Elogio da vaidade: A recepção do eclesiastes em Machado de Assis     
Praise of vanity: The reception of ecclesiastes in Machado de Assis        

Carlos Mário Paes Camacho 
*Pós-Doutorado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Contato: carlosmariodegraus@hotmail.com. 

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Resumo 

A religião ocupou um lugar importante na obra de Machado de Assis. O artigo temcomo objetivo identificar, no conto Elogio davaidade, publicado pelo escritor fluminense em 1878, a presença do Eclesiastes. Este, um dos livros bíblicos mais conhecidos, trata de temas que revelam o cotidiano e a efemeridade da vontade e da vida humana. Machado de Assis expressou, por intermédio das suas personagens, problemas e indagações filosóficas vitais para a compreensão da religião. Por meio de um trabalho de análise intertextual, há uma tentativade aproximaçãode passagens do conto com as mensagens do texto bíblico.Machado faz uma reflexão sobre a vaidade e as vanidades humanas. O conto revela a importância da Bíblia para a escrita literária machadiana. 

Palavras-chave: Machado de Assis; Eclesiastes; Vaidade; Sentido da Vida; Pessimismo 

Abstract 

Religion occupied an important place in the work of Machado de Assis. The article aims to identify the presence of Ecclesiastes in the short story Elogio da vanidade published by the writer from Rio de Janeiro in 1878. This, one of the best-known biblical books in the Bible, deals with themes that reveal the daily life and the ephemerality of human will and life. Machado de Assis expressed, through his characters, problems and philosophical questions vital to the understanding of religion. Through an intertextual analysis work, there is an attempt to bring passages of the tale closer to the messages of the biblical text. Machado reflects on vanity and human vanities. The tale reveals the importance of the Bible for Machado’s literary writing.  

Keywords: Machado de Assis; Ecclesiastes; Vanity; Sense of life; Pessimism. 

Introdução  

Machado de Assis reservou, na sua obra literária, um lugar importante para a religião. Os avanços das pesquisas no campo das Ciências da Religião podem abrir novos caminhos para a compreensão do pessimismo e do sentido da vida na produção literária machadiana. 

Este trabalho tem como objetivo identificar, no texto Elogio da vaidade, a presença do Eclesiastes. A escolha deste conto deve-se ao fato de que ele foi redigido em 1878, em um momento que Machado, cada vez mais, se consagrava como um grande escritor perante a opinião pública e, simultaneamente, consolidava uma escrita pessimista e irônica. 

Defende-se aqui a hipótese de que o Elogio da vaidade é um texto que exemplifica muito bem a importância dada pelo escritor ao Eclesiastes para a construção dos seus escritos e narrativas literárias. A constatação disso requer igualmente a aceitação da filosofia como base de entendimento de uma vocação religiosa da obra machadiana. Não é por acaso que o interesse por Machado de Assis e por sua obra desperta, paulatinamente, o interesse de pesquisadores do campo das Ciências da Religião e da Teologia no Brasil. 

1 Apontamentos sobre alguns estudos acerca da religião na obra de Machado de Assis

A religião ocupa um espaço importante na obra de Machado de Assis. As investigações dos temas religiosos podem favorecer a compreensão do pessimismo e do sentido da vida no conjunto da produção literária machadiana. Esta vem recebendo atenção de muitos estudiosos ao longo dos anos. 

Em obra publicada em 1939, ano que marcou o centenário do nascimento de Machado de Assis, Araújo (1939) tratou, de forma pioneira, o tema da religião na obra e em relação ao autor de Memórias póstumas de Brás Cubas. É interessante notar que a abordagem de Bressane de Araújo inaugura um modo de abordagem da religião: o tratamento e a análise simultânea da religião e dos seus símbolos na obra do autor. 

O livro não é um estudo aprofundado da religião na obra literária machadiana. Araújo preocupa-se mesmo em discutir a formação religiosa do escritor. Tal caminho leva o autor a concluir que Machado, ainda que não fosse ateu, tornou-se cético e indiferente no que diz respeito à religião e às suas cerimônias litúrgicas. Bressane de Araújo assevera que a leitura da Bíblia feita pelo fundador da Academia Brasileira de Letras era também para extrair “tão somente belezas literárias” (ARAÚJO, 1939, p. 19). 

No limiar do século XXI, o número de trabalhos sobre a religião em Machado de Assis e na sua obra cresceu de maneira expressiva. Um exemplo disso é o livro de Maria Eli de Queiroz, originalmente uma dissertação de mestrado em Literatura Brasileira defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que retomou os principais pontos da abordagem defendidos na obra que veio a lume em 1939. A autora, ao contrário deAraújo, sublinha a importância da religião para a formação do escritor e da sua obra. Queiroz (2008) assinala que a literatura machadiana, além de conter mensagens religiosas, legou ao público leitor reflexões sobre o significado da vida e evidenciou que as visões religiosas do escritor coincidiriam com as das personagens. 

Douglas Rodrigues da Conceição (2004) dedicou-se ao estudo da obra de Machado de Assis em dois livros, que se tornaram referências importantes acerca das possibilidades do texto literário como espaço para a presença de expressões e ideias religiosas machadianas. Na obra publicada em 2004, e que tem como objeto de pesquisa o romance Dom Casmurro, Douglas Conceição utiliza a antropologia como ponte e mediação das reflexões teológicas. Na primeira parte do livro, há a demarcação das fronteiras, tensões e convergências do diálogo entre a teologia e a literatura. Na segunda parte, o autor expõe as possibilidades de se construir caminhos para uma leitura antropológica de Machado de Assis, e ainda, por intermédio de Afrânio Coutinho (1990), a importância e a influência de Pascal no que tange às representações religiosas edificadas pelo autor de Memórias póstumas de Brás Cubas. Na terceira e última parte, há a apresentação da tese de que a antropologia serve de instrumento para se identificar em Dom Casmurro percepções e concepções religiosas. Dito isso, e reportando-se a Afrânio Coutinho, Conceição registra que o “jansenismo pascaliano” foi importante para a edificação do pessimismo machadiano (CONCEIÇÃO, 2004, p. 63). 

Brum (2009), em estudo consagradoa religião na obra literária machadiana, informa a preocupação do escritor no que concerne aos temas religiosos. Além de selecionar os aspectos religiosos no conjunto da obra de Machado, ele faz um estudo sobre o desenvolvimento da Igreja Católica no Brasil, a partir de temas como o padroado Régio e a questão religiosa no Brasil do Segundo Reinado (1840-1889). Tais temas apareceram de maneira direta ou indireta entre os diversos personagens machadianos. A pesquisa desenvolve um estudo sobre personagens religiosos e passagens da Bíblia. 

Os trabalhos de Viviane Cristina Cândido (2011) e Ivana Fuchigami (2013) atestam o vigor e o crescimento dos estudos em torno das questões religiosas na obra de Machado de Assis. As autoras pesquisam as experiências cristãs expressadas pelas personagens machadianas, a partir da eleição do mal como objeto de investigação. 

No âmbito das Ciências da Religião, os trabalhos de Paulo Augusto de Souza Nogueira (2015) merecem destaque, na medida em que ele demonstra a importância de se construir um referencial teórico e metodológico para investigar “as linguagens da religião” nas suas relações com as religiões. As linguagens humanas e as religiosas presentes na obra de Machado de Assis permitem compreender as experiências em torno de temas como a fé e o sagrado. 

Deste modo, as pesquisas sobre a religião na obra machadiana crescem cada vez mais, através de um diálogo promissor com os mais variados domínios das Ciências Humanas.No processo de criação literária, a Bíblia foi utilizada com frequência por Machado. O Eclesiastes foi um dos livros bíblicos prediletos do escritor (CEI, 2016). 

2 O eclesiastes como livro bíblico 

As discussões sobre a autoria, o momento e o local em que foi produzido o Coélet (a tradução consagrada pelo uso é Eclesiastes),que faz parte da literatura sapiencial bíblica,mobilizou um expressivo número de pesquisadores ao longo dos anos.Gutiérrez afirma que na raiz hebraica da palavra encontra-se o significado do Eclesiastes: “convocar, reunir a assembléia” (GUTIÉRREZ, 2016, p. 475). O Coélet, portanto, é o orador que se dirige aos homens em uma assembleia, não necessariamente para orientá-los religiosamente. O orador, na verdade, professava reflexões sobre o sentido da vida. Logo na primeira parte há a mensagem do Coélet: 

Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando e girando vai o vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar, e rios continuam a correr (Ec. 1.4-7).  

A rotina de trabalho à qual está submetido o homem que labora sol a sol suscita a questão sobre o sentido da vida. As metáforas concernentes aos movimentos do sol e do vento reforçam as reflexões sobre a vida humana, que é submetida ao trabalho incessante, rotineiro e cansativo. É interessante sublinhar que o esforço humano aplicado ao labor cotidiano é associado à fadiga e ao sofrimento. Nesse sentido, as narrativas literárias machadianas, sob a influência do Eclesiastes, acabam por alertar o leitor em relação às vaidades e futilidades humanas, que tornam a vida sem sentido. 

Em obra de cunho didático, Ivo Storniolo e Euclides M. Balancinapresentam uma síntese que revela uma série de comentários importantes sobre o Eclesiastes. Na introdução, os autores defendem a tese de que o Coélet é o portador dos valores morais e ideias que indicam aos homens os caminhos para a concretização de uma vida feliz. O contexto histórico ao qual estava inserida a Palestina é apresentado em linhas gerais. A situação da maioria do povo palestino em que o livro foi redigido era de exploração e miséria, submetido a uma elevada carga tributária (STORNIOLO; BALANCIN, 2011, p. 10). 

Nas partes seguintes, compostas por cinco capítulos, o livro indica como o Eclesiastes trata a questão da felicidade, os motivos da infelicidade do povo palestino, bem como os caminhos que ele deve trilhar para ser feliz. Esta deve ser inicialmente alcançada pelo desfrute da porção gerada pelo trabalho. Storniolo e Balancin (2011), contudo, advertem para o equívoco de se associar de forma automática trabalho, usufruto do trabalho e hedonismo. A chave da felicidade para o povo é usufruir o fruto do seu trabalho, e não uma vida opulenta. Isso posto, no Eclesiastes, na medida em que o trabalho não promove a felicidade e beneficia a uma minoria, estimula a vaidade. Conforme o Coélet: 

Detesto todo o trabalho com que me afadigo debaixo do sol pois, se tenho que deixar tudo ao meu sucessor, quem sabe se ele será sábio ou néscio? Todavia, ele será dono de todo o trabalho com que me afadiguei com sabedoria debaixo do sol; e isso é vaidade. E meu coração ficou desenganado de todo o trabalho com que me afadiguei debaixo do sol. Há quem trabalhe com sabedoria, conhecimento e sucesso, e deixe sua porção a outro que não trabalhou. Isso também é vaidade e grande desgraça (Ec. 2.18-21). 

A felicidade proposta pelo Coélet deve ser pensada nas relações que envolvem os homens, através do trabalho. Todavia, se de um lado a apropriação do trabalho não é recomendável, de outro, o homem que tem acesso à “porção” do trabalho que não foi fruto do seu esforço, igualmente não é aceitável. O desdobramento disso é que a apropriação do trabalho e o não trabalho não levam àfelicidade, e sim alimentam a vaidade entre os homens. 

Kivitz (2009) informa que as pesquisas realizadas até o momento não identificaram a autoria do Eclesiastes, não obstante a tradição histórica hebraica atribuí-la a Salomão. O tema da vaidade fundamenta a obra. É importante assinalar que nos derradeiros versículos do Eclesiastes há pelo menos quatro sugestões sobre o viver bem e o sentido da vida. A reflexão humilde, ouvir com discernimento o que as pessoas têm a dizer, é a primeira sugestão. Logo, o Eclesiastes ensina que a formação do homem sábio será beneficiada pela observação e reflexão sobre as mais variadas condutas humanas. A moderação corajosa é o segundo ensinamento. Isso significa que o exercício da liberdade requer o limite. O terceiro conselho, “devoção reverente”, sugere o temor aDeus e o respeito aos seus ensinamentos. É importante salientar que o temor a Deus não dever ser confundido com o medo, porque este inviabiliza o homem de atingir a verdadeira sabedoria. Por fim, o quarto e último indica que a subordinação tornará a vida dos homens bem melhores (KIVITZ, 2009, p. 209-217). 

O Coélet pode ser considerado um mestre da sabedoria que convive com o receio de “morrer antes de aprender a viver”, e discorre uma série de lições sobre o que fazer para se alcançar uma satisfação com a vida. Engana-se, todavia, os que consideram o Eclesiastes como uma obra capaz de fornecer um caminho acabado e preciso de uma vida bem vivida. O Coélet anuncia e aconselha o homem a evitar caminhos que o impeçam deviver uma vida como sabedoria. 

Responsável por uma das mais conhecidas traduções do Eclesiastes, Campos (1990) fez uma introdução a respeito da tradução e de temas na obra. Esta pode impactar o leitor, que imediatamente pode projetar as questões do seu tempo em relação aos conteúdos redigidos no século III a.C., ainda mais se o leitor utilizar as ferramentas teóricas criadas por filósofos como Schopenhauer e Nietzsche. Embora o alerta de Campos (1990) deva ser levado muito a sério, a expressão “tudo é vaidade, névoa de nadas” indica a brevidade e o pessimismo que marcam a existência humana. 

José Vílchez Líndez (1999) sublinha a importância do Eclesiastes como livro que revela, de forma mais clara, o comportamento concreto dos homens em sociedade. OCoélet, portanto, é aquele que chama a atenção sobre as atitudes que devem ser seguidas e evitadas para se alcançar uma vida sem infortúnios. As condutas humanas servem de parâmetro avaliativo sobre o significado da vida. 

Líndez (1999), na extensa introdução da obra, resgata, inicialmente, as teorias sobre a autoria do Eclesiastes. Há, em seguida, uma discussão sobre a condição e as possíveis vinculações sociais do Coélet no momento em que foi escrito. Pregador dos ensinamentos de Deus, o Coélet tem como premissa fundamental a diferença que envolve os aspectos da vida humana, dentre eles a vaidade e os mistérios que englobama palavra humana (LÍNDEZ, 1999, p. 19). A vaidade e os valores que lhe são correlatos marcam as relações humanas e acabam por afiançar uma visão negativa das relações humanas construídas pelo Coélet. A passagem abaixo ilustra tal visão: 

Entre as coisas que mais estimamos, os humanos, estão as riquezas, o possuir, o dinheiro. Com elas acredita-se conseguir os bens supremos do homem: a segurança na vida, o poder, o prestígio, o desfrutamento e gozo dos prazeres mais variados e refinados, a possível felicidade em suma. Mas ocorre com elas como com os fogos de artifício: muito trabalho para fugaz desfrutamento. (LÍNDEZ, 1999, p.21). 

Os valores que os homens imputam às riquezas, ao poder e ao prestígio acalentam muito mais as vaidades humanas do que a vida bem vivida, que é a base da felicidade. Isso posto, a leitura serve como referencial teórico importante para se compreender o papel do Eclesiastes na construção de personagens e narrativas machadianas sobre o significado da vida. 

3 O eclesiastes e o significado da vida em elogio da vaidade

Ainda que não seja reconhecido como filósofo pela maioria dos estudiosos oriundos do campo das pesquisas literárias, Machado de Assis expressou, por intermédio das suas personagens, problemas e indagações filosóficas. Pode-se, então, perguntar: as indagações de fundo filosófico que perpassam o conjunto da sua obra seriam deslegitimadas por ele não ser reconhecido como filósofo? Independentemente da resposta, não seria um equívoco chamar a atenção para uma ideia desenvolvida por Martins (2017): a obra literária do escritor fluminense é portadora de uma vocação filosófica. Esta pode ser ainda um alicerce para uma vocação também religiosa, que abre vários caminhos para o entendimento da obra literária machadiana nos domínios das Ciências da Religião e da Teologia. 

Miguel Reale (1982) oferece ao leitor uma série de reflexões sobre a importância da filosofia para a constituição da obra literária do escritor fluminense. O pessimismo, aspecto muito acentuado pelos estudiosos, está de fato presente no conjunto da produção literária machadiana. Autores como Blaise Pascal (1632-1662) e Arthur Schopenhauer (1788- 1860) foram lidos e assimilados por Machado. 

Cei (2016) crê que a influência do pensamento de Pascal esteve presente em toda a obra de Machado de Assis. A concepção da existência humana como trágica e que fundamenta o pessimismo e o significado da vida nas narrativas literárias marcou as narrativas literárias machadianas construídas por personagens como Brás Cubas e Bento Santiago. Os fundamentos filosóficos contidos em Pensamentos evidenciam o objeto máximo do pensador francês: conferir sentido à vida dos homens que devem ser submetidos à religião católica (CEI, 2016, p.98). Sendo assim, o pessimismo e a representação da existência humana como trágica marcaram os escritos dos dois pensadores. 

Arthur Schopenhauer (1788-1860) é considerado por muitos estudiosos um dos maiores representantes do pessimismo filosófico. Este aparece de forma nítida nos Suplementos aos quatro livros do primeiro tomo. No capítulo intitulado “Da afirmação da vontade de vida”, o filósofo expõe a ideia de que a vontade se exprime como impulso sexual. Tal impulso acaba por engendrar nos homens a “inquietude e a melancolia”. (SCHOPENHAUER, 2015, p. 677). A Vontade de vida é responsável pelo aparecimento da fadiga, da necessidade e do sofrimento entre os seres humanos. 

No capítulo “Da vaidade e do sofrimento da vida”, há uma reflexão mais minuciosa sobre a vida humana que seduz os homens a crerem em uma felicidade ilusória e aparente. A Vontade de vida impulsiona os homens aos prazeres fortuitos da existência. Contudo, o desenrolar da vida remete os homens a um destino previsível: a morte. Esta significa o triunfo da natureza em relação à Vontade de vida. Nas palavras do próprio Schopenhauer: 

Assim, a velhice e a morte, para as quais toda vida apressa-se necessariamente, são as sentenças condenatórias que saem das próprias mãos da natureza contra a Vontade de vida, pronunciando que essa vontade é uma aspiração destinada ao malogro (SCHOPENHAUER, 2015, p. 685).  

O desdobramento disso é a crença em uma existência marcada pela dor, preocupação, medo e insegurança. Depreende-se, então, que o tédio e o vazio que tomam os homens conduzem Schopenhauer a conceber a vida humana por intermédio de representações pessimistas, e, no balanço da vida, os homens experimentarão mais sofrimentos do que alegrias. Estas, inclusive, são incapazes de suprimir as angústias que acompanham os indivíduos. (SCHOPENHAUER, 2015, p. 687). A vida, antes de tudo, cria tristeza,e o filósofo atribui ao próprio homem as origens de todos os males. 

As reflexões de Schopenhauer sobre a Vontade, o sofrimento e a dor, que fundamentam uma visão pessimista sobre o mundo, perpassam o conjunto da obra de Machado de Assis.Diante disso,Elogio da Vaidade, publicado em 1878, e Memórias póstumasde Brás Cubas, de 1881, anunciam a consolidação de uma visão pessimista sobre o significado da vida. 

Paulo Roberto Margutti Pinto (2007) faz uma crítica ao livro de José Raimundo Maia Neto: O Ceticismo na obra de Machado de Assis. Margutti Pinto, corroborando a maioria dos pesquisadores, defende a tese de que o pessimismo marcou a escrita literária machadiana. Especificamente, o autor defendeu a tese de que Machado foi inicialmente um pessimista moral, e posteriormente cético, por ter herdado uma visão de mundo do catolicismo barroco do período colonial brasileiro. Tal vertente de pessimismo, alicerçada em um moralismo católico ibérico, acaba por inspirar comportamentos reflexivos céticos. O corolário disso é a dúvida quanto à possibilidade de se alcançar o conhecimento e a realidade social. Além disso, Margutti nos informa que tal visão herdada por Machado recebeu uma forte inspiração do Eclesiastes. Segundo o autor: 

O pessimismo cético da tradição da cultura brasileira tem suas origens na visão de mundo do catolicismo barroco do Período Colonial. Esta visão envolve uma matriz eclética de caráter cético-estóico-salvacionista, que já apresentei no texto Aspectos da visão filosófica de mundo no Brasil do Período Barroco (1601-1768). Essa matriz se baseia numa visão de mundo que pode ser resumida como segue. Vivendo numa sociedade inteiramente depravada, o brasileiro da época colonial adquire uma perspectiva pessimista da realidade social, que ele considera sem solução. Esse pessimismo de caráter moral, baseado nos princípios cristãos que ele vê constantemente desrespeitados à sua volta, o leva a desconfiar do poder da razão para conhecer seja o que for. Isto o leva a recusar as teorias sistemáticas como meras elocubrações vaidosas e buscar na renúncia ao mundo a solução para o seu dilema (PINTO, 2007, p. 184-185). 

Ao vincular a formação intelectual de Machado ao processo de constituição de um pensamento filosófico oriundo do período colonial brasileiro, Paulo Roberto Margutti Pinto não despreza a influência de pensadores europeus como Pascal e Montaigne (PINTO, 2007, p. 185). Tal caminho tem o mérito de sugerir a atenção à seguinte ideia: Machado de Assis, como qualquer intelectual do seu tempo, recebeu influências externa e internas. Posto isso, o pessimismo cético sugerido por Margutti Pinto é um caminho promissor para se investigar a presença do Eclesiastes e o seu impacto sobre a escrita literária machadiana. 

Há nos textos de Machado uma recorrência sistemática em relação ao Eclesiastes. Vitor Cei afirma que nem sempre as passagens literárias machadianas estavam de acordo com o lema central do Eclesiastes: “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (CEI, 2016, p. 88). As últimas crônicas do escritor, que estão situadas na década de 1890, expressam a consolidação de uma visão pessimista sobre a vida e os seus possíveis significados. As passagens do Eclesiastes assinalam o desconforto das narrativas literárias machadianas, bem como adesilusão e a ironia em relação ao comportamento humano. 

Investigar Elogio da vaidade como um espaço que transforma a vaidade em personagem e recepciona as mensagens do Eclesiastes requer uma atenção especial no tocante aos temas que estão em torno do sentido da vida e da religião. O artigo passa, daqui em diante, a se dedicar de maneira mais pontual aos temas que compõem o conto.No início, a vaidade que porta a soberba inferioriza uma outra virtude: a modéstia. Esta servirá de exemplo do que não deve ser seguido por homens e mulheres. A vaidade se defende dos discursos proferidos por retóricos e se diz presente em todas as partes: 

Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da modéstia; mas se não o tendes, reparei bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparei mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival (ASSIS, 2015, p. 1225a). 

Os narradores machadianos têm recebido uma atenção especial dos estudiosos da obra do escritor fluminense. Bosi (2003) ocupou-se em analisar a posição e o olhar dos narradores na obra ficcional machadiana. Brayner (1979), que se ocupa em compreender a narrativa na obra de Machado de Assis, afirma que ele buscou libertar-se do modelo de narrativa romântica, substituindo-a por uma escrita caracterizada por uma subjetividade crítica, que intensifica a tendência do autor para se comunicar frequentemente com o leitor. A vaidade, construída como narradora que se contrapõe àmodéstia, sugere a presença do escritor, que argutamente põe o leitor em contato com uma série de aspectos que identificam as vaidades humanas e o aproximam das efemeridades da vida, que estão presentes no Eclesiastes: 

Prólogo – Vaidade das vaidades – diz Coélet – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é de lá que ele se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando e girando vão o vento e suas voltas. Todos os rios correm para o mar e, contudo, o mar nunca se enche: embora chegando ao fim do seu percurso, os rios continuam a correr. Todas as palavras são gastas e ninguém pode mais falar. O olho não se sacia de ver, nem o ouvido se fará de ouvir (Ec. 1.1-7). 

O texto literário machadiano, sobretudo os da segunda fase, impuseram aos pesquisadores o desafio da intertextualidade, por intermédio dos narradores. A vaidade, personagem que afirma estar em todos os lugares da existência humana, defende as ilusões humanas vistas no Eclesiastes como vanidades que vão e voltam ao sabor do vento. O texto bíblico desvela o sentido do movimento da vida. 

Em outra passagem, o narrador faz referências ao poeta e tece considerações a respeito da criação. Esta é refletida em torno do mérito e dos frutos que rendem o louvor e a vaidade, que, na condição personagem que narra, medita sobre os sentimentos contraditórios intrínsecos ao processo de geração de uma poesia. O narrador, ainda, dá voz ao poeta, que se posiciona a respeito de um caluniador (que depois o elogiou) e, em seguida, foi visto com ele à mesa de um café. O narrador complementa: 

Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vêlo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de Bocage (ASSIS, 2015, p. 1226a) 

A vaidade humana está presente em todos os cantos da existência humana, e o narrador, que é a própria vaidade, não faz questão de alguma de escondê-la. A presença da mensagem do Eclesiastes que subjaz às narrativas do conto mais uma vez atesta o quanto o sentido da vida, cujo ritmo parece se repetir de geração a geração, é refletido nas diversas narrativas machadianas, em consonância com a religião. Conforme o Coélet: 

Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando e girando vai o vento em suas voltas (Ec. 1. 4-6). 

O ritmo da vida é construtor da história humana e sugere ao pesquisador do campo das Ciências da Religião e da Teologia concluir que a existência humana segue um caminho semelhante, independentemente do passar dos tempos. A impressão que se passa ao leitor é de que há forças presentes na natureza que se impõem aos homens, tornando-os impotentes frente ao universo. Reside aí uma aproximação que julgo pertinente: a vaidade humana, vista como intrínseca aos seres humanos, é representada no conto como um valor que atesta a vanidade das coisas e que reforça a ideia da imutabilidade humana. 

Nos momentos finais da obra, o narrador, além de alertar o leitor a não se deixar envolver pela modéstia, considerada como a virtude do homem rude, enfatiza a vaidade como um atributo crucial do vencedor. Ele se vangloria da sinceridade das mensagens disponibilizadas: 

Ora, pois, cuido havermostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem exame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento, o vínculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todosamo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem é nada (ASSIS, 2015, p. 1228a). 

A vaidade, portanto, assume a condição de virtude relevante e capaz de impulsionar homens e mulheres a buscarem honrarias e coisas materiais, que não raro os levam àdestruição. O tema da vaidade tão recorrente na literatura machadiana é importante para se pensar o sentido da vida na sua relação com a religião. Não é sem razão que o Eclesiastesrecebeu uma atenção especial do escritor fluminense. 

Por derradeiro, há uma passagem em Memórias póstumas de BrásCubas, publicado em 1881, três anos depois de Elogio da vaidade, que sinaliza um possível desdobramento da vaidade tão defendida pelo narrador. No momento em que os delírios de Brás Cubas são narrados, há o resgate do pessimismo e do sentido da vida, que se conectam à vaidade humana: 

Isso dizendo, arrebatou-me ao alto da montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o túmulo dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago (ASSIS, 2015, p. 608b).

Em poucos instantes, o narrador conta a história humana como marcada pelo ódio, paixão, tumulto e destruição. Encontra-se aí uma possível aproximação entre as duas narrativas, pois as paixões que se transformam muitas vezes são guiadas pela vaidade, que impulsiona os seres para a destruição. 

Considerações finais 

As mais variadas pesquisas dedicadas a interpretar a obra e o legado machadiano para a Literatura Brasileira e Ciências Humanas afiançam um fato: Machado de Assis é um dos escritores brasileiros cuja obra desperta a atenção dos estudiosos. A religião está presente nos diversos textos machadianos, e pesquisadores das Ciências da Religião e da Teologia dedicam-se ao estudo da religião no conjunto da obra de Machado de Assis. 

Ao longo da sua carreira de escritor, o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas utilizou com muita frequência a Bíblia na criação dos seus livros. O Eclesiastes atraiu a atenção do escritor e serviu de referência para as suas reflexões sobre o significado da vida. O Coélet, que pertence à literatura sapiencial bíblica, permanece ao longo dos tempos como um dos que mais despertam a atenção dos estudiosos, pois revela, de maneira muito rigorosa e pessimista, o sentido da vida. 

Nossa proposta de leitura de Elogia da vaidade chega ao final. Procurarmos evidenciar como o conto de 1878 incorpora, por intermédio do tema da vaidade, uma visão da vida humana assinalada pela efemeridade das coisas e que ecoa o Eclesiastes bíblico. Procuramos ainda registrar que a obra do escritor fluminense é portadora de uma vocação filosófica, crucial para a investigação de assuntos concernentes à religião. 

Referências

ARAÚJO, Dom Hugo Bressane de. O aspecto religioso na obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Cruzada da boa imprensa, 1939. ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. 

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