O conceito de cristianismo a partir da metáfora de acorde
The concept of christianity based on the metaphor of chord 

José D’Assunção Barros
*Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: joseassun57@gmail.com



Voltar ao Sumário

 

Resumo:

Todos os campos de saber valem-se conceitos, e estes têm sido bem estudados nas disciplinas as mais diversas. Neste arti-go, pretendemos apresentar a possibilidade de nos aproximarmos da construção e com-preensão dos conceitos (em quaisquer cam-pos de saber) a partir de uma noção musical – a de acorde. O universo experimentado para esta possibilidade será o do conceito de Cristianismo. Pretendemos aplicar a for-ma do acorde-conceitual ao estudo de um conjunto de características mínimas que po-deriam configurar um conceito adequado de Cristianismo. O objetivo é demonstrar, a partir deste exemplo, que este procedimento teórico também é viável para o estudo de outros obje-tos, nos vários campos de pesquisa. 

Palavras chave: Conceito; Acorde; Cristianismo; Religiões; Definição   

Abstract

All fields of knowledge need concepts, which have been well studied in the most diverse disciplines. In this article, we intend to expose the possibility of approaching the construction and understanding of concepts (in all fields of study) associating this with a musical notion – the ‘chord’. The universe experienced for this possibility will be that of the concept of Christianity. We intend to apply the conceptual chord form to the study of a set of minimum characteristics that could configure an adequate concept of Christianity. The objective is to demonstrate, from this example, that this theoretical procedure is also viable for the study of other objects, in the various fields of research.   

Keywords: Concept; Chord; Christianity; Religions; Definition.  

Conceito: uma construção abstrata a partir de uma referência concreta 

Neste artigo, partiremos de uma discussão inicial sobre a natureza dos conceitos como instrumento de compreensão científica, filosófica, ou mesmo na vida comum. Entrementes, trazemos uma proposta nova que pode ser aplicada a inúmeros objetos de estudo, que é a possibilidade de aproximar as ideias de ‘conceito’ e de ‘acorde’ – esta última inspirada na música e em outras esferas de saberes e práticas que também se valem da noção de acorde – de maneira a pensar os mais diversos objetos como ‘acordes conceituais’. Na segunda parte deste artigo, tão importante como a proposição gerada nesta primeira parte, propomos aplicar esta proposta ao estudo do conceito de Cristianismo. A partir deste exemplo, queremos sugerir que a perspectiva dos acordes conceituais pode ser aplicada a diversos campos de estudo. O estudo do conceito de Cristianismo, por exemplo, poderia se valer deste recurso, de modo que o artigo também se propõe a ser um convite para que outros pesquisadores aprimorem esta elaboração conceitual, que aqui apenas iniciamos a modo exemplificativo. Para iniciar a exposição desta proposta mais geral de tratamento acórdico dos conceitos, gostaria de partir de uma definição de conceito, por nós mesmos elaborada: 

Um conceito é uma representação complexa, elaborada e abstrata da realidade percebida – habitualmente evocada através de uma simples expressão verbal, imagem ou fórmula – e capaz de funcionar como uma unidade de conhecimento e de comunicação (BARROS, 2021, p.36).1 

Com a definição acima, relacionada ao próprio conceito de ‘conceito’, quis evocar sinteticamente algumas das características essenciais de todos os conceitos, sejam quais eles forem e a que áreas de aplicação eles possam se referir. O primeiro aspecto que vale a pena considerar é que o conceito não é a própria realidade (e nem mesmo algo real, a não ser que tenhamos como proposta filosófica a ‘teoria das ideias’ de Platão). Entretanto, se um conceito não é a realidade, ele pode ser definido como uma tentativa de representação da realidade em seus aspectos essenciais. Na definição acima, postulo que o conceito é uma representação da ‘realidade percebida’ – isto é, da realidade que temos diante de nós, conforme podemos apreendê-la através de nossos sentidos ou instrumentos científicos. Estes últimos, oferecem uma ampliação potencializada de nossos sentidos, ou até a possibilidade de ultrapassálos (se um telescópio amplia extraordinariamente a visão à distância, um aparelho de raios-x permite enxergar através das coisas). Quis ressaltar com a definição acima que os conceitos talvez não se refiram propriamente à realidade como ela é, mas que pelo menos buscam se referir à ‘realidade percebida’. Entrementes, poderia ter estendido este traço também às ‘realidades imaginadas’, pois um autor de ficção pode perfeitamente criar um mundo com novas regras e com possibilidades imaginárias, e também precisará criar novos conceitos que comuniquem algo desta realidade aos seus leitores. 

Essa representação da ‘realidade percebida’ (ou imaginada) é ‘complexa, elaborada e abstrata’. Comecemos por este último aspecto. Se alguém me perguntar o que é um lápis, posso tentar me comunicar com o meu interlocutor mostrando um lápis (um exemplo concreto de um dos muitos objetos que podem ser entendidos como ‘lápis’). Mas este não é o caminho da conceituação. O conceito permite explicar o que é um lápis sem ter um lápis para dar como exemplo. “Abstrair” é nos livramos de todos os aspectos não essenciais deste objeto, uma vez que queremos situá-lo em uma coleção mais ampla de objetos similares, para preservar apenas os aspectos que essenciais, úteis ou funcionais. Mais do que mostrar concretamente um lápis específico apontando-o com o dedo, o conceito de lápis permite mostrar com maior precisão o que todos os lápis têm em comum, pois se eu mostrar ao meu interlocutor um lápis verde (supondo que este interlocutor não saiba mesmo o que é um lápis), ele poderá imaginar que a cor ‘verde’ configura um atributo comum a todos os lápis. No entanto, posso expressar o conceito de lápis verbalmente ressaltando as características que todos os lápis teriam em comum. Posso definir lápis como um objeto manuseável que serve para escrever, o qual é constituído de um longo cilindro de madeira que envolve um fino tubo de grafite que, quando “apontado” corretamente, produz rastros de grafite no papel. Mesmo que eu tenha pensado em um lápis verde como motivação inicial para elaborar esta definição conceitual, sei que esta ou aquela cor ‘verde’ não faz parte dos atributos necessários de um lápis. Já o aspecto cilíndrico alongado, ou a função de escrever sobre o papel, sim. As que conformam a definição de um conceito são o que, em filosofia, chamamos de ‘compreensão’ (ou ‘intensão’) de um conceito. 

A definição proposta sobre o conceito de lápis mostra que deve haver certa complexidade na elaboração de um conceito. Não se trata apenas de um objeto utilizado para escrever – função que também poderia ser desempenhada por uma caneta – mas sim de um objeto que deixa no papel marcas de grafite, e não de tinta. A forma cilíndrica alongada – atributo também compartilhado por lápis e canetas – é um aspecto importante; e o material do qual o lápis é constituído: madeira, e não metal. Por mais simples que seja um objeto, um conceito elabora certo nível de complexidade, pois quem conceitua não quer deixar de fora características essenciais que fazem parte do objeto a ser conceituado. Também não se quer acrescentar características que não sejam essenciais, pois se acrescentarmos indevidamente a cor verde já não caberão no universo de aplicação deste conceito (sua ‘extensão’) todos os lápis possíveis. O conceito, portanto, busca precisão. Seu primeiro papel é funcionar como uma eficiente ‘unidade de conhecimento’ (através do conceito de lápis podemos entender o que todos os lápis têm em comum, e ainda uma série de aspectos interligados, como a forma, matéria, função, e os efeitos previsíveis de todos os lápis ao serem aplicados a esta função). Ao lado disso, o conceito é também uma ‘unidade de comunicação’. Porque temos o conceito de lápis, podemos nos comunicar com precisão a respeito deste objeto. 

Todo conceito é constituído integradamente pelo seu ‘termo’ – a sua parte “visível”, que pode ser uma expressão verbal, uma fórmula, ou uma imagem dotada de certas características – e pela ‘definição’ do conceito, que pode ser convocada a qualquer momento no processo comunicativo ou reflexivo. A chamada ‘compreensão’ de um conceito – conforme o termo técnico utilizado na filosofia (ABBAGNANO, 2014, p.274)2 – relaciona-se a esta definição que podemos evocar a cada instante ou trazer para discussão sempre que quisermos. Quando pronuncio o termo “densidade demográfica”, isso pode bastar para as pessoas familiarizadas com este conceito. Até aqui, pronunciamos apenas o ‘termo’ deste conceito. Pode ser, entretanto, que alguém requeira uma explicação sobre o sentido mais preciso desta expressão verbal, e neste caso precisaremos convocar a ‘compreensão’ do conceito esclarecendo as notas (os elementos ou itens) que dela fazem parte. No caso de “densidade demográfica”, trata-se de um conceito bastante simples, que pode ser definido como a relação entre o quantitativo populacional e o espaço que essa população ocupa. 

Podemos dizer que a compreensão do conceito de “densidade demográfica” envolve duas ou três notas – a população, o espaço que ela ocupa, e certa relação entre as duas primeiras notas, a qual se reflete nesta fórmula matemática que obtém o índice demográfico a partir da divisão da população total pela área total da região considerada. Como muitos outros conceitos, a densidade demográfica é um conceito transversal, que se aplica a muitas situações; afinal, podemos utilizar este conceito para adquirir um maior entendimento sobre como se distribuem as populações no mundo (comparando as densidades demográficas dos vários países, umas com as outras), no interior de um mesmo país (calculando a densidade demográfica em regiões ou cidades deste país), ou no interior de cidades (dirigindo o olhar para os bairros de uma cidade). 

O campo da aplicabilidade de um conceito é a sua ‘extensão’. Isto fica ainda mais claro em conceitos que tem por finalidade agrupar certo conjunto de fenômenos, objetos ou possibilidades. Podemos entender como conceitos agrupadores aqueles que servem para classificar ou apreender as características de objetos ou fenômenos que têm muito em comum, e que, portanto, podem ser situados em um mesmo grupo. Por exemplo, o conceito de “planeta” abriga todos os objetos celestes que possuem determinadas características – tais como (1) o fato de orbitar em torno de uma estrela que lhe transmite luz e energia (já que o próprio planeta não pode, ele mesmo, produzir energia a partir de processos internos de fusão nuclear, como ocorre com as estrelas); (2) uma massa suficientemente grande para lhe assegurar, através da ação contínua de sua própria gravidade, a moldagem de uma forma quase esférica; e (3) a dominância de sua região orbital perante corpos celestes estranhos ao seu sistema. Quando formulamos esta definição – ou seja, quando enunciamos as três notas acima como constituintes necessárias e suficientes para a ‘compreensão’ do conceito de “planeta” –, abre-se certo campo de aplicação para este conceito. Todos os objetos celestes que satisfizerem esta combinação de condições ao mesmo tempo seriam planetas. Esta, enfim, seria a ‘extensão’ do conceito de planeta. 

O conceito que examinaremos neste artigo, para efeito de exemplificação e estudo do fato de que os conceitos também podem ser expressos através da ideia de acorde-conceitual, será o do Cristianismo. Antes, porém, introduziremos a proposta inovadora deste artigo, que é a de pensar os conceitos a partir da ideia musical do “acorde”. 

Acorde

Um “acorde”, na teoria e prática musical, pode ser entendido como um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita. Podemos dizer que o acorde é um som constituído de outros sons, cada um dos quais integra a sua identidade sonora (a estrutura total do acorde), mas sem que sejam destruídas as identidades individuais de cada som que entra na composição do acorde. Na Música, estes sons que possuem identidade individual, e que são os elementos básicos utilizados para a composição de melodias (e na estruturação harmônica dos acordes), são chamados de ‘notas musicais’. Já com relação a este som compósito que é o ‘acorde’, deve-se notar ainda que não são apenas as notas constituintes do acorde aquilo que configura a sua identidade sonora, mas também as relações de cada uma destas notas com cada um das outras e com a totalidade que as integra. Um som interferido por outro, e mediado por um terceiro, transforma-se em um fenômeno sonoro novo, de modo que um acorde corresponde não apenas a uma combinação de sons, mas também a uma combinação de relações de sons que interagem reciprocamente. 

Quadro 01. Representação de um acorde na pauta musical3.

Os músicos, desde fins da Idade Média, desenvolveram um recurso interessante para representar graficamente os sons musicais: o uso de partituras baseadas em pautas musicais que procuram transmitir informações sobre os sons de uma composição musical, situando cada nota no tempo, de modo a mostrar a sucessão de sons que está ocorrendo, e também mostrando aquelas notas que soam ao mesmo tempo, como ocorre com os acordes. Na imagem acima, representei um acorde em uma tradicional pauta de cinco linhas. Todas as notas soam juntas no mesmo momento, e por isso são agrupadas de maneira superposta em uma única vertical (ou seja, elas ocupam simultaneamente o mesmo espaço-tempo sonoro)4

Não obstante a utilidade trazida pela possibilidade de representar graficamente a música, devemos sempre compreender que o acorde é um fenômeno sonoro, independente da representação que lhe atribuamos em uma folha de papel. A representação de acordes na pauta musical, e de melodias formadas por notas musicais em sucessão, foi apenas um recurso que os músicos inventaram para comunicar, uns aos outros, a música que deve ser executada. No caso dos acordes, entrementes, deve-se entender que, na realidade musical efetiva, as notas não se manifestam uma por cima da outra, como a figura sugere, mas sim uma “por dentro” da outra. Nos acordes, portanto, ocorre efetivamente uma interpenetração das notas que o constituem. Além disso, quando nos pomos à escuta de acordes, é oportuno lembrar que podemos apreender tanto a totalidade das notas – captando o efeito sonoro que o agrupamento provoca – como também, se afinarmos o ouvido em certas direções, podemos ainda continuar a identificar as notas individuais que fazem parte do acorde. Podemos mesmo fazer o esforço auditivo de tentar captar, no interior de um acorde, apenas o ‘intervalo’ formado por duas notas que interagem uma sobre a outra. ‘Intervalo’, a propósito, é o nome atribuído, em música, à relação entre duas ‘notas’. Um ‘dó’ em combinação com um ‘mi’ produz certa sensação nos ouvidos humanos; um ‘dó’ associado ao ‘mi bemol’ já provoca outra sensação, completamente diferente, pois da relação entre estas duas notas surgem outro intervalo. Para o que nos interessa, enfim, um acorde é um som formado por vários sons que soam simultaneamente, uns interferindo nos outros e todos terminando por produzir uma coisa nova. Os acordes, enfim, são combinações integradas de notas e de intervalos5.

É oportuno mencionar um aspecto correlato ao dos acordes. Se os acordes são combinações simultâneas de notas musicais, a Música também lida com outro fenômeno de simultaneidade igualmente importante, que é a “polifonia”. A polifonia é uma simultaneidade de melodias, que pode ser exemplificada com a música barroca de Johan Sebastian Bach, ou com conjuntos de Jazz ou de chorinhos nos quais frequentemente são encaminhadas várias melodias ao mesmo tempo, todas adquirindo o seu próprio protagonismo. O ensaísta marxista Mikhail Bakhtin propôs a apropriação do conceito de “polifonia” pela lingüística e demais ciências humanas, de modo a favorecer o entendimento pleno de obras literárias modernas onde autores como Dostoievsky rompem com a tradicional narrativa unidirecional e passam a integrar em sua escrita várias vozes narrativas relacionadas aos diversos personagens de um romance, como se este fosse um entremeado polifônico (BAKHTIN, 2008)6. Hoje, a noção de polifonia é muito difundida nas ciências humanas para compreender textos que são formados por muitos textos e vozes enunciadoras, de modo que a assimilação do conceito musical de polifonia constituiu um passo decisivo para a ideia de que a interdisciplinaridade com a perspectiva musical pode trazer contribuições importantes para os diversos campos de saber. A proposta de também assimilar mais efetivamente o conceito de acorde, que desenvolvemos neste artigo, insere-se nesta esteira de contribuições que vê na Música um rico campo de perspectivas capaz de renovar os diversos saberes.

Destacamos, por fim, que, se na teoria e na prática musical, o acorde pode ser de fato entendido como um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita, deve-se lembrar, adicionalmente, que a noção de acorde não aparece exclusivamente na música, embora aí tenha a sua origem. O conceito de acorde também fundamenta campos diversificados da criação humana, o que já revela mais uma vez o imenso potencial interdisciplinar deste conceito. A ideia e a noção de acorde aparecem, por exemplo, na Enologia – ciência e arte que estuda todos os aspectos envolvidos na produção e consumo do vinho. Um bom vinho é formado por notas que se harmonizam para formar o seu acorde de sabores. De igual maneira, a noção de acorde também está na base da arte da elaboração de perfumes, e, neste caso, o acorde passa a corresponder a uma mistura de aromas que, combinados, equivalem à informação total captada pelo olfato humano. Deste modo, o acorde olfativo também é constituído de notas7. Além disso, existem acordes cromáticos, como bem demonstraram os pintores impressionistas e pontilhistas, e também a arte da produção de alimentos utiliza o conceito com vistas a representar as diferentes combinações de ingredientes.

A apropriação do conceito de acorde através de uma atitude interdisciplinar proporcionou a cada um destes campos a introdução de toda uma nova perspectiva e de um novo vocabulário que inclui, além do conceito de acorde, a ideia de harmonia, notas, consonância, e outras palavras que primordialmente eram encontradas apenas na prática musical. Na Música – ou mais especificamente no sistema harmônico que se desenvolveu na longa história da música nas culturas ocidentais – o acorde costuma ser constituído por uma suposição de intervalos de terças que se estabelecem, do grave para o agudo, a partir da “nota fundamental”. Como já dissemos, para retomar a figura atrás trazida pela pauta, cada um daqueles pequenos círculos que estão empilhados um sobre o outro corresponde a um som (uma ‘nota’) que poderia ter sido perfeitamente emitido de maneira isolada. No acorde, contudo, eles soam juntos: estão amarrados em um único momento, e por isso implicam um no outro formando uma identidade sonora nova. Uma peculiaridade deste fenômeno sonoro é que, quando escutamos um acorde, podemos prestar atenção no todo (na totalidade acórdica), em cada nota específica que o constitui, e em cada relação singular que se estabelece entre duas ou três notas no interior do acorde (ou seja, podemos escutar setorialmente as relações entre as notas e grupos de notas no interior do acorde). O acorde é um portal de percepções integradas (BARROS, 2017, p.122). É esta propriedade de apresentar o todo de uma só vez, mas também de preservar a possibilidade de percepção de que este todo é formado por unidades menores – as suas ‘notas’ e ‘intervalos’ (relações entre notas) – que encontramos como ponto de analogia entre os acordes e os conceitos. Para seguir adiante, vamos retomar a definição de conceito proposta ao início deste artigo.

Um conceito é uma representação complexa, elaborada e abstrata da realidade percebida – habitualmente evocada através de uma simples expressão verbal, imagem ou fórmula – e capaz de funcionar como uma unidade de conhecimento e de comunicação (BARROS, 2021, p.36).

A esta definição de conceito, que leva em consideração a sua natureza e funções – enfatizando alguns dos aspectos essenciais que caracterizam os conceitos, como a complexidade, o seu caráter abstrato ou a sua propriedade representacional, e também os papéis básicos dos conceitos na Ciência, ou seja, a possibilidade de que os conceitos funcionem como ‘unidades de conhecimento’ e ‘unidades de comunicação’ – vamos superpor, neste momento, outra definição. Nesta que complementa a anterior, levaremos em consideração a estrutura e a forma que são características de todos os conceitos

Um conceito é uma estrutura harmônica de sentidos cuja ‘compreensão’ é constituída por diversas ‘notas’ que interagem umas sobre as outras (e todas sobre o todo) (BARROS, 2021, p.158)

A primeira definição que propusemos para a ideia ‘conceito’ procurava responder a três ordens de perguntas: qual a natureza dos conceitos, quais os seus veículos mais gerais de propagação, e para que servem os conceitos? Saberemos, pela primeira definição, que os conceitos são representações da realidade percebida (pode-se acrescentar, como alternativa, da “realidade imaginada”). Mas estas representações não podem ser simplórias – precisam ser “representações complexas”. Esta complexidade pode ser apresentada de maneira simples em uma definição que deve ser a mais sintética possível, mas que de modo algum pode ser apresentada de maneira “simplória” (deixando de expor, por exemplo, ‘notas’ de um conceito que seriam essenciais para defini-lo). Também passamos a saber que os conceitos podem ser veiculados em diferentes tipos de linguagens – principalmente a linguagem verbal, a visual, e a matemática. Sobretudo, começamos a compreender, através desta definição, as funções essenciais dos conceitos: eles constituem simultaneamente “unidades de conhecimento” e “unidades de comunicação”.

A segunda definição, depois exposta, complementa esta primeira, pois nos fala da ‘forma’ e da ‘estrutura’ dos conceitos. Sabemos agora que os conceitos podem ser considerados como “uma estrutura harmônica de sentidos”, e que são constituídos por tantas notas quanto forem necessárias – na verdade, somente as notas necessárias, pois as notas obsoletas ou desajustadas devem ser limpadas da enunciação da ‘compreensão’ do conceito, da mesma forma que um músico exclui do seu acorde as notas que são desnecessárias ou que não contribuem para o efeito estético que ele deseja atingir com o seu acorde. O principal, além disso, é compreender que estas notas que constituem a ‘compreensão’ de um conceito não formam um mero amontoado de ‘notas’, mas sim uma totalidade harmônica dentro da qual as notas “interagem umas sobre as outras” (“e todas sobre o todo”). Enfim, um conceito, consoante a segunda definição acima proposta, é literalmente um acorde. Os conceitos continuam funcionando como “unidade de conhecimento” e “unidade de comunicação”. Mas a segunda definição, ao aproximar a ideia de conceito da ideia de acorde, deixa entrever que os conceitos também se inserem em uma música mais ampla, em uma harmonia conceitual que também pode integrá-los em uma teoria formada pela sua articulação com outros conceitos. Não proponho que a segunda definição substitua a primeira, que é mais técnica, mas apenas que pensemos nela de modo a complementar o que podemos conhecer e sentir acerca dos conceitos. No princípio deste artigo, vimos que a ‘compreensão’ de um conceito é constituída pelos elementos que devem ser evocados – juntos e interagindo uns sobre os outros – para que possamos atingir a essência necessária de um conceito: aquilo que precisa ser explicitado necessariamente na definição de um conceito, se quisermos efetivamente dar a perceber todos os seus aspectos necessários e suficientes. Estes elementos que constituem a compreensão de um conceito já são denominados pela filosofia de ‘notas’ do conceito. Podemos aproximar estas ‘notas’ que fazem parte da compreensão de cada conceito das notas que constituem os diversos acordes musicais (ou olfativos, culinários, cromáticos, e de quaisquer outros tipos que já existam). Neste sentido, postularemos que podemos tratar os conceitos – seja aqueles utilizados na filosofia como em outras áreas como a História, Antropologia, Teologia, Física, Biologia – como “acordes conceituais”. Aqui entramos no campo de aplicação prática e de demonstração da viabilidade deste modo de ver as coisas. Examinaremos, na segunda parte deste artigo, o acorde conceitual do Cristianismo.

O acorde conceitual do Cristianismo 

A proposta de construção de um acorde conceitual para a apreensão da ideia de Cristianismo está sintetizada visualmente no Quadro 2. Queremos alertar que nossa proposta não é fazer um balanço crítico ou um rastreamento sistemático das diversas propostas de definição de Cristianismo, e tampouco um estudo de profundidade sobre o tema, de modo que o artigo convida a que o procedimento aqui empregado seja mais tarde utilizado por autores especializados no tema, os quais poderão acrescentar muitos elementos, e com mais propriedade, ao acorde conceitual que aqui sugerimos. Nossa proposta neste artigo é principalmente a de mostrar que os conceitos podem ser trabalhados como acordes, ao passo em que a aplicação deste procedimento ao esclarecimento sobre um possível acorde conceitual relacionado ao Cristianismo surge, neste momento, como uma exemplificação. O esquema visual abaixo (Quadro 2) sintetiza visualmente a proposta8.

Quadro 2. A acorde conceitual do Cristianismo

Quando pensamos no conceito de Cristianismo, podemos defini-lo, de saída, como uma religião, ou como uma perspectiva religiosa que se desdobra em distintas proposições religiosas; também podemos pensar no Cristianismo como um ‘sistema religioso’. Para facilitar o exemplo, desconsideraremos as várias vertentes do cristianismo – como o catolicismo, as igrejas reformadas tradicionais, os neopentecostalismos e outros tantos desdobramentos – e buscaremos o cristianismo mínimo. Vamos considerar, em nossa busca de um acorde conceitual adequado, as notas cujas presenças devem ser assinaladas nesta perspectiva religiosa para que possamos compreender, em todos os aspectos necessários e suficientes, um conceito adequado para o “cristianismo”.

A nota-base será a informação de que se trata de uma ‘religião’ (ou poderíamos nos referir, alternativamente, a um ‘sistema religioso’). Em seguida, já podemos encontrar outra nota: a que situa o Cristianismo entre as religiões ‘monoteístas’, ao lado das duas outras grandes perspectivas religiosas monoteístas que são o Islamismo e o Judaísmo. Na época de sua fundação, no Antigo Império Romano, a emergência da nota ‘monoteísmo’ mostrou-se particularmente importante porque demarcava o confronto desta nova perspectiva religiosa contra o ambiente politeísta francamente predominante no mundo romano. De outra parte, para além desta segunda nota, será preciso avançar na identificação de outras notas que possam caracterizar a compreensão do conceito de Cristianismo, pois até aqui temos exatamente as mesmas notas que também constituem o Islamismo e Judaísmo9.

Antes de prosseguir, todavia, gostaria de registrar alguns comentários mais esclarecedores sobre esta segunda nota do acorde. Em qualquer religião cujo acorde mínimo desejemos estabelecer, mostra-se particularmente importante o delineamento de uma nota que seja capaz de situar e definir a relação singular e específica desta religião com o mundo sobrenatural ou sobre-humano. Afinal, se evocarmos uma de suas definições possíveis, uma religião pode ser compreendida como um “sistema de crenças na existência de algum poder superior ou ordem sobrenatural capaz de interferir na vida humana”. Como é configurado este poder – se a partir de um único deus, de muitos deuses, de forças da natureza, de dois princípios que se defrontam em uma eterna oposição, ou de uma multidão de seres coletivos que animam os componentes naturais do universo – esta já é outra questão, ou, talvez, parte da resposta que se dá à indagação sobre o tipo de ordem sobrenatural que regeria o mundo manifestado, conforme cada religião específica10.

Vamos convencionar que a segunda nota de um acorde religioso será sempre o lugar que define o tipo de ordem sobrenatural que é reconhecida pela religião examinada. É quase natural que seja assim, pois depois de definir certo sistema de crenças como uma “religião” – em vista da sua aceitação implícita ou explícita de uma ordem supranatural que interage com o mundo humano – tendemos imediatamente a indagar que espécie de ordem seria esta que é aceita pelo sistema religioso cuja compreensão conceitual estamos tentando delinear. Ao tentar definir o Cristianismo, o Islamismo ou o Judaísmo, somos logo levados a dizer, de saída, que são “religiões monoteístas”, antes de quaisquer outros aspectos. Se falamos das mitologias egípcia, nórdica ou grego-romana, tendemos logo a relacioná-las a sistemas religiosos “politeístas”. Deste modo, o tipo de ordem sobrenatural que rege o sistema religioso costuma ser pensado como a segunda coisa a ser imediatamente enunciada quando estamos tratando de desfiar a ‘compreensão’ do conceito pertinente a um determinado sistema de crenças. Adotemos por isso esta convenção: o tipo de ordem sobrenatural envolvida no sistema de crenças será sempre a segunda nota relacionada a um acorde religioso.

Esse lugar – este lócus ou gene que define o tipo de ordem em que a religião em análise se baseia – pode ser ocupado por um número mais ou menos restrito de diferentes notas ou possibilidades. Habitualmente podemos enxergar pelo menos seis notas alternativas que ajudam a organizar a vasta gama de diferentes religiões e formas religiosas ou proto-religiosas. No ‘Quadro 3’ expus seis tipos principais, ou seis notas relacionadas às formas de conceber a realidade sobrenatural que interage com o mundo natural e humano: Monoteísmo, Dualismo, Politeísmo, Animismo, Panteísmo e Não-teísmo (ordens regidas não mais por deuses, mas ainda assim geridas por princípios supranaturais ou leis que precisam ser conhecidas para conduzir os seres humanos a uma vida iluminada). Estes tipos ou notas puras, na verdade, admitem combinações possíveis umas com as outras, conforme também veremos, de maneira que, em determinada religião, a nota animista pode temperar o modo politeísta, ou podem se dar outras combinações como esta, assim como assistimos combinações similares entre concepções monoteístas e derivações de formas religiosas derivadas do paganismo (ATHANASSIADI & FREDE, 1989; MECONI, 2000 e TERRIN, 2003).

Quadro 3: Exemplos de diferentes religiões,  conforme o tipo de ordem sobrenatural que as anima

A nota ‘monoteísmo’ ressoa em um acorde religioso no momento em que se proclama solenemente que existe tão somente um único Deus – um único poder criador e mantenedor das ordens natural e sobrenatural – ainda que se possa manifestar de muitas maneiras. O Judaísmo, Islamismo e Cristianismo são os exemplos clássicos, mas o Espiritismo Kardecista pode se colocar, de alguma maneira, como uma variação do monoteísmo cristão, assim como uma diversidade de religiões esotéricas ligadas a uma ou outra das três grandes religiões monoteístas11. Enquanto isso, o ‘dualismo’ ampara-se na convicção de que existem no universo duas forças de igual potência em confronto, ou mesmo em luta, a exemplo da clássica oposição entre o Bem e o Mal, ou de outras oposições como aquela que contrapõe a espiritualidade e a matéria. É importante frisar que, no dualismo, o Mal – ou a força opositora – é um poder autônomo e independente, de mesma magnitude em relação ao poder que por vezes é euforizado como o lado bom da ordem sobrenatural. Ou seja, o Mal – ou o “lado escuro da força”, se quisermos evocar o dualismo proposto por uma conhecida série de filmes de ficção científica12 – não é simplesmente concedido por um Deus criador que deseja utilizá-lo como contrapeso, campo de testes ou âmbito de oportunidades que precisa ser oferecido aos seres humanos para a prática do seu livre arbítrio, gerando conseqüências que definirão o seu destino depois da morte. Nas doutrinas ou religiões dualistas, o Mal não é subordinado a um Deus que se coloca como o único ser supremo.

O Zoroastrismo – a primeira religião dualista a surgir na história, em algum lugar da Pérsia entre 1750 e 1000 a.C. – concebia o universo como um embate cósmico entre a divindade do Bem (Aúra-Masda) e a divindade do Mal (Arimã) (BOYCE, 2002 e STEWART, 2016)13. Posteriormente, da mesma Pérsia que assistiu ao surgimento dualista do Zoroastrismo, viria o Maniqueísmo, já uma religião que surge no seio do gnosticismo cristão e que se propaga a partir do século III e.C. 

A nota que o Maniqueísmo acrescenta ao dualismo é a da oposição entre a alma – criada pelo deus bom – e o corpo, criado pelo demiurgo mal (GNOLI, 1987, p.165). Mais tarde, o Catarismo – uma heresia ou dissidência cristã que mais adiante comentaremos – iria retomar este princípio maniqueísta de oposição radical entre espírito e matéria e agregar elementos dualistas ao Cristianismo monoteísta, mostrando que estas combinações são perfeitamente possíveis.

O ‘politeísmo’, que precede historicamente tanto o monoteísmo como o dualismo, é bem conhecido. A ordem supranatural é habitada por deuses diversos que interagem com o mundo humano. Conforme pode ser visto no ‘Quadro 3’, apenas exemplificativo, são bons exemplos das perspectivas politeístas as antigas mitologias greco-romana, egípcia, nórdica, assim como o sistema de orixás previsto por cultos afro-brasileiros como o Candomblé e a Umbanda, ou ainda o Bramanismo, na Índia – o qual prevê uma ordem divina comandada por uma tríade suprema (Brahma, Vishnu e Shiva) e que se desdobra em mais 33 divindades. Um detalhe importante é que as religiões politeístas, ao proporem um panteão formado por deuses diversos, não necessariamente rejeitam a crença em um deus supremo, criador do universo. Deste modo, uma perspectiva politeísta pode tocar o monoteísmo em um plano mais primordial. Olodumaré, em alguns cultos afro-brasileiros, é o criador tanto dos orixás como dos homens. Mitologias diversas têm os seus deuses supremos, ou uma ordem primordial que rege o próprio destino dos deuses. Por outro lado, o politeísmo pode admitir forças anímicas nas suas fileiras de agentes sobrenaturais – a exemplo da mitologia greco-romana que, dominada pelos deuses, também é habitada por ninfas e faunos.

No pólo oposto ao do politeísmo, já radicalizando a perspectiva monoteísta que propõe um único Deus criador para todo o universo, o ‘panteísmo’ apoia-se na ideia de que Deus não apenas criou o universo, mas confunde-se com o próprio universo ou com a Natureza14. Enquanto isso, o ‘animismo’ – primeiro modelo religioso a surgir na história humana – tampouco reconhece propriamente uma separação entre a ordem humana e o mundo físico, mas faz isso de outra maneira: cada elemento ou forma natural seria animado por uma força autônoma, de modo que há um espírito que se acha ligado a cada planta, a cada fonte, presente nas pedras, nos ventos, e em tudo o que constitui a Natureza. O universo animista, assim, vê-se habitado por fadas, duendes, salamandras, mas também por sacis, boitatás e curupiras – para lembrarmos agora os mitos presentes em diversos dos povos indígenas brasileiros. O totemismo – no qual se apresenta a crença na existência de parentesco ou afinidade mística entre um animal e um grupo humano (uma tribo, clã, ou linhagem) – é de alguma maneira mais um diálogo possível com o universo das religiões animistas. Enquanto isso, ao invés priorizar o culto às forças da natureza em sua ampla diversidade, o próprio culto mais direto à Mãe Natureza – a grande Deusa que está no centro da proposta religiosa estabelecida pelo druidismo – faz-nos retomar, de alguma maneira, a nota ‘monoteísmo’, mas agora destronando o aspecto masculino que é assumido pelas divindades típicas dos demais sistemas religiosos politeístas15. Por fim, o Xintoísmo japonês nos apresenta uma articulação entre politeísmo e animismo, dada a análoga centralidade que dedica ao culto à natureza.

O quadro ficaria incompleto se não mencionássemos as religiões ‘não-teístas’. Elas não se amparam na ideia de um deus único, ou tampouco de muitos deuses, mas orientam-se por uma ordem superior regida por certos princípios que precisariam ser conhecidos por aqueles que almejam a Iluminação. O Budismo é o exemplo clássico da religião sem Deus. Ampara-se na ideia de renascimentos em existências subseqüentes – portanto, em uma ordem que transcende cada vida humana – e em princípios como o Carma (lei da causa e efeito) (POWERS, 2007)16. Este último princípio é uma nota também compartilhada com o Jainismo, outra religião que prescinde da figura de um Deus criador para explicar a sua cosmologia. Há, por fim, aquelas perspectivas religiosas que praticamente se confundem com filosofias, como o Pitagorismo na Grécia antiga ou o confucionismo na China até hoje, ou o próprio Taoísmo.

Encerramos aqui esta digressão parcial, por meio da qual quisemos apenas mostrar que certo número de alternativas pode ocupar o lugar da segunda nota de um acorde religioso – configurando sempre um adjetivo que pode se colar à nota ‘religião’ quando precisamos definir experiências as mais diversas como os monoteísmos, dualismos, politeísmos, animismos, panteísmos e religiões não-teístas. Em alguns casos, precisaríamos nos referir a certas religiões com um adjetivo duplo, pois as combinações entre as seis alternativas apresentadas no ‘Quadro 3’ são perfeitamente possíveis. Posto isto, poderemos voltar ao ‘Quadro 2’ para retomar a elaboração de uma ‘compreensão’ aceitável para o acorde conceitual de Cristianismo.

Seria interessante, antes de mais nada, esclarecer mais claramente qual é o baixo e qual é a fundamental do acorde proposto. Vamos considerar que o baixo é a nota que começa a enunciar a compreensão do acorde, mas a fundamental é aquela nota que realmente o define. 

Acredito que, neste caso, possamos distinguir a nota mais grave – o baixo do acorde, que situa o Cristianismo como ‘religião’ – da nota fundamental do acorde: aquela que se espalha por todas as outras e que gera a estrutura do acorde, por vezes se inscrevendo no próprio nome do fenômeno analisado. A ‘figura de Cristo’ não será precisamente a ‘nota fundamental’ deste acorde? Em torno dela se constrói todo o resto. No esquema visual que organizamos para representar o acorde conceitual de ‘Cristianismo’, a ‘figura de Cristo’ foi situada na altura da quinta nota. Isso foi feito para situá-la na proximidade de outras notas que, com ela, conformam intervalos importantes.

Por um lado, aproximamos a ‘figura de Cristo’ de outra nota importante para a configuração do Cristianismo mínimo: a da ‘Santíssima Trindade’ – aspecto estudado por diversos autores (LETHAM, 2004; MCCALL, 2009 e 2010; REA, 2009). Além disso, na disposição visual escolhida, a ‘figura de Cristo’ foi precedida por outras duas notas que com ela dialogam intimamente: o ‘salvacionismo’ e o ‘messianismo’. De fato, Cristo é simultaneamente o ‘Messias’ e o ‘Salvador’. Estes dois atributos, ademais, o situam em uma história de longo termo, prevista nas escrituras do Antigo Testamento e descrita nos Evangelhos do Novo testamento, de modo que a ‘historicidade’, situada mais acima, torna-se típica desta religião histórica e historicizante que é o Cristianismo –    na qual os seus acontecimentos fundadores se situam em um tempo concreto e especificado (ao contrário do que habitualmente ocorre nos mitos), assim como também o destino final da cosmologia proposta se situa no “fim da história” através do Juízo Final. Esta história linear que começa com a Criação do Mundo, é intermediada pela Redenção trazida por Jesus Cristo, e vem a se concluir com o Apocalipse e com o Juízo Final – uma história que se acha registrada em todos os seus momentos-chave nas Escrituras, à maneira de um grande documento histórico –    faz do Cristianismo uma religião carregada de historicidade. Não é por acaso que os historiadores, além de definirem o Cristianismo como uma “religião histórica” (ou historicizada), também costumam ressaltar a sua especial contribuição para a consolidação de um tempo linear que logo recairá no mesmo padrão de temporalização que fará com que a historiografia moderna contraste radicalmente com o tempo circular da historiografia antiga (KOSELLECK (2006, p.127)17.

Antes de prosseguir, quero lembrar que já mencionei que os conceitos podem ser expressos também visualmente, e não apenas verbalmente. Todavia, para que um símbolo possa ser compreendido como um conceito eficaz, é necessário que ele mostre em uma imagem todas as notas necessárias que fazem parte da ‘compreensão’ do conceito que se quer representar. No ‘Quadro 2’, expus ao lado direito dois símbolos visuais muito empregados para o Cristianismo, entre os tantos que têm sido estudados (DILASSER, 1999). Temos a figura do “peixe”, mais usada nos tempos antigos, e a figura da “cruz”, que se popularizou desde a Idade Média. Não obstante a sua utilidade simbólica, estas imagens não são conceituais. A cruz evoca de fato alguns elementos que dela fazem um símbolo bastante adequado para o Cristianismo, embora não possa ser considerada um bom símbolo conceitual, uma vez que muitas das notas importantes para a compreensão do conceito de Cristianismo ficam ausentes deste símbolo simples. Ao pensarmos na cruz como símbolo do Cristianismo, pode-se argumentar que este objeto simbólico evoca enfaticamente dois mundos – o mundo natural-humano, representado pela barra horizontal, e um mundo sobrenatural, representado pela barra vertical. Dois mundos que não apenas existem concomitantemente, mas que também se cruzam em um ponto. A presença deste ‘outro mundo’ – um mundo divino que se contrapõe e se superpõe ao mundo humano – é uma nota importante no acorde conceitual do Cristianismo, embora, para não o alongar muito em nossa representação visual, eu a tenha situado no feixe que parte dos ‘outros aspectos’, no topo do acorde registrado no lado esquerdo do ‘Quadro 2’.

Como a cruz também representa a crucificação de Jesus – um evento histórico, situado no tempo – o símbolo não deixa de criar uma ligação muito forte com a nota ‘historicidade’. Quando acrescentamos uma pequena escultura do Cristo crucificado à cruz, também materializamos no símbolo ‘cruz’ esta figura ao mesmo tempo histórica e a-histórica que é encarnada por Jesus Cristo. Aspectos bem conhecidos dos que estão familiarizados com a Paixão de Cristo – como o ‘sacrifício’ da crucificação e a ‘ressurreição’ – parecem se presentificar no símbolo, e também são evocados sentimentos cristãos típicos como a ‘culpa’ e a ‘fé’. Por outro lado, é claro, aqueles que porventura não conheçam em detalhe a história de Jesus, tal como ela é contada no Novo Testamento, não conseguirão antever na imagem da cruz e do crucifixo todo o seu potencial simbólico. Por isso, ao reunir alguns aspectos importantes daquilo que pretende representar, a cruz torna-se um bom símbolo para o Cristianismo, embora não esgote todos os elementos necessários e suficientes para definir esta religião, como já deveria fazer um acorde conceitual organizado de modo mais sistemático. Completar as informações trazidas por este símbolo, por isso mesmo, é imprescindível para que possamos compreender conceitualmente o Cristianismo, embora não esgote todos os elementos necessários e suficientes para definir esta religião, como já deveria fazer um acorde conceitual organizado de modo mais sistemático. Completar as informações trazidas por este símbolo, por isso mesmo, é imprescindível para que possamos compreender conceitualmente o Cristianismo. Uma nota particularmente importante para um acorde conceitual de Cristianismo é a que se refere às ‘escrituras’, aqui compreendidas como o extenso conjunto de textos que foram reunidos neste grande livro que ficou conhecido como Bíblia. Embora a Bíblia seja tratada religiosamente como um texto único, e seja habitualmente lida por muitos dos praticantes das religiões cristãs de maneira linear e por vezes acrítica – quase como se o texto viesse direto do mundo divino para as mãos dos fiéis que o tomam como base para uma orientação ética e como fonte de ensinamentos – tanto o Antigo como o Novo Testamento são constituídos por uma diversidade de textos produzidos por muitos autores, a maior parte deles não nomeados e desconhecidos, além de situados em épocas diversas. Neste sentido, deve-se observar que alguns dos textos bíblicos, notadamente os do Antigo Testamento, constituem entremeados de textos de muitos autores, o que faz do mega-texto bíblico – que também é uma importante fonte histórica, e não apenas um texto religioso – um fascinante texto polifônico’. Algumas das grandes narrativas que vieram a ser registradas de forma aparentemente contínua na Bíblia foram construídas recopiando ou apoiando-se em fontes diversas, escritas por autores distintos. Apenas para dar um exemplo, entre tantos que poderiam ser dados, a análise mais rigorosa dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, a Torah, revela autores – de modo geral entremeados no mesmo movimento narrativo – que escreveram em momentos bem afastados no tempo. Os estudiosos costumam identificar, para os textos constituintes do Pentateuco, pelo menos quatro autores distintos, que teriam vivido em espaço-tempos distanciados e que foram batizados pelos analistas dos textos bíblicos como “javista” (J), “eloísta” (E), “deutoronomista” (D) e “sacerdotal” (P), sem contar outras interpolações textuais menos recorrentes18. Além do fato de que a Bíblia constitui um mega-texto multifacetado – cuja riqueza politextual não poderá ser discutida aqui – do ponto de vista do acorde conceitual de Cristianismo ela conforma uma nota particularmente importante, pois a interação textual e intertextual com este livro está muito presente na vida diária daqueles que participam mais ativamente desta religião, ou das religiões e igrejas que podem ser agrupadas sob a cifra mais ampla do Cristianismo.

Uma nota que não pode deixar de figurar na compreensão do acorde é a ‘mediação de sacerdotes’. Em todas as suas vertentes, o Cristianismo é uma religião mediada, embora em suas práticas também inclua momentos íntimos de relação direta entre o devoto e o Criador. A ‘oração’, uma destas práticas de contacto não mediado, também foi exposta no acorde no item ‘algumas práticas’. Mas boa parte dos ritos –  incluindo os encontros nos quais os praticantes da religião exercem a sua sociabilidade – é mediada pelos padres ou bispos, conforme a variação cristã considerada. Casamentos, missas, batismos, sermões – toda uma sorte de rituais vai encontrar na figura dos sacerdotes uma mediação necessária para o cristão. Tanto é que, quando se rompe essa mediação, o grupamento de religiosos que o promove pode ser posto em xeque e ser categorizado como herético, e talvez precise se mover para uma dissidência de qualquer tipo. Na Idade Média católica, por exemplo, os cátaros recusaram-se a acatar diversos dos sacramentos típicos da Igreja dominante – tais como o casamento mediado pelo sacerdote e a Eucaristia, entre outros tantos. Com isso, e também por rejeitarem a mediação de padres ao apregoar uma relação mais direta com Deus, terminaram por ser brutalmente perseguidos como heréticos, sendo praticamente exterminados pela Cruzada Albigense (1209). Pagaram um preço alto por se tornarem dissonantes em relação ao acorde cristão principal de sua época. Percebe-se que a ‘mediação de sacerdotes’ pode ser postulada como uma nota decisiva no acorde conceitual do Cristianismo19.

Falando em Catolicismo, podemos acrescentar que esta modalidade de Cristianismo adiciona as suas próprias notas ao acorde mais geral – o que, de resto, ocorre também com todas as propostas religiosas surgidas do acorde mínimo do Cristianismo, inclusive as heresias e as igrejas reformadas de todos os tipos. No caso da hierarquia católica, o aspecto que mais se sobressai é a estrutura eclesial global construída em forma piramidal até culminar com a figura do Papa, a quem não só é atribuído o comando geral da Igreja Católica, mas também conferido o atributo da ‘infabilidade papal’. Através da figura do Papa, o Catolicismo também acrescenta novos textos à prática cristã, a exemplo das bulas papais. Atuante desde fins do Império Romano no mundo político, o Catolicismo ensejou durante grandes períodos da história uma aliança entre o seu próprio projeto universalizante e o poder temporal dos reis e imperadores. Apresentou-se, desta forma, como uma vertente religiosa que soube se adaptar às mudanças de muitas maneiras.

É preciso ressaltar, a propósito, mais duas notas cruciais do acorde geral do Cristianismo. Por economia de espaço visual, situei-as no mesmo ponto: o ‘universalismo’ e o ‘missionarismo’. Podemos entender esta nota como um ‘universalismo missionarista’, ou como um ‘missionarismo universalista’. A exemplo do Islamismo, o Cristianismo tem apresentado historicamente o projeto universalizante de se mostrar como a única religião verdadeiramente legítima, destinada a se espraiar vitoriosamente por toda a humanidade. O universalismo radical de uma religião pode desencadear eventualmente duas estratégias de expansão com vistas a conquistar todo o interespaço religioso: a conversão pela força, ou a conversão pela persuasão – sendo esta última perspectiva a do missionarismo. Ao lado disso, o projeto universalizante do Cristianismo – particularmente na sua vertente católica – adaptou-se com especial flexibilidade, conforme já foi ressaltado, a outros projetos políticos universalizantes, tal como os projetos expansionistas dos grandes impérios cristãos da Antiguidade e da Idade Média, a começar pelo próprio Império Romano na sua última fase20.

Se o universalismo cristão traz implicações evidentes para a emergência de um caráter missionarista mediante o qual seria necessário converter todos para esse movimento universal, a contraface deste projeto, todavia, articulou-se por vezes à já mencionada intolerância contra as dissidências e heresias, o que nos leva a rediscutir essa questão em maior profundidade21. Heresias, na sua origem, eram divergências que se estabeleciam no próprio seio do Cristianismo por oposição a um pensamento eclesiástico que tivera sucesso em se fazer considerar ortodoxo. A palavra ortodoxia, em particular, sugere a ideia de um “caminho reto” associado a um pensamento fundador original – no caso do Cristianismo, a um pretenso padrão que derivaria do Cristo e de seus apóstolos, bem como dos textos bíblicos naquelas de suas interpretações que se queriam considerar as únicas corretas. Não obstante, seja no âmbito das heresias do mundo antigo e da Alta Idade Média, ainda bem marcadas por serem essencialmente divergências de nível teológico, seja no âmbito das heresias que surgem na Idade Média Central e posteriormente na Baixa Idade Média – estas últimas já divergências com uma coloração social que prenuncia de longe a Reforma Protestante que estava por vir século XVI – a verdade é que, em todos estes casos, “hereges” e “ortodoxos”, conforme sejam chamados de acordo com o jogo dos poderes de nomear, sempre acreditaram tanto uns como outros serem os verdadeiros defensores da verdade da fé. O acusado de heresia é, antes de tudo, “um herético aos olhos dos outros” (DUBY, 1990, p.177).

A heresia é o acorde que destoa. A dissonância incompatível, pois nem todas o são, pode ser causada por uma única nota, irremediavelmente destoante e sem possibilidade de resolução diante da harmonia ortodoxa. Mas quem tem o poder de declarar o que é dissonante? De um ponto de vista da teoria musical, as dissonâncias não estão propriamente no acorde, mas sim nos ouvidos que se propõem a captá-lo. Os intervalos musicais de terças e sextas eram dissonâncias para os ouvidos medievais, mas tornaram-se consonantes para os renascentistas. A sétima de certos acordes – uma quarta nota que passou a ser agregada a uma tríade de terças superpostas – passou a soar comodamente para os ouvidos barrocos do século XVII, e assim por diante22. Esses exemplos nos mostram que, na Música, as dissonâncias são relativas àqueles que as apreendem, e esta noção também pode ser trazida para a concepção acórdica com a qual estamos trabalhando.

Para a questão que presentemente discutimos, a heresia pode ser entendida como aquele acorde cristão que foi declarado dissonante pelos ouvidos ortodoxos. Às vezes, a incompatibilidade é trazida pela presença de uma única nota; outras vezes por um intervalo ou por um grupo de notas mais bem articulado. Pode-se dar que uma dissonância se produza por uma ausência de notas. Os cátaros excluíram do seu acorde cristão a ‘mediação dos sacerdotes’. Tornaram-se dissonantes para os ouvidos ortodoxos. Pode-se dar que a dissonância seja produzida pela substituição de uma nota – de um ritual, por exemplo – ou por uma prática que se contraponha aos interesses dominantes. Ou, em nossa metáfora, pode ser que um som inusitado seja acrescentado antes da hora de ser escutado com maior conforto pelos ouvidos do seu tempo23.

O caso da modalidade franciscana de cristianismo traz um exemplo particularmente interessante. Surgida no século XIII a partir da figura emblemática de São Francisco de Assis (1881-1226), a ordem mendicante dos franciscanos acrescenta ao seu acorde cristão a nota da ‘pobreza voluntária’. Esta deveria se dar não apenas no âmbito individual – do indivíduo que abre mão de suas posses pessoais, tal como ocorria em diversas ordens monásticas – mas também no âmbito coletivo. Os mosteiros das várias ordens medievais, apesar da eventual pobreza voluntária de seus membros, eram ricos e se inseriam de maneira adequada no aspecto ostentatório de riqueza que não era nada estranho à Igreja medieval (e que ainda não é hoje). “Monge pobre, mosteiro rico”. Mas os mendicantes propunham assumir a pobreza voluntária em toda a extensão do termo: preferiam morar juntos aos pobres, de preferência nos meios urbanos, cultuando um estilo de vida despojado de bens. O ideal de viver como teriam vivido Jesus e seus apóstolos, aliás, já começava a se desdobrar em novos modelos medievais de vita apostólica desde o século XII, dando origem a um número significativo de novas correntes religiosas no interior da cristandade, muitas das quais logo passariam a ser consideradas heréticas.

Quando radicalizada, a nota da ‘pobreza voluntária’, essencial no acorde franciscano, entra em franca contradição com a nota de ostentação material da Igreja católica dominante, que culmina com a própria figura do Papa – tão ricamente paramentada. O franciscanismo, por causa desta dissonância, quase poderia ter sido declarado herético pelo Papa Inocêncio III (1160-1216), que vinha reprimindo outras heresias. Mas este sumo pontífice, hábil orquestrador, percebeu que aquele estranho acorde também poderia ser incorporado, desde que sob cuidadoso controle, à harmonia eclesiástica. O franciscanismo se aproximava do povo – por que desprezar aquela nota? O que permitiria a Francisco de Assis concretizar os radicais ideais evangélicos de seu grupo no interior de uma estrutura eclesiástica empoderada e recoberta por uma já tradicional riqueza ostentatória foi precisamente a sua declaração de incondicional ‘obediência ao papado’ como outro de seus princípios fundamentais, sendo que o Testamento que Francisco de Assis deixa a seus companheiros franciscanos (1226) reitera isto uma última vez. Mediada pelo reforço desta outra nota que já fazia parte do acorde católico – a obediência ao Papa – a ‘pobreza voluntária’ dos franciscanos torna-se uma dissonância compatível. Redefine-se como uma contradição perfeitamente assimilável.

No final do século XIII, bem depois da morte de Francisco de Assis (1226), novos acontecimentos e debates precipitam mais uma vez esta delicada contradição: seria facultado ao papado – a quem os franciscanos deviam ‘obediência primordial’ – o direito de interferir neste outro princípio fundamental das ordens mendicantes que era a ‘pobreza voluntária’, vista como uma recusa em possuir bens mesmo em comum? A dissonância entre os dois princípios é mais uma vez reavivada. A corrente dos “Espirituais” estabelece-se precisamente entre aqueles franciscanos que cerram fileiras em torno dos princípios fundadores da ‘pobreza voluntária’ e do ideal de seguir à risca o modelo de vita apostolica que havia sido encarnado por Francisco de Assis. Alguns quiseram ir além. Embora bulas papais posteriores tenham expressado a tentativa de amenizar o conflito que surgiria tão enfaticamente com o concílio de Lion (o Exiit qui seminat de Nicolas III, proferido em 1279, e o Exultantes de Martins IV, em 1283), um grupo mais radical decidiu recorrer mais tarde ao papa Celestino IV, para que este lhe autorizasse a sair da Ordem Franciscana de modo a constituir novo grupo. Os papas subseqüentes decidiram, porém, dispersar os “espirituais” ou persegui-los, o que se dá mais incisivamente sob João XXII (1316-1334). Uma declaração deste papa sobre a Regra franciscana conclui-se com esta afirmação: “Grande é a pobreza, mas maior é a integridade. O máximo é bem da obediência” (Quorundam exigit, 1317)24proposto, pode ser abordada a partir de uma perspectiva acórdica, a qual poderia buscar identificar o surgimento histórico de novas notas que se agregaram a acordes anteriores, formando novas estruturas dissonantes para as quais precisou ser, a partir daí, encontrada uma solução no seio da harmonia vigente. O modelo acórdico, enfim, articula-se também aos movimentos, e não só às estruturas.

Considerações Finais

A proposta aqui realizada – a possibilidade de assimilar a linguagem musical, e, mais especificamente, a ideia de acorde a um modo de construir e trabalhar com conceitos, nos diversos campos de saber – oferece um interessante campo de trabalho para temas os mais diversos. Nossa escolha de um tema complexo, o do Cristianismo, para exemplificação da proposta, foi neste artigo acompanhada da humildade de abordar um tema que, é claro, deve ser percorrido pelos especialistas. Nossa contribuição é muito modesta no que concerne à reflexão sobre o Cristianismo, que certamente tem sido desenvolvida em muitas direções pelos especialistas na temática – e sobre quais elementos adicionais deveriam ser associados à ‘compreensão’ de um conceito adequado de Cristianismo. Gostaria de acrescentar, nesse ponto, que o presente artigo tem como proposta sugerir mais sistematicamente a prática de um procedimento, que aqui denominamos de ‘acordes-conceituais’, e propor que o mesmo seja usado para a elaboração da configuração conceitual de quaisquer outras religiões, para além do Cristianismo, além de outros quaisquer conceitos. Além disso, para ainda mencionar o caso particular do acorde-conceitual de Cristianismo, o procedimento pode prosseguir agregando novas notas que já resultariam em novos acordes-conceituais capazes de definir desdobramentos e correntes dentro da religiosidade cristã. Por exemplo, se seguirmos adiante, agregando novas notas, poderemos chegar ao acorde-conceitual do Catolicismo, do Luteranismo, do Anglicanismo, e assim por diante, ou mesmo de correntes como a Teologia da Libertação, entre outros conceitos que se queira estudar. Deste modo, o que desenvolvemos neste artigo – tomando como exemplificação o acorde-conceitual mínimo do Cristianismo – foi a proposta de um procedimento teórico, que se convida a que seja utilizado no âmbito de estudos da Teologia, da História das Religiões, ou, na verdade, de quaisquer outros campos de saber e com relação às mais diversas temáticas de estudo.

Referências

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

ALBRIGHT, William F. From the Stone Age to Christianity. Garden City, New York: Doubleday Anchor Books, 1957.

ATHANASSIADI, Polymnia & FREDE, Michael (orgs). Pagan Monotheism in Late Antiquity, Oxford: Clarendon Press, 1999.

ARNAULD, A e NICOLE, P. A Lógica, ou A Arte de Pensar. Lisboa: Gulbenkian, 2016.

AZEVEDO, C. À procura do conceito de Religio: entre o Relegere e o Religare. Religare n°7 (1), p.90-96, 2010.

BAKHTIN, M. Problemas da Poética em Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

BARNES, Timothy. Constantine: dynasty, religion and power in the later Roman Empire. Oxford: Blackwell 2011.

BARROS, J. D’A. O Uso dos Conceitos – uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

BARROS, J. D’A. História, Espaço, Geografia. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

BARRY, John F. One Faith, One Lord: A Study of Basic Catholic Belief. William H. Sadlier (2001).

BETTENSON, Henry (org). Documents of the Christian Church. London: Oxford University Press, 1943.

BLOOM, H. e ROSENBERG, D. O livro de J. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

BOUILLARD, Henri. “La formation du concept de religion en Occident” in:CH. KANNENGIESSER e Y. MARCHASSON (orgs.). Humanisme et foi chrétienne. Paris: Beauchesne, 1976. p.451-461.

BOYD, James W. et al. Is Zoroastrianism Dualistic or Monotheistic?. Journal of the American Academy of Religion, Vol. XLVII (4), p. 557–588, 1979. 

BOYCE, Mary - Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices. New York: Routledge, 2002. 

BOYLE, A. The case for Pluto: how a little planet made a big difference. Hoboken (N.J.): John Wiley & Sons, 2010. 

CABRÉ, M. T. La Terminologia: teoría, metodología, aplicaciones. Barcelona: Antartida/Empuries, 1993. 

DAHLBERG, I. Teoria do conceito (tradução: Astério Tavares Campos). Ciências da Informação, v.7, n°2, p.101-107, 1978. 

DILASSER, Maurice. The Symbols of the Church. Collegeville: Liturgical Press, 1999. DUBOIS, J. et al. Dicionário de linguística. São Paulo, Cultrix, 1997. 

DUBY, G. “Heresias e Sociedades na Europa Pré-Industrial, séculos XI-XVIII” in Idade Média – Idade dos Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.175-184. 

ELIADE, M. Le mithe de l’éternel retour. Paris: Gallimard, 1969. 

ESLER, Philip F. The Early Christian World. New York: Routledge, 2004. FERRATER-MORA, J. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. 

GNOLI, Gherardo. “Manichaeism: an Overview” in ELIADE, Mircea (org.). Encyclopedia of Religion. New York: MacMillan, 1987. Vol.9, p.165. 

GONZALEZ, Justo L. The Story of Christianity: The Early Church to the Dawn of the Reformation, New York: Harper Collins Publishers, 1984. 

HINTZE, Almut. Monotheism the Zoroastrian Way. Journal of the Royal Asiatic Society, n°24, p.225–249, 2013. 

HUTTON, Ronald. Blood and Mistletoe: The History of the Druids in Britain. New Haven: Yale University Press, 2009. 

JIMENEZ-SANCHEZ, P. Les catharismes: modèles dissidents du christianisme médiévale (XIIe-XIIIesiècles). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. 

KIRSCH, Jonathan. God Against the Gods: The History of the War Between Monotheism and Polytheism. New Jersey: Compass Books, 2005. 

KOBASHI, N. Y.; FRANCELIN, M. M. Conceitos, categorias e organização do conhecimento. Informação e Informação, Londrina, v. 16, nº 3, p. 1-24, jan./jun. 2011. 

KOSELLECK, R. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 

LETHAM, Robert. The Holy Trinity in Scripture, History. New York: P & R, 2004. 

MACULAN, Benildes C. M. d. S. e LIMA, Gercina A. B. d. O. Buscando uma definição para o conceito de conceito. Perspectivas e ciências da informação. vol. 22, n°2, abr./jun. 2017. 

McCALL, Thomas.Which Trinity? Whose Monotheism? Philosophical and Systematic Theologians on the Metaphysics of the Trinity. Grand Rapids: Eerdman’s, 2010. 

McCALL, Thomas and Michael C. Rea (orgs), Philosophical and Theological Essays on the Trinity. New York: Oxford University Press, 2009. 

McGRATH, Alister E. Christianity: An Introduction. London: Blackwell Publishing, 2006. 

MECONI, David Vincent. Pagan Monotheism in Late Antiquity, Journal of Early Christian Studies. N°9 (1), p.111-112, 2000. MARVIN, L. W. The Occitan War. A Military and Political History of the Albigensian Crusade (1209-1218). Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 

PATTARO, G. “A Concepção Cristã do Tempo” In RICOEUR, Paul (org.). As Culturas e o Tempo: estudos reunidos pela UNESCO. Petrópolis: Editora Vozes, 1975, p.197-228. 

POWERS, John. Introduction to Tibetan Buddhism. Ithaca: Snow Lion, 2007. REA, Michael C. “The Trinity” in FLINT, Thomas P. & REA, Michael C. (orgs) The Oxford Handbook of Philosophical Theology. New York: Oxford University Press, 2009. p.126-130. 

STEWART, Sarah; HINTZE, Almut; WILLIAMS, Alan. The Zoroastrian Flame: Exploring Religion, History and Tradition. London: I.B Tauris, 2016. 

STRAYER, J. The Albigensian Crusades. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1992. TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. São Paulo: Paulinas, 2003. 

Notas

[1] Para estudos diversos sobre o conceito de ‘conceito’, ver DAHLBERG, 1978, p.101-107; HJORLAND, 2009, p.1519-1536; FERRATER-MORA, 2004; KOBASHI e; FRANCELIN, 2011; WÜSTE, 1998; MACULAN e LIMA, 2017. Este último artigo, em especial, discute com eficácia, e mais panoramicamente, os usos diferenciados do conceito de ‘conceito’ na Filosofia, Linguística, Terminologia das Ciências da Informação, e em distintos aportes teóricos. Sobre a historicidade dos conceitos, ver KOSELLECK, 2006. 

[2]  Com relação a um histórico da palavra “compreensão” em seu sentido de “definição conceitual”, esta passou a ser utilizada para se referir ao “conteúdo” de um conceito desde o século XVII (ARNAULD e NICOLE, 1662), mas a partir de certo momento alguns filósofos, como Leibniz (1646-1716), preferiram utilizar a palavra “intensão” (de “intenso”, “intensividade”). No entanto, em Português essa palavra destoa aos olhos dos leitores desta língua, pois no registro escrito estamos habituados a nos deparar mais comumente com a palavra “intenção” (com “ç”), que se refere à pretensão de fazer algo. “Intenção” – palavra portuguesa derivada de intentio – nada tem a ver com “intensão”, palavra portuguesa derivada de intensionis. Para evitar este choque, preferi utilizar a palavra “compreensão”, ao invés de “intensão”, ressaltando que estas duas palavras são sinônimas no que concerne ao que significam na Teoria dos Conceitos e na Filosofia da Linguagem. Com relação à “extensão”, ela se refere ao campo de aplicação de um conceito, a partir do momento em que definimos a sua “compreensão” ou “intensão”. 

[3] Todos os quadros e figuras que aparecem neste artigo foram elaborados pelo seu próprio autor. 

[4] Por outro lado, os acordes também podem ser arpejados – que é a situação em que as diversas notas do acorde são tocadas sucessivamente, e não simultaneamente, mas geralmente de maneira rápida para que possam ser percebidas pelo ouvido como um conjunto integrado. Neste caso, também é preservada a sensação de acorde.

[5] Muitas das relações intervalares que são produzidas em músicas compostas com linguagem tonal já aparecem na própria ‘série harmônica natural’.  Este ponto merece esclarecimentos. No interior de qualquer nota musical, existe sempre uma pequena série de harmônicos, soando “inaudivelmente”, como se fosse um pequenino acorde secreto escondido dentro daquele som aparentemente indivisível que estamos escutando. Na verdade, é este acorde secreto o que constitui o próprio som que estamos ouvindo de maneira unificada. Não obstante, a ‘série harmônica’ que se oculta no interior de um som não é perceptível para o ouvido humano senão como timbre. Para dar um exemplo mais bem definido, suponhamos um som emitido isoladamente por um instrumento, como uma nota musical da escala de Dó Maior tocada por um violino. Acusticamente falando, esta nota corresponde a um complexo emaranhado de ondas sonoras, embora o ouvinte humano só possa perceber como ‘altura’ a onda mais grave (de frequência mais baixa). Os harmônicos correspondem precisamente aos sons parciais que compõem a sonoridade desta nota musical. Embora não possam ser percebidos pelo ouvido comum, eles contribuem decisivamente para a definição do timbre de um instrumento (no nosso exemplo, o peculiar timbre de um violino). / Para a nossa questão, o interessante é notar que – de dentro de cada nota musical que escutamos como se fosse um evento sonoro isolado – já soam juntas estas outras notas inaudíveis, sendo que elas configuram sucessivamente, em relação à nota base, os intervalos de ‘oitava’, ‘quinta justa’, ‘quarta justa’, ‘terça maior’, ‘terça menor’, ‘terça menor encurtada’, ‘segunda maior esticada’, ‘segunda maior’, e assim por diante até o infinito, aparecendo intervalos cada vez menores.

[6] Mikhail Bakhtin – em Problemas da poética de Dostoievski (1929) – contrasta o modelo de escrita polifônica deste escritor com o antigo modelo “homofônico” de romances, para ele bem representado pelas obras de Leon Tolstoi (1828-1910). Neste último modelo, as consciências dos personagens não se apresentariam independentes da consciência unidirecional do autor-narrador.    

[7] Basicamente, a combinatória de aromas com vistas à produção de um perfume trabalha com três grupos de notas: as “notas de fundo”, que são constituídas pelos fixadores que mantém o perfume por mais tempo, fazendo-o perdurar por sete ou oito horas; as “notas de corpo” (ou “notas de coração”), constituídas por moléculas que perduram 4 ou 5 horas antes de se volatilizarem; e as “notas de topo” (ou “notas de cabeça”), responsável pelo primeiro impacto do perfume. 

[8] Os estudos de profundidade sobre o tema Cristianismo, nos seus vários aspectos, são muitos, e também as obras mais gerais, assim como as coletâneas de documentação. Para este último aspecto ver BETTENSON, 1943. Para uma introdução ao Cristianismo, ver McGRATH, 2006. Para o Cristianismo primitivo, cfe. ESLER, 2004 e GONZALEZ, 1984 

[9] Para o Monoteísmo, e sua discussão de modo mais geral, ver Wainwright , 1986. p.289-314; e Kirsch, 2005. Para o aspecto monoteísta mais especificamente relacionado ao Cristianismo, cfe. Zagzebski, 1989, p.3-18. Para uma introdução mais geral sobre o Cristianismo, cfe. Woodhead, 2004. Para uma leitura mais específica do monoteísmo católico, cfe. Barry, 2001.   

[10] Se, por um lado, podemos entender uma religião como um sistema de crenças que se apoia no reconhecimento de uma ordem sobrenatural que interage com o mundo natural e humano, toda religião também se refere ao tipo de ligação que pode ser estabelecido entre estes dois mundos. De fato, o vocábulo latino religio parece remeter ao verbo religare (“religar”), embora haja ainda a avaliação etimológica de que a palavra pode ter derivado de relegere (“reler”, “recompor”). Além disso, é preciso observar que o conceito de religião não se refere a qualquer sistema de crenças em uma ordem sobrenatural a ser religada, sendo igualmente importante que seja uma crença pública, culturalmente compartilhada. / As hipóteses etimológicas sobre o vocábulo ”religião” são muitas (AZEVEDO, 2010 e BOUILLARD, 1976. p.451-461.  

[11] Existem ainda outras religiões monoteístas menos conhecidas, como a Fé Bahá’i (ou Bahaísmo), fundada no século XIX, no Império Otomano. Antes do Bahaísmo, já havia sido fundada no Iran oitocentista a Fé Babí, também derivada do Islamismo. Por outro lado, no século XV, no Punjab – região que depois foi dividida entre Índia e Paquistão – já havia sido fundado o Sikhismo, que combina aspectos do Islamismo e do Hinduísmo, mas também se apoiando em uma perspectiva monoteísta. Além disto, na presente discussão estamos ignorando as distintas correntes que podem ser situadas no interior do Cristianismo, muitas vezes antagônicas e hostis entre si, mas que certamente compartilham um acorde mínimo em comum. Enquanto isso, o Hinduísmo moderno nos situa diante de um novo conceito – o henoteísmo – já que propõe o culto de um deus supremo mas sem negar outras divindades.

[12] Refiro-me à série de filmes Star Wars, dirigida por Georges Lucas e iniciada em 1977.

[13] Existe uma discussão relevante sobre se o Zoroastrismo seria efetivamente dualista ou monoteísta (HINTZE, 2013; BOYD, 1979, p.557-558).

[14] Uma perspectiva similar poderia nos colocar diante de um novo conceito, o do ‘penenteísmo’, que se ampara na ideia de que o Universo está contido em Deus, mas sendo este último maior do que aquele.

[15] No Druidismo, religião que remete às sociedades célticas, temos de alguma maneira a combinação entre as duas notas – o monoteísmo e o animismo – pois ocorre simultaneamente o culto às divindades elementais ligadas aos quatro elementos (ar, água, terra e fogo) e o culto mais direto à figura suprema da Deusa-Mãe. Trata-se, não obstante, de uma religião complexa, pois também se sintoniza com o Politeísmo. Além disso, as árvores sagradas também são várias, com destaque para o carvalho. Por opção, no ‘Quadro 3’ preferimos situar o druidismo nas imediações da nota ‘animismo’. A Wicca – que redireciona o druidismo para um investimento maior no desejo de controle das forças da natureza – apresenta características similares, e ambas constituem exemplos de interação entre religião e magia. No caso da Wicca, um novo elemento de complexidade adentra o acorde, pois a Deusa Tríplice é secundada por um Deus Cornífero que empresta a esta vertente um ar de dualidade. / Para uma visão sobre o Druidismo, cfe. HULTON, 2009.

[16] O Budismo espraiou-se por diferentes sociedades, como a Indiana, Tibetana, Chinesa e Japonesa, ramificando-se também em distintas correntes – o que, aliás, aconteceu com a maior parte das grandes religiões, a exemplo do próprio Cristianismo. Seria possível também elaborarmos um acorde do Budismo, como estamos fazendo para o acorde mínimo do Cristianismo.

[17] Tal como argumenta Miceias Eliade em O Mito do Eterno Retorno (1969), mas também Germano Pattaro em A Concepção Cristã do Tempo (1975), os hebreus, com seu “monoteísmo profético”, estariam entre os primeiros – seguidos pelos cristãos – a introduzir como concepção de ordenação cósmica um tempo linear, irreversível, teleológico, através do qual os eventos datados e localizados desempenhariam um papel fundamental para as narrativas bíblicas. Ao substituir pela “salvação futura”, prevista nas profecias, a “redenção na origem” que era proposta pelos rituais e concepções míticas, e ao introduzir os eventos como peças-chaves neste caminho linear em direção ao grande acontecimento do Juízo Final, os hebreus e cristãos preparam, tal como observam autores vários, a ideia de tempo que mais adiante permitiria o surgimento da História científica.

[18] De acordo com uma das linhas interpretativas aceitas, estes autores – cujos textos e narrativas surgem entremeados, embaralhados e costurados nos livros do Pentateuco –teriam vivido, respectivamente, nos séculos X a.C, VIII a.C, VII a.C e VI a.C. Há indícios que sugerem a possibilidade de que o autor ‘javista’, por exemplo, tenha sido uma mulher da época de Salomão. Além disso os quatro autores também teriam vivido em espaços distintos do mundo hebraico (para esta hipótese, cfe. Bloom e Rosenberg, 1992).  Por fim, além dos quatro autores principais dos textos do Pentateuco, podem ser identificadas interpolações menores oriundas de outras autorias e produzidas em outros momentos, as quais serviram muito bem para ajudar a costurar os quatro autores.

[19] A Cruzada Albigense foi convocada pelo papa Inocêncio III com apoio da dinastia capetíngia da realeza francesa, que terminou por mover um exército do norte contra a civilização occitânica que habitava a parte sul da França. Inocêncio III e seus sucessores tomaram a si a função de eliminar as dissonâncias que consideraram mais perigosas contra a unidade católica que pretendiam assegurar, o que fizeram através de táticas e medidas diversas como a incitação a cruzadas ou a instituição da Inquisição. Por outro lado, algumas das dissonâncias foram estrategicamente incorporadas, tal como ocorreria com a Ordem dos Franciscanos e, mais ainda, com a Ordem dos Dominicanos, que a partir de 1250 foi convocada para capitanear os próprios processos de Inquisição. / A Cruzada Albigense, tem merecido estudos diversos (STRAYER, 1992; MARVIN, 2008), assim como a dissidência cátara (JIMENEZ-SANCHEZ, 2008) e a política teocrática de Inocêncio III diante das dissidências religiosas (THÉRY, 2005).

[20] O Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano em 380 e.C, com o decreto do imperador Teodósio I (Édito de Tessalônica). Em 312, já havia ocorrido a conversão de Constantino. Há uma longa história das relações entre o Cristianismo e o mundo político que estrutura as sociedades relacionadas à civilização ocidental (WOODS, 2005), a começar pela conversão de Constantino e seus desdobramentos,(BARNES, 2011).

[21] Esta relação – esse ‘intervalo’ que pode ser estabelecido entre universalismo e missionarismo, e entre estas duas notas e a rejeição ou perseguição da alteridade religiosa – não é, contudo, necessária, embora seja recorrente. O Budismo, por exemplo, apresenta uma nota de missionarismo; mas nem se apoia em um projeto universalizante, e nem procura combater as suas dissidências. Enquanto isso, se o Judaísmo se coloca como a única religião legítima – aquela que se liga ao verdadeiro Deus (Jeovah), que de sua parte tem o seu Povo Eleito – não se ampara, decerto, em nenhum projeto de universalização, e tampouco apresenta qualquer impulso missionarista dedicado a atrair devotos.

[22] A História da Música nos traz exemplos vários da gradual ampliação da capacidade dos ouvintes ocidentais para a aceitação de antigas dissonâncias ou de novas configurações acórdicas. Com Cláudio Monteverdi (1567-1643), compositor italiano que transita do Renascimento ao Barroco, já aparece a sétima do chamado ‘acorde de sétima da dominante’ (sol-si-re-fa), que logo será percebido como um ‘acorde dissonante natural’ – portador de dissonâncias perfeitamente compatíveis com o novo ambiente tonal, desde que resolvidas em um acorde de ‘função tônica’. Neste caso, pode-se dizer que a ‘dissonância incompatível’ tornou-se uma ‘dissonância compatível’. Durante muito tempo, o intervalo chamado trítono (si-re-fa) soou de modo tão terrível aos ouvidos medievais, que mais tarde foi chamado por músicos conservadores ligados à Igreja de “diabolus in musica”. No entanto, em exemplos como o que acabamos de comentar (pois o trítono está contido no acorde sol-si-re-fa), o ‘diabolus in musica’ foi sendo acomodado para encontrar uma função no sistema tonal então nascente: seu papel como produtor de dissonâncias aceitáveis – desde que resolvidas adequadamente no instante seguinte em um acorde destensionador de ‘função tônica’ – tornou-se a base para uma nova estética musical, na qual o compositor lida habilmente com as tensões e distensões produzidas pelas dissonâncias que resolvem nas consonâncias. / Além destes exemplos, pode-se dizer que, na medida em que avançamos na modernidade musical, o ouvido ocidental se acostumará cada vez mais com sons que nos séculos anteriores teriam parecido estranhos. Sobre isto, ver o ciclo de conferências Caminho para a Música Nova, de Anton Webern (1932-1933). Sobre o “diabolus em música”, entre outros aspectos presentes no desenvolvimento da História da Música, ver O Som e o Sentido de José Miguel Wisnik (1999, p.83). 

[23] Algumas dissonâncias podem se mostrar compatíveis com certos ambientes harmônicos; outras, podem se mostrar incompatíveis. Mas quem decide quais são as “dissonâncias incompatíveis”, e quais são as “dissonâncias compatíveis”? Que padrões de escuta? 

[24] Na bula Santa Romana (1317), João XXII chega a condenar alguns dos grupos mais radicais de espirituais como rebeldes, associando estes que seriam conhecidos como Fraticelli a outros grupos heréticos como os beguinos. Este longo episódio que se iniciara em fins do século XIII e atingira a segunda década do século XIV, passando por uma seqüência de papas até chegar a João XXII, expõe claros sintomas não apenas de um movimento franciscano que começa a se fragmentar e perder sua identidade inicial, mas também de uma Santa Sé hesitante e dividida que logo enfrentaria suas próprias cisões, sem contar as divisões que também começariam a ameaçar de fragmentação a Igreja como um todo. O século XIV será de fato um século de cismas para a Igreja Católica, de propostas reformistas que ainda não sairiam vitoriosas, de revivescência de antigas e novas heresias. Dos “espirituais” – aquela corrente que pretendia seguir rigorosamente o exemplo de São Francisco para daí fazer da pobreza um absoluto – não demoraria muito a surgirem movimentos desejosos de realizar na terra a “utopia franciscana”, sob o prisma de uma eclesiologia radicalmente anti-hierárquica (VAUCHEZ, 1995, p.133).