Adriani Milli Rodrigues*
*Doutorado em Teologia Sistemática na Andrews University (EUA). Coordenador da graduação em Teologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Contato: adrianimilli@gmail.com
Resumo:
Considerando a virada linguística do século XX, associada à crítica da epistemologia racionalista que tende a informar a teologia sistemática moderna em suas conexões lógico-dedutivas, encontramos em propostas de autores como Robert Jenson e Paul Ricoeur o potencial hermenêutico de abrir horizontes epistemológicos para conexões sistemáticas informadas pela riqueza dos recursos da linguagem. O presente artigo objetiva estabelecer um diálogo entre ambos para projetar possibilidades epistemológicas que estejam atentas ao discurso e a linguagem das Escrituras, para benefício do discurso da igreja sobre a novidade do evangelho do reino de Deus. Jenson discute a teologia como discurso da fé, enquanto alternativa à influente epistemologia grega abstrata na história do pensamento ocidental. Por sua vez, Ricoeur desenvolve uma abordagem hermenêutico-filosófica que privilegia a profundidade e complexidade articuladora do pensamento metafórico no anúncio evangélico do reino de Deus. Como fruto do diálogo entre a proposta hermenêutica de Ricoeur e a visão de discurso teológico de Jenson, o artigo sugere que contribuições epistemológicas da hermenêutica bíblica de Ricoeur, no movimento da leitura das Escrituras para a formulação teológica, são relevantes também para a formulação hermenêutica do discurso da igreja acerca do evangelho na teologia sistemática contemporânea.
Palavras chave: teologia sistemática; Paul Ricoeur; Robert Jenson; epistemologia; linguagem
Abstract
Taking into account the linguistic turn of the twentieth century and the associated critique to rationalist epistemology that informs modern systematic theology in its logical-deductive connections, we find in proposals from thinkers such as Robert Jenson and Paul Ricoeur the hermeneutical potential to open epistemological horizons for systematic connections informed by the richness of language resources. The present article seeks to establish a dialogue between these proposals to envision epistemological possibilities that pay attention to the discourse and the language of Scripture, in order to benefit church discourse about the newness of the gospel of God’s reign. Jenson’s conception of theology as a discourse of faith offers an alternative to influential Greek abstract epistemology in the history of Western thought. For his part, Ricoeur develops a hermeneutical-philosophical approach that is sensitive to the deep and complex articulation of metaphorical thought in the announcement of God’s reign. As a result of this dialogue between Ricoeur’s hermeneutical proposal and Jenson’s notion of theological discourse, the article suggests that the epistemological contributions of Ricoeur’s biblical hermeneutics, in the movement from reading Scripture to theological formulation, are relevant to the hermeneutical formulation of church discourse about the gospel in contemporary systematic theology.
Keywords: systematic theology; Paul Ricoeur; Robert Jenson; epistemology; language
Entre os relevantes debates acerca da configuração metodológica da teologia contemporânea, destaca-se a crítica da presença de uma epistemologia racionalista, de tradição Iluminista, na articulação da teologia sistemática moderna (HEIDE, 2009). Com base nessa epistemologia, a sistematização da reflexão teológica se estrutura a partir de um raciocínio abstrato que privilegia discussões conceituais, que são justificadas como verdadeiras a partir da lógica de uma argumentação predominantemente filosófico-dedutiva.
Um dos movimentos que informam essa crítica do racionalismo epistemológico na chamada pós-modernidade é a virada linguística do século XX no pensamento contemporâneo. Em virtude dessa virada, o foco no fenômeno da linguagem associado à crítica da metafísica moderna exige uma nova configuração epistemológica na teologia, particularmente a teologia sistemática. De fato, muitos estudiosos têm encontrado na virada linguística não apenas o desafio crítico para uma nova formulação epistemológica, mas também o próprio direcionamento de um horizonte epistemológico a ser elaborado. Nesses novos direcionamentos, características literárias e questões da linguagem relacionadas, por exemplo, com a narrativa e a metáfora, que anteriormente figuravam como meros recursos ilustrativos ou ornamentais que praticamente não afetavam a pretensa profundidade abstrata dos conceitos, na perspectiva de um paradigma epistemológico racionalista, passam a ocupar um lugar central nos novos direcionamentos hermenêuticos da virada linguística. Um exemplo desses direcionamentos é o movimento da teologia narrativa pós-liberal, que toma a narrativa como lugar privilegiado para a reflexão teológica (FREI, 1974; LINDBECK, 1984; KRIEG, 1988; HAUERWAS, 2000; LUCIE-SMITH, 2016).
Como parte dos direcionamentos teológicos com maior consciência e sensibilidade à virada linguística contemporânea, o influente teólogo estadunidense Robert Jenson (1930-2017) discute em sua teologia sistemática a natureza da teologia como discurso da fé, que não é formulado ou justificado a partir de uma epistemologia racionalista, mas se relaciona com outros níveis de linguagem nas Escrituras e com os discursos da igreja sobre o evangelho. Ao passo que o diálogo entre essa concepção de teologia com diversas perspectivas acerca da teologia narrativa parece promissores, o presente artigo pretende trabalhar em um outro tipo de empreitada, que é próxima à teologia narrativa, mas procura privilegiar a reflexão sobre o potencial epistemológico da linguagem metafórica. Para isso, o artigo propõe um breve diálogo entre Jenson e a abordagem hermenêutica do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), que se interessa tanto pela linguagem narrativa quanto metafórica (RICOEUR, 1994; 1995; 1997; 2000), tendo em vista projeções epistemológicas promissoras do pensamento metafórico para a teologia sistemática.
Para cumprir esse objetivo, a próxima seção tratará da teologia como discurso reflexivo da fé em Jenson, ao passo que as outras três seções apresentarão, em sequência progressiva, o potencial epistemológico da hermenêutico da metáfora em Ricoeur para a teologia sistemática. A primeira seção sobre Ricoeur, e a segunda do artigo como um todo, procura relacioná-lo com o labor teológico, enquanto a próxima seção discute a relação entre epistemologia e sua compreensão do pensamento metafórico. Finalmente, a última seção sobre Ricoeur trata do pensamento metafórico, a hermenêutica bíblica e o potencial sistemático. Como a sequência das seções indica, o presente estudo não pretende realizar uma comparação entre Jenson e Ricoeur, tendo em vista a evidente desproporcionalidade no desenho da quantidade de seções utilizadas para cada autor. Antes, o propósito primordial do artigo é promover um diálogo entre Jenson e Ricoeur, no sentido de que a contribuição do primeiro consiste na articulação de um arcabouço de sistematicidade teológica para a consideração das contribuições hermenêuticas do segundo, no que tange às discussões de epistemologia e método na teologia sistemática. O estabelecimento desse tipo de diálogo não tem a intenção de sugerir que a teologia de Jenson deva ser mais ricoeuriana, ou que a hermenêutica de Ricoeur deva ser mais jensoniana. De fato, o que se tem em vista aqui é a possível combinação, obviamente breve e seletiva para o escopo de um artigo, das contribuições desses autores para a reflexão epistemológica sobre sistematicidade na teologia sistemática.
Nossa justificativa para essa combinação, dentre outros argumentos possíveis, se inicia com o reconhecimento de que Ricoeur não é um teólogo sistemático e, portanto, não tem em mente a construção de uma teologia sistemática em suas considerações hermenêuticas sobre a linguagem. Ainda assim, partindo-se do pressuposto de que suas considerações são, de fato, pertinentes para as discussões de epistemologia e método na teologia sistemática contemporânea, a compreensão de Jenson, enquanto teólogo sistemático, acerca da teologia enquanto discurso reflexivo da fé, que é particularmente sensível às questões hermenêuticas da linguagem na contemporaneidade, figura como um dos possíveis e promissores arcabouços teóricos na teologia sistemática para a inserção de contribuições hermenêuticas de Ricoeur acerca da linguagem metafórica para a noção epistemológica e metodológica de sistematicidade na teologia sistemática.
A forma como Jenson entende a natureza da teologia pode ser introduzida por uma síntese de suas preocupações com as discussões de prolegômena teológico na modernidade, que buscam justificar epistemologicamente a priori a teologia no pensamento moderno, de acordo com o programa do racionalismo iluminista. Esse fundacionalismo epistemológico procura justificar racionalmente a plausibilidade do pensamento teológico antes de lidar com o seu conteúdo próprio, o que significa dizer que a racionalidade a ser justificada não diz respeito à sua própria condição material, mas se refere aos critérios de outro tipo de inteligibilidade. Obviamente, Jenson não está sozinho nesse debate entre fundacionalismo e antifundacionalismo. Por exemplo, o posicionamento de Pannenberg (1991, p. 47) é, pelo menos em princípio, similar ao de Jenson, ao criticar a tentativa de estabelecer a priori a verdade da doutrina cristã antes da discussão dos seus próprios conteúdos.
O exemplo do período patrístico oferecido por Jenson parece instrutivo para revelar a sua preocupação epistemológica. Ao se apropriar do debate de Orígenes contra Celso como pano de fundo para discutir a epistemologia teológica moderna, Jenson (1997, p. 8) destaca que o Iluminismo teológico nomeia aqueles que finalmente aceitaram o argumento crítico de Celso de que, dada a sua origem judaica, o pensamento cristão poderia ser muito bem aceito se ele passasse primeiro pelo crivo de “uma prova grega”.1 Em síntese, os prolegômenos teológicos que participam do projeto epistemológico iluminista elevam, ou pelo menos se submetem aos aspectos “gregos” do pensamento ocidental como “juiz unilateral”2 de todo o pensamento (JENSON, 1997, p. 9). É importante observar aqui que a referência de Jenson (1997, p. 9) ao pensamento “grego” ou “aos gregos” não pressupõe uma maneira de pensar monolítica, mas segue o modo de falar da patrística grega sobre esse tipo de pensamento e aponta para “o complexo de religião e sua explicação ‘filosófica’ que, de fato, foi ensinada ao mundo pelos gregos”.3
Nesse contexto, Jenson (1997, p. 9-10) enfatiza ser um erro nos prolegômenos epistemológico da teologia qualificar “a verdade ensinada por Platão ou Aristóteles como mais ‘natural’ ou ‘racional’ que a verdade ensinada por Isaías ou Paulo,”4 como se a filosofia fosse algum outro “tipo de atividade intelectual que a teologia, para a qual a teologia pudesse apelar”5 como fundamento epistêmico ou diante da qual a teologia deveria racionalmente se justificar. Jenson (1997, p. 10) considera que esse paradigma de justificação epistemológica é, de fato, uma caricatura histórica ilusória, uma vez que a chamada filosofia grega era nada mais que “a teologia historicamente particular da religião olímpico-parmenidiana”, que posteriormente abarcou “o mundo cúltico mediterrâneo amplo”.6 Mais especificamente, argumenta Jenson, a reflexão teológica da religião olímpico-parmenidiana procurava compreender a divindade livre de mistérios, o que explica a sua tônica mais lógica do que mística.
É interessante observar que, nessa abordagem crítica, Jenson (1997, p. 10) não desconsidera a relevância do diálogo da teologia cristã com o pensamento grego e nem ignora a importância do Iluminismo para o avanço metodológico e científico na história do pensamento ocidental. Antes, o que ele veemente rejeita, de maneira específica, é o pressuposto de que o chamado pensamento grego seja completamente isento de religião ou teologia e que, por isso, constitua uma espécie de epistemologia fundamental para, de algum modo, justificar prévia e racionalmente a teologia. Com essa rejeição, ao assumir uma perspectiva mais ampla do pensamento grego que inclui intuições teológicas, Jenson (1997, p. 10, itálico presente no texto original) propõe que “teólogos do cristianismo ocidental devem realmente dialogar com filósofos, mas somente porque, e na medida em que, ambos estão engajados no mesmo tipo de empreitada”.7 É improvável que Jenson esteja sugerindo, com isso, que a filosofia e a teologia sejam campos epistemológica e metodologicamente idênticos no contexto da contemporaneidade. No entanto, ele parece enxergar uma área de significante sobreposição entre eles e, de forma ainda mais vigorosa, ele insiste em uma sobreposição bastante ampla no contexto do mundo antigo, tendo em vista que a tentativa de separação estrita entre pensamento religioso e pensamento laico, secular, ou não religioso é um fenômeno historicamente situado no mundo ocidental moderno.
À luz dessa crítica dos prolegômenos teológicos na modernidade, Jenson não procura definir a natureza da teologia cristã a partir de alguma forma de racionalidade filosófica. Em vez disso, sua tentativa de definição se situa na observação das características próprias dessa teologia, especialmente em relação ao evangelho e a igreja. Assim, essa observação não leva em conta apenas aspectos especulativos ou cognitivos do pensamento acerca do evangelho, mas se articula com as dinâmicas práticas da vida da igreja. É aqui que as dimensões da linguagem e do discurso encontram um lugar de relevância, uma vez que o evangelho, a linguagem e a igreja se tornam conceitos fundamentais para a formulação da natureza da teologia.
O teólogo norte-americano sugere que a igreja e o evangelho são conceitos que recebem o seu devido significado apenas na conexão de um com o outro, e a noção de linguagem é fundamental para essa conexão. Ele estipula que o evangelho é fundamental para a compreensão da igreja enquanto comunidade que crê na ressurreição de Jesus, ao mesmo tempo em que ele necessariamente pressupõe a necessidade da existência da igreja e do cumprimento de sua missão. Por exemplo, o evangelho pode ser considerado o ponto de partida da existência da igreja. Igualmente, pode-se afirmar que o evangelho determina o objetivo a ser alcançado pela igreja. No primeiro caso, Deus reúne sua igreja por meio do evangelho. No segundo caso, Deus reúne sua igreja para a pregação do evangelho ao mundo (JENSON, 1997, p. 5).
Nessa reflexão, a teologia é definida como “o pensamento inerente à tarefa de expressar o evangelho”8 (JENSON, 1997, p. 5). Mais uma vez, essa é a tarefa da igreja e a expressão do evangelho por essa comunidade pode assumir duas maneiras principais, a saber, (1) a comunicação do evangelho à humanidade na forma de mensagem e (2) a expressão do evangelho para Deus, na forma de súplica e louvor. Nessa segunda maneira, as súplicas são informadas pelas promessas do evangelho, ao passo que o louvor agradece a Deus pela realidade do evangelho.9 Assim, Jenson (1997, p. 11) salienta que expressar o evangelho, seja como mensagem de salvação ao mundo ou como oração e louvor a Deus, sintetiza a missão da igreja. Nesse contexto, a presença inerente da teologia nessa tarefa se relaciona diretamente com questões hermenêuticas da linguagem, uma vez que a expressão se articula por algum tipo de linguagem que comunique significados, inclusive via linguagem não verbal (JENSON, 1997, p. 5).
A relação entre linguagem e evangelho se torna ainda mais profunda a partir da consideração de Jenson (1997, p. 11) de que o evangelho é um “objeto de pensamento,” portanto um objeto de reflexão teológica, na medida em que ele é “um discurso”.10 A caracterização do evangelho como discurso implica que ele pressupõe um sujeito falante. Uma vez que o(a) teólogo(a) toma o evangelho como objeto de reflexão, ele se situa como um dos sujeitos falantes do evangelho. Ao passo que Jenson (1997, p. 12-13) pressupõe algum tipo de objetividade teológica ao adotar a compreensão da Reforma acerca da teologia como uma “reflexão crítica interna à missão de proclamação da igreja,”11 no sentido de que a teologia deve avaliar o discurso da igreja sobre o evangelho, Jenson rejeita a concepção de que o(a) teólogo(a) seja um terceiro agente que analise a uma certa distância o relacionamento de Deus com seu povo. Essa rejeição procura ser consistente com o reconhecimento de que o teólogo é um dos sujeitos de fala sobre o evangelho.
Obviamente, o discurso do evangelho não é apenas falado mas também ouvido. E isso não diz respeito apenas àqueles que ouvem os sujeitos de fala do evangelho. De fato, os próprios sujeitos de fala são constituídos como tais precisamente porque primeiro foram ouvintes do evangelho. Em outras palavras, só podemos ter o evangelho se o recebemos, no contexto do movimento de ouvir e, então, falar. É nesse sentido que Jenson formula a ideia de que a teologia é um ato interpretativo. Isto é, a teologia se “inicia com a palavra recebida e emite uma nova palavra, essencialmente relacionada com a palavra anterior”.12 Mais especificamente, a tarefa hermenêutica da teologia se resume pela seguinte pergunta: “com base no que temos visto e ouvido nesse discurso como evangelho, o que vamos agora falar e fazer para que o evangelho seja dito novamente?”13 (JENSON, 1997, p. 14).
Para elaborar esse conceito, Jenson (1997, p. 14) levanta uma questão provocativa: na passagem do ouvir para o falar, por que a teologia precisa lançar mão da interpretação? Dito de outro modo, por que é necessário se debruçar sobre o evangelho ouvido como um objeto de pensamento? A fidelidade ao evangelho não seria maior se, em vez do trabalho do pensamento e da interpretação, o(a) teólogo(a) se limitasse apenas a repetir e preservar as mesmas palavras ouvidas na sua recepção do evangelho? A resposta de Jenson (1997, p. 14-15) não se preocupa em negar a possibilidade do uso das palavras anteriores. Aliás, um discurso pode se valer das palavras de discursos anteriores. Contudo, ele enfatiza que discursos posteriores normalmente articulam novas maneiras de se dizer o que foi expresso em discursos anteriores devido ao fato de que, por definição, discursos se situam historicamente. Nessa perspectiva, o evangelho é discursado em contextos históricos específicos e novos discursos se engajam, de alguma forma, com as características históricas de seus novos contextos.
Um exemplo notável desse engajamento histórico diz respeito à reflexão sobre a palavra do evangelho enquanto promessa da graça. Jenson (1997, p. 15) destaca a presença da relação entre evangelho e promessa nos escritos paulinos e também no trabalho sistemático de Filipe Melanchthon. Com base nas ideias de Melanchthon sobre o futuro, o teólogo norte-americano identifica um significativo paralelo entre o discurso e a promessa, a partir de uma perspectiva histórica. De maneira mais específica, ambos abrem um futuro diante de nossos olhos. No caso do discurso, ele salienta que “toda vez que falo com você, de algum modo eu coloco diante de você um futuro que, de outra maneira, talvez não seria seu”14 (JENSON, 1997, p. 15). Ele provê alguns exemplos: a declaração Eu te amo abre o futuro de um relacionamento. A afirmação dos pais Você certamente vai para a faculdade abre um horizonte do futuro na mente do filho. Mesmo a indicação o gato está no tapete se abre para um “momento de ação ou de contemplação”15 (JENSON, 1997, p. 15). De maneira similar, as promessas abrem um futuro diante de nossa visão, e não apenas isso, elas também nos impulsionam para esse futuro (JENSON, 1997, p. 15-16). Enquanto promessa, o discurso do evangelho é expresso em um contexto histórico. Além disso, ele contém uma história e, em última instância, ele é o veículo divino que impulsiona o desdobrar discursivo da história na forma de promessa (JENSON, 1997, p. 15-16).
No que diz respeito à relação da teologia com o evangelho, Jenson (1997, p. 18) propõe que a teologia é um “discurso de ‘segunda ordem’” da fé e pressupõe que o discurso de “primeira ordem”16 é o evangelho, tanto na forma de proclamação quanto na forma de oração e louvor. Essa classificação de primeira e segunda ordem é apenas um desdobramento da proposição anterior de que a teologia se constitui como “pensamento inerente à tarefa de expressar o evangelho.”17 Nesse sentido, a teologia é uma reflexão hermenêutica sobre o discurso de fé no evangelho. Ilustrativamente, a teologia seria “um tipo de gramática,” que “formula a sintaxe e a semântica da linguagem,” para a comunidade da igreja que fala o “cristianês”18 (JENSON, 1997, p. 18). Nessa formulação da teologia, as Escrituras são a norma para a linguagem do evangelho (JENSON, 1997, p. 28). Para Jenson (1997, p. 32), se a teologia “pode ser descrita como a discussão o debate historicamente continuados e intrínsecos à missão do evangelho,” ela assume que “a teologia apostólica,” conforme vista nas Escrituras, “é o início fundamental dessa discussão”.19 Portanto, a “teologia adota as Escrituras como norma da proclamação e oração que ela serve”20 (JENSON, 1997, p. 28). Nesse sentido, as Escrituras podem ser consideradas como discurso normativo de base para a articulação do discurso reflexivo da teologia que, por sua vez, direciona o discurso de fé da igreja.
Essa breve descrição da natureza e da função da teologia no pensamento de Jensen, que certamente precisaria ser expandida para abarcar outros aspectos de seu pensamento, parece sugerir uma interação entre níveis de discurso na qual a teologia, enquanto discurso reflexivo, toma as Escrituras, que possuem uma função discursiva normativa, como ponto de partida e procura servir e guiar a igreja em seu discurso da fé, tanto na forma de proclamação como na de oração/louvor.
Após essa apresentação geral da teologia como discurso reflexivo da fé em Jenson, as próximas seções do presente artigo abordam a contribuição hermenêutico-teológica de Ricoeur acerca do potencial epistemológico e sistemático da linguagem, especialmente a linguagem figurada. Para tanto, o itinerário teórico das próximas seções introduz a obra de Ricoeur em sua conexão com o labor teológico para, então, discutir noções epistemológicas da linguagem metafórico suas implicações para a hermenêutica bíblica e o pensamento teológico-sistemático.
Ao introduzir a discussão acerca da relação entre Ricoeur e a teologia, Boyd Blundell (2010, p. 4-5) sugere três percepções de Ricoeur ou, como ele denomina, a existência de “três Ricoeurs”. O primeiro seria o hermeneuta biblista, tendo em vista os seus escritos que lidam com textos bíblicos. O segundo Ricoeur é o filósofo da religião, que traria sua hermenêutica para a reflexão religiosa e teológica. Finalmente, o terceiro Ricoeur diz respeito ao seu trabalho de filosofia antropológica, estudada a partir das ferramentas hermenêuticas que ele desenvolveu ao longo de sua carreira. Blundell destaca que apenas o terceiro Ricoeur representa o trabalho especificamente profissional de sua atividade na academia, ao passo que o primeiro se caracteriza por um projeto pessoal (ao invés de profissional), ou até mesmo um hobby do pensador francês, visto que ele nunca reivindicou o rótulo de exegeta ou teólogo (cf. RICOEUR, 2017, p. 134) e sempre defendeu a distinção metodológica entre o fazer filosófico e o fazer teológico.
Como Blundell reconhece, não há como negar que o primeiro e o segundo Ricoeur, no campo mais bíblico e teológico, são aplicações do terceiro Ricoeur, que é de fato filosófico. Contudo, essas aplicações não ocorrem apenas por conta da simpatia pessoal do pensador francês em relação à discussão bíblico-teológica, mas especialmente pela proximidade que seus interesses, temas e métodos filosóficos têm da reflexão bíblico-teológica. Podemos destacar, por exemplo, seu interesse pela linguagem, que apresenta contribuições para a interpretação dos textos da literatura bíblica, e sua abordagem hermenêutica como um todo, considerando a necessidade do ferramental hermenêutico para o trabalho teológico.
Não é mera coincidência que seu trabalho nos Estados Unidos teve como ambiente precisamente a Escola de Teologia (Divinity School) da Universidade de Chicago, onde Ricoeur assumiu a cadeira de teologia filosófica entre 1967 e 1992, que fora previamente ocupada por Paul Tillich. Também não foi por acaso que o influente teólogo, também da Universidade de Chicago, David Tracy promoveu o diálogo da teologia norte-americana com o pensamento hermenêutico de Ricoeur, contribuindo para debates entre o revisionismo de Chicago (que inclui o nome de Ricoeur, especialmente via a apropriação de Tracy21) e o pós-liberalismo de Yale (de nomes como Hans Frei e George Lindbeck).22
Obviamente, as apropriações de Tracy, que refletem particularmente sobre a natureza e o método da teologia em diálogo com a antropologia filosófico-hermenêutica ricoeuriana (entre outros diálogos), são acompanhadas por várias outras iniciativas que identificam no pensamento de Ricoeur aportes significativos para a teologia fundamental e sistemática. Peter Albano (1982; 1986), por exemplo, procurou delinear na década de 1980 contribuições ricoeurianas para a teologia fundamental, se interessando pela antropologia filosófica de Ricoeur bem como por sua perspectiva dialética da esperança tendo em vista a crítica moderna da religião. Mais recentemente, o trabalho de Veronika Hoffmann (2007), no mundo de fala alemã, encontra nos conceitos ricoeurianos de mediação da linguagem e metáfora uma importante contribuição para a teologia fundamental e sistemática, particularmente no que diz respeito à teologia da revelação. Similarmente, encontramos no ambiente norte-americano a obra de Dan Stiver (2001; 2006), que apresenta sugestões significativas de como o pensamento de Ricouer pode enriquecer o trabalho da teologia sistemática. Em seu artigo Systematic Theology after Ricoeur, Stiver (2006) sublinha dois pontos da hermenêutica ricoeuriana que contribuem para a teologia sistemática, a saber, a atestação e o figurativo.23 Enquanto o primeiro se relaciona com a hermenêutica do testemunho, o segundo diz respeito à hermenêutica do símbolo, da metáfora e da narrativa.
Para os propósitos do presente artigo, a hermenêutica da linguagem figurativa da metáfora recebe atenção primordial na reflexão epistemológica da teologia. Deve-se destacar, entretanto, que o nosso interesse no figurativo não se limita às questões de linguagem, que significativamente permeiam e enriquecem o fazer teológico, mas tem como foco o pensar teológico de maneira mais ampla, visto que o nosso interesse é eminentemente epistemológico. Nas palavras de Stiver (2006, p. 162), “o figurativo está profundamente entrelaçado [...] no pensamento sistemático”.24 De forma sintética, ele enumera dois argumentos básicos acerca da importância epistemológica do figurativo na teologia sistemática: (1) a metáfora tem poder criativo e caráter irredutível. Sua abundância criativa de sentido não pode ser adequadamente traduzida pelo discurso prosaico ou mais literal da teologia; (2) a metáfora não apresenta apenas a competência de diálogo com o pensamento abstrato conceitual, mas ela tem a capacidade particular de estruturá-lo. Assim como paradigmas científicos são frequentemente esboçados em termos de metáforas de raiz ou de base, modelos de compreensão teológica se configuram por meio de imagens figurativas. Por exemplo, a doutrina do pecado utiliza a linguagem de “mácula”, “mancha”, “contaminação”. Por sua vez, as teorias de expiação falam de “redenção”, “justificação”, “purificação”, “reconciliação”. A elaboração dessas teorias se utiliza, de alguma forma, do pensamento metafórico ou figurativo.
Obviamente, a reflexão epistemológica da linguagem metafórica não é exclusividade em Ricoeur. Dentre os vários estudos que exploram essa temática, podemos destacar cronologicamente de Man (1978), Soskice (1985), Hesse (1988), Gerhart e Russel (2004) e Burkhardt e Nerlich (2010). No caso de Ricoeur, ressaltamos aqui três estudos principais, todos elaborados na década de 1970: (1) o o famoso livro publicado originalmente em francês em 1975, A Metáfora Viva (RICOEUR, 2000); (2) o artigo publicado em 1975 sobre hermenêutica bíblica pela revista Semeia da Society of Biblical Literature, editado por John Dominic Crossan, e traduzido em português no livro A Hermenêutica Bíblica (RICOEUR, 2017, p. 133-223); e finalmente (3) o artigo publicado em inglês, em 1978, que trata do processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento (RICOEUR, 1978). Por conta da especificidade teológica do artigo de hermenêutica bíblica, vamos deixar nossos comentários sobre ele mais para o final dessa seção.
Em A Metáfora Viva, Ricoeur (2000, p. 14) discute a hermenêutica da metáfora em termos de um discurso capaz de “redescrever a realidade”. Um dos aspectos dessa discussão é a relação que ele estabelece entre o modelo e a metáfora. Nesse contexto, o filósofo francês argumenta que “a metáfora é para a linguagem poética o que o modelo é para a linguagem científica quanto à relação com o real” (RICOEUR, 2000, p. 366). Com efeito, o modelo teórico é um instrumento heurístico de redescrição, como uma espécie de maquete da realidade ou fenômeno estudado, que pertence à dimensão “epistemológica da imaginação científica” (RICOEUR, 2000, p. 366). Por sua vez, na epistemologia da poética, Ricoeur (2000, p. 371) salienta que o poema redescreve ou “projeta um mundo” e considera a metáfora um “poema em miniatura”. Como o trabalho heurístico de redescrição da realidade tende a esquematizar uma percepção sistemática (no sentido de organização) que se expressa em um modelo teórico, é possível dizer que nosso pensador francês visualiza uma dimensão sistemática da metáfora, em termos de “root metaphors” e “metáforas em rede”. Em suas palavras, “pode-se esperar que a função referencial da metáfora seja levada por uma rede metafórica em vez de por um enunciado metafórico isolado” (RICOEUR, 2000, p. 372).
Todavia, o pensamento metafórico não se articula em termos de uma cognição friamente racionalista. No artigo intitulado The metaphoric process in cognition, imagination, and feeling, Ricoeur salienta a força epistemológica da imaginação e da emoção. Entre as significativas ênfases desse artigo, Ricoeur (1978, p. 155-156) discute “o papel construtivo da imaginação” no contexto da metáfora e estipula que os sentimentos “acompanham e completam a imaginação em sua função de esquematização”.25 Nesse sentido, o pensador francês indica que sentir “é fazer ser nosso o que tem sido colocado à distância pelo pensamento em sua fase objetivante”26 (RICOEUR, 1978, p. 156). Em outras palavras, os sentimentos não são “meramente um estado interno, mas pensamentos interiorizados”27 (RICOEUR, 1978, p. 156). Isso significa que os sentimentos abolem “a distância entre conhecedor e conhecido, sem cancelar a estrutura cognitiva de pensamento e a distância intencional que isso implica”28 (RICOEUR, 1978, p. 156). Ricoeur (1978, p. 157) salienta nessa discussão que a “imaginação provê modelos para ler a realidade de uma nova forma”.29 Considerando a conexão entre imaginação e sentimentos, nosso pensador explica que “por causa dos sentimentos nós ficamos ‘sintonizados’ à aspectos da realidade que não podem ser expressos em termos dos objetos referidos na linguagem ordinária”30 (RICOEUR, 1978, p. 158). Assim, ele conclui que imaginação e sentimento são intrínsecos à totalidade da intenção cognitiva da metáfora (RICOEUR, 1978, p. 158).
De fato, a comparação da metáfora com modelos teóricos da ciência e a capacidade metafórica de redescrição da realidade por uma cognição que se relaciona com a imaginação e a emoção, também aparece nas considerações de Ricoeur sobre a hermenêutica bíblica, que deixamos para o final de nosso artigo.
Eu seu ensaio sobre hermenêutica bíblica, Ricoeur (2017, p. 137) privilegia a discussão sobre as parábolas e argumenta que elas têm uma forma narrativa conjugada com um processo metafórico, cujo referente é o reino de Deus, que se caracteriza por expressões-limite e uma experiência-limite em relação à vida humana.
Em sua crítica à abordagem da metáfora na tradição da retórica, o filósofo francês questiona a ideia de que a metáfora é um mero ornamento do discurso por meio de palavras figurativas (mera figura de linguagem), que poderiam ser facilmente substituídas por palavras literais em um discurso mais direto (RICOEUR, 2017, p. 169). Nessa perspectiva, “a metáfora não dá nenhuma informação sobre a realidade”, isto é, ela não contém “inovação semântica” (RICOEUR, 2017, p. 168). Ao invés de uma noção meramente ornamental ou ilustrativa da metáfora, Ricoeur propõe uma função eminentemente epistemológica dela na construção do pensamento. Ao se estabelecer um enunciado que contém uma inconsistência, se lido literalmente, a metáfora faz “aparecer uma similitude onde a visão ordinária não percebe adequação nenhuma” (RICOEUR, 2017, p. 171). Em outras palavras, a metáfora articula em tensão coisas que aparentemente não combinam, tornando próximas as coisas que antes estavam distantes. Desse modo, “a metáfora revela uma relação de significação que até então não se tinha percebido, entre termos impedidos de comunicarem-se entre si pelas classificações anteriores” (RICOEUR, 2017, p. 171). Por meio dessas novas relações, onde as palavras estão ambiguamente tensionadas e conectadas, “uma nova significação emerge” (RICOEUR, 2017, p. 171).
Assim, Ricoeur (2017, p. 172) fala de “metáforas de invenção”, que são mais do que meramente ornamentos do discurso, porque trazem “uma informação nova”. Mais especificamente, “de novos campos semânticos nascem aproximações inéditas”. Isto é, “a metáfora diz algo de novo sobre a realidade”. Nesse contexto, o filósofo francês contesta a ideia de que a linguagem metafórica exclui qualquer referência à realidade. Antes, ele indica que “a suspensão da função referencial da linguagem ordinária não significa a abolição de toda a referência, mas, ao contrário, que essa supressão é condição negativa para a liberação de uma outra dimensão referencial da linguagem e de uma outra dimensão da própria realidade” (RICOEUR, 2017, p. 175).
É importante destacar que o filósofo francês não discute a metáfora em nível atomístico de apenas palavras individuais, mas projeta todo um processo metafórico. Ricoeur (2017, p. 170) explica que somente o “conjunto constitui a metáfora. Nesse sentido não devemos falar de palavras utilizadas metaforicamente, mas de enunciados metafóricos.” Isso se dá pelo fato de que “a metáfora só concerne às palavras porque se produz primeiro no nível da frase toda”. Desse modo, o processo metafórico ocorre “das palavras às frases”, como também “das frases às estruturas narrativas” e outros modos de discurso (RICOEUR, 2017, p. 182). Isso significa que “o que traz a metáfora não são as frases individuais das narrativas, mas a estrutura inteira, as narrativas tomadas como um todo” (RICOEUR, 2017, p. 183).
Esse conceito de processo metafórico, e não meramente de termos metafóricos é particularmente importante na consideração das parábolas bíblicas. Do ponto de vista das palavras, “o conjunto da narrativa da parábola é contado no nível dos acontecimentos da vida ordinária”. Logo, não é possível “dizer que em uma parábola certas palavras são tomadas literalmente, e outras, metaforicamente” (RICOEUR, 2017, p. 183). Como Ricoeur (2017, p. 189) explica, o caráter extraordinário das parábolas se encontra na narrativa do ordinário (semeador, pai, filho). A percepção do reino de Deus que emerge na linguagem ordinária das parábolas se dá por meio da intriga, ou seja, dos acontecimentos retratados pela narrativa, é aqui se situa o extraordinário (do reino de Deus) que irrompe em uma realidade ordinária. Em outras palavras, é no todo da parábola que se encontra o processo metafórico de redescrição da realidade, a emergência de uma nova percepção da realidade que leva em conta a irrupção do extraordinário, do reino de Deus: “o curso da vida ordinária é rompido, a surpresa jorra. O inesperado acontece, os ouvintes são interpelados e levados a pensar o impensável”, até então.
A proposta de processo ou pensamento metafórico de Ricoeur (2017, p. 187-188) procura fugir da abordagem atomista de tal modo que ele chega a sugerir que “as parábolas só fazem sentido se” forem “tomadas em conjunto” com as outras parábolas. Ele fala de um corpus das parábolas como um todo. Aqui se encontra o que ele chama de rede metafórica, uma rede de “significações cruzadas (intersignificação)” (RICOEUR, 2017, p. 188). É nesse ponto que descobrimos que o pensador francês quer evitar a linguagem de sistema, preferindo o termo conjuntos. Essa preferência procura assegurar um espaço para a ideia de tensão no pensamento metafórico, tanto na interpretação da parábola individual, quanto no conjunto de parábolas. Como Ricoeur enfatiza, elas “não dizem a mesma coisa”. O que existe é uma tensão entre “diferentes esquemas de crise e de resposta”. Talvez, essa seja mais uma contribuição de aporte do pensamento metafórico para a construção da teologia sistemática, que seja capaz de lidar com a tensão de conceitos na tarefa de repensar a realidade à luz da extraordinária irrupção do reino de Deus.
A articulação de um diálogo entre a compreensão de teologia em Jenson com a hermenêutica da linguagem metafórica em Ricoeur parece promissora para a teologia sistemática contemporânea. Ambos buscam caminhos alternativos ao racionalismo Iluminista e encontram nas reflexões sobre a linguagem ferramentas conceituais úteis para a formulação de um horizonte epistemológico distinto da tradição Iluminista.
Na tentativa de articulação de um diálogo, Jenson parece prover o arcabouço mais amplo da teologia enquanto discurso da fé, a partir do qual as reflexões sobre o pensamento metafórico de Ricoeur podem ser direcionadas para a teologia sistemática. No arcabouço teórico de Jensen, o discurso da teologia se situa entre dois outros níveis discursivos. De maneira explícita, ele conjuga o discurso da teologia com o discurso do evangelho pela comunidade da igreja, classificando-o como discurso de segunda ordem, que serve e informa o discurso de primeira ordem da igreja, na condição de uma gramática para a formulação do discurso de primeira ordem. De maneira implícita, Jenson relaciona o discurso da teologia com o discurso das Escrituras, que tem papel normativo para o discurso da igreja sobre o evangelho. Outros aspectos relacionados à natureza da construção teológica e seus critérios epistemológicos de julgamento são explorados por Jenson, mas considerando os interesses desse artigo no diálogo com noções de hermenêutica bíblica propostas por Ricoeur, a delimitação da ênfase de Jenson na normatividade das Escrituras já é suficiente para o presente estudo.
Em suma, no arcabouço teórico de Jenson, a teologia se situa entre o discurso das Escrituras e o discurso sobre o evangelho pela igreja. No contexto da teologia enquanto ponto de transição entre esses dois discursos contemplados nesse arcabouço, a contribuição da epistemologia metafórica de Ricoeur parece bastante relevante, no sentido de que ele informa a interação da teologia com as Escrituras. Uma vez que os horizontes da leitura das Escrituras são alargados pela hermenêutica ricoeuriana, por consequência, isso resultará em um horizonte mais amplo da gramática teológica para o discurso acerca do evangelho a ser expresso pela igreja, na forma de proclamação ao mundo e louvor/oração a Deus. Nesse alargamento de horizontes epistemológicos, destaca-se a aproximação de Jenson e Ricoeur no que diz respeito à projeção no novo. Jenson enfatiza a novidade do futuro que é aberta e impulsionada no discurso de evangelho enquanto promessa. Por sua vez, Ricoeur salienta o potencial de novas conexões viabilizado pela inovação semântica do discurso metafórico, especialmente no contexto da irrupção do reino de Deus nas parábolas, que possibilita relações que não poderiam ser observadas ou formuladas a partir de discursos que se limitam a uma linguagem literal e direta. Tanto na novidade aberta e impulsionada pelo discurso do evangelho (Jensen) quanto na inovação semântica do discurso metafórico (Ricoeur), vislumbramos um horizonte epistemológico capaz de dizer algo novo sobre a realidade.
Desse modo, as conexões e projeções que permitem esse novo olhar da realidade, que emergem da leitura das Escrituras e procuram embasar hermeneuticamente o discurso da igreja sobre evangelho, contribuem para uma abordagem da teologia sistemática que está atenta às ricas possibilidades epistemológicas da linguagem, especialmente em contextos de linguagem figurativa. Isso significa que, do ponto de vista metodológico, a noção de sistematicidade na teologia sistemática não deve estar circunscrita à caracterização de uma epistemologia racionalista, definida pelo raciocínio conceitual abstrato de uma lógica filosófico- -dedutiva. À luz das possibilidades epistemológicas mais amplas da linguagem, o raciocínio conceitual abstrato pode ainda ser utilizado, mas como uma das possíveis ferramentas de sistematicidade, na medida em que esse tipo de raciocínio constitui uma das formas de discurso, e não a forma exclusiva ou mesmo privilegiada, na teologia sistemática. Nesse horizonte epistemológico mais amplo, o trabalho de sistematização teológica deverá estar atento às diferentes formas ou gêneros de discurso e suas implicações formais para a articulação sistemática. No contexto mais específico das contribuições de Jenson e Ricoeur, as articulações tanto formais quanto materiais se abrem para diferentes possibilidades de sistematicidade teológica do evangelho enquanto promessa e da criatividade da inovação de conexões de imagens e conceitos da linguagem metafórica. Esse tipo de sistematicidade teológica parece ter um potencial promissor de maior aproximação da teologia sistemática com relação à interpretação das Escrituras, de um lado, e da vida religiosa/ eclesial concreta, de outro, por sua sensibilidade às questões hermenêuticas da linguagem. Futuros estudos podem explorar possibilidades dessa sistematicidade teológica e propor discussões de temas da teologia sistemática metodologicamente articulados à luz de uma epistemologia atenta às diferentes formas do discurso e ao rico potencial sistematizador da linguagem metafórica.
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[1] “Greek proof.” Nesse artigo, as citações de textos em língua estrangeira seguem tradução livre.
[2] “unilateral judge.”
[3] “the complex of religion and its ‘philosophical’ explication that in fact was taught to the world by the Greeks.”
[4] “truth taught by Plato and Aristotle as more ‘natural’ or ‘rational’ than truth taught by Isaiah or Paul.”
[5] “kind of philosophical activity than theology, to which theology perhaps may appeal.”
[6] “the theology of the historically particular Olympian-Parmenidean religion […] the wider Mediterranean cultic world.
[7] “Theologians of Western Christianity must indeed converse with the philosophers, but only because and insofar as both are engaged in the same sort of enterprise.”
[8] “the thinking internal to the task of speaking the gospel.”
[9] Essa concepção dupla da comunicação do evangelho parece similar à proposta de Dietrich Ritschl acerca da linguagem explicativa descritiva e linguagem doxológica ascritiva na teologia. Ele até sugere que textos doutrinários dos primeiros séculos da igreja cristã não continham apenas linguagem descritiva, mas também mantinham traços de linguagem ascritiva (RITSCHL, 1993, p. 218). Veja também Ritschl (1984); Ritschl e Hailer (2012).
[10] “object of thought […] a discourse.”
[11] “critical reflection interior to the church’s mission of proclamation.”
[12] “it begins with a received word and issues in a new word essentially related to the old word.”
[13] “In that we have heard and seen such-and-such discourse as gospel, what shall we now say and do that gospel again be spoken?”
[14] “Whenever I address you, I somehow pose to you a future that might not otherwise have been yours.”
[15] “the moment of action of contemplation.”
[16] “‘second-order’ discourse […] first-order discourse of faith.”
[17] Ver nota 8.
[18] “‘a sort of grammar […] formulates the syntax and semantics of this language […] Christianese.
[19] “may be described as the historically continuing discussion and debate internal to the mission of the gospel. Apostolic theology is the founding beginning of this discussion.”
[20] “theology uses Scripture as a norm of the proclamation and prayer theology serves.”
[21] Veja, por exemplo, Tracy (1975).
[22] Para comparações entre o pensamento narrativo de Ricoeur e a teologia narrativa pós-liberal de Yale, veja Comstock (1986; 1987) e Amherdt (2004).
[23] No livro Theology after Ricoeur, o autor também menciona o positivo impacto da hermenêutica ricoeuriana para a teologia sistemática. Veja Stiver (2001, p. 63, 74, 77, 82n8).
[24] “the figurative is deeply enmeshed even in systematic thinking.”
[25] “the constructive role of imagination […] accompany and complete imagination in its function of schematization.”
[26] “is to make ours what has been put at a distance by thought in its objectifying phase.”
[27] “merely inner states but interiorized thoughts.”
[28] “the distance between knower and known without cancelling the cognitive structure of thought and the intentional distance which it implies.”
[29] “imagination provides models for reading reality in a new way.”
[30] “Because of feelings we are ‘attuned to’ aspects of reality which cannot be expressed in terms of the objects referred to in ordinary language.”