Teoliterária 10 anos

 

Alex Villas Boas*
*Coordenador e Investigador Principal do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER) da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor Visitante da Universidade Católica de Moçambique. Contato: 
alexvboas@ucp.pt  
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 “empenha-te em dar sentido às lutas desconexas do ser humano” 
Nikos Kazantzakis, The Odyssey: A Modern Sequel, n. 78-85 

A releitura do poema épico homérico feita por Kazantzakis que ele intitula como “sequência moderna” se relaciona ao seu eu-lírico, Ulisses, que ao voltar para Ítaca constata que a cidade já não é a mesma que quando a deixou. Os valores da polis já não são os mesmos, os afetos com as pessoas próximas tampouco, transmutados pelas incertezas da conclusão de um périplo desacreditado pelo desgaste do tempo. Ítaca já não há! 

Tradutor de Dante, o poeta grego, faz com que seu eu-lírico se ponha em movimento e volte a navegar, como uma marca distintiva da busca dos novos tempos para que, no meio do oceano, encontre o Outro, representado em muitos personagens históricos como Buda, Dom Quixote, Jesus, o novo pescador que diverge do Velho pescador, o da Cristandade, a respeito da centralidade do amor na mensagem religiosa. Navegar e escrever era para o poeta grego um exercício espiritual (askésis) que visava salvar Deus das formas religiosas históricas que fizeram com que o núcleo fundamental do amor fosse obnubilado por formas de controle institucional, sempre teologicamente justificadas. O modo dos poetas e os escritores literários assumirem este chamado a serem salvatores Dei implica em aceitar a viagem em busca de uma nova sequência do périplo, não aquela que se volta para o mesmo, mas aquela que encontra sua morada no próprio movimento de navegação em direção à alteridade, para ali descobrir uma nova comunhão de vida. 

Em 2021 a Teoliterária chega aos seus dez anos de existência, acompanhada de quinze anos de ALALITE – Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia, completados neste ano, e com mais de 25 anos do início da pesquisa em Teologia e Literatura no Brasil, com a publicação de Teologia e Literatura por Antônio Manzatto em 1994. Longe de voltar- -se para o Mesmo, a Teoliterária é testemunha viva de como a comunidade acadêmica de estudiosos de religião e estudiosos de literatura no Brasil se desenvolveu em campo de investigação com diversas abordagens e um horizonte de perspectivas que desponta em seus mais de mil trabalhos publicados, e que mais ou menos consensualmente passou a se chamar de teopoética. Quando a Teoliterária lançou seu primeiro número em 2011 havia apenas três grupos registrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Ao longo desses dez anos a pesquisa foi crescendo e se consolidando na constituição de pelo menos quinze grupos de investigação no Brasil, que compõem o conjunto de quase quarenta grupos internacionais. O Brasil concentra quase a metade da produção mundial no campo de teologia, religião e literatura. 

Alguns aspectos valem a pena serem destacados como, por exemplo, a evolução de um debate a respeito de um modelo teórico ideal que passa a considerar diferentes modelos epistemológicos entre os distintos grupos. Também vale destacar a consolidação de uma perspectiva interdisciplinar entre Teologia, Ciências da Religião e Estudos de Literatura. Tal pluralidade e interdisciplinaridade também fornece novos horizontes para uma abordagem que não seja autorreferencial do ponto de vista teológico, e assim, indo na contramão da herança das perspectivas prosélitas e hegemônicas que, em certo sentido, constituem um modismo de algumas tendências teológicas em determinados cenários religiosos. Tal interdisciplinaridade e pluralidade constituem na prática uma forma de teologia pública também, na medida em que mesmo se debruçando sobre tradições confessionais, não tem uma finalidade confessionalista, mas sim interagir com o imaginário e o tecido cultural da sociedade em suas diferentes épocas. 

Um outro aspecto distintivo deste campo de pesquisa no Brasil é a interação que acontece entre os grupos de pesquisa por meio de eventos específicos e grupos de trabalho dentro das associações, quer seja na área de Ciências da Religião e Teologia, como é o caso da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE) e da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), quer seja na área de Estudos Literários, como é o caso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). Também a interação destes grupos com grupos internacionais, com especial atenção ao Congresso Internacional da ALALITE em sua oitava edição. Além da unidade latino-americana do campo de pesquisa, os grupos interagem com outras latitudes, como o projeto Mitografias da Universidade de Aveiro, em Portugal, o Teotopias da Universidade Católica Portuguesa, o Power of the Word que reúne várias instituições europeias, entre outros, assim como a presença de pesquisadores de diversos países como Alemanha, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Polônia, Rússia, entre outros, o que configura um campo intercultural em que cada nacionalidade também deixou sua marca na Teoliterária. 

Este dossiê nasce, exatamente da tentativa de estreitar o debate teórico entre os diversos grupos de pesquisa no Brasil, que atinge mais mil trabalhos publicados, a partir da consolidação da ALALITE Seção Brasil após o VII Congresso Internacional da ALALITE que aconteceu no Rio de Janeiro em 2018, passando a ter reconhecimento também na CAPES. Em 2019 a ALALITE Seção Brasil promoveu um seminário nacional convidando a todos os grupos brasileiros deste campo estudos de religião e estudos literários, envolvendo universidades públicas e privadas, que teve maciça adesão, em que cada grupo apresentava suas linhas teóricas e os trabalhos desenvolvidos por seus membros. Esse volume é a tentativa de registrar esse debate em um veículo que acompanhou o desenvolvimento de todos esses trabalhos. 

Entre o conjunto de grupos de pesquisa dedicados aos estudos de religião e estudos literários em geral, fazem parte da reflexão desse dossiê dez grupos, a saber (em ordem alfabética): o grupo Apophatiké - Estudos Interdisciplinares em Mística, com pesquisadores de várias instituições do Brasil e de várias áreas de conhecimento, que se dedica ao diálogo entre Mística e Literatura, no campo de Teopoética; Grupo de pesquisa Litere - Literatura, Teoria Literária e Religião, do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo; Grupo de Pesquisa Religião e Cultura do Programa de Pósgraduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará; Grupo de Pesquisa Repludi - grupo de pesquisa Religião, Pluralismo e Diálogo, como uma linha de pesquisa sobre Religião, Linguagem e Literatura e o Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte, ambos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas; Grupo LERTE - Literatura, Religião e Teologia do Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da PUC-SP; Grupo Interfaces ligado ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); NEBIL - Núcleo de Estudos Bíblia e Literatura, ligado ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Mackenzie; Religião, linguagem e cultura do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Campinas; Teopoética – Espiritualidade, Cultura e Práxis ligado ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC do Paraná e ao Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa. 

O volume ainda apresenta variados temas na seção de artigos livres dedicados ao estudo de autores nacionais e internacionais, abordagens teóricas e outros tópicos. 

Vale ainda um último aspecto a ser destacado entre os pesquisadores de teopoética das diversas áreas, destes que se empenham em “dar sentido às lutas desconexas do ser humano” salvaguardando a pluralidade do horizonte de alteridade que se vislumbra cada vez maior no século XXI, que é o espírito de fraternidade e cooperação que se construiu ao longo destes dez anos de Teoliterária. Como Editor chefe da revista que fui por estes dez primeiros anos, juntos com outros tantos colegas que dividiram a nau da revista, minha profunda e sincera gratidão aos autores, pareceristas, leitores e corpo editorial, especialmente aos amigos da primeira hora deste periódico que se mantêm a bordo, Antonio Manzatto da PUC-SP e Francisco Surian da Unisantos, bem como os demais editores que assumem o leme, nomeadamente o editor chefe, Jefferson Zeferino (PUC PR), e os editores associados Sebastião Lindoberg (PUC Rio) e Glaucio Alberto Faria de Souza (PUC SP), e por meio deles minha gratidão se estende a toda equipe editorial desde o início da revista. Vale repetir a sequência da estrofe da Odisseia kazantzakiana, daqueles que continuam a perseguir o horizonte de alteridade com a bússola da fraternidade: “os combatentes se elucidem, unam-se em teu coração e se reconheçam irmãos”. Parabéns, Teoliterária!