeto. Eco está tentando resolver um problema – leituras socialmente válidas – sem preocupar-se primeiro em situar a condição social dessa leitura.
Após as duas considerações, conviria recordar que as três intenções em confronto – do autor, do leitor, do texto – configuram não conflitos, mas referenciais possíveis e disponíveis à escolha do jogador que lê. Constituem referenciais peirceanos para a constituição do sentido de um texto. O intérprete estabelece como referencial para o objeto que interpretará ou o próprio leitor da obra, ou o autor da obra, ou a própria obra, sendo que ainda se deveria esclarecer exatamente do que se está falando quando se fala de “obra” que não seja uma obra criada por alguém ou recebida por alguém, mas algo como uma obra em si. A alternativa de Eco (me) parece mais a tentativa de fugir da intentio auctoris e da intentio lectoris do que efetivamente sustentar uma saída teoricamente sustentável. As intenções não digladiam umas com as outras em um mesmo tabuleiro de jogo. Sequer se encontram em um mesmo jogo. Cada intenção é a regra que normatiza um diferente tipo de jogo, com base no que – e apenas no que – o resultado da interpretação pode e deve ser avaliado.
Referências
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[1] Rabenhorst nomeia o livro de Eco como Interpretação e sobreinterpretação, e em todo seu artigo usa o termo sobreinterpretação, e não superinterpretação, que, todavia, é o termo utilizado na edição da Martins Fontes utilizada neste artigo e que se optou por empregar.
[2] Aqui, Umberto Eco declara referir-se a uma citação de Richard Rorty.
[3] “Com efeito, é uma limitação colocar a significação à ordem do signo e do seu sentido. Mais, é um logro encerrar a significação no signo (...). É também redutor encarar a significação como o conteúdo de um ato proposicional (...). E é um logro encerrar a significação na clausura de uma frase” (MARTINS, 2004, p. 52-53).
[4] “Até certo ponto”, porque, em Martins, a noção de jogo não está presente, e a pragmática é assumida como uma relação prática entre o intérprete e o texto. Na minha opinião, falta à Semiótica do autor (MARTINS, 2004) justamente a noção de atos de leitura como jogos marcados por regras próprias. Curioso, no entanto ressaltar que as condições para a concepção da interpretação como jogo estão presentes na obra citada: “Para Peirce, no entanto, o que prima é a relação. E por essa razão não é possível identificar objetos designados como objetos reais no espaço e no tempo, ao mesmo tempo que se insiste na abstração da dimensão pragmática da comunicação ou da fala, no quadro de situações precisas. Assim, não é possível, por princípio, falar de ‘denotata’ como de objetos da dimensão semântica, mas apenas de ‘designata’, isto é, de objetos da referência do signo, no quadro de sistemas semânticos abstratos. Tanto mais que um sistema semântico abstrato da linguagem pode conter ‘designata’, que de modo nenhum podem ser identificados como ‘denotata’. É o caso dos unicórnios, do Inferno e do Pai Natal”. Ora, a designação é função do jogo, e suas regras daí derivam.
[5] Não se trata aqui de relacionar certos tipos de leitura – o drama teatral, por exemplo – à noção de jogo, como é o caso de BASTOS, 2002. Não se trata de jogar algum tipo de jogo didático ou lúdico em torno da leitura, mas de reconhecer a leitura como um conjunto de práticas culturais que se expressam na forma de jogo, nos termos de HUIZINGA, 2005.
[6] Para a noção de clausura em contextos semióticos, cf. MARTINS, 2004, p. 53.
[7] “Talvez o mais importante para se entender sobre a mente cognitiva é que ela é, de alguma forma, capaz de representar o mundo” (FODOR, 2007, p. 5). Provavelmente se poderia empregar a seguinte analogia: enquanto, na mente humana, o sentido é morfológico, a representação é sintática – o conjunto de sentidos produzidos pela mente humana atualiza-se sintaticamente na forma de uma cosmovisão.