Interfaces entre teologia e literatura para dizer e pensar o corpo como enigma, dádiva e pathos  
Interfaces between theology and literature to say and think the body as enigma, gift and pathos    

Geraldo De Mori *
*Doutor (2002) em Teologia pelas Facultés Jésuites de Paris – Centre Sèvres, Paris, França, pós-doutorado pelo Institut Cathtolic de Paris (2012). Professor, desde 2002, de teologia sistemática na FAJE/CES, membro do Board of Editors da revista internacional de Teologia Concilium, Editor Geral de Theologica Latinoamericana. Enciclopedia Digital, membro da Comisión Teológica do CELAM e do Grupo de Análise de Conjuntura Eclesial da CNBB. Desde 2021, portador de uma Bolsa de Produtividade do CNPq. 

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Resumo:

Quando surgiu, em 2007, o Grupo de Pesquisa “As interfaces da antropologia na teologia contemporânea”, buscava estabelecer o diálogo entre antropologia e cristologia. O ingresso de pesquisadores/as de outras áreas no Grupo levou-o progressivamente a se interessar pelo lugar da poesia e das narrativas na compreensão de uma das dimensões constitutivas do humano: sua corporeidade. Inicialmente essa temática foi abordada a partir da fenomenologia, culminando no I Colóquio Interfaces, com o tema “CorpoEncarnação” (2015). Daí emergiram as perspectivas a partir das quais a corporeidade passou a ser abordada pelo Grupo: enigma, dádiva e pathos. Para tratá-las, viu-se a necessidade dos recursos da razão poética. O Grupo passou então a privilegiar um diálogo mais estreito com a literatura poética e narrativa, o que deu origem ao II Colóquio Interfaces: “Escritas do crer no corpo, em obras de língua portuguesa” (2017), e com a escrita mística, que deu origem ao III Colóquio Interfaces “Esses corpos que me habitam no sagrado do existir” (2019). O texto aqui proposto retoma brevemente o percurso feito pelo Grupo nesses anos, apresentando, em seguida, alguns elementos teóricos que norteiam sua compreensão da relação entre a poética e a teologia para pensar a corporeidade.  

Palavras chave: Corporeidade, enigma, dádiva, pathos, literatura, teologia. 

Abstract

When the Research Group “The Interfaces of Anthropology in Contemporary Theology” was created in 2007, it sought to establish a dialogue between anthropology and Christology. The entrance of researchers from other areas in the Group progressively led it to become interested in the place of poetry and narratives in the understanding of one of the constitutive dimensions of the human being: its corporeality. Initially this theme was approached from phenomenology, culminating in the I Interfaces Colloquium “Body-Incarnation” (2015). From there emerged the perspectives from which corporeality was approached by the Group: enigma, gift, and pathos. To approach them, it was seen the need for the resources of poetic reason. The Group privileged then a closer dialogue with poetic and narrative literature, which gave rise to the II Interfaces Colloquium: “Writings of believing in the body, in Portuguese language works” (2017), and with mystical writing, which gave rise to the III Interfaces Colloquium: “These bodies that inhabit me in the sacredness of existence” (2019). The text proposed here briefly resumes the path taken by the Group in these years, then presenting some theoretical elements that guide its understanding of the relationship between the poetics and the theology to think about corporeality.  

Keywords: corporeity, enigma, gift, pathos, literature, theology.  

Introdução 

E m sua origem, o saber conceitual nasceu e se afirmou em oposição ao saber dos mitos, que recorriam, sobretudo, a uma linguagem simbólica e poética. Muitos pré-socráticos, com os quais se inaugurou a filosofia, ridicularizavam os mitos, classificando-os como falsos e fantasiosos, elegendo como verdadeiro somente o discurso que recorria ao logos1 . Essa suspeita contra o mito, que desde então caracteriza boa parte da “razão demonstrativa”, é recorrente no pensamento ocidental, como mostram as obras de Platão, República, na qual os poetas são expulsos da polis, e Fédon, na qual o filósofo opõe a opinião (doxa) ao conhecimento seguro (episteme). Na época moderna, Kant retoma essa questão a partir da relação entre intuição e conceito, ao afirmar que “conceitos sem intuições são vazios” e “intuições sem conceitos são cegas”. Ele resgata o lugar da intuição no conhecimento, mas a submete ao conceito. Posteriormente, Nietzsche e Heidegger revisitaram a razão poética, conferindo-lhe novo papel no campo do saber, mas o caminho percorrido por eles pelos que assumem sua leitura, ainda não parece ter reconduzido a imaginação poética de volta à polis. 

As fontes da teologia cristã, constituídas pelas Escrituras sagradas do judaísmo e das comunidades que deram origem ao cristianismo, são todas de caráter poético, reunindo textos narrativos, proféticos, sapienciais, legislativos, homiléticos, hínicos, apocalípticos. Para tornar-se credível aos fiéis marcados pela filosofia ou para defender a “verdadeira” fé diante de algumas leituras controversas ou aberrantes, os pensadores cristãos dos primeiros séculos iniciaram um rico e fecundo processo de diálogo com a argumentação filosófica, dando origem ao que propriamente se tornou o corpus teológico cristão. No período antigo e medieval, apesar da centralidade dada à argumentação conceitual, o viés simbólico e poético ainda permaneceu como característico da reflexão teológica elaborada, situação que mudou profundamente quando a teologia foi se submetendo aos cânones do método das ciências modernas, que, em sua versão positivista, identificavam a religião e seus textos ao mito. Contudo, nas últimas décadas, as críticas à estreiteza do método hegemônico da época moderna e a escuta de outros saberes, fizeram com que, no âmbito da teologia, se estabelecesse um instigante diálogo entre pensamento conceitual e poético. 

O pensamento teológico elaborado nos mais de 70 anos da Faculdade de teologia dos jesuítas do Brasil busca acompanhar as discussões mais candentes de cada época, tanto no ensino, quanto na pesquisa e na extensão2 . Inicialmente marcada pela neoescolástica, a Faculdade, ainda em São Leopoldo, mas mais ainda quando se instalou para Belo Horizonte, promoveu a renovação inaugurada pelo Concílio Vaticano II e Medellín, tornando-se uma referência do pensamento teológico latino- -americano da libertação no Brasil, além de, nas últimas décadas, participar ativamente das novas discussões da área, em curso no continente e no país. A pós-graduação, criada em 1987, inicialmente com reconhecimento eclesiástico e, a partir de 1997, com reconhecimento também civil, seguindo as normas e exigências acadêmicas nacionais, criou, a partir de 2005, grupos ao redor dos quais a pesquisa da Faculdade se realiza. Três desses grupos buscaram estabelecer alguma relação entre a teologia e a literatura: “Fé cristã e contemporaneidade”, “As interfaces da antropologia na teologia contemporânea”, “Mística e estética”, criados respectivamente em 2005, 2007 e 2017. O presente estudo retraçará elementos da história do Grupo Interfaces3 e das questões epistemológicas levantadas pela relação que, a partir de 2016, buscou estabelecer entre ciências humanas, teologia e razão poética. 

1. Pensar teologicamente em interfaces

Quando surgiu, em 2007, mais que um Grupo de Pesquisa, o Interfaces era um grupo de estudos, denominado “O mistério de Cristo e do homem”, composto por dois líderes, Geraldo De Mori e Manuel Hurtado, ambos docentes do Programa de Pós-Graduação em Teologia da FAJE, e mestrandos/as e doutorandos/as acompanhados/as por eles. Em 2008, o Grupo ganhou o nome “Interfaces da Cristologia e Antropologia na Teologia Contemporânea”, que guardou até 2013, quando, a partir da saída de Manuel Hurtado e o ingresso, como segunda líder, da historiadora Virgínia Buarque, da UFOP, passou a ser denominado “As interfaces da antropologia na teologia contemporânea”. Nesses 14 anos de existência, várias mudanças se deram no Grupo, contribuindo para que ganhasse o atual perfil, feito de interfaces internas e externas à teologia. A seguir são retomados os dois grandes períodos do Grupo e respectiva evolução. 

1.1 Primeiro período: interfaces entre cristologia e antropologia

O primeiro período do Interfaces, que corresponde aos anos 2007- 2013, caracterizou-se pelo esforço por pensar a relação entre cristologia e antropologia no interior do próprio corpus teológico. Em sua formulação inicial, o Grupo havia estabelecido como objetivo “pesquisar e aprofundar a relação mútua entre cristologia e antropologia”, com ênfase na forma como essa relação foi pensada na teologia contemporânea, entre outros por Karl Rahner, Juan Luis Segundo, Wolfhart Pannenberg, Adolphe Gesché, Juan Luis Ruiz de la Peña, Luis Francisco Ladária Ferrer, José Ignacio González Faus4 . Numa avaliação feita em 2013, esse período foi relido como tendo sido marcado por três momentos: 

1º. Entre 2007-2009: estudo das principais correntes e tendências que marcaram a cristologia e a antropologia na época contemporânea, apresentação das pesquisas de mestrado e doutorado realizadas por estudantes do grupo. No dossiê do vol. 40, n. 112 da revista Perspectiva Teológica, publicado em 2008 e dedicado às “Novas Cristologias”, os dois líderes do Grupo publicaram artigos que recolhem a pesquisa desse período, com panoramas da cristologia então5

2º. Entre 2010-2011: escolha de um tema transversal a ser estudado por todos os membros do Grupo. O tema escolhido foi a noção de pessoa, lida numa perspectiva histórico-teológica. A obra de Emmanuel Housset sobre o conceito de pessoa, marcada por essa perspectiva, foi adotada como referência para os encontros dedicados à temática comum6 . Textos de Ladária, Teilhard de Chardin e Gesché sobre o tema também foram estudados. Viu-se a necessidade de o Grupo dar um novo passo, na perspectiva de alguma produção coletiva, mas a proposta não teve seguimento. Membros do Grupo apresentaram comunicação sobre as temáticas estudadas, em Congressos da área ou publicaram artigos7 . Três mestrandos e duas doutorandas concluíram suas pesquisas nesses anos8

3º.  Entre 2012-2013: insatisfação de alguns membros do Grupo com a dinâmica adotada, a ausência de uma perspectiva que envolvesse a todos/as e a pouca interdisciplinaridade das abordagens. Saída de alguns deles e ingresso de outros, culminando na reformulação que levou o grupo ao segundo período. O Grupo iniciou o estudo de uma nova temática transversal: corpo-encarnação9

1.2 Segundo período: interfaces entre antropologia e saber poético 

Em seu segundo período, que corresponde aos anos de 2014-2019, o Interfaces ganhou o atual nome e conheceu uma profunda transformação, com o ingresso de novos membros, não só oriundos da teologia, mas também de outras áreas do saber, e a prática de uma real interdisciplinaridade. O tema transversal escolhido em 2012, a problemática corpo-encarnação, ganhou nova impostação, tornando-se um verdadeiro tema de pesquisa para o conjunto do Grupo. Dois momentos, que correspondem a duas etapas interligadas, articulam a pesquisa desse período, e sua continuidade, com o período iniciado em 2020: 

1º. Entre 2014-2015: delineamento e organização da pesquisa ao redor do tema: “Corpo-encarnação. Teologia à escuta de um saber epistêmico interdisciplinar”. Inicialmente, o Grupo buscou elaborar um “status quaestionis” do lugar ocupado pelo corpo na cultura contemporânea e dos saberes que o tomam como objeto de estudo. O projeto então elaborado partia da constatação de que, a partir do final dos anos 1960, um novo imaginário do corpo havia invadido a sociedade: “revolução sexual”, práticas, discursos, novas terapias, o corpo sob o olhar dos holofotes. No dizer de David Le Breton, estudado então, “Procura-se o segredo perdido do corpo” (LE BRETON, 2006, p. 9). No entanto, ainda segundo o autor, em cada época se formam novos imaginários, que se esforçam por expressar/elucidar sua natureza, sua engrenagem, suas proezas, suas contradições e seus mistérios. No início do século XXI, a saúde, o bem-estar e o descanso do corpo tornam-se valores culturais centrais de muitas sociedades. Os feitos da medicina, da biologia e da farmacologia abrem novas práticas visando garantir a prosperidade, o consolo e a eterna juventude aos corpos. Um corpo “supranumerário” aparece então como modelo de mecânica humana na qual cada elemento é substituível por outro (LE BRETON, 2006, p. 89-91). O mundo virtual, que então ganhava grande importância, tornou-se depois central em várias abordagens sobre o corpo10. Sob muitos pontos de vista, o corpo, objeto de diferentes áreas do conhecimento, constitui a “interface entre o social e o individual, entre a natureza e a cultura, entre o fisiológico e o simbólico” (LE BRETON, 2006, p. 92). Com efeito, cada especialidade busca desvendá-lo, também a teologia. Segundo Rahner, na afirmação “Deus de fez homem” se revela “o que significa propriamente a Palavra de Deus”, pois esta grande teofania cristã se operou em um corpo real, “lugar ontológico da vontade de Deus de nos encontrar”, sendo por isso mesmo “o lugar de nossa relação, do nosso estar face a face com Deus (RAHNER, 1995, p. 257). Para Adolphe Gesché, “no cristianismo, tudo gravita em torno do corpo, tudo se pensa e se faz, sub ductu corporis”, ou seja, “desde a Palavra de que fala São João até a Eucaristia; desde as curas efetuadas por Jesus até o corpo que é a Igreja; desde a criação até a ressurreição e a escatologia”, tudo encontra nele sua expressão e, nesse sentido, é propício para pensar o ser humano (GESCHÉ, 2009, p. 65). 

Baseado nessa tríplice constatação, a saber, o lugar ocupado pelo corpo na cultura contemporânea, os diversos saberes a partir dos quais ele é abordado e sua centralidade na teologia cristã, o Interfaces elegeu, para os anos 2014-2015, colocar-se à escuta das ciências humanas num esforço por pensar o tema corpo-encarnação. Os seguintes temas foram então abordados a partir de uma pesquisa bibliográfica ou em diálogo com pesquisadores/as dessas áreas: história do corpo na época moderna e contemporânea; sociologia do corpo na atualidade; leitura fenomenológica do corpo/carne. Uma síntese panorâmica foi então elaborada pelos líderes do grupo e publicada no n. 46, v. 129 de Perspectiva Teológica, ano 2014, no dossiê “Corpo e Teologia”. Para os autores, os esforços das ciências humanas por desvendar o enigma do corpo na contemporaneidade podem ser sistematizados ao redor de três matrizes teóricas: (1) o representacionismo, que surge com a institucionalização das ciências sociais e da historiografia como saberes científicos para os quais a realidade é uma “tessitura de relações e sentidos intrínsecos (plano ontológico)”, que, “convertidos em objeto de conhecimento, podem ser apreendidos pelo sujeito (plano epistemológico), desde que pensados em um modelo teórico e em um método adequado” (DE MORI; BUARQUE, 2014, p. 189); (2) o saber-poder, crítico do modelo anterior, pensando o corpo a partir da semiologia e da semiótica, vendo-o “como um espaço em branco, passível de ser formatado por diversos significantes, especialmente pela linguagem”, tornando-se um “texto intersubjetivo” e “político”, indissociável, portanto, de “uma trama de inscrições da lei, da memória, das instituições, em suma, do poder”, este, por sua vez, visto enquanto “controle ou contestação” (DE MORI; BUARQUE, 2014, p. 195); (3) a experiência de afetação, própria às vertentes fenomenológicas, que buscaram “ultrapassar o dualismo presente no representacionismo, bem como a modelização do corpo pelo saber-poder”, compreendendo a corporeidade “como experiência de afetação de si pelo outro, numa dialética entre interioridade projetada e exterioridade subjetivada” (DE MORI; BUARQUE, 2014, p. 201). Além dessa síntese panorâmica, que aponta um itinerário para a pesquisa a ser realizada no futuro, o Grupo realizou, em 2015, o I Colóquio “Interfaces Corpo-Encarnação”, com a presença de leituras fenomenológicas, psicanalíticas e teológicas da problemática corpo-encarnação11. As questões levantadas nesse primeiro colóquio do Grupo deram as pistas para os próximos passos a trilhar. 

2º. Entre 2016-2019: esse momento é, por um lado, marcado pela definição da tríplice perspectiva da inter-relação corpo-encarnação: enigma, pathos e dádiva, e, por outro lado, pela decisão metodológica de recorrer aos recursos da poética na abordagem dessa tríplice perspectiva. Nesse momento, o viés conceitual privilegiado até então, é efetivamente instruído e enriquecido pelos recursos das ciências literárias, como a simbólica, a metáfora, a ficção e a narrativa. As referências teóricas de Michel de Certeau e Paul Ricoeur, importantes no itinerário dos líderes do Grupo, nortearão, em parte, essa etapa. 

A tríplice perspectiva de inter-relação entre corporeidade-encarnação foi então assim delineada: (1) como enigma, o corpo emerge a partir das questões: “o que nos constitui como uma espécie tão singular? O que suscitou nossa forma de andar (o bipedismo), nossa forma de pensar, o complexo funcionamento de nosso cérebro e nossa linguagem articulada?” Nas últimas décadas, as neurociências têm dado respostas originais a essas perguntas, a partir da “investigação do entrelaçamento entre mente e cérebro”, com teses “emergentistas”, que oscilam entre a irredutibilidade entre mente e cérebro e a imbricação inexorável entre ambos (BUARQUE; LIN, 2018, p. 151); (2) como pathos, o corpo ou a “carne” é visto como “condição constitutiva de todos os seres vivos e materiais”, constituindo a “única matéria que se experimenta a si mesma”. Nesse sentido, seres encarnados são “seres padecentes, atravessados pelo desejo e pelo medo”, “matéria radicalmente ferida pela falta”. Pelo corpo, o sujeito pode ser vislumbrado em “sua vulnerabilidade constitutiva”, que perpassa os seguintes aspectos: “doenças, carências físicas (como fome e sede) violências sofridas”. Mas esse corpo, marcado pela “experiência e pela memória da dor em seu percurso biográfico e histórico”, é também um corpo “capaz de sobrepujar o padecimento”, por “entremear-se ao afetivo e ao ético-político” (BUARQUE; LIN, 2018, p. 152); (3) como dádiva, “o corpo, sem deixar de ser carência, percebe-se “perpassado por um “excesso” ou transbordamento de sentido, em sua defrontação com o outro/Outro” (BUARQUE; LIN, 2018, p. 153). Através desse excesso, ele pode ressignificar seus limites ao perceber-se ou experimentar-se como “aquele que recebe a dádiva da vida”, podendo, ao mesmo tempo, tornar-se “dádiva para os demais” (BUARQUE; LIN, 2018, p. 154). 

Embora o horizonte do Interfaces nos anos 2016-2019 fosse marcado por essa tríplice perspectiva, o Grupo optou inicialmente por dar ênfase à dimensão do pathos, deixando-se instruir pelos recursos estético- -literários da razão poética. A literatura foi então tomada como mediação simbólico-cultural propícia ao alargamento dos sentidos auferidos pela experiência vivida. De fato, “o pensamento poético, como aponta Alex Villas Boas, “visa não somente uma aproximação da consciência ao mais verdadeiro”, mas à subjetividade afetiva, através “da experiência estética e/ou poética de um texto ou de uma imagem artística e/ou narrativa”, promovendo assim uma “recepção performativa do sentido textual ou artístico como iconográfico de um sentido existencial, contido na poiésis, como maiêutica do Logos”(VILLAS BOAS, 2016, p. 66). Nesse sentido, a concepção de pathos da corporeidade pode encontrar na literatura uma farta ressonância, pois, como mostram Fábio Scorsolini-Comin e Manoel Antônio dos Santos, em geral, os textos literários, de forma recorrente, são narrações de “corpos que clamam, tecem estratégias, entregam- -se, sofrem, amam” (SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2010, p. 623). Ao mesmo tempo, a literatura, sem deixar de criar “variações imaginativas” da existência, as articula com a evocação/confrontação de poderes e de normas socialmente vigentes, numa dinâmica em que o corpo é reportado a situações desviantes, de protesto ou resistência, pondo em discussão subjetividades de gênero, de raça ou etnia, religiosas, geracionais, de classes sociais. Tudo isso é lugar privilegiado da escuta teológica, uma vez que essas “variações imaginativas” lidam com a referência ao inusitado e ao inesperado, feito de “temor e tremor”, mas também de esperança, fazendo irromper o novo, que, segundo a lógica teológica, é da ordem da gratuidade, do excesso, que vai além do mensurável e comprovável. 

Duas referências teóricas foram utilizadas pelos líderes do Grupo nessa etapa do segundo período do Interfaces para pensar a questão estético-literária: Michel de Certeau e sua teoria do corpo como “ficção”, Paul Ricoeur e suas teorias do símbolo, do texto, da metáfora e da narrativa, que mostram como os corpos são “ditos” na ficção12. Propriamente falando, é nessa etapa que o Grupo se coloca claramente na “escola da razão poética”, como o indicam os dois colóquios que realizou: o de 2017, com o tema “Escritas do crer no corpo. Em obras de língua portuguesa”13, que trouxe a questão dos corpos ditos nos relatos literários; o de 2019, com o tema “Esses corpos que me habitam no sagrado do existir”14, que abordou o tema dos corpos ditos em textos místicos do cristianismo. 

Como será mostrado na segunda parte desse estudo, as contribuições de Michel de Certeau e Paul Ricoeur para se pensar o lugar da razão poética na elaboração dos saberes sobre o corpo, apreendendo-o como pathos, em sua relação com o enigma e a dádiva, tematizam de modo mais explícito a questão epistemológica surgida nesse segundo período do Interfaces. É a partir delas que o Grupo tem avançado em sua pesquisa. Alguns estudantes concluíram nesse período suas dissertações e teses15. Além de participarem na organização dos eventos realizados pelo Grupo, publicaram o resultado de suas pesquisas16

2. Corporeidade-encarnação à escuta do saber poético 

Michel de Certeau e Paul Ricoeur são dois expoentes importantes da prática do diálogo interdisciplinar contemporâneo, com contribuições valiosas no campo da epistemologia, que se revelaram fecundas para as ciências humanas. O primeiro, transitando entre a historiografia, a mística, a psicanálise e a linguística, enriqueceu-as profundamente, abrindo-lhes novas perspectivas e possibilidades. O segundo, a partir da filosofia, estabeleceu uma série de conversações com saberes “não filosóficos”, tornando ainda mais criativa a arte de pensar. Ambos exploraram os recursos da razão poética, enriquecendo as disciplinas da própria área do saber e as que com elas buscaram dialogar. Duas noções trabalhadas por eles foram heurísticas para o Grupo nos últimos anos, a de “ficção da história”, proposta por Michel de Certeau, e a de entrecruzamento entre os recursos da poética da história e da ficção, proposto por Paul Ricoeur.

2.1 Michel de Certeau e a “ficção” da história e dos corpos17

 Michel de Certeau, através de sua “errância” entre os saberes e seu gosto pela “fronteira”, praticou de muitas maneiras o que o mundo acadêmico contemporâneo compreende como diálogo inter e transdisciplinar. O conceito de “ficção”, elaborado por ele no capítulo nono de L’écriture de l’histoire (“La fiction de l’histoire”) e no capítulo quarto de Histoire et psychanalyse entre Science et fiction (“L’histoire, science et fiction”), o levou a afrontar o problema “do estatuto ficcional da historiografia” e a refletir sobre a epistemologia e a “escrita da história”. Para ele, “encarar a história como uma operação” é tentar “compreendê-la como a relação entre lugar (recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura)” (CERTEAU, 2011b, p. 46). Essa articulação entre lugar, procedimentos e texto é fundamental na epistemologia certauriana da história. Para entendê-la é necessário reler sua análise dos “romances históricos” elaborados por Freud e seu entendimento do “literário” tal qual o entende Lacan. 

Reginaldo Chaves, num texto sobre a ficção em Certeau, diz que é a partir da leitura da obra Moisés e o monoteísmo, de Freud, que o pensador francês elaborou sua compreensão da ficção da história (CHAVES, 2019, p. 67). De fato, para Certeau, esse texto se situa “nessa articulação da História com a ficção”. Trata-se de uma “narrativa histórica que se apresenta como uma construção-desconstrução ininterrupta da escritura” (CERTEAU, 2011a, p. 332), na qual Freud realiza uma “autoanálise da construção do texto, o que resulta em uma “ficção teórica”, um “entre dois, entre a ciência e a ficção” (CHAVES, 2019, p. 68). Segundo Certeau, essa obra de Freud é um “romance histórico”, “quebrado, meio romance, meio história”, uma “escritura em desmoronamento” (CERTEAU, 2011a, p. 334), rica, porém, de implicações para a história, pois, como em seus “casos clínicos”, trata-se “do que ocorre quando se pretende constituir um quadro científico construindo com seus enunciados uma temporalidade”. Nesse processo, “os elementos romanescos e poéticos se insurgem como inseparáveis de uma ficção teórica” (CHAVES, 2019, p. 68). Freud pensava o que ocorria com seus pacientes não apenas dentro de um quadro sincrônico, mas a partir de um modelo que incorporava a diacronia, portanto, a narrativa. Nesse sentido, conclui Certeau, “sem romance, não há historicidade” (CERTEAU 2011b, p. 96). Chaves, retomando o pensador francês, diz que Freud toma a História como um “writing”, ou seja, “uma construção escritural que é uma organização performativa de significantes que articula o heteróclito em um tempo discursivo diegético, guardando o silogismo apenas na aparência” (CHAVES, 2019, p. 68). 

Em Moisés e o monoteísmo, escrito em pleno período nazista e quase no fim de sua vida, Freud faz de um egípcio o fundador do judaísmo. Dessa forma, ele entende a identidade judaica como algo que se situa “entre o exílio e o pertencimento, o próprio e o impróprio, o eu e o outro”, mostrando que existe “uma fenda não apenas na identidade judaica, mas em qualquer identidade que se pretenda una, imutável, baseada em elementos naturais”, como o solo, a raça, o sangue (CHAVES, 2019, p. 69). Para Certeau, nessa obra, “o judeu Freud fala como estrangeiro na língua que é a sua própria, mas que, ao mesmo tempo é imprópria”. Nesse sentido, “a língua não é ‘casa do ser” (Heidegger), mas o lugar de uma alteração itinerante”. De fato, continua o pensador francês, “uma lacuna trabalha o texto (e a ‘ficção’ se introduz na ‘história’) a partir do momento em que o discurso não tem mais como condição tácita a denegação [...] da instituição, o ocultamento da pertença a uma família, a uma sociedade ou a um povo”. Na bíblia hebraica, a função da teologia sacerdotal era “repetir a pertença e ser genea-logia familiar ou social”. Ela estabelecia assim uma “continuidade entre o presente e os tempos primitivos mosaicos”. Esse “testamento” do fundador da psicanálise é “consagrado à análise das relações que a escrita mantém com o lugar”, “a incerteza do lugar, ou a divisão” que “não é o que é necessário eliminar para que o discurso se organize”. (CERTEAU, 2011a, p. 344. 345. 346. 348). 

A leitura que Certeau faz de Freud o leva a tematizar a noção de ficção da história. Segundo ele, a “escrita da história” do fundador da psicanálise se inscreve no lugar vazio deixado pelos acontecimentos. Trata-se de uma escrita exilada, pois aquilo que pretende e deseja se retira, “lançando-a na errância-erro do ausente”. Da mesma forma, o começo da escrita da história se inicia com uma separação irreparável. Essa escrita busca “devorar” esse espaço vazio com o corpo da letra. O real é então banido do discurso, “tudo se passa como se a escrita adotasse a dupla característica do Tempo: perder o lugar (trata-se de um exílio) e devorar a vida (trata-se de um canibalismo)” (CERTEAU, 2011a, p. 108). De fato, a linguagem, ao nomear um objeto, não o torna presente em sua inteireza do existir, mas o apaga no ato mesmo de sua nomeação. Mas, esse banimento do real é compensado pela autoridade que o “outro-passado, ausente” confere ao discurso. Nesse sentido, a ficção da História emerge quando sua escrita deixa “de ser o discurso que dá a coisa ou que sustenta um lugar” (CERTEAU, 2011a, p. 348). Segundo Chaves, interpretando Certeau, é “nesse teatro escritural, no qual os signos freudianos resvalam na ausência de referente e no lugar em que se manifestam, que o discurso historiográfico encontra os fios da ficção que ele recusa” (CHAVES, 2019, p. 72). Dessa forma, Freud possibilitou aos historiadores um questionamento do “lugar onde a historiografia se autoriza, o território do qual ela é o produto textual” (CERTEAU, 2011a, p. 378). 

Num texto de 1983, “L’histoire, Science et fiction”, que contou com várias versões (GIARD, 1987, p. 11)18, Certeau apresenta os quatro “funcionamentos possíveis da ficção na historiografia”: 1. Ficção e história: “a ficção é o que a historiografia institui como erro”; 2. Ficção e realidade: a ficção se opõe ao real; 3. Ficção e ciência: ficção como recurso hipotético ou modelo de interpretação da ciência na leitura da realidade, procedimento tido como sem referência pela ciência; 4. A ficção e o “próprio”: por seu caráter metafórico, não unívoco e elusivo, a ficção não é mais marcada pelo sinal do “falso, do irreal ou do artefato”, mas pela “deriva semântica” (CERTEAU, 1987, p. 66-69). Segundo Clarissa Paranhos, essa expansão do ficcional para além da “literatura”, feita por Certeau, o leva a “tornar ainda mais fluido, mais impreciso, o termo “ficção””, pois sua definição de ficção é tão ampla que contempla “as especificidades do mito, da escrita literária e do discurso científico”, equiparados “à modalidade “metafórica”. Ademais, continua a autora, a “modalidade literária carece de especificação”, embora seja evidente “a importância da ficção literária para a compreensão da qualidade ficcional da historiografia” no pensador francês (PARANHOS, 2019, p. 292). A autora propõe-se a esclarecer o sentido que Certeau confere à ficção literária, indicando os  quatro aspectos ficcionais atribuídos por ele à historiografia. 

As quatro qualidades literárias da ficção, atuantes na compreensão da escrita histórica de Certeau, envolvem, segundo Paranhos, “a subversão de uma ordem”, identificada com o “poder, o lugar do “sujeito do saber”, o tempo tido como passado, máscara de uma razão”, que é alterada, seja pelas “astúcias do discurso”, seja pelas “aparições do objeto”, seja pelo “retorno do que se supunha passado”, seja pela “paixão”, que são “diferentes modos de se questionar a maestria do “sujeito do saber” (PARANHOS, 2019, p. 293). Essa subversão, atribuída pelo pensador francês à ficção literária, supõe a equivocidade na leitura da realidade e leva à perturbação do sujeito do saber em sua própria constância. 

A historiografia, indica Certeau, parte desse deslocamento epistemológico operante na ficção verbal. Recordando Jeremy Bentham, para quem a ficção não era estrangeira ao real, mas “mais próxima dele do que o discurso objetivo”, o pensador francês assimila a teoria da ficção do filósofo inglês a uma reflexão sobre a ficção “no sentido literário do termo”. Seu entendimento do que seja o “literário”, assinala Paranhos, se funda na psicanálise lacaniana, em quem ele encontra “a ‘verdade’ da prática literária”. De fato, em Lacan o texto literário possui três elementos fundamentais: o caráter enunciativo, o aspecto relacional da retórica, a “tromperie”19. Ao associar a literatura a um “trabalho no elemento da tromperie”, Certeau afirma que ela “traça uma “verdade” que não é o contrário do erro, mas, na mentira em si, a simbolização do que atua ali como impossível” (CERTEAU, 2016, p. 290). Nessa afirmação, a literatura emerge como revelação de uma verdade que se distancia da oposição ao erro, simbolizando a impossibilidade da certeza, já que a “mentira” encenada por ela faz emergir um limite quanto à possibilidade de compreensão da realidade. Da mesma forma que em Lacan, ela é associada por Certeau à dimensão simbólica da linguagem, perdendo assim os contornos que a especificam (PARANHOS, 2019, p. 294. 295). 

Em Benthan, observa Paranhos, a ficção é pensada no âmbito da teoria do conhecimento. Para ele, a realidade em si é incognoscível. É pela linguagem que ela é representada. A criação do fictício é então uma ferramenta necessária na formulação do saber e na comunicação. Ao afirmar que no filósofo inglês o “discurso fictitious” é mais próximo do “real” do que o discurso “objetivo”, Certeau não leva em conta que essa distinção não existe em Benthan, que está mais preocupado com a predicação dos substantivos. Ele os distingue em três categorias: os que nomeiam corpos apreendidos pela percepção, aos quais imputam uma entidade real; os que nomeiam as qualidades desses corpos, aos quais atribuem uma entidade fictícia; os que são criações do imaginário, aos quais identifica como entidades fabulosas. Nessa distinção, as entidades fictícias, por “qualificarem as entidades reais e se qualificarem mutuamente, são necessárias para o desenvolvimento da linguagem”. Nesse sentido, as entidades fictícias são fundamentais, pois sem elas a realidade não seria representada pela linguagem. Portanto, é pelo engendramento de ficções e seu deslocamento em função da predicação que a linguagem se elabora (PARANHOS, 2019, p. 295. 296). 

A teoria de Benthan esteve presente na elaboração do simbólico em Lacan. Segundo Paranhos, ela confere coerência à concepção de “literário” em Certeau. De fato, ao identificar o literário com aquilo que revela o caráter trompeur da linguagem, sua escolha do epíteto “literário” para introduzir a ideia de uma ficcionalidade operante na historiografia, é então coerente. O pensador francês circunscreve dessa forma a tematização da ficção ao questionamento dos limites do conhecimento em geral e dos limites do conhecimento histórico em particular. Essa supressão da certeza, provocada pela tematização do ficcional, afeta o discurso da história em várias dimensões. A primeira, denominada por Certeau “operação historiográfica”, está relacionada ao processo de “fabricação do texto histórico”, determinado pelo lugar institucional, o qual confere à pesquisa a marca de suas escolhas teóricas e políticas, e pela finalidade a que o discurso histórico obedece. A segunda dimensão do discurso indica sua relação com o sujeito que o enuncia, o qual emerge no próprio processo de enunciação, embora não possa ser pensado como um sujeito estável e unívoco, pois é sempre fragmentado pela racionalidade que acredita exercer e pelo desejo que sempre o determina (PARANHOS, 2019, p. 297. 299). 

Essas duas dimensões, a operação historiográfica e o sujeito do discurso, atuam sobre as quatro qualidades fictícias da historiografia segundo Certeau, evocadas acima. O deslocamento que se dá sobre a primeira qualidade fictícia da historiografia está relacionado com o lugar de sua produção, em geral um lugar de poder, que influencia a própria percepção do que seja o evento sobre o qual se escreve. A historiografia, diz o pensador francês, deve “explicitar uma relação interna e atual com o poder”, evitando “criar simulacros que, supondo uma autonomia científica têm precisamente como efeito eliminar qualquer tratamento sério da relação que a linguagem [...] entretém com jogos de força” (CERTEAU, 2011b, p. 89). O segundo deslocamento pelo ficcional responde ao problema da finalidade do discurso histórico. Enquanto “disciplina”, diz Certeau, “a historiografia é uma ciência que não tem os meios de sê-lo”, pois seu “discurso se encarrega do que mais resiste à cientificidade (a relação social ao evento, à violência, ao passado, à morte)”, que é o que as disciplinas científicas eliminaram para poder se constituir. O “como se” do raciocínio, “tem o valor de um projeto científico”, mantendo a crença na inteligibilidade das coisas que mais lhe resistem”. Em geral, continua o autor, a “história privilegia o que não vai bem”, ou seja, o “evento é primeiramente um acidente, uma desgraça, uma crise”, mas “as desgraças são indutoras de narrativas”, a produção de narrativas deve ser atribuída ao trabalho da ficção (CERTEAU, 2011b, p. 96. 97.72). A terceira qualidade ficcional está relacionada com o exercício de pensamento sobre o tempo, repousando sobre a própria equivocidade do sujeito do discurso. Ora, observa o pensador francês, “o tempo é precisamente a impossibilidade da identidade com o lugar”. Nesse sentido, a historiografia tem a tarefa “de dizer o tempo com a ambivalência mesma que afeta o lugar onde ela está”, pensando “a equivocidade do lugar como o trabalho do tempo no interior do recinto do saber” (CERTEAU, 2011b, p. 93). A quarta qualidade do ficcional se funda na teoria freudiana e concerne o sujeito do discurso, marcado por um engajamento desejante, que se articula à sociedade e tem relação com o objeto escolhido. Segundo Paranhos, a hierarquia entre essas duas instâncias do discurso, o desejo do sujeito e o objeto escolhido, que é fundante da epistemologia da ciência, se desfaz com a entrada do desejo em cena (PARANHOS, 2019, p. 303). 

A compreensão de ficção em Certeau, aplicada à historiografia, fecundou a pesquisa do Interfaces, tendo sido retomada no estudo “Corpos ditos pelo outro: uma leitura de Michel de Certeau”, com foco na questão do corpo no cristianismo e na modernidade, onde ele se configura “como uma “ficção” viabilizadora de práticas sociais”, implicando, “no âmbito desses imaginários, em uma instância de “autoridade” capaz de suscitar adesões, conflitos e transformações”. Ao operar simultaneamente como “ficção” e “autoridade”, o corpo se constitui como um “aporte simbólico de poderes institucionalizados” e como “mediação para bricolagens, desvios e transgressões político-culturais promovidos pelos sujeitos em seu cotidiano”. Em sua configuração epistêmico-existencial ele se manifesta então como “enunciação, em linguagem semiótico-simbólica, do desejo do sujeito pela relação com o outro/Outro, com quem venha a unir-se”, sendo, nesse caso, um corpo “místico” (DE MORI; BUARQUE, 2016, p. 1.542). Em que sentido o corpo é visto como “ficção”, “autoridade” e “mística”? 

Enquanto “ficção”, Certeau pensa o corpo como “produção de sentidos catalizadora de um “efeito do real”, pois ele metaforiza “balizas de verdade norteadoras da vida social”. Com efeito, segundo ele, o corpo é “fugidio e disseminado, embora controlado”. Cada grupo necessita ter dele “referências e imagens que tenham valor topográfico e canônico”. Porém, elas nada mais são do que “representações substitutivas – ‘ficções de corpos’”, o termo ‘ficção’ sendo visto pelo pensador francês com “o sentido de produção”. Esses sucedâneos, diz ele, “têm a dupla função de representar o corpo por meio de citações (fragmentos representativos) e de normatizá-lo com a ajuda de modelos”, ou “’exemplos’, que em uma gramática, fornecem igualmente representações fragmentárias da língua e de modelos para seu bom uso” (CERTEAU, 2002, p. 408). Enquanto ficção, o corpo se mostra altamente performativo, sustentando dinâmicas sociais que se desdobram em inúmeras ações no cotidiano. Nesse sentido, ele tem “autoridade”, vista como “permissão” e “potencialização” do outro, mas, simultaneamente, ele se mostra “indissociável do aporte de instituições e poderes que legitimam (ou conflituam com) os discursos que buscam regularizar seus usos” (DE MORI; BUARQUE, 2016, p. 1.563). 

Embora confira uma localização, a instituição não atribui uma autoridade. Somente as “ficções” a promovem, ou seja, as expressões do corpo não se reduzem ao institucional, mas elas se criam e se recriam através do contato com o outro. Segundo Certeau, o processo de articulação desse corpo-“ficção”-“autoridade” à palavra, se dá pela nomeação de si pelo outro. De fato, “o nome não é autorizado por qualquer sentido; pelo contrário, ele autoriza uma significação [...] em vez de ser crível ele leva a crer”. E a crença brota da tonalidade de uma voz que “leva a crer que se é reconhecido, conhecido, até mesmo amado”. A voz institui, portanto, o sujeito, confere-lhe “um lugar definido pelo nome com o qual é chamado por ela” (CERTEAU, 2011b, p. 194-195). A mística também, segundo o pensador francês, é uma experiência subjetiva e corpórea de ser transpassado por uma Alteridade, de ser habitado por um Outro. 

Segundo Certeau, até o século XII, no mundo ocidental, o corpo era visto como um “signo capaz de expressar uma ordem ontológica”, ou seja, ele portava o “estatuto que têm os significantes de serem registros estáveis [...] de poder distinguir-se nomeando o pensável (uma ratio) que organiza os seres, inserindo-os em sistemas de maneira a soletrar a grande narrativa paradigmática do universo” (CERTEAU, 1982a, p. 84). 

Enquanto signo, ele podia traduzir a presença divina no mundo sob uma manifestação tríplice e articulada: corpo eucarístico, corpo eclesial e corpo místico de Cristo. O suporte de “autoridade” dessa associação era a analogia, pensada, entre outros, por Ambrósio de Milão, que privilegiava na abordagem da alegoria sacramental do corpo eucarístico, a dimensão do mysterium, visto como sinal que des/vela a atuação salvífica de Cristo na história. Na baixa Idade Média, Hugo de São Vítor acrescenta a essa perspectiva a da eficácia sacramental. Passa-se então do velado ao manifesto, do descritivo ao operatório, e, com a restauração política do papado e a reforma do clero, ao fortalecimento do corpo eclesial. As reformas dos séculos XVI-XVI reforçaram o entendimento do corpo eucarístico e eclesial como signo cada vez mais transparente. O ‘mistério’, corpo sacramental, passa então a ser visto “sob a formalidade filosófica do signo, quer dizer, de uma ‘coisa’ visível que designa outra, invisível”. A visibilidade desse objeto começa pouco a pouco a substituir a celebração comum, indexando a “proliferação de efeitos secretos (de graça, de salvação) que compõem a vida real da Igreja”. Para isso, a Igreja romana articulou a significação visível do sacramento e da Igreja (princípio da unidade) com o poder clerical (princípio clerical) (CERTEAU, 1982a, p. 113. 115, 117). 

A partir do concílio de Trento, é acentuada uma pastoral baseada em um corpo capaz de sustentar a restauração de uma Igreja visível. A ênfase no visual já emerge nesses albores da modernidade, com a invenção, na pintura do século XV, da perspectiva, a enciclopedização do saber, o papel da ótica na cientificidade moderna, a modificação antropológica, que substitui o toque e a audição pela visão. No século XVII esse espaço de visibilidade toma a figura epistemológica da representação. Do ponto de vista político, a fórmula eucarística “Este é o meu corpo”, desdobra-se na figuração do corpo do rei, endossando a centralização monárquica e o controle dos destinos dos corpos eclesiais e das multidões de súditos (CERTEAU, 1982a, p. 120). Nos séculos seguintes, com a expansão da secularização, a representação do corpo é transposta da figura do rei para a dos organismos. O corpo individual torna-se assim a unidade básica da sociedade. Sob o prisma da física mecânica ele é visto como uma máquina, com peças que podem ser substituídas, culminando na possibilidade da construção de corpos autômatos, passíveis de fabricação e reparação. Em todos esses casos, o corpo é visto como representação autonomizada e legível. Por outro lado, a própria cidade e a sociedade são apreendidas como “corpo”, passíveis de legibilidade (CERTEAU, 1994, p. 234. 232). A partir de meados do século XVIII, esse corpo coletivo passa a ser representado como expressão do inédito e do conflito, marcado pela “era das revoluções”, da queda dos regimes monárquicos, dos movimentos liberais e de inspiração socialista, da mudança na produção, instituída pelo processo de industrialização. As ciências humanas surgem para decodificar as “lógicas” implícitas a esses corpos sociais. Segundo Certeau, a medicina e a historiografia modernas nascem da “clivagem entre um sujeito supostamente letrado, e um objeto supostamente escrito numa linguagem que não se conhece, mas que deve ser decodificada” (CERTEAU, 1982b, p. 14). A história científica é uma variante desse trabalho, produzindo, com discursos, novos corpos sociais. O corpo se torna na modernidade aquele “que leva os vivos a se tornarem sinais da unidade de um sentido (CERTEAU, 1994, p. 232). 

2.2 Paul Ricoeur: dizer o corpo em símbolos, metáforas e narrativas

Paul Ricoeur é a segunda referência importante do Grupo Interfaces na exploração dos recursos da razão poética. O percurso do filósofo francês o habilitou para diálogos com outras correntes filosóficas e com saberes “não filosóficos”, como atestam os inúmeros “desvios” que fez para aprofundar as novas questões que emergiam ao tratar uma problemática que lhe era cara. Para o Grupo, são de interesse, sobretudo, alguns elementos de sua teoria do símbolo, da metáfora e da narração, que será brevemente retomada a seguir20.  

A relação mais estreita de Ricoeur com a razão poética começou com a “viragem” hermenêutica de seu pensamento, ocorrida quando, em seu esforço por estabelecer uma “filosofia da vontade”, precisou de recorrer aos símbolos para falar da irrupção do mal no mundo e de sua “confissão” na linguagem. Nos estudos que fez sobre o símbolo, ele pensa a hermenêutica como decifração de sua ambivalência, que os caracteriza como expressões de duplo sentido. De fato, o sentido primeiro, literal, patente dos símbolos, visa analogicamente, um sentido segundo. Em debate crítico com uma modernidade marcada pelo esquecimento do sagrado, Ricoeur propõe o desvio pelo símbolo, visto não como um retorno a um sentido transparente ou alegórico, mas como respeito pelo enigma original do símbolo. Daí emerge um sentido novo, que implica uma ascese do “compreender”, construída em três etapas: 1ª: a da abordagem fenomenológica, que leva a captar o símbolo na totalidade em que aparece. Nesse nível, porém, não se sabe o que fazer com esses significados simbólicos se o sujeito não é situado; 2ª: a do círculo hermenêutico, que articula o “compreender para crer” ao “crer para compreender”, como o pensou Bultmann e sua teoria da “desmitologização” dos textos bíblicos. Trata-se de conquistar uma “segunda ingenuidade” pós- -crítica, instruída pelos símbolos; 3ª: dessa ida do logos ao mythos, se retorna transformado ao logos, e isso é feito a partir do símbolo. O cogito narcísico em sua autopossessão é então rompido pelo símbolo, que “dá a pensar que o cogito está no interior do ser e não o inverso” (RICOEUR, 1959, p. 72). O símbolo se torna então a aurora do sentido, que conduz a uma “ingenuidade pós-crítica”, a ser atingida à frente e não por detrás da inteligência, na potência da acolhida da Palavra, após a destruição dos ídolos. 

Essa reabilitação do símbolo passa também, segundo Ricoeur, por um interesse pelos mitos, que não possuem a radicalidade e a espontaneidade do símbolo, mas são plasmados pela mediação da narrativa e da temporalidade. O exílio, por exemplo, é um símbolo primário da alienação humana, enquanto a história da expulsão de Adão e Eva do jardim do Éden é uma narrativa mítica. A função simbólica e metafórica é, portanto, mais fundamental que a estrutura mítica. “Há mais no símbolo que no mito” (RICOEUR, 1963, p. 49). O símbolo e o mito são, portanto, fontes de racionalidade e de sentido, e não sinais de um irracional primitivo. Certamente não é mais possível explicar o mundo a partir do mito, mas, eliminada sua visão ingênua da realidade, pode-se encontrar nele um aporte propriamente filosófico, pois ele “dá a pensar” os enigmas da condição humana, da origem do mal, do começo e fim do mundo (DOSSE, 2001, p. 313-317). 

A “viragem” hermenêutica da fenomenologia de Ricoeur, feita a partir de sua teoria do símbolo e do mito, o levou a um debate crítico com a psicanálise, o estruturalismo e o linguistic turn. Ele se defronta então com a oposição, introduzida por Dilthey em sua busca de estabelecer um estatuto epistemológico seguro para as ciências do “espírito”, entre “explicar”, método próprio às ciências “exatas”, e “compreender”, método próprio às ciências do “espírito”. Esse debate o conduziu em seguida a se interessar pelas “ciências do texto”, que, segundo Ricoeur, “impõem uma fase explicativa no coração mesmo da compreensão”. O filósofo francês cria então a fórmula “explicar mais para compreender melhor” (RICOEUR, 1995, p. 50. 51), que será a “chave de leitura de sua teoria do texto e da ação” (DE MORI, 2012, p. 42), elaborada entre meados dos anos 1970 e início dos anos 1990. Nesse período, ele sistematiza uma teoria da metáfora, sobre a inovação semântica; uma teoria da narratividade, na qual articula tempo e narração na historiografia e na ficção; uma teoria da “identidade narrativa”, propondo uma reflexão sobre o si e o outro em uma perspectiva ética da ação. 

Na elaboração de sua “teoria do texto e da ação”, Ricoeur dialoga com as ciências literárias, o estruturalismo e a filosofia da linguagem, articulando sua reflexão ao redor de quatro categorias: 1ª: a efetuação da linguagem como discurso, na qual mostra a relação entre o “evento da palavra”, pelo qual “alguém se põe a dizer algo sobre alguma coisa a outra pessoa” e esse dizer “realiza” o que diz, e o discurso que esse dizer produz, seja enquanto evento de palavra e comunicação, seja enquanto texto; 2ª: a explicitação do discurso enquanto obra, pela qual o discurso se objetiva em uma obra ou em um texto, que supõe a submissão a um conjunto de regras e normas, que dão origem aos distintos “gêneros literários”, e supõem um “estilo”; 3ª: a projeção, pela obra, de um mundo, o “mundo do texto”, o qual corresponde ao “mundo da linguagem poética”, que o capta como “poder-ser, re-criação”, liberando assim uma “referência” de “segundo nível”, que faz com que, mais que buscar o sentido do texto por detrás do texto, a hermenêutica consista em captar o “tipo de ser-ao-mundo que o texto propõe e que pode ser recebido pelo leitor”; 4ª: a mediação desse “mundo” na compreensão de si, ou seja, as ofertas de sentido contidas no “mundo do texto” são novas possibilidades abertas pelo texto ao leitor para que ele se compreenda e se situe na realidade cotidiana, ou seja, trata-se de “compreender-se diante do texto”, de expor-se a ele e receber dele um si expandido pela eventual resposta à proposição de ser-ao-mundo que dele pode brotar (DE MORI, 2012, p. 43-44). 

A teoria do texto levou Ricoeur a deparar-se com algo constitutivo da linguagem: sua polissemia. Ele elaborou então sua teoria da metáfora, vista por ele como paradigma do caráter criativo da linguagem. A metáfora, diz o filósofo francês, é um “poema em miniatura”. Com efeito, a polissemia faz com que as palavras sejam marcadas pela ambiguidade e pela equivocidade. Para combater a “não compreensão” gerada por essa polissemia, as linguagens ordinária, científica e poética recorrem a várias estratégias. A linguagem ordinária, por exemplo, e sua enorme capacidade expressiva, para reduzir a equivocidade, busca limitar a polissemia, permitindo assim a comunicação cotidiana. Por sua vez, a linguagem científica pretende eliminar toda ambiguidade, vista por ela como perniciosa, e aposta na univocidade, por meio de definições e classificações, construindo assim uma linguagem artificial, embora muito útil na argumentação. Enfim, a linguagem poética, própria à metáfora, explora a polivalência semântica, não só abrigando a ambiguidade e a equivocidade, mas as cultivando. De fato, a “metáfora explora a capacidade de as palavras adquirirem novos sentidos em contextos diferentes, através do choque de significações literais, que leva ao surgimento de um novo significado”. Do ponto de vista “lógico”, ela é um “absurdo”, uma “impertinência semântica, um “não sentido”, pois promove uma “torção” na linguagem”, que a leva a “ultrapassar-se”, gerando uma “inovação semântica” ou um “aumento icônico” do sentido”, abrindo novas formas de “ser-ao-mundo e “novos possíveis”, que balançam a “compreensão de si” de quem se defronta com ela (DE MORI, 2012, p. 45-47). 

Dialogando com as teorias da substituição e a semiótica da palavra, Ricoeur busca inserir a metáfora na semântica do discurso, mostrando que a inovação semântica que ela produz se dá numa frase, onde ela provoca a colisão da linguagem e rompe a visão ordinária da realidade e as estruturas do real, inventando e recriando o mundo pelo viés da ficção imaginativa (DE MORI, 2012, p. 45). Nesse sentido, “metáforas vivas” produzem o “aumento icónico” do real, através do “ser como”, colapsando a referência literal. O “mundo do texto” metafórico projeta “nossos possíveis mais próprios” (RICOEUR, 1975, p. 387). 

A teoria narrativa de Ricoeur é indissociável de sua teoria da metáfora. Segundo ele, elas são “irmãs gêmeas, elaboradas uma após outra, mas concebidas juntas”. Sua elaboração é o resultado de um diálogo triangular entre uma reflexão sobre o tempo, um estudo sobre a narratividade (historiografia e ficção) e uma leitura da questão da historicidade. Duas teses subjazem à sua elaboração: 1ª: a narração, como a metáfora, faz com que “algo de novo – inédito” – surja na linguagem; 2ª: o “tempo se torna tempo humano na medida em que se articula de modo narrativo; a narração tem sentido na medida em que desenha os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1983, p. 9. 11. 17). Duas obras da história da filosofia guiam a reflexão inicial do pesador francês: 1ª: o livro XI das Confissões, de santo Agostinho, que analisa as aporias do tempo dando-lhe como fundamento a alma (distentio animi), que faz com que a discordância ganhe da concordância; 2ª: a Poética, de Aristóteles, e sua teoria da intriga dramática, que faz a concordância ganhar da discordância, pelo poder de síntese, que é próprio ao “tecer da intriga” (mythos- -mimèsis) (DE MORI, 2012, p. 47. 48). 

Ricoeur não reduz o estudo da Poética, de Aristóteles, à afirmação de que o “tecer da intriga” é a resposta poética às aporias da temporalidade de Agostinho, mas articula esse estudo com o desdobramento da teoria da tríplice mimèsis, também aristotélica. A mimèsis (= imitação), diz ele, é baseada no poder criador da imaginação, e ela se articula em três momentos: 1º: mimèsis 1 (= prefiguração), baseia-se na experiência cotidiana do tempo, feita de recordação, projeção e atenção (= síntese das três dimensões do tempo da análise de Agostinho); 2º: mimèsis 2 (= configuração), é o ato de estruturar uma narração a partir de códigos narrativos internos ao discurso, com começo, meio e fim; 3º: mimèsis 3 (= refiguração) é o ato de recepção de uma obra (oral ou escrita), que faz com que o “mundo do texto” e o “mundo do leitor” se encontrem no ato de escuta ou de leitura, levando o ouvinte/leitor a ampliar sua percepção da existência, podendo descobrir nela aspectos novos ou colocá-la em causa. 

Ricoeur confere a mimèsis 2 um papel central em sua teoria narrativa. Dialogando criticamente com a anti-narratividade, presente em várias escolas historiográficas e literárias do século XX, marcadas por modelos positivistas e estruturalistas, ele defende a tese de que a inteligência narrativa precede todo ato configurante. Segundo ele, as tendências mais positivistas da historiografia recorrem a noções como “quase intriga”, “quase personagem”, “quase evento”, e a literatura, apesar das metamorfoses sofridas ao longo da história e dos teóricos do “fim da arte de narrar”, só se recria se consegue guardar um resíduo de diacronia no seio da acronia. Além disso, a tradição narrativa sedimentou modelos ou paradigmas que são continuamente explorados nos diferentes gêneros literários, através da inovação da imaginação criadora, que funciona como um laboratório onde a imaginação “testa diversas soluções para resolver os enigmas do tempo ou outros enigmas da existência” (DE MORI, 2012, p. 49). 

Mimèsis 3 entrecruza “mundo do texto” e “mundo do leitor”. Para Ricoeur, o ato configurativo (mimèsis 2) da historiografia trabalha com a “representância”, dada pelos calendários, sucessão de gerações, documentos, arquivos e vestígios, na busca de atingir o passado. Para isso, “produz” sua referência, já que o historiador só atinge o real passado indiretamente, através de uma reconstrução, que necessita de sua imaginação criadora21. Por sua vez, o ato configurativo da ficção trabalha com a “significância”, dada pelas “variações imaginativas” do “como se”, que oferecem novos desenlaces aos muitos dramas da existência. Nesse sentido, suas intrigas funcionam como “laboratórios”, onde é possível experimentar a validade de novos esquemas de inteligibilidade da realidade e da existência. Na ficção, a referência imediata ao real é suspensa pela projeção de um mundo que simula a experiência vivida. Esse “mundo do texto” oferece o seu “como se” ao ouvinte/leitor e o leva a colocar-se em questão (“mundo do leitor”), a desestruturar seu mundo, desorganizando-o, confirmando-o, numa palavra, refigurando-o. História e ficção trabalham então com uma referência à verdade, já que o historiador busca a verdade do que “realmente” aconteceu e o autor de uma obra literária busca narrar o que “poderia” ter acontecido. Nesse sentido, o “mundo do texto”, dado pela “representância” da história e pela “significância” da ficção, possui um caráter “revelante” e “transformante”, pois evidencia os traços dissimulados do mundo efetivo do ouvinte/leitor e o convida a examinar a própria vida (DE MORI, 2021, p. 49-50). 

A “representância” da história e a “significância” da ficção se entre cruzam na formação de uma das noções mais importantes elaboradas por Ricoeur: a de identidade narrativa. Esta noção, delineada no final de Tempo e narrativa e amplamente desenvolvida em O si mesmo como um outro, é, segundo o filósofo francês, uma noção da prática, só passível de ser dita narrativamente. De fato, somente através da narração o nome próprio de alguém pode ser dito, e dizer seu nome é narrar sua história. À pergunta “quem?”, cuja resposta é um nome próprio, só se tem acesso por meio da narração de uma história. Esta, por sua vez, “entrecruza” dados da “representância”, que remetem a lugares, datas, genealogia, meio social, étnico, gênero, etc., e elementos da “significância”, que remetem às muitas narrativas que esse “quem?” ouviu ou produziu sobre si mesmo. Essa identidade é o resultado da articulação de um “mesmo” (idem = identidade substancial) e de um “si mesmo” (ipse = ipseidade), e está em contínua evolução, não cessando de se fazer e desfazer (DE MORI, 2012, p. 50). 

Embora a questão do corpo apareça em várias obras de Ricoeur22, diferentemente de Certeau, seu pensamento não pode ser identificado como uma “filosofia do corpo”, mas, como indicam alguns de seus intérpretes, como uma “filosofia da vida”, na qual o corpo tem um papel importante23. De suas contribuições ao resgate da razão poética, o Grupo Interfaces se deixou fecundar, sobretudo, por elementos da teoria da metáfora e da narração. Isso é patente nos colóquios que realizou: em 2017, ao redor do tema “Escritas do crer no corpo. Em obras de língua portuguesa”; em 2019, ao redor do tema “Esses corpos que me habitam no sagrado do existir”. Antes, durante e depois desses eventos, o Grupo retomou alguns desses elementos, como aparece em duas das publicações de um de seus líderes, que será brevemente apresentada a seguir24

Os dois estudos publicados, apesar de responderem a questões distintas, são complementares. O primeiro, de caráter mais teórico, apresenta, em duas partes, os aprendizados da teologia com a razão poética: na primeira, em diálogo com o estudo de Heidegger sobre a obra de arte, trabalhada teologicamente por J.-P Manigne, e na segunda, em diálogo com a teoria narrativa de Ricoeur, a partir de uma obra de A. Thomasset25. O segundo, mais concreto, retoma a análise do “mundo do texto” de Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, objeto da tese do autor, mostrando como nessa obra de ficção emergem os hibridismos dos corpos da cultura brasileira, com seus muitos dramas e buscas. 

Não se trata aqui de retomar o conjunto das análises apresentadas nesses dois textos, mas de sinalizar para a fecundidade do pensamento ricoeuriano para a elaboração de uma teologia que se coloque à escuta da razão poética, não só para captar o modo como “os corpos são ditos” em obras poéticas e literárias, mas o que esse dizer interroga o pensar teológico em seu conjunto. Nesse sentido, o primeiro texto, embora evoque o estudo de Heidegger sobre a razão poética, aproxima-se, de certa forma, do resgate feito pelo filósofo francês do lugar da razão simbólica, mítica e metafórica, propondo um diálogo entre a hermenêutica poética e a teologia poética para se pensar uma poética da fé. No segundo texto são retomadas, sobretudo, dois símbolos-metáforas da fé cristã, que servem de critério para se pensar teologicamente as grandes questões levantadas pelo “mundo do texto” que narram os corpos em Viva o povo brasileiro: pão e vinho. Esses símbolos-metáforas remetem à eucaristia, lugar de uma ação que evoca as dores e lutas de corpos, mas que apontam também para o dom pleno e gratuito de um corpo totalmente entregue como sinal da irrupção da nova humanidade, revelada na entrega plena que faz de seu corpo e sangue Jesus de Nazaré. Os hibridismos dos corpos, narrados na obra de João Ubaldo Ribeiro, trazem em si elementos eucarísticos, mas também o que falta para que esses elementos possam expressar a plenitude de humanidade que se fez inteiramente dádiva na vida entregue pelo Nazareno, revelada como a máxima expressão do que o ser humano é capaz quando movido pelo jeito divino de ser. 

Considerações finais

O percurso do Grupo Interfaces, como acima foi descrito, conheceu evoluções importantes desde sua criação, que o levaram, nos últimos anos, a estabelecer uma relação mais estreita com a razão poética. A nova fase, inaugurada em 2020, além de continuar a pesquisa no campo estético-literário e místico, pretende ampliar seus horizontes, trazendo para o diálogo do Grupo as seguintes temáticas e os saberes que a elas se consagram: 1ª: a biopolítica e suas contribuições para se pensar o corpo, sobretudo as de Foucault e Agamben; 2ª: a tecnologia e seus impactos para se pensar o corpo, com temas como o pós e o transhumanismo, a engenharia genética, a biotecnologia; 3ª: o cuidado dos corpos e os saberes que se consagram aos corpos padecentes; 4ª: o impacto da tragédia de Brumadinho sobre os corpos dos que foram afetados. 

Em junho de 2021 o grupo possuía 13 pesquisadores, 16 estudantes, dos quais. 6 da graduação, 3 do mestrado e 7 do doutorado. O novo ciclo, inaugurado em 2020, foi consagrado à leitura dos autores que pensam a questão do corpo a partir do pensamento biopolítico, realizando, no final do ano, uma atividade aberta ao público em formato virtual, ao redor da questão da pandemia: “Entre a vida e a morte. Ciclo de debates Interfaces”. Foram realizados 4 painéis, cada um com três participantes e um mediador do Grupo: 1. “Aliviar a dor é obra divina”; 2. “Tudo o que é vivo, morre”; 3º: “Trago na pele a cor de uma luta”; 4º: “Quem fica na memória de alguém não morre”. Em 2021, o Grupo trouxe para sua discussão algumas questões levantadas pelo pós e transhumanismo. Embora o novo ciclo ainda não tenha voltado a explorar a teopoética, essa perspectiva permanece como um dos eixos norteadores do Interfaces e deverá conhecer novos desdobramentos futuros, enriquecendo assim o pensar teológico. 

Referências

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Notas


[1]  A crítica de muitos pré-socráticos não é à razão poética, mas aos mitos. Empédocles de Akragas, por exemplo, apresenta sua teoria em poemas. Alguns, como Heráclito, são menos duros na crítica aos mitos, extraindo deles uma racionalidade. Mesmo Platão, segundo Ricoeur, recorre aos mitos para apresentar certas teorias, como no Timeu (RICOEUR, 1985, p. 448-449).       

[2] Sobre a história da teologia dos jesuítas no Brasil, ver: RODRIGUES, Luiz Fernando Medeiros. A Faculdade de Teologia Cristo Rei em São Leopoldo; PALÁCIO, Carlos. A Faculdade de Teologia em Belo Horizonte. Primeiro Período; KONINGS, Johan.; DE MORI, Geraldo. A Faculdade de Teologia em Belo Horizonte. Segundo Período, em: DE MORI, Geraldo.; KONINGS, Johan.; GODOY, Manoel. Uma escola de teologia. A Faculdade Jesuíta dos Jesuítas do Brasil em seus 70 anos. São Paulo: Loyola, 2019, p. 27-46; 63-80; 81-103.    

[3] Para evitar repetir o nome completo do Grupo ou uma sigla, ele será citado como Interfaces.    

[4] DE MORI, Geraldo.; HURTADO, Manuel. Projeto do Grupo de Pesquisa “O mistério do Cristo e do homem”. Em DE MORI, Geraldo. Relatório da reunião do Grupo de Pesquisa de 15/11/2007. 

[5] HURTADO, Manuel. Novas cristologias: ontem e hoje. Algumas tarefas da cristologia contemporânea; DE MORI. Geraldo. Ensaios de Sistematização dos atuais modelos/ figuras do discurso cristológico. Em Perspectiva Teológica, v. 40, n. 112 (2008), p. 315- 341; 377-389. 

[6]  HOUSSET, Emmanuel. La vocation de la personne: l’histoire du concept de personne. De sa naissance augustinienne à sa redécouverte phénoménologique. Paris: PUF, 2007.        

[7] VASCONCELOS, Aparecida. Uma neoantropologia? Estudo sobre a vocação da pessoa em Pierre Teilhard de Chardin. Comunicação no III Congresso da ANPTECRE (2011), no GT Cristologia e Antropologia: olhares cruzados; HURTADO, Manuel. El reconocimiento como elemento humanizador fundamental. In Yachay, v. 53 (2011), p. 21- 45; DE MORI, Geraldo. As principais leituras contemporâneas sobre o ser humano e seus desafios para a antropologia cristã. Comunicação no III Congresso da ANPTECRE (2011), no GT Cristologia e Antropologia: olhares cruzados; DE MORI, Geraldo. A cruz de Jesus em dois pensadores cristãos contemporâneos. In Estudos Teológicos, v. 51 (2011), p. 46-55.     

[8] Concluíram dissertações no período os mestrandos: Aparecida Maria de Vasconcelos. “Um caminho novo e vivo”. Uma leitura da humanidade de Jesus na reflexão cristológica recente de Edward Schillebeeckx (2009); Lúcio Álvaro Marques. Da filosofia à filologia. A revelação cristã do logos no Contra Celso, de Orígenes (2010); Cacilda Mendes Peixoto. A encarnação na perspectiva da solidariedade em José Ignacio Gozáles Faus (2011); Também concluíram teses no período as doutorandas: Eileen Briedge FitzGerald. Para una Teología de la Reparación a la luz de la teologia de la imagen, (2009); Kreti Sanhueza Vidal. Jesus de Nazaret como el Cristo liberador para America Latina, en la cristología de Juan Luis Segundo y Jon Sobrino (2011).  

[9] Como resultado do estudo da temática transversal desse tempo, ver: DE MORI, Geraldo. A trajetória do conceito de pessoa no Ocidente. In Theologica Xaveriana, v. 64/1 (2014), p. 59-98.    

[10] Cf.: LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. São Paulo: Papirus, 2003. 

[11] Publicações desse evento: DE MORI, Geraldo; BUARQUE, Virgínia. CorpoEncarnação. São Paulo: Loyola, 2017; Anais do I Colóquio Corpo-Encarnação. In Annales FAJE, v. 1, n. 1.  

[12] Textos de referência: DE MORI, Geraldo; BUARQUE, Virgínia. Corpos ditos pelo outro: uma leitura de Michel de Certeau. Em Horizonte. Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 14, n. 44, p. 1538-1564 (2016); DE MORI, Geraldo. A teoria do texto e da narração de Paul Ricoeur e sua fecundidade para a teologia. Em Teoliterária, v. 2, n. 3, p. 39-71 (2012).     

[13] O II Colóquio Interfaces deu origem a duas produções bibliográficas: a das comunicações, publicadas em Annales FAJE. II Colóquio Interfaces: Literatura, Teologia, Corporeidade, v. 2, n. 1 (2017); a dos textos propostos nos painéis, publicados no livro: DE MORI, Geraldo; BUARQUE, Virgínia. Escritas do crer no corpo. Em obras de língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 2018.  

[14] As comunicações do III Colóquio Interfaces foram publicadas em Annales FAJE. Esses corpos que me habitam no sagrado do existir, v. 4, n. 3 (2019). Os textos das apresentações nos painéis estão em processo de editoração e deverão ser publicados em formato de livro em 2022. 

[15] Dissertações: (1) PONTE, Moisés Nonato Quintela. Afirmar o humano apesar do mal. Um estudo teológico a partir da filosofia da vontade de Paul Ricoeur (2012); (2) LOPES, Tiago de Freitas. Perspectivas hermenêuticas para uma teologia pública dos clássicos cristãos (2013); (3) VIVEIROS, Rosana Araújo. A deificação do ser humano à luz do pensamento de Paul Evdokimov: Aporte para uma antropologia cristã (2013); (4) GONÇALVES, José Sebastião. A inteligibilidade primordial: Fundamento teológico-antropológico da fenomenologia da vida em Michel Henry (2014); (5) PINTO, Elias Fernandes. A acolhida do dom de Deus: a justificação como humanização pela fé em Jesus Cristo na perspectiva de José Ignacio González Faus (2020). Teses: (1) VASCONCELOS, Aparecida Maria de. A extensão da cristogênese em Teilhard de Chardin. “Omnia in ipso constant” (Cl 1,17) (2015); (2) FARIA, Paulo Antônio Couto. Teologia e ciências da religião no panorama acadêmico brasileiro em diálogo com Paul Ricoeur. (2016); (3) SOUZA, Thiago Santos Pinheiro. A existência diante da ameaça do niilismo. Pensando a fé cristã Søren Kierkegaard e Paul Tillich (2017); (4) DENTZ, René Armand. A liberdade e o perdão a partir do pensamento de Paul Ricoeur (2017); (5) GONÇALVES, José Sebastião. Pedagogia cristã da encarnação. Horizontes para uma teologia do corpo segundo a fenomenologia da vida em Henry (2018); (6) LIN, Davi Chang Ribeiro. “Relational Confession as therapy of the heart?” A postmodern dialogue between Augustino of Hippo’s Confessions and Elementary Experience in Psychology (2019); (7) SANTA BÁRBARA, Júlio César da Costa. O mistério da pessoa humana no mistério de Cristo. Recepção e intepretação da Gaudium et spes nas antropologias latino-americanas (2020). Nem todas essas pesquisas estão diretamente relacionadas com a temática geral do Interfaces, mas encontraram nele espaço para discussão e aprofundamento, além de ampliarem o horizonte do Grupo. Nesse período vários graduandos e pós-doutorandos participaram do Grupo, com pesquisas relacionando cristologia-antropologia.  

[16] Dentre as publicações com pesquisas realizadas por membros do Grupo, se destacam: VIVEIROS, Rosana Araújo. Deificação, caminho de humanização em Paul Evdokimov. São Paulo: Loyola, 2017; VASCONCELOS, Aparecida Maria. Cristo e o universo. A visão mística de Teilhard de Chardin. São Paulo: Paulinas, 2018; GONÇALVES, José Sebastião. Pedagogia Cristã da encarnação: horizontes para uma teologia do corpo segundo a fenomenologia da vida de Michel Henry. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2018. PINHEIRO, Thiago. A ontologia de Paul Tillich e a questão do niilismo: elaborações cristológicas. In: CHACON, Daniel; ALMEIDA, Frederico. (Org.). Filosofia da Religião: Problemas da Antiguidade aos tempos atuais. São Paulo: Loyola, 2020, p. 153-169; DENTZ, René. Existe liberdade no perdão? Um diálogo com a Filosofia e a Teologia a partir de Paul Ricoeur. Curitiba: Appris, 2019; LIN, Davi Chang Ribeiro. Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre psicologia e teologia. In: Conselho Regional de Psicologia - Minas Gerais. (Org.). Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo. Belo Horizonte, 2019, p. 167-180. 

[17]  O presente texto retoma, além dos textos de Michel de Certeau sobre essa temática, os estudos do pensador francês sobre “ficção na história” propostos por: CHAVES, Reginaldo de Sousa. Michel de Certeau e a ficção da história. In: CARVALHO, Daniel Alencar de; OLIVEIRA, Gilberto Gilvan Souza; BRAÚNA, José Dércio; NETO, José Maria Almeida. (Org.). Em torno da narrativa. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019, v. 14, p. 65-73; PARANHOS, Clarissa. Caminhos da ficção na história. Uma análise do conceito de ficção em Michel de Certeau. Em Eutomia. Revista de literatura e linguística, n. 25 (1), p. 291-305 (2019); DE MORI, Geraldo; BUARQUE, Virgínia. Corpos ditos pelo outro: uma leitura de Michel de Certeau. In Horizonte. Revista de Estudos de teologia e Ciências da Religião, v. 14, n. 44, p. 1538-1564 (2016).        

[18] Essa referência é à obra de Michel de Certeau publicada em 1987, na versão francesa. Em 2002 a obra foi revista e reeditada por Luce Giard, versão a partir da qual foi feita a tradução brasileira, publicada em 2011. Para a versão brasileira, a referência será: CERTEAU, 2011b.     

[19] Paranhos recorda o sentido de “tromperie” em francês, termo que pertence ao campo lexical do engano, traição, ilusão, falseamento, mas, em Certeau se refere à técnica pictográfica trompe-l’oeil, remetendo-se à maneira como Lacan o articulou a seu ensino (PARANHOS, 2019, p. 294).  

[20] Alguns textos publicados por um dos líderes do Interfaces sobre esses temas em Ricoeur: DE MORI, Geraldo. A teoria do texto e da narração de Paul Ricoeur e sua fecundidade para a teologia. In Teoliterária: Revista Brasileira de Literaturas e Teologias, v. 2, p. 39-71 (2012); DE MORI, Geraldo. Paul Ricoeur e a Teologia. In Theoria, v. 6, p. 47-71 (2014); DE MORI, Geraldo. La théologie à l’école de la poétique. In Laval théologique et philosophique, v. 74, p. 351-373 (2018).  

[21] Ricoeur analisa longamente os “empréstimos” que a historiografia faz à ficção, mostrando de modo mais sistemático como isso se dá, diferente das “imprecisões” verificadas em Certeau. 

[22] Dentre essas obras, se destacam: RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté, 1. Le volontaire et l’involontaire. Paris: Seuil, 1956; Finitude et culpabilité 1: L’homme faillible. Paris: Seuil, 1960; Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990; Parcours de reconnaissance. Paris: Seuil, 2004.         

[23] Ver a esse respeito, entre outros: VALLÉE, Marc-Antoine. Paul Ricoeur et la question du vivant. In Bulletin d’analyse phénoménologique, v. 2, (2010), p. 262-277; NASCIMENTO, Cláudio Reichert. A questão da vida em Paul Ricoeur. Tese doutoral filosofia, defendida na UFSC (2014).   

[24] DE MORI, Geraldo. La théologie à l’école de la poétique. In Laval théologique et philosophique, v. 74, n. 3 (2018), p. 351-373; Provocações “eucarísticas” nos hibridismos do corpo em Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. In DE MORI, Geraldo; BUARQUE, Virgínia. Escritas do crer no corpo. Em obras de língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 2018, p. 259-283. 

[25] MANIGNE, Jean-Pierre. Pour une poétique de la foi. Essai sur le mystère symbolique. Paris: Cerf, 1969; THOMASSET, Alain. Paul Ricoeur. Une poétique de la morale. Aux fondements d’une étique herméneutique et narrative dans une perspective chrétienne. Leuven : Peters, 1996.