Jefferson Zeferino*
Sebastião Lindoberg da Silva Campos**
Glaucio Alberto Faria de Souza***
* Doutor em Teologia. Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná por meio do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES). Contato: zeferino.jefferson@pucpr.br
** Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio). Professor substituto do Instituto de Ciencias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Contato: lindoberg_pe@hotmail.com
***Mestre em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Professor de Teologia na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI. Contato: gafsteologo@gmail.com
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Vou amarrar minha égua
no tronco de uma palmeira.
Vou amarrá-lo no punho
de uma rede sertaneja.
Vou amarrá-la num toco,
decepado, da mãe-Terra.
Vou amarrá-la na estaca,
derrubada, de uma cerca.
Se o sonho for mais intenso,
na ponta de alguma estrela.
Vou amarrá-la também
no cocho, podre e florido,
do teu barraco, Belém/
Vou amarrá-la, Jesus,
no sangue desse madeiro
de tua Cruz/ Vou amarrá-la no fio
da pedra, espera e aurora
do Teu Sepulcro vazio.../
(Pedro Casaldáliga)
Os versos de Casaldáliga interpretam a fé e a vida, a esperança e o sofrimento, o amor e o contraditório. A mãe-Terra e o filho de Deus, Jesus, são símbolos de força vital que, apesar das dificuldades, nutrem o corpo e o espírito. Amarrar a égua junto à simplicidade da existência e ao sofrimento alheio é uma forma de disposição ética identificada com a fé nesse crucificado e ressurreto. Imagens bíblicas, atualizadas e ressignificadas, dão origem a novas formas de ler literatura, ler a bíblia, ler a fé, ler a vida. Ao ser perguntado sobre o que a poesia representava para ele, Casaldáliga (1989, s.p.) responde: “A poesia é a palavra emocionada. Por ela a gente se diz e diz o Universo, o Próximo, o povo, a Morte, a Vida, Deus, calidamente. A poesia é a resposta sensibilizada a tudo e a todos num encontro, que pulsa a alma e compromete as opções”.
Uma leitura sensibilizada da vida é elemento que evoca o método antropológico entre Teologia e Literatura. Em obra seminal para a área, Manzatto (1994, p. 120-121) concluía o seguinte: “[...] é exatamente por fixar e retratar situações particulares, no caso a situação do povo da Bahia, que os romances de Amado são universalizáveis, isto é, podem falar ao homem e a todos os homens”. O humano como lugar teológico aproxima antropologias teológicas e literárias desvelando novas possiblidades de ser e agir, o humano se compreende diante de outras experiências humanas, bem como pode gestar a partir do rosto do outro uma nova ética (VILLAS BOAS, 2016).
As bíblias contêm narrativas em que o enredo literário é simultaneamente teológico. Muito já se falou sobre aproximações entre bíblia e literatura em geral. Apesar de ser uma escrita de onde se extraem questões basilares da experiência religiosa, uma bíblia, sendo um conjunto de livros diversos, exibe profundas experiências humanas que se traduzem na articulação da linguagem poética. O livro de Cânticos é um exemplo da beleza literária que se manifesta no seu processo escriturário de uma tradução da vida. As aproximações hermenêuticas que buscam criar um diálogo profundo entre bíblias e literaturas se apresentam nas mais dinâmicas perspectivas. Tomar textos bíblicos dentro de uma perspectiva da produção literária requer que se vá além de apontar uma relação de gêneros discursivos que compõem o seu conjunto escriturário. Se, como afirmava Heidegger em Caminhos de Floresta (2014), pode-se extrair da elaboração poética uma expressão própria e singular de experiência do indivíduo, privada ou coletivamente, então, pode-se perceber nas tradições bíblicas topoi privilegiados de comunicabilidade dessa manifestação.
Produzida a partir de inúmeras experiências partilhadas, assentada sobre a trajetória de um povo e fruto de uma complexa rede de culturas, a bíblia é um substrato literário não apenas pela sua performance estética múltipla de gêneros discursivos, muito deles com linguagem singular, mas é, justamente, uma pluralidade discursiva que opera como meio expressivo dinâmico e prenhe de inúmeras possibilidades e interpretações.
Para além de uma interpretação totalizante que enxerga na Bíblia uma unidade absoluta de significação, ou como expressão totalitária da manifestação da mensagem divina, é preciso perceber nessa voz divina imaginada literariamente a manifestação da multiplicidade dos rostos humanos que se concretizam e se traduzem na tessitura do texto. Os aportes que a crítica literária e a teoria literária oferecem, podem ser o caminho para um acolhimento mais aberto e democrático dessa construção literária que atravessa gerações e que, de alguma forma, sempre renovam suas significações para condizer com uma experiência particular de cada sujeito.
A própria história de construção da bíblia como obra canônica precisa ser compreendida em sua diversidade, pluralidade de versões, traduções, escopo, número e ordem de livros. Há, como pontuam Schmid e Schröter (2021), muitas bíblias no decorrer da história. Um olhar para as versões do Novo Testamento grego Nestle-Aland ou mesmo para a bíblia hebraica na versão Stuttgartensia, por exemplo, auxiliam na compreensão da diversidade possível das variantes apresentadas em seus aparatos críticos.
David Tracy (1984), ao falar sobre uma apropriada interpretação teológica da bíblia em um contexto em que sua condição histórica se tornou evidente, ressalta o importante papel que a hermenêutica desempenha diante de abordagens contemporâneas das tradições bíblicas. No processo de interpretação de um clássico religioso, há que se considerar que a pessoa intérprete já sempre está influenciada pela história dos efeitos do texto que pretende estudar, bem como está historicamente situada, assim como o texto. Outro ponto relevante aqui, para Tracy, embasado em Gadamer, é a posição dos textos clássicos que, ao serem interpretados desde uma cultura ocidental, reservam um excesso de sentido irredutível, resistindo a qualquer interpretação definitiva. Os clássicos chamam a pessoa que busca interpretá-los para um jogo de conversação no qual os sentidos do texto são construídos a partir das questões levantadas pelo diálogo que funde os horizontes de textos e pessoas leitoras. Com isso, por mais significativo que seja, o método histórico crítico não esgota o sentido do texto. Ao mesmo tempo, o processo interpretativo deve considerar o apoio de uma hermenêutica da suspeita. A partir de Ricoeur, Tracy pontua que ao lado da necessidade da interpretação, está a exigência de métodos de explicação e compreensão de como o sentido é produzido na estrutura textual. Ainda outro aspecto de complexidade se soma à interpretação de textos quando se está lidando com clássicos religiosos, os quais, para o teólogo estadunidense, são relevantes plataformas de teste para novas propostas hermenêuticas.
A pluralidade de abordagens de distintas imagens bíblicas é representada no presente dossiê por meio de textos que entram no jogo de conversação com a poesia, com romances, com histórias em quadrinhos, bem como por abordagens que, desde o campo da teologia bíblica valorizam elementos narratológicos. Em Miserere, de Adélia Prado e o livro de Jó, Giovanni Marques Santos evidencia o tema clássico do sofrimento humano, explorando tensões teológicas do livro de Jó com a teopoética de Adélia. Carlos Olivares, em La historia de un anciano bueno: caracterización narrativa de José en el Protoevangelio de Santiago, com base em um texto apócrifo, se dedica ao estudo da apresentação da personagem de José, destacando as técnicas literárias utilizadas no texto. A Bíblia do Conto da Aia, de Flávio Schmitt, como o título reve- — 9 — ISSN - 2236-9937 Teoliterária V. 11 - N. 25 - 2021 la, apresenta o uso que Margaret Atwood faz de textos bíblicos em seu desenvolvimento literário. Do universo dos quadrinhos, o texto A superaventura sapiencial: breves relações de Shazam! com o discurso de sabedoria da bíblia hebraica, de Allan Macedo de Novaes, Felipe Silva Carmo e Thaís Camargos e Silva, explora o gênero da superaventura traçando conexões com a teologia sapiencial. Em A compaixão do pai no centro do enredo da parábola do filho perdido e reencontrado (Lc 15,11-32), Ildo Perondi e Fabrizio Zandonadi Catenassi, a partir da análise narrativa, destacam o tema da compaixão no interior da história do “filho pródigo”. Vicente Artuso, em Análise Narrativa da “Jornada em Cafarnaum” (Mc 1,21-39): Ensinamento na práxis de Jesus, aborda o texto bíblico como um enredo, valorizando sua forma final. Diferentes imagens do protagonista do Evangelho de Marcos, Jesus, são avaliadas por Francisco Benedito Leite no texto A construção da imagem de Jesus por meio de seus gestos no Evangelho conforme Marcos. Assim como no início, também ao fim, completando a moldura literária do presente dossiê, encontra-se um novo texto sobre Adélia Prado. Em A duração do dia, de Adélia Prado – o sagrado no cotidiano, Marta Botelho Lira e Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira investigam o modo como os sujeitos dos poemas de Adélia se relacionam com textos bíblicos.
Na seção de temática livre, encontra-se, novamente, uma diversidade de relações entre teologias e literaturas. Em Entre a santidade e a histeria: os processos de escrita de Teresa d’Ávila, Isabelle Merlini Chiaparin avalia textos de Teresa à luz dos debates atuais a respeito da literatura feita por mulheres. Vicente Silva Beyer e Clemente Cox Cruzat, em outro texto que toca o âmbito das discussões sobre mística, Meditación y mística en “East Coker” de T.S. Eliot, explora a possibilidade do texto transformar-se em um exercício espiritual por parte das pessoas leitoras. Com O espiritualismo no pensamento de Nestor Victor: modos de ler literatura, Roberto da França Neves se dedica à produção de Nestor Victor considerando sua sensibilidade a manifestações espiritualistas na busca de novos valores. Aurora Cardoso de Quadros, em Jean Valjean: — 10 — ISSN - 2236-9937 Teoliterária V. 11 - N. 25 - 2021 memórias do Bispo Myriel, estuda a obra clássica Les Miserables, de Vitor Hugo, privilegiando a influência do clérigo Bispo Myriel no desenvolvimento do protagonista. A contribuição de Frederico da Cruz Vieira e Ângela Cristina Salgueiro Marques, em A escrita (im)possível da sobrevivente: os rostos lévinasianos em obras literárias de Scholastique Mukasonga, propõe uma leitura ética de textos literários a partir de conceitos como “rosto” oriundos da filosofia de Emmanuel Lévinas. Por fim, em Manifestação do Sagrado no conto O defunto (1895) de Eça de Queiroz (1845-1900): A intervenção de Nossa Senhora do Pilar, Denise Rocha apresenta a relação entre um sermão do Pe. Antonio Vieira com um conto de Eça de Queiroz, contextualizando-o na terceira fase de sua produção literária.
Ao se findar o ano de 2021, concluídas as edições de três novos números, com mais de sessenta artigos publicados, só nos resta agradecer profundamente a confiança, parceria, dedicação e esmero das pessoas autoras, avaliadoras, editoras e leitoras.
CASALDÁLIGA, Pedro. As águas do tempo. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso/Editora Amazônida, 1989.
HEIDEGGER, Martin. Caminhos da Floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2014.
MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
SCHMID, Konrad; SCHRÖTER, Jens. The Making of the Bible: from the first fragments to sacred scripture. Trans. Peter Lewis. Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2021.
TRACY, David. Interpretation of the Bible and Interpretation Theory. In: GRANT, Robert; TRACY, David. A short history of the interpretation of the Bible. Minneapolis: Fortress Press, 1984.
VILLAS BOAS, Alex. Teologia em diálogo com a literatura: origem e tarefa poética da teologia. São Paulo: Paulus, 2016.