Teopatodiceia: Espiritualidade, Cultura e Práxis  
Theopathodicy: Spirituality, Culture and Praxis      

Alex Villas Boas* 
Jefferson Zeferino** 
Andreia Cristina Serrato***

*Coordenador e Investigador Principal do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER) da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor Visitante da Universidade Católica de Moçambique. Contato: alexvboas@ucp.pt 
**Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná por meio do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNDP/CAPES). Contato: 
zeferino.jefferson@pucpr.br 
***Professora do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Contato: 
andreia.serrato@pucpr.br 

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Resumo:

O campo de estudos em Teologia e Literatura está consolidado no contexto brasileiro. A proposta do grupo teopatodiceia visa situar este diálogo da teologia como pergunta pelo sentido de Deus na busca de sentido humana e oferta de uma racionalidade crítica a um sistema de crença tendo a literatura como interlocutora privilegiada, mas também outras formas de narrativas e expressões artísticas da condição humana. Nesse sentido, o elemento antropológico visa não somente o diálogo com a antropologia literária, mas considera também, desde um projeto de arqueologia do saber teológico, a produção de subjetividades implicadas (pathos) nos saberes em diálogo e nos modelos epistemológicos que melhor favorecem a elaboração de uma teologia pública, plural e contrahegemônica a fim de discernir modos de se responsabilizar por uma agenda pública desde uma sensibilidade ética (diké) comum aos dilemas contemporâneos. A literatura ocupa um papel importante de heterologia no diálogo com a teologia. Como uma abordagem interdisciplinar, o projeto arqueológico se nutre dos percursos teóricos de autores como Antonio Manzatto, Paul Ricoeur, Michel Foucault, Michel de Certeau e David Tracy. Numa crítica à autorreferencialidade teológica, a via dialógica, interdisciplinar e intercultural da perspectiva teológica do grupo se aloca no conjunto das ciências humanas.   

Palavras chave: Teologia e Literatura. Teopoética. Teologia Pública. Teopatodiceia. Arqueologia do Saber.  

Abstract

The field of Theology and Literature is well established in the Brazilian context. The proposal of the research group teopatodiceia (theopathodicy) is to situate the dialogue of theology as a question for the meaning of God within human seeking of meaning; and to offer a critical rationality for a system of beliefs having literature as a privileged interlocutor, as well as other forms of narratives and artistic expressions of the human condition. Thus, the anthropological element aims, not only a dialogue with a literary anthropology, but, within the project of an archaeology of knowledge, it considers the productions of subjectivities implicated (pathos) in the different knowledges in dialogue and in the epistemological models that better favor the elaboration of a plural and counter hegemonical public theology to discern modes of becoming responsible for a public agenda based on an ethical sensibility (dike) common to contemporary dilemma. Literature occupies a significant role as an heterology in the dialogue with theology. As an interdisciplinary approach, the archaeological project draws from the theoretical background of authors such as Antonio Manzatto, Paul Ricoeur, Michel Foucault, Michel de Certeau, and David Tracy. In a critique to theology’s self-referentiality the dialogical, interdisciplinary, and intercultural theological perspective of the group is grounded in the whole of human sciences.   

Keywords: Theology and Literature. Theopoetics. Public Theology. Theopathodicy. Archaeology of Knowledge. 

Não quero lhe falar meu grande amor / Das coisas que aprendi nos discos / Quero lhe contar como eu vivi / E tudo o que aconteceu comigo / Viver é melhor que sonhar / Eu sei que o amor é uma coisa boa / Mas também sei que qualquer canto / É menor do que a vida / De qualquer pessoa. Belchior 

1. Teopatodiceia – histórico   

 Oficializado em 2016, o grupo de pesquisa Teopatodiceia: Espiritualidade, Cultura e Práxis, sediado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, se ocupa de discussões teológicas de fronteira1 . O grupo nasce embrionariamente das atividades da Associação Latino Americana de Literatura e Teologia - ALALITE (2006), bem como da ALALITE Seção Brasil; do GT Religião, Arte e Literatura da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião - SOTER (2008); e do CLLC – Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro, Portugal (2011). Atualmente tem também suas atividades associadas ao Centro de Estudos de Literatura, Teorias do Fenômeno Religioso e Artes – CELTA da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP (2016) e ao Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião CITER – da Universidade Católica Portuguesa (2019), junto ao projeto Common home and new ways of living interculturally: Public theology and ecology of culture in pandemic times. 

A principal parceria do grupo Teopatodiceia se dá com o grupo LERTE da PUC SP, em que ambos são responsáveis pela edição da Teoliterária - Revista Brasileira de Literaturas e Teologias, fundada por Alex Villas Boas e Francisco Surian (2011), anterior à criação dos dois grupos, e com ampla participação da comunidade nacional e internacional.  

2. Aspectos epistemológicos 

A categoria teopatodiceia é entendida como exercício hermenêutico da questão de Deus (Theós) e suas representações na busca de sentido humana, sua relação com a cultura e a produção de subjetividades (pathos) em que a sensibilidade ética abrange a responsabilidade social e política (diké). A análise do imaginário cultural, se dá em diálogo da Teologia e Ciências da Religião, com a Literatura e as Artes em geral, bem como com outras áreas de conhecimento. Atualmente tais aspectos epistemológicos vêm sendo desenvolvidos dentro de uma arqueologia do saber teológico em diálogo com a emergência da categoria complexidade para uma teopoética da Casa Comum. 

Teologia e Literatura 

Antonio Manzatto (1994), inaugura o campo de estudos em Teologia e Literatura no Brasil. Ao analisar a obra Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, elabora um método antropológico de aproximação entre as duas áreas, em que aporta com o ver da literatura o tradicional método de Ver-Julgar-Agir da Teologia da Libertação (VILLAS BOAS, 2020, p. 38- 42). É na particularidade das experiências humanas que se encontram aquelas vivências que podem ser consideradas comuns entre pessoas de diferentes lugares e culturas. A relação entre universalidade e particularidade se dá, portanto, a partir de baixo. Trata-se daquilo que comunica ao humano algo de sua própria humanidade, elemento central também no método correlacional proposto por David Tracy (2006). 

O elemento antropológico é central no desenvolvimento teológico do século XX, bem como possibilita a esta ciência uma entrada dialogal na relação com outros saberes. O lugar teológico na relação entre Teologia e Literatura busca captar a profundidade humana na tentativa de apreender um sentido para a existência. A questão de Deus é experimentada e significada na vida humana compreendida aqui, então, como locus revelationis. (VILLAS BOAS, 2016). 

O belo (pulchrum), como objeto formal da arte, possui algo a comunicar à questão da verdade (verum), superando a razão e exigindo do humano uma resposta de corpo inteiro. O belo e o verdadeiro se entrelaçam na experiência do leitor que pode descobrir na Literatura uma nova densidade ética para sua própria existência. (MANZATTO, 1994). A tentativa de representar a experiência, contudo, por mais sofisticada que seja, sempre será limitada (cf. ZEFERINO & FERNANDES, 2020). 

Ao desconsiderar as artes, uma teologia guiada por um paradigma racionalista se torna apática. Aquilo que há de comum na experiência humana (hipodigma) é acessado pelo caráter literário do saber humano e pela força investigativa da ficção na busca de sentido humana como busca de correspondências e ressignificações. O pathos, ao afetar o indivíduo, possui maior capacidade de universalidade do que a ratio cartesiana. Sem a dimensão afetiva, respostas teológicas se tornam apáticas. A diké se manifesta na apropriação performativa do indivíduo diante das questões de sentido. (VILLAS BOAS, 2016). 

A ilusão da apreensão do mistério da existência em precisas formulações teóricas compõe o escopo de uma forma mentis exclusivista. Um modo de pensar que desconsidera a subjetividade e a alteridade legitima autoritarismos e máscara conflitos de interpretação. Uma pretensão de universalidade que confunde unidade com hegemonia, tende a refrear a criatividade humana em sua diversidade. Daí que, desde uma sensibilidade ética de época, a recusa ou não recepção de Deus na Literatura se manifesta como reação às teodiceias. Com isso, a Literatura possui uma função de depuradora moral, pois provoca a reflexão crítica em relação às reminiscências autoritárias na mentalidade cristã hodierna (VILLAS BOAS, 2016). Há efetivamente duas claras influências do método de Manzatto no trabalho da Teopatodiceia, o ver literário e o antropológico como lugar de convergência entre teologia e literatura, que aqui são assumidos como ponto de partida. 

A Literatura provoca no humano um novo modo de ver e sentir a realidade de tal modo que a interpretação da vida, diríamos com Kearney (2015), começa na pele, envolvendo todos os sentidos. A relação entre estudos teológicos e estudos literários considera a dimensão afetiva da experiência humana, podendo ser traduzida em caminho de sensibilização humana. Opõem-se encarnação e excarnação, humanização e desumanização (cf. KEARNEY; TREANOR, 2015), de tal modo que é a profundidade da experiência humana que testifica de algo universalizável e compartilhável entre humanos, não uma ideia geral desencarnada e imposta de cima para baixo. Efetivamente, a própria ideia desencarnada nasceu de um contexto concreto, mas, em sua pretensão de universalidade hegemônica, apresenta-se como conceito puro. Nesse sentido, teologias confessionais podem ser oportunas ao pensamento como antropologia teológica e ajudar a pensar a condição humana na situação contemporânea. 

Contudo o antropológico é aqui pensado em suas condições de possibilidade enquanto produção de discurso e sentido sobre o humano, desde a emergência das Ciências Humanas e as possíveis relações com a Teologia. Para tanto, o projeto de uma arqueologia do saber teológico tem por base a arqueologia do saber de Michel Foucault e a arqueologia da religião de Michel de Certeau, bem como o papel da literatura nos respectivos autores. 

Paul Ricoeur

Na tentativa de pensar a realidade teologicamente, assumido o diálogo como categoria central e a antropologia como solo comum, nota-se a ética como provocação balizadora da prática teológica. Outras religiões, as literaturas e as ciências humanas provocam a teologia a sair de sua autorreferencialidade. A ética, como teologia primeira, promove um exame das pretensões de sentido e verdade internas às argumentações teológicas. Autor relevante para a construção teórica de Tracy e pensador, assim como M. de Certeau, da epistemologia do procedimento historiográfico, Paul Ricoeur (1913-2005) é uma fonte amplamente acessada no campo de estudos em Teologia e Literatura. 

O autor desenvolve elementos que auxiliam a perceber nas narrativas religiosas as tessituras de suas tensões, auxiliando na tarefa de compreensão das camadas que formam a complexidade do debate (RICOEUR, 1994); demonstra estruturas de violência social e política sustentadas por lógicas religiosas (RICOEUR, 2006); desenvolve teorias que auxiliam na análise da relação entre hermenêutica e ética (RICOEUR, 2011); escreve acerca do ser humano e de sua identidade fornecendo importantes pistas para uma teologia que se desenvolve a partir da experiência humana (RICOEUR, 1992; 2007); bem como oferece recursos para a interpretação e construção de discursos filosófico- -literário-teológicos (RICOEUR, 2000). 

Nome instantaneamente ligado às discussões sobre hermenêutica no campo filosófico, o trabalho de Ricoeur possui incidência ampla no âmbito teológico. Apropriação não sem motivo, uma vez que o próprio filósofo se dedicou a temas do campo religioso e era, ele mesmo, um cristão protestante. Ilustram isso, por exemplo, suas reflexões sobre hermenêutica bíblica (RICOEUR, 2006) e sobre a questão do mal (RICOEUR, 1969; 1988). Ademais, ao tratar temas como perdão, dádiva e amor se coloca em diálogo claro com a tradição cristã (RICOEUR, 2007). 

Um dos aspectos desenvolvidos por Ricoeur e que pode ser pensado teologicamente é a questão da tradução. Com Tracy (2006), por exemplo, apresenta-se a necessidade da tradução na capacidade teológica de comunicação com seus variados públicos. Em Ricoeur (2011), a tradução acontece entre idiomas, mas também entre pessoas. A tradução interlinguística e intersubjetiva serve de auxílio para pensar a teologia em sua condição teórica e ética. Efetivamente, no campo teológico, Jaco Dreyer (2011) aplica o conceito de tradução de Ricoeur ao contexto da teologia pública, compreendendo que, assim como apresenta Ricoeur, o debate teológico não deve se perder na discussão abstrata se seria possível uma tradução na relação com o espaço público, mas, antes, avaliar as traduções que já acontecem (cf. ZEFERINO & ANDRADE, 2020). Além disso, as próprias características do procedimento de tradução servem de auxílio para a análise crítica dessas outras traduções, bem como para a construção de uma fala teológica propositiva. Richard Kearney (2019), um atento intérprete de Ricoeur, recolhe o pensamento do filósofo francês sobre a tradução, pensando a fundo a proposta de uma hospitalidade linguística que seja também uma hospitalidade carnal, evidenciando a dimensão literária e intersubjetiva da questão. Na dinâmica da hospitalidade, para que ela seja efetivamente hospitalidade, equilibra-se a tensão entre anfitrião e hóspede de tal modo que, diante do convidado, o anfitrião resista aos riscos de anulação do outro ou de anulação de si mesmo. Em seu caminho argumentativo, o filósofo irlandês, que também é um estudioso da teopoética, faz uso de imagens bíblicas e da literatura para aprofundar as discussões éticas e antropológicas que desenvolve.

Michel Foucault  

O método arqueológico de Michel de Foucault pode ser encontrado em 4 de suas principais obras, a Histórica da Loucura como arqueologia da percepção, o Nascimento da Clínica como arqueologia do olhar, As palavras e as coisas em que faz uma arqueologia das ciências humanas e o livro Arqueologia do saber em que aborda propriamente dita o método arqueológico revisitando os três anteriores. 

A análise da emergência das ciências humanas como um saber moderno se dá como resultado de inter-relação de saberes sobre o ser humano, e não por meio de métodos de compreensão. As ciências humanas são precedidas por uma convergência de análise feita, por um lado, ciências empíricas à respeito da atividade humana ligada à vida, ao trabalho e à linguagem, respectivamente tratadas pelo biologia, economia e filologia e por outro lado, pela virada antropológica da filosofia transcendental kantiana de estabelecer o ser humano como fundamento que possibilita a condição do saber, que de objeto destas ciências empíricas também se torna sujeito que produz uma representação do ser humano que emerge da significação desta analítica da finitude (FOUCAULT, 1966). Desse solo epistêmico que oferece as condições de possibilidade para a formulação das ciências humanas se engendra a sociologia, a psicologia e a análise da literatura e dos mitos, que por sua vez constroem representações sobre o trabalho, a vida e a linguagem como forma de pensar o sentido de cada um desses âmbitos. Esse solo epistêmico é chamado por Foucault de episteme que pode ser entendido como a ordem, a configuração e a disposição que constituem um saber em uma determinada época e cultura, e que sobre ele a comunidade acadêmica irá elaborar um discurso com critérios de cientificidade, constituindo um a priori histórico como condição de possibilidade da produção de conhecimento por meio de uma simultaneidade discursiva desses saberes, assim como, descontinuidades diacrônicas. 

A arqueologia se distingue da história das ideias ou das ciências por não se situar em um nível de superfície em que habitariam as opiniões e conceitos para buscar um nível de profundidade vertical que visa apreender a condição de possibilidades dos saberes de determinada época, procurando a simultaneidade do conjunto desses saberes. O exercício arqueológico é, em primeiro lugar, epistêmico e não histórico, assim como sua análise parte do contemporâneo de cada tempo, sem pretensões de julgar a ciência e os saberes desde uma visão de progresso científico. Nesse sentido, demanda, como tarefa, pensar o humano como lugar de convergência do diálogo entre teologia e literatura, partir desta analítica da finitude moderna, sendo a questão ética um ponto de convergência na transição de época, e consequentemente de episteme. 

A ética transposta em uma agenda pública e a ampliação da racionalidade para a razoabilidade poderiam ser um lugar de convergência do diálogo entre teologia pública e demais formas de conhecimento, como preconiza o próprio Tracy, assim como Habermas, mas desde um ponto em que tanto a tradição teológica quanto a chamada analítica da finitude podem convergir, o discernimento: 

A atividade do espírito [...] não mais consistirá, pois, em aproximar as coisas entre si, em partir em busca de tudo o que nelas possa revelar como que um parentesco, uma atração ou uma natureza secretamente partilhada, mas ao contrário, em discernir [...]. Nesse sentido, o discernimento impõe à comparação a busca primeira e fundamental da diferença: obter pela intuição uma representação distinta das coisas e apreender claramente a passagem necessária de um elemento da série àquele que se lhe sucede imediatamente [...] conhecer é discernir (FOUCAULT, 1966, p. 68).

Nesse contexto, “saber é discernir” eticamente a condição de finitude humana, entretanto uma finitude que implica um respeito onde o ético e o sagrado convergem. E aqui a análise sobre a literatura e os mitos incidem sobretudo nesta tarefa de representação de uma época que contém uma episteme e ao mesmo tempo pode funcionar como contra- -episteme, enquanto também é capaz de instaurar novas experiências no modo de pensar para além do regime discursivo de uma episteme de época, e ao mesmo tempo reinserir o sentido de Deus desde o desafio inaugurado de uma analítica da finitude. 

Michel de Certeau  

O teólogo, historiador, psicanalista e crítico literário francês Michel de Certeau (1925-1986) elabora um projeto arqueológico, em diálogo com o projeto foucaultiano, porém analisando a questão religiosa e a consequente autorreferencialidade teológica, advinda da relação de litígio com a emergência do Estado Liberal. Litígio esse que se retroalimenta na constituição das chamadas Ciências Humanas no século XIX, que vão atuar como produtoras de uma “razão de Estado”, como equivalente à racionalidade pública. 

O projeto arqueológico de Michel de Certeau nasce de sua tese em teologia reprovada no Institut Catholique de Paris2 , em que propunha uma rupture instauratrice do cristianismo com as estruturas simbólicas remanescentes do Antigo Regime para pensar o diálogo com a cultura contemporânea. Esta tese reprovada em 1971, é retomada como projeto arqueológico em 1975 em L’Écriture de l’histoire, em que De Certeau analisa os regimes discursivos que estão na origem da cisão entre a simbólica cristã e a simbólica moderna. 

O jesuíta francês tem como interlocutor o projeto de archéologie du savoir de Michel Foucault em que opera como uma análise do discurso, bem como estabelece as condições históricas e sociais que possibilitaram a irrupção dos acontecimentos discursivos que viabilizam a formação de regimes discursivos (épistémès) em que os múltiplos discursos se relacionam simultaneamente. Assim, o filósofo francês identifica “rupturas epistemológicas” e/ou descontinuidades entre os modos de configurar o conhecimento até o Renascimento (século XVI), o Iluminismo, denominado por ele de Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) e Idade Moderna (século XIX). O discurso teológico, portanto, participa no mesmo contexto de outros discursos e práticas segundo as condições de saber de cada época. Para a Renascença, há semelhança entre palavras e coisas, e Deus seria compreendido por meio de Suas marcas nas coisas da criação. Na épistémè clássica, presente em Descartes, o objetivo é explicar a ideia de Deus para representar uma ordenação racional das coisas, em que Deus deixa de habitar o mundo das coisas e passa a habitar o mundo dos conceitos puros. Esse deslocamento possibilitou o apoio de teologias políticas e resultou na morte de Deus na moderna épistémè e no “fim da metafísica” que foi substituída por uma analítica da finitude. Nessa análise, a “filosofia de vida” denuncia a metafísica como “véu de ilusão”, a “filosofia do trabalho” como ideologia, e a “filosofia da linguagem” como um episódio cultural. Tal processo também propicia o evento discursivo em que o ser humano se torna um objeto-discurso que inaugura as Ciências Humanas à parte da teologia. 

Já na proposta arqueológica do jesuíta francês, a atenção é dada às práticas discursivas do Estado Moderno entrelaçadas às do regime discursivo sintonizado com a Filosofia do Iluminismo, mas progressivamente distantes das massas rurais que permaneceram religiosas como forma de resistência por causa da distância social do Estado. Adotando a lógica da arqueologia certeausiana, há pelo menos dois tipos de enunciados teológicos no surgimento da Modernidade que devem ser distinguidos: 1) as teologias amalgamadas ao Antigo Regime, responsáveis pela elaboração de uma crítica antimoderna, enfatizando o rigor moral para com o indivíduo, diante de uma suposta decadência da sociedade que se distancia da fé e culpabiliza o liberalismo. Tais teologias, no entanto, não estabelecem uma crítica ao Estado e suas contradições decorrentes da Revolução Industrial, mas, antes, oferecem um suporte religioso por meio de justificativas divinas; 2) as teologias críticas se manifestaram taticamente resistentes às teodiceias, porém, não raro, mais pelas práticas sociais, notadamente pelo catolicismo social, do que pelos discursos teológicos. Tal postura era ao mesmo tempo crítica às contradições do liberalismo e crítica à estratégia discursiva em que a conservação da fé coincidia com a conservação de privilégios. Há uma relação mais complexa para identificar os limites de [in] compatibilidade ou [in] tolerância entre as diferentes formas de correlacionar sistema político, sistema religioso e suporte epistemológico. Coexistiam simultaneamente pelo menos dois tipos de enunciados teológicos: a) um enunciado teológico como defesa da reta doutrina, que pretende sustentar-se com uma epistemologia escolástica autorreferencial enraizada no Antigo Regime de modo compatível ao sistema político; b) um enunciado teológico tático como crítica da sociedade, mas simultaneamente i) compatível com o sistema religioso [compartilhamento de fontes]; ii) incompatível com o sistema político e, portanto, iii) compatível com o surgimento das Ciências Humanas, compartilhando assim um humanismo comum. Para De Certeau, a historiografia iluminista, julgando-se ideologicamente imune, acabou eliminando tal complexidade dos enunciados teológicos, de modo que as condições de possibilidade para outro regime discursivo de uma teologia aberta ao diálogo com as Humanidades tiveram que esperar até o século XX. 

A autorreferencialiadade se instala dialeticamente entre teologia e ciências humanas na medida em que estas passam a adotar o “primado epistemológico da ética na reflexão” na emergência de uma racionalidade pública que desafia a significação dogmática do processo de produção teológica. Nesse aspecto, apesar de ser necessária a tradução de uma teologia confessional para uma teologia com critérios de argumentação pública, como evoca Tracy, há que se pensar um processo de reconciliação entre sujeitos epistêmicos e compatibilidade epistemológica entre teologia e ciências humanas, de modo que o projeto certeausiano pode ser visto como uma arqueologia do diálogo em que complexifica o reducionismo dialético entre racionalidade pública e racionalidade teológica na medida em que distingue uma característica mais próxima ao jansenismo como modo de pensar a conservação da fé como conservação de privilégios, alvo de crítica do Estado Moderno e da ética das ciências humanas, e a conservação da fé como testemunho da sacralidade da dignidade humana e do bem comum. Esta última não somente é compatível com a significação ética das humanidades, assim como a agenda pública, e até mesmo constitui o âmbito da gênese dos discursos teológicos proféticos contra o Estado quando este não cumpre seu dever de realizar uma agenda ética. Dentro desse movimento, a ética como sensibilidade à dor da história, enquanto manifestação das feridas abertas e não atendidas historicamente pode ser entendida como um locus theologicus, e ainda mais, pode se ver a ética como teologia primeira, desde a eficácia simbólica dos atos narrados da literatura evangélica como manifestação de uma vontade divina em favor da vida e do bem comum. No caso de Michel de Certeau, a ruptura instauradora de um nova consciência em que irrompia uma sensibilidade ética na perspectiva teológica autorreferencial também é importante considerar o papel da literatura que operará como heterologia do olhar (CERTEAU, 1986, p. 171-198). 

Francisco 

Sobre esse aspecto, o atual pontificado da Igreja Católica pode ser entendido em um movimento de ruptura instauradora favorável à dinâmica de uma Teologia Pública, dada inclusive a influência do jesuíta francês no Papa Francisco (FRANCISCO, 2017). Sobre esta ótica pode se delinear uma arquitetura franciscana que aponta para uma epistemologia teológica “em saída” da sua autorreferencialidade, em diálogo com a cultura contemporânea (Evangelii gaudium [EG] em 2013) (1), desde as categorias centrais de bem comum e dignidade humana conforme o esquema elaborado pelo ConcílioVaticano II, respectivamente recolocadas por Francisco como Casa Comum (Laudato si´ [LS] em 2015) (2) e Fraternidade Universial (Fratelli Tutti [FT] em 2021) (3). 

Tal dinamismo de “saída” da teologia demanda o alargamento da perspectiva autorreferencial (EG 95) desde a incorporação de uma agenda pública, nomeadamente a Agenda 2030, implicitamente presente na LS. Dada a “complexidade” que implica a questão da Casa Comum e a pluralidade da cultura contemporânea “as soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e transformar a realidade” (LS 63; 23; 135), exigindo uma postura teológica “em diálogo com outras ciências” (EG 133), de modo “interdisciplinar e inclusivo” (EG 134) exigindo “uma síntese entre ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia” (EG 242), bem como uma abertura para criar condições culturais que fomentem uma “diversidade reconciliada” (EG 230). Tal reconciliação por meio da adoção de uma agenda pública motivada por questões teológicas que convergem com a consciência laica e agrega forças por meio da amizade social pode ser entendida como um ponto de reconciliação da cisão entre o público e o privado no que toca a questão religiosa. O público aqui é pensado muito mais como agenda pública em prol da dignidade humana e bem comum do que uma racionalidade de Estado. O horizonte comum é o mundo da vida.

David Tracy 

O teólogo católico estadunidense David Tracy (n. 1939) tem contribuído com as discussões de método e epistemologia teológica há algumas décadas. Com Blessed Rage for Order: the new pluralism in theology (1975), A imaginação analógica: teologia cristã e a cultura do pluralismo ([1981] 2006) e Plurality and ambiguity: hermeneutics, religion, hope ([1985] 1994), o autor oferece um quadro complexo e multifacetado do fazer teológico diante de um mundo plural em que a pluralidade é em si mesma compatível com a universalidade pretendida da questão de Deus. O pluralismo enriquece a condição humana, mas afirmar esse pluralismo de modo responsável requer a afirmação da verdade com base em critérios públicos de argumentação (TRACY, 2006, p. 11-12). 

A proposta dialógica aqui desenvolvida encontra pertinente interlocução no método correlacional tracyano. Para ele, o fazer teológico acontece na correlação crítica entre uma hermenêutica crítica dos clássicos da arte, da razão e da religião com uma hermenêutica crítica da condição humana e da questão religiosa na situação contemporânea. Como se vê, em seu projeto, aquilo que o autor chama de clássicos, possui centralidade, bem como pode ser considerada no âmbito das pesquisas em Teologia e Literatura (cf. ZEFERINO & FERNANDES, 2020). 

Os clássicos assim o são por resistirem à dominação, possuem um excesso de sentido e comunicam ao humano algo de sua própria humanidade. Eles podem acontecer na forma de textos, símbolos, imagens, rituais, eventos, pessoas. Na dinâmica dos clássicos religiosos do judaísmo e do cristianismo, entende Tracy, há um movimento interior de autocrítica. Na literatura sapiencial, na literatura profética, nas narrativas evangélicas, há aí uma reflexão profunda sobre as situações limites da existência humana e uma disposição a colocar sob juízo sempre de novo a própria fé e seu conjunto de práticas e certezas. (TRACY, 2006). 

O método correlacional tracyano busca evitar reducionismos, entendendo que são as religiões e seus clássicos particulares que permitem uma análise atenta do fenômeno. No que concerne à fé cristã, para Tracy, o clássico cristão por excelência é a própria pessoa de Jesus como evento paradigmático que abala a história humana. (TRACY, 2006). 

Uma teologia sistemática, aos moldes tracyanos, é uma fala que, partindo de uma religião particular, articula a razoabilidade de suas alegações de sentido e verdade e que, assim como nos estudos da arte, opera impactada por aquilo que estuda. O belo, como objeto referencial da teologia sistemática, aproxima essa disciplina teológica dos estudos da arte. Aí está a imaginação analógica de Tracy (2006), pensando o lugar da teologia sistemática na academia por comparação com os estudos da arte. 

Cada tentativa de aproximação dos clássicos religiosos será sempre somente relativamente apropriada. No encontro com os clássicos religiosos, assim como no encontro com os clássicos da arte, o humano é frontalmente interpelado de tal modo que esse confronto pode gerar novos desvelamentos de sentido, gerando uma nova ética. A interpretação da religião requer resgate e suspeita. Buscar a força de sentido desses clássicos, atualizando-os, bem como considerar criticamente as tradições e instituições que involucram esses clássicos. (TRACY, 2006). 

Mesmo os desvelamentos de sentido proporcionados pelos clássicos religiosos não devem ser assumidos acriticamente. O caráter incontrolável das experiências de sentido coloca em xeque perspectivas exclusivistas, autoritárias e fundamentalistas. Um clássico religioso remete o humano para além de si mesmo, para além de suas próprias forças. As manifestações interiores que ocorrem de modo particular demandam uma publicização, isto é, que a vivência seja comunicada. Essa proclamação sempre será menor do que o vivido. O belo ultrapassa arte e teologia, no estudo da arte e no estudo da religião, os métodos são incapazes de apreender a totalidade de seus objetos. (TRACY, 2006). 

A prática da conversação com os clássicos possibilita que as tradições religiosas reconheçam suas pluralidades e ambiguidades, permitindo, inclusive, que determinadas pré-compreensões sejam questionadas pelos clássicos. Na conversação, o protagonismo é do assunto, busca-se a verdade, bem como se reconhece a presença de alguém outro – alteridade. Entre semelhanças e diferenças se podem encontrar analogias, isto é, semelhanças-na-diferença. (TRACY, 1994). 

O ocultamento das diferenças em virtude de uma narrativa hegemônica e totalizante pode, não raro, justificar poderes políticos e religiosos. Algo bem expresso nos dois enunciados teológicos identificados por Michel de Certeau, como vimos anteriormente. Apesar dessas precariedades atinentes ao estudo teológico, historicamente, teólogas e teólogos têm assumido essa tarefa com um horizonte de esperança ética, descobrindo novos modos de agir diante dos desafios de cada tempo. Ainda assim, a fala teológica que considere os aspectos positivos da religião, sem também reconhecer suas ambiguidades, bem como assumir o combate às violências e fanatismos não corrobora o quadro de resistência ética à luz da esperança. (TRACY, 1994). 

Aquela que genericamente pode ser chamada de questão de Deus, a qual Tracy denomina de Realidade Última, é abordada nas religiões em sua interação com a pessoa humana, esses dois dados, efetivamente, são constituintes dos clássicos religiosos. O diálogo com os clássicos remete o humano para além de si mesmo, operando um deslocamento de centro, cujo resultado pode ser uma transformação libertador do humano. Cada religião particular possui seu modo de desenvolver essa dinâmica e, à medida em que as religiões se relacionam entre si, elas podem aprender mutuamente, bem como possam refutar aspectos da outra tradição, um ou outro movimento só é possível uma vez que a conversa acontece. (TRACY, 1994). 

No diálogo amplo, também aquelas opiniões menos abertas podem ser ouvidas. Diante de critérios públicos de argumentação, as pretensões de sentido e verdade tanto das posições exclusivistas como as das pluralistas devem ser examinadas criticamente. Na conversação, não se trata de negligenciar as diferenças, mas, considerando seriamente as semelhanças e diferenças encontrar caminhos de valorização da alteridade. (TRACY, 1994). 

3. Pesquisadores, eventos, publicações

Entre os principais pesquisadores do Teopatodiceia estão como coordenadores Alex Villas Boas e Andreia Serrato, e Jefferson Zeferino que atualmente é editor chefe da Teoliterária, em conjunto com o Antonio Manzatto do grupo LERTE PUC SP. O grupo desenvolveu seis projetos, dos quais alguns já foram concluídos: 

Concepção dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola entre Karl Rahner e Hans Urs von Balthasar (2015 – 2016): A proposta deste projeto de investigação visa intensificar o diálogo entre pesquisadores sobre a espiritualidade inaciana, partilhando de suas perspectivas a respeito da espiritualidade em uma época pós-religiosa, e comparando dois contextos distintos, Brasil e Europa Ocidental. Também há um interesse investigativo de qualificar a perspectiva sobre como as espiritualidades pós conciliares na Igreja Católica tiveram em grande parte, a inspiração em dois grandes teólogos jesuítas, Karl Rahner (1904-1984) e Hans Urs von Balthasar (1905-1988). Em Rahner há uma forte fonte de inspiração para alimentar a espiritualidade presente no trabalho das pastorais, procurando dialogar com o mundo contemporâneo e com a realidade social. Já em Balthasar houve uma recepção muito forte por parte dos movimentos eclesiais. Ambos os projetos teológicos são importantes para a teologia pós-conciliar. O projeto foi fruto da pesquisa de Pósdoutorado realizado por Alex Villas Boas no Instituto de Espiritualidade da Pontificia Università Gregoriana, de Roma e resultou como principal publicação o artigo: The Understanding of the Spiritual Exercises in Karl Rahner and Hans Urs von Balthasar (2019). 

Teologia da cultura: Espiritualidade, Cultura e Práxis em Michel de Certeau (2017 – 2020): Interpretar teologicamente o nexo existente entre as formas de organização da sociedade humana e suas expressões culturais, tanto nas ciências (filosofia, psicologia, ciências sociais, economia...), quanto nas artes (literatura, teatro, cinema, música...), enquanto contemplam a afirmação do sentido da vida humana patente nessas estruturas. A análise do fenômeno da vida cristã, em suas diversas formas de espiritualidade e práticas acontece dentro de uma experiência cultural, social e histórica, e, portanto, exige a compreensão da recepção ou recusa da fé que se dá dentro de distintas maneiras de compreender o modo de ser no mundo. Em meio a essas diferentes compreensões se faz necessário uma análise teológica da cultura e seus imaginários para dialogar com essas fronteiras de sentido (fé e cultura, espiritualidade e prática, Religião e Sociedade), que repercute no tecido social em busca do bem comum. Enquanto análise teológica da cultura a pesquisa se situa no âmbito da Antropologia Teológica em perspectiva de uma Teologia Pública que dialogue com as questões contemporâneas: Direitos Humanos, Movimentos Sociais, Políticas Públicas, Estudos Culturais, Complexidade, Hermenêutica Diatópica, Debate epistemológico entre Teologia e Ciências Humanas, e tem como referencial o pensador francês, Michel de Certeau, dada a sua importância tanto nas Ciências Humanas quanto no pontificado de Francisco. O projeto foi contemplado com uma Bolsa de Produtividade da Fundação Araucária, protocolo n. 49326.522.48945.01022018 do Edital CP 15/2017, intitulado “A Epistemologia Negativa de Michel de Certeau e o papel da Teologia nas Ciências Humanas hoje”.Os resultados deste projeto terão continuidade «Common home and new ways of living interculturally: Public theology and ecology of culture in pandemic times» que tem por referência teórica uma Teologia do cotidiano da Casa Comum, com base teórica em Michel de Certeau. Além disso, três orientações de doutorado estão sendo realizadas tendo por base a referência teórica do jesuíta francês. 

Mapeamento da Área de Ciências da Religião e Teologia (2018 – Atual): O projeto visa mapear a produção de conhecimento da Área de Ciências da Religião e Teologia. A Área de Avaliação comum n. 44 da CAPES, é constituída de duas Áreas de Conhecimento, Ciências da Religião e Teologia, e se constitui de 21 programas de Pós-Graduação, a saber: 9 Programas de Teologia, 8 Programas de Ciências das Religiões, 2 Programas de Ciência da Religião, 2 Programas de Ciências das Religiões, sendo 3 deles mestrados profissionais. Há na Área de Ciências da Religião e Teologia 32 Periódicos Científicos publicados pelos seus respectivos programas. O debate epistemológico entre Ciências da Religião e Teologia se inicia com a criação do Departamento de Ciências da Religião da UFJF, e chega aos seus 50 anos, com uma forte tendência interdisciplinar. Suas principais publicações até o momento são Perspectiva Teológica: Memória, Identidade e Fronteiras. Estudo Bibliométrico e Sociométrico da produção científica de 1969 a 2019.1 (2019) e Mapeamento das temáticas dos dossiês das revistas dos programas de pós-graduação em Ciências da Religião e Teologia no Brasil (2019). 

Está em curso um mapeamento das produções publicadas pela Teoliterária, contemplando a análise das referências bibliográfica dos principais autores utilizados nos artigos publicados na Revista Teoliterária, contemplando o período de 2011 a 2020. A análise foi construída a partir da coleta dos dados de uma planilha binária de dados, cujos dados foram coletados nos artigos publicados na revista, em que o autor citado é considerado uma única vez para cada artigo, independente do número de citações que recebe no artigo. As referências teóricas que coincidem com autores da revista excluem as autocitações do computo geral. Tal escolha visa identificar as referências teóricas mais utilizadas. Outras análises da revista serão feitas em publicações posterior. 

O gráfico 1 demonstra a importância de um autor na revista desde em que cada ponto indica a presença do autor em um artigo, desconsiderado o número de vezes que aparece no mesmo, tal qual mencionado acima. As referências estão distribuídas em nove estratos de pontuação, entre os mais citados somando com isso os 36 autores mais citados, excluindo as autocitações, entre as mais de 3.000 referências bibliográficas utilizadas na Teoliterária: 

Assim, entre artigos publicados na Revista Teoliterária no período de 2011 a 2020, a referência bibliográfica mais utilizada é Paul Ricoeur, com um índice de 62 pontos, sendo não somente a referência de maior destaque, mas também despontando em todo o período da revista. Em seguida tem-se Mircea Elide, com 23 pontos de referências bibliográficas, sendo a segunda referência mais utilizada. No terceiro estrato, com 16 pontos de referência aparecem (em ordem alfabética por sobrenome) Hans Urs von Balthasar, M. Foucault; A. Gesché; e F. Nietzsche. Com 15 pontos de referências bibliográficas aparecem no quarto estrato aparecem R. Alter e N. Frye. Com 14 pontos de referências bibliográficas, no quinto estrato, aparece somente M. Heidegger. No sexto estrato, com 13 pontos aparece pela primeira vez autores brasileiros como R. Alves; A. Manzatto e P. Tillich. Com 12 pontos, o sétimo estrato consta como referências M. Bakhtin e J-C. Chevalier. No oitavo estrado, com 11 pontos de referências bibliográficas tem-se M. C. Bingemer; U. Eco; P. Evdokimov; R. Guardini e A. C. Magalhães. Com 10 pontos, no nono estrato tem-se Aristóteles; A. Gheerbrant; S. A. Kierkegaard; K-J. Kuschel; K. Rahner e A. Villas Boas. E por fim, com 9 pontos o décimo estrato conta com H. Arendt; E. Auerbach; J. C. Barcellos; M. de Certeau; G. Gutierrez; E. Lévinas; J. Miles; J. Moltmann; C. I. A. Palumbo; O. Paz; Platão. A presença dos brasileiros se faz presente no sexto, no oitavo, no nono e no décimo estrato. 

Gráfico 1 - Ref. Bibliográficas Teoliterária 2011-2020 

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021 

Teologia e Literatura: Mitografias - temas e variações (2018 – Atual): Projeto de Pesquisa desenvolvido entre as instituições brasileiras PUC PR/UNICAMP e portuguesas Universidade de Aveiro (UA) e Universidade Católica Portuguesa (UCP). Na matriz da cultura ocidental, destacam-se os Poemas Homéricos e a Bíblia. Ao longo dos séculos, essas e outras obras têm gerado um manancial de mitos, símbolos, temas e formas de pensamento acerca da condição humana e da identidade nacional. Na sequência de eventos e publicações científicas que temos vindo a realizar, propomos um projeto que permita desenvolver e consolidar a investigação, neste amplo domínio do saber. Organização (e.g. estruturação em subprojetos): A arte da narrativa mítica Releituras e transcodificações; Recepção, representações e intertextualidades; Heróis, mitos e lendas nacionais. Objetivos: Em cada um dos cinco anos de duração do projeto, pretendemos realizar investigação e sua respetiva disseminação em, pelo menos, um Congresso Internacional e uma publicação coletiva. Os temas propostos são os seguintes: 2018: Arca de Noé: catástrofe e redenção 2019: Olhares de Narciso: egotismo e alienação 2020: Torre de Babel: alteridade e estereótipos 2021: A fúria de Aquiles: as faces da guerra 2022: Sodoma e Gomorra: as leis do desejo. 

Common home and new ways of living interculturally: Public theology and ecology of culture in pandemic times (2020 – Atual): Common Home is a shared concept between the UN Agenda 2030 for Sustainable Development Goals (SDGs) and the Encyclical Letter Laudato si’ (LS) about the care of the Common Home, published months earlier. The new scenario of COVID19 and humanitarian crisis demands even more the adoption of a public agenda for a collective political and social effort that overcomes the cultural contradictions of economic determinism and calls for shared responsibility, supported by a culture of fraternity. At times like these, religions have a great potential for empathy and social cooperation with public agendas. The review of specialized literature revealed the need to fill a gap in the current debate on Common Home, which is the role of cultural ecology in integral ecology, and its interdependence with the ecology of everyday life. The hypothesis of this project is that cultural ecology, which emerged in the 1980s, and which has been reemployed by Pope Francis since the epistemology of Michel de Certeau’s everyday life, can be developed as a platform for integral ecology and multithematic goals and interdependent SDGs. De Certeau, in addition to being the theologian most appreciated by Pope Francis and despite not having developed a specific thought on ecology, dedicates his work to the constant cultural transformations in the society of consumption and mass culture. His work privileges the challenge of recognizing otherness, especially those arising from the contradictions of society such as excluded, immigrants, minorities and the worsening of the gender inequality. Alternative cultural dynamism arises from the ability to discern the tension between what has been preserved and what has been invented in the cultural fabric, caused by the presence of otherness, demanding the creation of a common place of cohabitation. His notion of the common makes it possible to suspend a dichotomous view of identity and otherness, in favor of a relational view. Theologically, the otherness can be seen under the sign of the unpredictable and is exactly the way it represents the unveiling of God, deconstructing the hegemonic attempts and promoting a reconciled diversity. The cultural dimension of the crisis, as well as the social and ecological dimensions, is evoked by Ls, as a way of resisting the monopoly of the technocratic paradigm and its globalizing and mass modes of production, rooted in epistemological anthropocentrism and the throwaway culture, which has been nourished by a consumerist. Ls thus calls for a bold cultural revolution that establishes the interdependence between scientific and economic solutions, education, and culture, integrating in public discourse, cultural diversity, art, poetry, and expressions of inner life. The aim of the project is to offer public theological hermeneutics in dialogue with the other sciences, based on the notion shared with the Ls of Common Home. As specific objectives it aims to: a) develop an epistemological model that interacts with the potential for cooperation and solidarity in the religious field with the diverse areas of knowledge for a review of moral and mental outlooks, in an intercultural key that seeks cooperative solutions between different people and institutions for common problems; b) promoting an ecological cultural creation for the interdependent SDGs that focus on languages that bring together critical and common sense; c) everyday practices, which brings about the need to think of vulnerability as a central category of an ethics and aesthetics of care. 

Podem ser consideradas algumas obras de destaque do grupo de pesquisa, além da edição da Teoliterária: 

•     Teopoética: Mística e Poesia, 2020. 

•     Spirituality and Health in Pandemic Times: Lessons from the Ancient Wisdom, 2020. 

•     Introdução à epistemologia do fenômeno religioso interface entre ciências da religião e teologia, 2020. 

•     Teologia em diálogo com a literatura: origem e tarefa poética da teologia, 2016. 

•     Poesia, imagem e teoria: ressonâncias escatológicas a partir de Casaldáliga, Cerezo e Westhelle, 2020. 

•     O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal, 2020. 

•     Hermenêutica e teologia pública: elementos para a construção do discurso teológico em interlocução com os clássicos desde a Literatura a partir de David Tracy, 2018. 

•     Práxis místico-ética em Simone Weil: a compaixão pelo outro sentida à flor da pele, 2018. 

•     Mapeamento das temáticas dos dossiês das revistas dos pogramas de pós-graduação em Ciências da Religião e Teologia no Brasil, 2019. 

•     Perspectiva teológica: memória, identidade e fronteiras. Estudo bibliométrico e sociométrico da produção científica de 1969 a 2019.1, 2019. 

Considerações finais

A emergência das sociedades pós-seculares ajuda a percepção da insuficiência do paradigma da hermenêutica da secularização para além de origens regionais, assim como aponta para a insuficiência de uma racionalidade dialética entre público e privado em nome dessa secularização a fim de se garantir o nobre ideal da laicidade de proteger a ordem pública e garantir a liberdade de consciência individual. Tal dialética resultou em endurecimentos identitários, ao mesmo tempo distintos entre tradições e semelhantes em suas manifestações, que enfrentam os fundamentos seculares da modernidade, sem deixar de se aproximar pragmaticamente dos espaços públicos, inclusive dos espaços de decisão na sociedade, de modo que resulta em uma utilização do público com interesses privados ou pelo menos não compartilhados com um amplo público da sociedade, como é o caso do jihadismo, em suas várias versões como o talibã, o Daesh e mesmo os grupos moçambicanos, ou ainda o caso do fundamentalismo cristão nas Américas, e do ultraconservadorismo que tem sido mobilizado por partidos políticos de orientação radical, tanto no Hemisfério Norte quanto no Sul. A emergência de uma “religião pública”, nestas circunstâncias, pode não estar ao serviço da construção de um projeto comum, compartilhado com a sociedade plural. 

Nesse sentido, as sociedades pós-seculares, por sua própria natureza demandam uma racionalidade pública capaz de promover um diálogo no seio da complexidade das sociedades plurais. A proposta de uma Teologia pública visa exatamente pensar formas de integração que não reforcem os blocos identitários desse fenômeno da “religião pública”, mas possibilite a produção de narrativas teológicas que ajudam a discernir formas de compromisso com uma agenda comum em virtude da sacralidade da vida, traduzidas na dignidade humana e bem comum. 

Tal tarefa implica a superação de estruturas dialéticas de pensamento e formas de autorreferencialidade que possibilitem melhor pensar a complexidade da sociedade contemporânea, o fenômeno religioso igualmente complexo de forma a capacitar dinâmicas de interculturalidade em que pessoas diferentes, com problemas comuns possua agir de modo cooperativo em busca de soluções cooperativas. Exatamente nesse aspecto, a Literatura colabora com um ver heterológico tanto como crítica às reminiscências hegemônicas da representação de Deus nas literaturas que representam uma razão de recusa, como nas novas possibilidades de representação em que o sentido de Deus acompanha a sensibilidade ética da busca de sentido da vida humana.  

Referências

DE CERTEAU, Michel. Heterologies: Discourse on the Other. Theory and History of Literature, Vol. 17. Minneapolis: University of Minnesota Press; 1986. 

DREYER, Jaco. Public theology and the translation imperative: a Ricoeurian perspective. HTS Teologiese Studies, v. 67, n. 3, p. 1-8, 2011. 

FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: Une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966. 

FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social. Libreria Editrice Vaticana, 2020. 

FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum. Libreria Editrice Vaticana, 2015. 

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KEARNEY, Richard. Double hospitality: between word and touch. Journal for Continental Philosophy of Religion, n. 1, p. 71-89, 2019. 

KEARNEY, Richard. The wager of carnal hermeneutics. in KEARNEY, Richard; TREANOR, Brian (Eds.). Carnal hermeneutics. New York: Fordham University Press, 2015, p. 15-56. 

KEARNEY, Richard; TREANOR, Brian. Introduction: carnal hermeneutics from head to foot. in KEARNEY, Richard; TREANOR, Brian (Eds.). Carnal hermeneutics. New York: Fordham University Press, 2015, p. 1-11. 

MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. 

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. 

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. 

RICOEUR, Paul. Oneself as another. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1992. 

RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 1). Campinas: Papirus, 1994. 

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SERRATO, Andréia Cristina; SOUZA, Waldir. Práxis místico-ética em Simone Weil: a compaixão pelo outro sentida à flor da pele. Revista Pistis & Práxis, v. 10, p. 1-30, 2018. 

TRACY, David. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006. 

TRACY, David. Blessed rage for order: the new pluralism in theology. New York: The Seabury Press, 1975. 

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VILLAS BOAS, Alex. Introdução à epistemologia do fenômeno religioso: interface entre ciências da religião e teologia. 1. ed. Curitiba: Intersaberes, 2020. 

VILLAS BOAS, Alex. O Método Antropológico no diálogo entre Teologia e Literatura em Antônio Manzatto. Revista de Cultura Teológica, v. 26, p. 24-48, 2020. 

VILLAS BOAS, Alex. Spirituality and Health in Pandemic Times: Lessons from the Ancient Wisdom. Religions, v. 11, p. 583-602, 2020. 

VILLAS BOAS, Alex. Teologia em diálogo com a literatura: origem e tarefa poética da teologia. São Paulo: Paulus, 2016. 

VILLAS BOAS, Alex; BINGEMER, Maria Clara. (Org.). Teopoética: Mística e Poesia. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora PUC Rio/ Paulinas, 2020. 

VILLAS BOAS, Alex; SERRATO, Andréia Cristina; ZDZIARSKI, Alaís Daiane; CRUZ, June Alisson Westarb. Mapeamento das temáticas dos dossiês das revistas dos pogramas de pós-graduação em Ciências da Religião e Teologia no Brasil. REVER, v. 19, n. 2, p. 87-116, 2019. 

VILLAS BOAS, Alex; SERRATO, Andréia Cristina; ZDZIARSKI, Alaís Daiane; CRUZ, June Alisson Westarb Perspectiva teológica: memória, identidade e fronteiras. Estudo bibliométrico e sociométrico da produção científica de 1969 a 2019.1. Perspectiva Teológica, v. 51, sup. 3, p. 45-80, 2019. 

ZEFERINO, Jefferson; ANDRADE, Rodrigo de. A tradução fundamentalista: equivalências hermenêuticas entre teologias exclusivistas e modelos democráticos elitistas. Horizonte, v. 18, n. 57, p. 1050-1081, 2020. 

ZEFERINO, Jefferson; FERNANDES, Marcio Luiz. O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal. Teoliterária, v. 10, n. 21, p. 470-497, 2020. 

ZEFERINO, Jefferson; FERNANDES, Marcio Luiz; PINTO, Ana Beatriz Dias. Poesia, imagem e teoria: ressonâncias escatológicas a partir de Casaldáliga, Cerezo e Westhelle. Estudos de Religião, v. 34, n. 3, p. 231-258, 2020. 

Notas

[1]  http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/230100

[2] Michel de Certeau na altura já era doutor em História das Religiões pela Universidade de Sorbonne, e foi convidado a reunir alguns de seus trabalhos como projeto de tese doutoral a ser defendida no Institut Catholique de Paris a fim de também poder orientar teses doutorais em teologia.