Casimiro Cunha, o Trovador do Evangelho, e o rudimento de uma poética
Casimiro Cunha, the Gospel Troubadour, and the rudiment of a poetic

Dílson César Devides
Doutor em Letras - Estudos Literários pela Unesp. Professor de Literatura na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Contato: dilson.devides@ufmt.br


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Resumo: O artigo que segue nasce da busca por conhecer a produção poética psicografada por Chico Xavier que se encontra dispersa pelos mais de 400 livros, de diversos gêneros, ditados ao médium mineiro. Dentre os poucos estudos sobre a literatura espírita, de modo geral, e sobre os livros psicografados por Chico, em particular, a menor parte aborda a poesia. Motivo que nos instigou a pensar quem seriam os poetas psicografados, quais temáticas abordariam, qual o volume de sua produção. Após uma pesquisa quantitativa, observou-se que Casimiro Cunha era dos poetas mais recorrentes, contabilizando 601 poemas distribuídos em 76 livros, incluindo coletâneas e três livros solo. Tal fato levou-nos a eleger esse poeta como objeto deste estudo, focando-se em seus livros solo. Empreendeu-se, portanto, a análise das obras com vistas a erigir, ainda que rudimentarmente, uma poética de Cunha. Constatou-se que a poesia de Cunha é composta sobretudo de trovas escritas em redondilha maior, com esquema de rima, prioritariamente, ABCB. Quanto à temática, os poemas tratam de assuntos como: trabalho, caridade, respeito, importância da fé, autorregeneração moral e autorreflexão como estímulos para encarar a vida com ânimo e coragem, além de incentivar a conhecer e seguir os passos de Jesus Cristo pelos evangelhos.

Palavras-chave: Casimiro Cunha; Poesia espírita; Poética; Chico Xavier.

Abstract: The article that follows is born from the search to know the poetic production psychographed by Chico Xavier that is dispersed in more than 400 books, of different genres, dictated to the medium from Minas Gerais. Among the few studies on Spiritist literature, in general, and on the books psychographed by Chico, in particular, the smallest part deals with poetry. Reason that instigated us to think about who the psychographed poets would be, what themes they would address, what the volume of their production. After a quantitative research, it was observed that Casimiro Cunha was one of the most recurrent poets, accounting for 601 poems distributed in 76 books, including collections and three solo books. This fact led us to choose this poet as the object of this study, focusing on his solo books. Therefore, an analysis of the works was undertaken with a view to building, albeit rudimentary, a poetics of Cunha. It was found that Cunha's poetry is mainly composed of trovas written in a larger round, with a rhyme scheme, primarily, ABCB. As for the theme, the poems deal with subjects such as: work, charity, respect, the importance of faith, moral self-regeneration and self-reflection as stimuli to face life with uplift and courage, in addition to encouraging people to know and follow in the footsteps of Jesus Christ through the gospels.

Keywords: Casimiro Cunha; Spiritist Poetry; Poetics; Chico Xavier.

Introdução[1]

Para além de questões valorativas, que buscam legitimar uma produção e/ou seu produtor (escritor, músico, enfim, artista), há toda uma sorte de outras questões que, por vezes, são relegadas a segundo plano, seja por afinidades ou controvérsias teóricas, seja por interesses particulares ou de grupos, ou seja ainda por não as julgar interessante discutir num dado momento. 

No vasto campo de estudos e pesquisas das Letras, os estudos inter, multi e transdisciplinares são comuns há bastante tempo e não raras vezes são valorizados pela comunidade acadêmica. Entretanto, temas como música popular, literatura de massa, literatura e outras mídias e suportes, já sofreram resistência dentro das universidades, mas a questão parece superada. Outros assuntos, no entanto, ainda hoje, se não são tabus, fazem torcer o nariz daqueles pesquisadores mais ortodoxos, como, por exemplo, a literatura espírita.

Poder-se-ia questionar se a literatura chamada espírita é, de fato, literatura. Para Ana Claudia da Silva e Verônica Bemvenuto de Abreu e Silva (2020), literatura espírita é a:

[...] literatura que se processa ligada às instâncias espíritas da sociedade brasileira: é produzida por autores espíritas – no sentido mais estrito do termo, ou seja, por pessoas que seguem a Doutrina dos Espíritos codificada por Allan Kardec –; editada por editoras espíritas; lida por leitores adeptos da mesma doutrina e tem sua circulação nos ambientes espíritas, seja nos centros de prática religiosa e estudo, seja nas unidades federativas. (p.17).

A definição das autoras é bastante apropriada, principalmente, por se tratar de tema ainda delicado para a Academia. A restrição feita quanto à produção e circulação da obra almeja delimitar um espaço de análise dessa literatura. Assim, produzida, lida e analisada dentro dessa baliza, a literatura espírita poderia estar livre do academicismo que, por vezes, taxa obras como essas de baixa literatura, de paraliteratura, de autoajuda, de autoconhecimento e de esotérica, deixando em segundo plano aspectos caros à estética e ao fazer literários. Para Wanderley,

no que se refere ao estudo do texto, a literatura pFsicográfica despertou e desperta na crítica vigente a observação de aspectos como o estilo e a linguagem, embora parte dessa crítica defenda a ideia de que essa produção não encontraria respaldo quando submetida aos meandros de uma análise literária. (2020, p.55).

As autoras, portanto, blindam a produção literária espírita das análises que desconsideram as especificidades dessas obras. A meu ver, muito embora entenda e concorde com as singularidades que a literatura espírita carrega, creio que ela deva ser cotejada como qualquer outra, principalmente no tocante às características literárias que são compactuadas com todos os demais gêneros. Talvez, analisada dessa forma, suas particularidades se fundamentem de tal maneira que a literatura espírita passe a ser tratada apenas e tão-somente como variante estética, temática, por fim, como um gênero literário; e não mais como literatura de menor qualidade ou subliteratura.

Poder-se-ia questionar, ainda, se o fato de ser uma produção psicografada não causaria problemas de autoria e, consequentemente, de direitos autorais. Como ocorreu com o célebre caso Humberto de Campos e seus livros psicografados por Chico Xavier e publicados pela Federação Espírita Brasileira. A família do escritor entrou com uma ação judicial para esclarecer a verdadeira autoria dos textos e, consequentemente, receber pelos direitos autorais. A justiça negou as apelações da família alegando que com a morte se extingue a capacidade de adquirir direitos. Assim, àquela época, 1944, a justiça esquivou-se de questões de ordem religiosas ou espirituais, valendo-se do arcabouço de que dispunha. Os autores espirituais, devem ser analisados e criticados tal e qual os autores encarnados. Em outras palavras, um autor espiritual que tenha sido escritor enquanto encarnado, não precisa ter, necessariamente, sua obra espiritual comparada com sua obra encarnada ou terrena. 

Alguns pesquisadores afoitos por demonstrar que um texto psicografado não corresponde exatamente às características de textos escritos “em vida” pelo próprio autor, não consideram, por exemplo, que os anos (e no caso de obras ditadas por espíritos, pode-se falar em séculos) costumam proporcionar certa maturidade ao artista, o que pode ocasionar mudanças de temas, de estilo, de gênero. É consenso, por exemplo, que as obras realistas de Machado de Assis representam seu período de maturidade em relação àquelas produzidas sob a égide do Romantismo. Os anos e a prática, aliados, evidentemente ao talento do Bruxo do Cosme Velho, conferiram-lhe o refinamento e manejo narrativo já conhecido por muitos. 

Tais pesquisadores, esquecem-se ainda, que sendo o autor um espírito, pode ele manifestar-se em idiomas que jamais houvera estudado em vida. Esquecem-se, ou deliberadamente ignoram, que há materialidade de textos, ou seja, independente de quem seja o autor, os textos existem e merecem ser estudados, criticados, lidos e debatidos. Ou à Academia só interessaria o nome (confirmado) que assina o texto e não as qualidades literárias que demonstra? Em outras palavras, seria, para a Academia, mais importante provar que um texto é, de fato, de determinado autor do que as renovações artísticas que tal texto apresentaria? Recentemente a pesquisadora e professora Sílvia Maria Azevedo comprovou que um conjunto de crônicas publicadas entre 1869 e 1876, no jornal Semana Ilustrada, assinadas por Dr. Semana, são na realidade de Machado de Assis[2]. Este fato não deveria alterar em nada a leitura e a crítica que se fizesse a esses textos, a menos que se aceite que o fato de passarem a ser atribuídos a Machado confiram-lhes maiores qualidades.

A análise da obra espiritual pode perfeitamente significar uma nova fase da produção daquele autor. Assim como falamos em fase realista/naturalista mais ácida e em fase realista madura (ainda crítica, mas de certa retomada de valores nacionais e tradicionais) de Eça de Queirós; podemos falar em fase espírita de Augusto dos Anjos, de Antero de Quental e do próprio Eça de Queirós. Por outro lado, autores como Casimiro Cunha, objeto desse estudo, que foram praticamente desconhecidos enquanto encarnados devem ser estudados e ocupar seu espaço na história da literatura como autores que são, independentemente de sua obra ter sido escrita enquanto estavam encarnados ou não.

Fato é que a literatura espírita é um sucesso editorial[3], alavancado principalmente por obras psicografadas por Chico Xavier e Divaldo Franco. Os autores espirituais são muitos e vários, de poetas como Castro Alves, Olavo Bilac e Augusto dos Anjos, a prosadores como Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis. A lista não se limita a autores de língua portuguesa; é possível encontrar obras de Victor Hugo, Rabindranath Tagore e Leon Tolstói, todas ditadas em português. Essa vasta produção não se restringe à literatura. Obras de teor histórico, antropológico, psicológico e, sobretudo, espiritualista preenchem prateleiras de livrarias de muitos países para saciar a sede por conhecimento (e de curiosidade) de milhões de pessoas declaradamente espíritas ou simpatizantes da doutrina codificada por Allan Kardec em suas mais diversas denominações, incluindo aquelas que, mesmo não tendo origem no kardecismo, carregam em sua gênese ideias comuns como a reencarnação, a comunicação entre os planos material e espiritual e o desenvolvimento espiritual. Obras como Nosso Lar, de André Luiz, que relata o cotidiano em uma colônia espiritual e Há dois mil anos, de Emmanuel, que narra uma das encarnações do mentor espiritual de Chico Xavier, estão entre os textos mais vendidos, lidos e comentados nas casas espíritas e de seus simpatizantes. 

Esses leitores foram responsáveis pela venda de cerca de 7 milhões[4] de exemplares espíritas em 2002. A publicação de livros espíritas, quer sejam literatura quer não, foi alavancada por uma estrutura de confecção de livros em franca expansão nos anos 1940 no Brasil. “Verificou-se que, em primeiro lugar, era o espírita convertido o foco das narrativas, sem, contudo, se abrirem mão de circulação mais ampla”. (SOARES, 2020, p.43). Desde o início da jornada psicográfica de Chico Xavier nos anos de 1930 até hoje, milhões de exemplares foram editados e vendidos. Evidentemente que a publicação de obras espíritas é anterior a Chico Xavier, entretanto, foram suas obras que impulsionaram as demais publicações, que romperam com estigmas e preconceitos em relação à qualidade e autoria das obras, que, por fim, legitimaram o filão editorial. O interesse pelas obras espíritas era tanto que algumas foram adaptadas para a TV como telenovelas[5] ainda década de 1960. Quer seja por afinidade religiosa, quer seja por curiosidade sobre a vida após a morte, as obras espíritas são um fenômeno real e concreto de produção editorial e literária que merece, portanto, estudos mais aprofundados.

Estima-se que Chico Xavier tenha psicografado cerca de 412 livros, destes mais da metade seriam de poesias. São, o mais das vezes, coletâneas de poemas de vários poetas reunidas sob títulos genéricos como Trovadores do Além (1965), Lira Imortal (1939), Parnaso do Além-túmulo (1932) o primeiro e dos mais respeitados livros psicografados pelo médium mineiro. Chama a atenção, no entanto, que o gênero poesia não é dos mais lidos pelo público. Segundo pesquisa de Silva e Abreu e Silva (2019, p.11), os gêneros mais lidos são romances 48,2%; contos 11,9%; livros infantis ou juvenis 11,6% e crônicas 11%. O gênero poesia não é mencionado na pesquisa, pois é um gênero de venda relativamente restrito, excetuando obras de poetas já aclamados. Tal informação evidencia uma questão interessante (que não será respondida por este texto), por que ocupar o médium mais respeitado do mundo com a escrita de textos que têm público tão escasso?

Independente dos números, a produção poética psicografada por Chico, assim como exposto acima, trouxe à luz textos de poetas reconhecidos por sua qualidade literária e por seu papel na história da literatura brasileira e portuguesa como Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Alphonsus de Guimaraens e Artur de Azevedo; e outros menos conhecidos das Letras nacionais como Auta de Souza e Casimiro Cunha e ainda outros que mal deixaram registro de atuação poética como Rodrigues de Abreu e Leôncio Correia.

A dispersividade dessa produção estorva possíveis estudos dada a dificuldade de se localizar um determinado poema ou poeta. Portanto, seria de grande valia para estudos futuros que houvesse a catalogação de tal repertório que reunisse e organizasse quem são os poetas psicografados por Chico Xavier, quantos poemas cada um publicou e em quais obras aparecem. Assim, além de facilitar consideravelmente o acesso à informação bibliográfica, poder-se-ia constituir uma espécie de índice onomástico e de produção que serviria, por exemplo, para análises de ordem quantitativa (quantos foram os poetas e quais os mais profícuos) e qualitativa (quais os temas mais recorrentes em toda a produção e quais os mais frequentes em cada autor), além de viabilizar novas publicações reunindo, por exemplo, a produção de determinado poeta ou poemas com uma mesma temática.

Uma pesquisa como essa, embora seja necessária para o campo de estudos e seja perfeitamente factível, pode encontrar problemas ou dificuldades. No universo acadêmico, as pesquisas sobre literatura espírita, têm rendido alguns frutos. Ainda que o tema (e as obras) seja abordado por diversos prismas como o da antropologia, da sociologia, da psicologia, do mercado editorial; há, evidentemente, estudos mais relacionados ao âmbito literário. Talvez o primeiro estudo de cunho acadêmico de destaque, sobre a produção psicográfica de Chico, tenha sido a dissertação de Alexandre Caroli Rocha, A poesia transcendente de Parnaso de além-túmulo[6], defendida na Unicamp em 2001. Nesse texto o autor trata de questões como autoria, pastiche e estilo. Provavelmente, há estudos mais antigos, mas são raros. 

A Academia ainda hoje tem certos preconceitos com as questões espiritualistas. Para o bem do conhecimento, tais preconceitos são cada vez mais raros e vão abrindo espaços para muito trabalhos de conclusão de curso, para vários artigos e para algumas outras dissertações e teses. Como exemplo, posso citar o dossiê Literatura e Espiritualidade, publicado em dois volumes na revista Cerrados[7], da UnB, em dezembro de 2020. Organizados pelos professores e pesquisadores Ana Claudia da Silva, João Leonel e William Alves Biserra, a publicação traz 26 artigos que tratam de temas espiritualistas, de modo geral, e de temas espíritas propriamente, como os artigos de Naelza de Araújo Wanderley (Gonzaga e Dorotéia: um amor que renasce e se reconta através dos séculos) e de Ana Claudia da Silva e Verônica Bemvenuto de Abreu e Silva (Literatura espírita e figurações do feminino em “Há Dois Mil Anos”, de Emmanuel). Outra publicação de destaque é a revista Teoliterária[8], vinculada aos Programas Pós-Graduados em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Nesse periódico, a busca pelas palavras-chave espírita e espiritismo retornou onze textos diferentes até a data de publicação deste artigo. Se a busca dessas mesmas palavras-chave for feita no diretório de grupos de pesquisa do CNPq[9], apenas três ocorrências aparecerão, nenhuma delas da área de Letras/Literatura, o que mostra o quanto a pesquisa institucionalizada sobre o espiritismo (e outras religiões reencarnacionistas como a umbanda e o candomblé) e sua literatura deve ser aprofundada. 

Demonstra-se, portanto, que 

mesmo tendo evidente aceitação junto público, mesmo por aqueles não adeptos do espiritismo, essa literatura peculiar não recebe a devida atenção da crítica acadêmica que se mantém, em sua grande maioria, cercada de certo ceticismo quando o texto em discussão pertence a essa modalidade literária. (WANDERLEY, 2020, p.55).

Por sua vez, Aubrée, comentando as obras psicografadas por Chico Xavier afirma que o conjunto desses livros “[...] mereceria um estudo muito específico, tanto em nível dos conteúdos simbólicos quanto dos Espíritos-autores.” (2013, p. 150). Tal afirmativa sustenta e motiva o rudimento de poética aqui alinhavado, uma vez que não há, pelo que me consta, estudos sobre a produção poética do espírito de Casimiro Cunha.

1. Rudimento de uma poética

Dada a impossibilidade imediata de se estudar toda a poesia psicografada por Chico Xavier, escolhi o poeta Casimiro Cunha[10] (1880-1914) por ser um dos espíritos de poetas mais psicografados por Chico. Além de estar presente em várias antologias, incluindo a primeira e mais respeitada delas, O Parnaso de Além-túmulo, em que figura ao lado de grandes e celebrados poetas da história da língua portuguesa; é autor solo de outras seis obras, a saber: Cartas do Evangelho (1941), Cartilha da Natureza (1944), Gotas de luz (1953), História de Maricota (1947), Juca Lambisca (1961, psicografado por Chico e Waldo Vieira) e Timbolão, (1962); as três últimas, dedicadas ao público infantil. Às crianças, Cunha também publicou, pela psicografia de Marilusa Moreira Vasconcellos, outros quatro livros: A Minhoca; Toninho Tortinho; Gaudêncio; Adelina, a tartaruga risonha

Para o estudo de sua produção poética, foram analisados todos os livros de poemas psicografados por Chico Xavier que contivessem textos de Cunha, chegando a um total de 601 poemas distribuídos em 76 livros publicados ao longo de 67 anos. Por questões metodológicas e, principalmente, de extensão do artigo, apresento, a seguir, a análise dos três livros solo de Cunha que serviram como base para as constatações sobre sua poética.

1.1. Sobre Cartas do Evangelho

Primeiro livro solo do espírito de Casimiro Cunha, Cartas do evangelho foi publicado pela editora LAKE em 1940 ou 1941, sendo psicografado por Chico Xavier. Depois de algumas reedições, ficou fora de catálogo até retornar em 2020, pela mesma editora. Como é habitual a livros espíritas, a arrecadação resultante das vendas das Cartas era destinada a uma instituição assistencialista, no caso específico, a Casa da Criança em Campos, Rio de Janeiro. Em nota da editora à edição de 1983, o livro de Cunha seguiria tendo o mesmo intuito, no entanto, na ocasião, em benefício da Casa da Criança de São João Batista da Glória, Minas Gerais.

O prefácio, ditado pelo espírito de Nina Arueira, deixa clara a intenção caridosa do livro:

Estas cartas, portanto, são uma correspondência do céu. Seu preço pode, assim representar o de uma taxa comum, como a dos selos do mundo, sobre a mensagem de um coração distante e amigo. E no caso presente a moeda dispendida é a moeda do céu, porque nos mundos purificados todos os bens são adquiridos pelo valor sagrado e definitivo da virtude.

Vê, pois, leitor amigo, que sua cooperação material será convertida em agasalho e proteção para os orfãozinhos. (p. 7, 1983).

A singeleza da associação entre o valor do selo postal e o do livro e a conversão dessa quantia em cuidados para a manutenção de um lar assistencialista para crianças revela uma das facetas da obra, a caridade, a outra, a mensagem evangélica, é retratada assim, ainda por Arueira:

A presente mensagem, tão simples na sua rima, e tão grande na sua expressão ideológica, é o amoroso convite ao banquete do Evangelho. Inicia a leitura e medita. Esclarecendo as suas dúvidas, lhe iluminam, balsamizando as feridas que sangram dentro d’alma, aliviando o coração. Sobretudo, estas cartas preparam o seu espírito para sentir e compreender melhor o ensinamento d’Aquele cujas palavras não passarão. (p. 8, 1983).

Como obra de cunho religioso, não há que se estranhar o declarado apelo às questões cristãs ou outras da mesma ordem. O ideário evangelizador perpassa toda a produção de Cunha podendo mesmo ser considerado como um projeto poético.

O título da obra foi sugestão de Emmanuel em psicografia de 1940 quando diz: “As quadras de Casimiro são um nobre esforço. Seria interessante, pois, o título de ‘Cartas do Evangelho’. Traduziria um correio espiritual da Boa Nova, tão nova que se encontra no mundo, há dois milênios, com todo o saber de oportunidade para os homens.” (p. 2, 1983). O aceite da ideia foi, de fato, acertado. O livro é um convite à leitura evangélica pelo prisma kardecista.

Dividido em duas partes, Cartas e Outros Poemas, o livro é composto de poemas de variadas extensões, o maior, Carta aos Médiuns, com vinte estrofes e o menor, No Serviço, com uma estrofe (único poema que não é composto de quartetos, é, pois, uma sextilha), sendo a maior parte deles com extensão entre quatro e quatorze estrofes. São compostos de quartetos em redondilha maior com esquema de rimas ABCB, há, entretanto, raríssimas exceções no esquema de rimas, como no poema Bilhete aos Estudiosos e outros quartetos isolados em que a rima é ABBA.

Na primeira parte do livro são vinte e cinco cartas remetidas a personagens alegóricos, se assim os posso chamar, uma vez que representam um grupo, como, por exemplo, Mães; Famílias; Enfermos; Espíritas; Crentes Novos. Independente do destinatário, as cartas versam principalmente sobre a caridade e o trabalho, conceitos que, juntos, representam pilares da doutrina espírita. Precisam, no entanto, serem entendidos de modo lato. Por trabalho, entende-se toda e qualquer atividade que traga benefícios para si e para o próximo, desde que seguindo os parâmetros evangélicos. Assim, o trabalho entendido como labor, como profissão, também são fundamentais para o desenvolvimento moral e humano e devem ser realizados com amor, respeito e dedicação, tentando impedir ao máximo que tais atividades, e postos hierárquicos que nelas se alcancem, sejam motivos para soberbas, arrogâncias, pedantismos. O trabalho também é um ato de caridade, pois entende-se também esse termo como qualquer ação ou atividade realizada em benefício alheio. Para além de donativos, são considerados caridade, por exemplo, a conversa amiga; a visita aos hospitalizados ou presos; a participação em ações solidárias como o preparo da sopa servida aos menos favorecidos ou a prestação de serviços como cortes de cabelos; por fim, a caridade são os atos realizados para o benefício do outro sem que isso lhe cause humilhação e favoreça-lhe o desenvolvimento. A participação em atividades de biblioterapia são, por esse prisma, atividades caridosas. Trabalho e caridade, embora possam ser os temas preponderantes, outros tantos são abordados, como o respeito, a importância da fé, a valorização de atividades simples, o estímulo para encarar a vida com ânimo e coragem.

Tomando por base os títulos das cartas (e, por conseguinte, parte dos temas), é possível agregar algumas delas em blocos. Teríamos:

Tratando das Cartas em si, dos poemas, destaca-se o uso de vocativos como meu irmão, minha irmã e, o mais usado, meu amigo. Elemento característico das cartas, o vocativo tem o papel de chamar o leitor para o texto, de inclui-lo e de particularizar a mensagem, transmitindo a ideia de que o texto foi escrito para aquele que o lê; conferindo, assim, um tom de pessoalidade, de intimidade entre o remetente e o destinatário. Esse recurso desafetado, pouco habitual em poemas, somado ao uso da primeira pessoa do singular por parte do eu-lírico, quebram a transcendentalidade da poesia tão afeita à mensagem universalizantes. Todavia, aproximam ainda mais leitor e texto, passando mesmo, a uma relação leitor-texto-poeta, algo bem ao gosto dos poetas românticos, que ao invés de prejudicar o texto enquanto poema, o favorece em sua intenção e intencionalidade, pois o leitor pode, de fato, sentir-se o real destinatário daquele poema ou daquela carta, no caso específico da obra estudada. Como exemplo, veja-se o poema Carta aos Cegos (CUNHA, 1983, p. 83): 

Carta aos Cegos

1. 

Na romagem dolorosa

Da vida de provação,

Também trazia os meus olhos

Iguais aos teus, meu irmão

2.  

Mas, se a estrada era obscura,

Se a noite era tão sombria,

Guardava, como tu guardas,

As vibrações de alegria.

3.  

É que, entre as sombras terrestres,

Na tua meditação,

Sabes ver os resplendores

Das luzes da redenção.

4.  

Talvez que de olhos sadios

Deixastes o teu sensório

Perder-se pelo caminho

Do sentimento ilusório.

5.  

Todo aquele que recebe

A provação da cegueira,

Sabe orar, sabe esperar,

Vendo a vida verdadeira.

6.  

Não percas a tua fé.

A crença é a grande conquista

De quem resgata no mundo

O abuso dos dons da vista.

 7. 

Guarda a esperança em Jesus, (v.25)

Na dor, não te desanimes... (v.26)

A cegueira é o resultado (v.27)

De muitos dos nossos crimes... (v.28)

8.  

Nos tempos que já se foram,

Muitos de nós, meu irmão,

Fomos verdugos terríveis, (v.31)

Plantando a desolação. (v.32)

9. 

Os grandes desvios d'alma,

No erro amargo e mesquinho,

São reparados na sombra

Que nos envolve o caminho.

10. 

A cegueira é uma estação

De corrigenda ou de cura,

Onde o espírito se aclara

Visando a estrada futura...

11. 

Portanto, as horas de sombra,

No curso de uma existência,

São nossa reintegração

No amor e na inteligência.

12. 

Meu amigo, continua

Alegre na fé, no amor;

Quem não sente a Luz de Deus

É um cego mais sofredor.

13.  

Também fui cego do corpo, (v.49)

Na senda de expiação,

Mas nunca guardei comigo (v.51)

As trevas do coração. (v.52)

14. 

Depois das sombras espessas

Nas lutas da humanidade,

Verás a alvorada eterna

Da luz da Imortalidade.

Os quatorze quartetos que compõe o poema em redondilha maior e rimas ABCB exemplificam o que já foi dito sobre a estrutura básica dos poemas de Cunha. O texto explora um dos fundamentos da doutrina espírita, a Lei de Causa e Efeito, que, de modo resumido, prega que toda ação realizada em vidas pregressas gera lucros e déficits, portanto a cegueira que se vive hoje é o resgate de uma dívida contraída em alguma outra vida. É o que se lê nas estrofes 6 a 9, mais especificamente nos dois últimos versos da sétima (“A cegueira é o resultado/De muitos dos nossos crimes...”, v.27-28) e da oitava estrofes (“Fomos verdugos terríveis,/Plantando a desolação.”, v.31-31). A cegueira da vida atual é uma provação, uma chance dada por Deus, para que se corrija exageros cometidos em outras encarnações. Nas palavras do poeta, remetente e destinatário da carta, foram verdugos, ou seja, pessoas más, algozes, que se regozijavam dos males que impingiam aos outros; essas atitudes, reprováveis aos olhos divinos, são a causa da cegueira que, por sua vez, é o efeito do qual não se pode escapar. Cabe àquele que passa pela provação (a cegueira, no caso) vencê-la sem se lamuriar, aceitando-a como consequência de seus atos e mantendo a fé em Deus e numa vida melhor no plano espiritual. São os reparos de que se fala na nona estrofe, que possibilitará ao indivíduo sanar as dívidas pregressas.

Desde a primeira estrofe vê-se as marcas de pessoalidade do texto. Os terceiro e quarto versos marcam a identificação entre o poeta e o leitor com o vocativo “meu amigo” e com a similaridade da doença, a cegueira. Informação confirmada na estrofe 13, “Também fui cego do corpo” (v.49), que traz outra informação importante ao leitor: “Mas nunca guardei comigo/As trevas do coração” (v.51-52). Em outras palavras, ainda que a cegueira seja um pesado fardo, deve-se enfrentá-la sem rancores ou amarguras, preservando no coração apenas bons sentimentos, como a fé em Deus (“Guarda a esperança em Jesus,/Na dor, não te desanimes...”, v.25-26, est.07) e numa vida futura (“Verás a alvorada eterna/Da luz da Imortalidade”, v.55-56, est.14).

Quanto à segunda parte do livro, Outros Poemas, trata-se da reunião de vinte e oito poemas de temas variados, no entanto, seguindo a linha das Cartas e da maioria dos demais poemas de Cunha, versam sobre como ver e encarar o mundo pelo prisma espírita. Assim, a esperança de uma vida melhor no plano espiritual; o entendimento de que a Terra é um planeta de provas e expiações; a necessidade da caridade e da autorregeneração moral, chamada de reforma íntima pelos espíritas, são temas constantes.

Tal qual nas Cartas, alguns poemas são destinados a grupos, ou melhor dizendo, a uma alegoria, como: Ao Investigador; Ao Bom Semeador; Ao companheiro Ideal. Chama a atenção outras similitudes como os casos de dois poemas que tratam de nações, A Pátria do Futuro e Brasil, e de seis textos dedicados às pessoas ou entidades, No Banquete do Amor; Boa Noite; Uma Saudação; Oração; A Escola de Jesus Convida e Nina de Deus. Destes, deve-se destacar os três últimos que são homenagens à Nina Arueira e a sua obra, no caso, a Escola Jesus Cristo. As homenagens se justificam, como dito mais acima, por se tratar de uma obra destinada a primeiro, levar mensagens de fé e esperança aos leitores, e, segundo, ter a renda advinda das vendas revertidas para instituições de caridade. Nina Arueira, teria sido inspiradora da criação da Casa da Criança, que seria, por sua vez, uma réplica no plano material da Escola Jesus Cristo criada por ela no plano espiritual.

Como exemplos dos Outros Poemas, leiamos os já mencionados Brasil (CUNHA, 1983, p. 122) e Pátria do Futuro (CUNHA, 1983, p. 128).

BRASIL

Plantou Ismael no Brasil
Uma bandeira de amor.
Feliz quem pode enxergar
O seu divino esplendor.
Estandarte do Evangelho,
Cor do luar da esperança,
Que vem trazer de Jesus
A doce e eterna aliança.
Bendito seja o operário
Das oficinas da luz
Que colabore na paz
Da Terra de Santa Cruz.
Porque do Brasil imenso
Que Ismael ama e conduz,
Renascerão para o mundo
As leis do amor de Jesus.

O poema segue a estrutura habitual de Cunha, quartetos em redondilha maior e esquema de rimas ABCB. Trata, como indica claramente o título, do Brasil e faz referência, ou pelo menos faz uma alusão, ao livro Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho[11], ditado a Chico Xavier pelo espírito Humberto de Campos. O poema refere-se ao Brasil como a pátria do evangelho de Cristo e como lugar abençoado e privilegiado para aqueles que aqui habitam, pois, querendo, podem desempenhar importante papel a na divulgação dos ensinamentos cristãos, mensagem da penúltima estrofe. Dirigido pelo Anjo Ismael, o Brasil é o responsável pela propagação dos preceitos do Cristo pelo prisma espírita, como se observa na última estrofe. O Brasil seria, portanto, a nação escolhida por Jesus para ser a propagadora do amor e da fé cristã pelo viés da doutrina espírita e caberia aos seus habitantes a tarefa de porta-vozes e exemplos desses ensinamentos.

Noutro poema, A Pátria do Futuro, o poeta prevê um mundo sem guerras em que todos consideram-se irmãos e que as fronteiras entre países deixaram de ser importantes, pois haverá apenas uma pátria e uma bandeira, a Luz e a Paz, governadas apenas por Jesus. Assim termina o poema que, publicado em plena Segunda Grande Guerra, roga para que os cidadãos se enxerguem com irmãos e rechacem as guerras (segunda estrofe) que há tempos afligem as populações e retardam o desenvolvimento harmonioso do planeta, como afirma nas primeira e terceira estrofes.

A PÁTRIA DO FUTURO

Tempo virá neste mundo,
Em que todas as nações
Serão famílias unidas
No templo dos corações.
Quando o homem se afastar
Do negro dragão da guerra,
Cujo hálito empestado
Infesta os ares da Terra.
Nesse dia da vitória
Dos pensamentos cristãos,
Os homens hão de se amar
Com o sentimento de irmãos.
Haverá então no globo,
Uma só pátria – a da Luz,
Uma bandeira – a da Paz
E um só Pastor, que é Jesus.

Ambos os poemas, formam como que uma unidade, um só poema, escrito para avisar que enquanto não houver paz e harmonia entre as pessoas, enquanto elas continuarem a tratarem-se como inimigas ao invés de irmãos, as guerras continuarão, assim como o sofrimento trazido por elas. Caberia, então, ao Brasil, ser o exemplo de convívio equilibrado e harmônico entre os povos dos mais distantes rincões do planeta. O país de onde viriam as mensagens e obras daqueles que creem que os ensinamentos de Jesus devem unir as pessoas e ajudá-las em seu progresso.

Cartas do Evangelho é, portanto, um livro de mensagens diretas e claras, as metáforas são simples, as comparações são quase evidentes. Livro de leitura rápida, mas que exige reflexão duradoura e diuturna pois visa auxiliar na reforma íntima do leitor ao despertá-lo para uma visão de mundo menos materialista, menos egoísta e menos queixosa, ou seja, uma visão de mundo espiritualizada, altruísta e resignada.

1.2. Sobre Cartilha da Natureza

Cartilha da Natureza, de 1943 ou 1944, também foi psicografado por Chico Xavier. É o segundo livro solo do espírito Casimiro Cunha e, assim como as Cartas, traz prefácio escrito por Emmanuel, no qual apresenta o livro como sendo uma valiosa contribuição para o desenvolvimento espiritual dos leitores. Intitula seu prefácio de A Grande Fazenda e utiliza como epígrafe a passagem bíblica de Lucas (15:12) “E ele repartiu por eles a fazenda”; a partir daí, expande a metonímia da fazenda para toda a natureza, referindo-se, por tanto, à toda a criação divina (fauna, flora, biomas, seres humanos etc.) a qual devemos zelar e com a qual devemos aprender. A natureza não seria apenas o ambiente onde vivemos, mas também fonte de riquíssimas lições. Por um lado, a doutrina kardecista prega que a Terra é um planeta de provas e expiações, portanto, um local propício para o aprendizado e a evolução do espírito. Por outro lado, além das lições advindas das provações, o contato com a natureza (a fazenda divina) propicia instruções a cada instante, restando às pessoas estarem atentas para vê-las; nas palavras de Emmanuel:  

A Natureza é sempre celeiro abençoado de lições maternais. [...] Casimiro dá notícias das coisas simples, cheias de ensino transcendental. [...] É o ensino espontâneo dos elementos, o alvitre das paisagens que o hábito vulgarizou, mas se conservam repletas de lições sempre novas.” (1979, p.7-8).

O título do livro é bastante apropriado ao seu conteúdo. Cartilha está assim defina: “ s.f. 1 livro que ensina a ler 2 explicação elementar 3 maneira de pensar, padrão” (HOUAISS, 2001, p.82). As três acepções dicionarizadas servem para ilustrar os 101 poemas do livro em questão. Quanto a primeira, de fato, os poemas nos ensinam a ler, não a decodificação das letras e palavras, mas os sinais e elementos naturais. Quanto a segunda, realmente nos parece elementar as lições passadas pela cartilha, mas oculta que estavam necessitavam do livro para que as explicitassem. Quanto a terceira acepção, com efeito, o livro tem a pretensão de incutir no leitor uma determinada maneira de encarrar a vida, logo, apresentar um padrão. Cartilha da Natureza é, deveras, um livro didático que busca na natureza e nas criações humanas exemplos para direcionar os leitores em suas escolhas, suas ações, por fim, em sua vida, com vistas ao seu desenvolvimento espiritual.

Cartilha segue o padrão do livro anterior: redondilha maior, rimas ABCB. São poemas de dez estrofes, sendo a última apartada das demais, cumprindo a função de resumo, de lição de moral do poema. Assim, os poemas assemelham-se às fábulas e reforçam a tese de texto didático. Apenas dois textos, O Regador e O Poço, fogem ao padrão por apresentarem duas estrofes de conclusão.

Os poemas versam sobre elementos da natureza (semente, nuvem, árvores, animais), assim como sobre feitos humanos (tijolo, carro, enxada, vidraça), todos corriqueiros e singelos no sentindo de que são elementos que, se não vistos com frequência, fazem parte, direta ou indiretamente, do cotidiano de muitos. 

Os poemas da Cartilha têm por intuito básico mostrar ao leitor que está cercado de bons exemplos de como enfrentar diversas situações na vida e que para aprender com tais exemplos basta estar atento às situações e coisas mais singelas, corriqueiras e elementares que o cercam, pois, sendo todas elas criações divinas ou humanas com a permissão de Deus, são lições valiosas para a evolução espiritual.

Um termo chama a atenção dentre tantos nos poemas. A palavra TRABALHO e suas variantes, ou que pertençam a seu campo temático, são as mais frequentes. Trabalho, serviço, obra, tarefa, assim como outros termos que denotam a ação efetiva em prol de algo como esforço, labor, lida. Constata-se disso, a preocupação de Cunha com a inatividade das pessoas ante situações que podem valerem-lhe dividendos espirituais, quitação de débitos anteriores. Ou ainda, a tentativa do poeta em incentivar seus leitores a aproveitarem a menor oportunidade que tenham para evoluírem moralmente.

O poema de abertura da obra, A Fazenda, é bom exemplo de como o agir é importante nesta obra de Cunha.

A FAZENDA

1. 

O dia vem longe ainda,

Fulgura o brilho estelar...

Mas nos campos da fazenda

É hora de trabalhar.

2. 

O dever chama aos serviços

Da luta risonha e sã, (v.06)

Na divina voz das aves

Que cantam pela manhã.

3. 

A tarefa atinge a todos

Nos roçados, no paiol,

Tudo expressa movimento

Precedendo a luz do sol.

4. 

Ali, corta-se, acolá

Dispõe-se de novo a leira,

Aqui, combate-se os vermes

Que atacam a sementeira.

5. 

Ninguém para. Todos lutam. (v.17)

Há cantares da moenda,

Contando a história do açúcar

Nos caminhos da fazenda.

6. 

Entretanto, se o programa

É repouso, calma e sono,

Em breve, a propriedade

Vive em trevas do abandono. (v.24)

7. 

Serpentes invadem campos, (v.25)

Há cipó destruidor,

O mato chega às janelas,

Procurando o lavrador.

8. 

Enquanto a enxada descansa

Esquecida e enferrujada,

A casa desprotegida (v.31)

Prossegue em derrocada. (v.32)

9. 

Quem não vê na experiência

Tão simples, tão conhecida,

A zona particular

Nos quadros da própria vida?

10. 

Rico ou pobre, fraco ou forte, (v.38)

Não te entregues à inação, (v.39)

Que a vida é a fazenda augusta (v.40)

Guardada na tua mão.

O texto descreve as atividades laborais numa fazenda, que começam cedo, são intensas, são acompanhadas dos cantos dos pássaros e das moendas e estão de alguma forma entrelaçadas, se não diretamente, ao menos para o progresso da propriedade. É o que se lê nas cinco primeiras estrofes. Toda a atividade deve ser realizada com alegria pois é uma oportunidade de crescimento (Da luta risonha e sã, v. 6.), por isso “Ninguém para. Todos lutam.” (v. 17).

As estrofes 6, 7 e 8 são alertas contra a imobilidade, a preguiça, o desmazelo que abrem passagem para maus pensamentos e para perturbações espirituais. São as trevas do abandono (v. 24) possibilitando que as Serpentes que invadem [invadam] campos (v. 25), pois A casa desprotegida/ Prossegue na derrocada (v. 31-32).

Na nona estrofe, a pregunta retórica que explicita a metáfora da fazenda: “Quem não vê na experiência/Tão simples, tão conhecida,/A zona particular/Nos quadros da própria vida?”. Sendo, pois, a fazenda a própria vida, as tarefas são os desígnios rumo à evolução, são elas que nos mantêm com forças para alcançar o objetivo final, são elas que nos esclarecem os pensamentos para que vejamos lucidamente o que se deve ou não fazer; enquanto a apatia tudo retarda e dificulta. O poeta chama a atenção do leitor para os malefícios da letargia e do relaxamento que podem pôr todo o trabalho de uma vida a perder.

A última estrofe, a lição de moral, reforça a tese de que cada um tem as rédeas de sua própria vida em mãos e cabe a si fazer o necessário para progredir. Assim como numa fazenda, o trabalho constante e grato gera bons frutos (“Que a vida é a fazenda augusta/Guardada na tua mão”, v. 39-40), enquanto a negligência e a preguiça podem pôr a perder toda uma encarnação (“Não te entregues à inação”, v. 38).

Ainda que o leitor não seja conhecedor da doutrina espírita, o poema continua válido e consegue transmitir sua mensagem, qual seja, trabalhe e lute constantemente e feliz, assim logrará êxito e afastará pensamentos e sensações negativas que podem perturbar seus dias. O poeta consegue alcançar o público não-espírita porque se utiliza de metáforas simples, de comparações envolvendo elementos comuns a muitos, o que facilita a leitura e interpretação do poema (e dos demais poemas do livro) ampliando a gama de público-leitor, podendo chegar até mesmo aos mais simples e menos escolarizados.

O poema que fecha a obra, O Despertador, é outro bom exemplo do chamado ao trabalho anunciado por uma metáfora bastante simples. No poema, o relógio tem sua função de marcar as horas e de alertar a chegada de um momento importante valorizadas. 

O DESPERTADOR

1. 

O relógio é o grande amigo

Na vida da criatura;

Acompanha-lhe a viagem (v.03)

Desde o berço à sepultura. (v.04)

2. 

Metódico, dedicado,

Movimentando os ponteiros,

Marca os risos infantis (v.07)

E os gemidos derradeiros. (v.08)

3. 

Revela oportunidades,

Mostra a bênção do minuto,

Indica tempo à semente, (v.11)

Como indica tempo ao fruto. (v.12)

4. 

Mas de todos os relógios

Que atendem cheios de amor

É justo salientar

O amigo despertador.

5. 

Quando alguém dorme ao cansaço,

Ele vibra, ajuda e vela,

Ritmando o tique-taque,

Tem coisas de sentinela.

6. 

Na hora esperada e justa,

Pontual, invariável, (v.22)

Chama à luta o companheiro (v.23)

Em bulha desagradável.

7. 

O seu barulho interrompe

O repouso desejado,

Acorda-se quase à força,

Levanta-se estremunhado.

8. 

Mas, somente ao seu apelo,

Há lembrança dos serviços,

Buscando-se incontinenti (v.31)

A zona dos compromissos. (v.32)

9. 

Assim, na vida comum,

Nas lutas de redenção,

Todo o tempo é precioso

Em qualquer situação.

10. 

Mas o tempo que nos fere,

Em provas, serviço e dor,

É o melhor de todos eles,

É o nosso despertador.

O poeta anuncia o relógio como companheiro de toda a vida, do nascimento até a morte (“Acompanha-lhe a viagem/Desde o berço à sepultura.”, v.3-4). Jamais estamos alijados das horas e as buscamos marcar e singularizar em datas importantes (“Marca os risos infantis/E os gemidos derradeiros.”, v.7-8). Na terceira estrofe, o relógio, como o calendário, indica os momentos propícios da semeadura e da colheita (“Indica tempo à semente,/Como indica tempo ao fruto.”, v. 11-12).

A partir da quarta estrofe o relógio tem sua função despertador enaltecida. É comparado a um amigo fiel que faz sua função com amor e, na quinta e sexta estrofes, infalível, alerta o amigo que é chegada a hora da ação (“Pontual, invariável,/Chama à luta o companheiro”, v.22-23). Ainda que por vezes o chamado seja pouco prazeroso, que se pense em não o atender, o poeta lembra que o despertador segue importante, lembrando-nos dos compromissos, mesmo que árduos, são fundamentais para nossas vidas (“Buscando-se incontinenti/A zona dos compromissos.”, v. 31-32). Ratifica a ideia na nona estrofe em que destaca a importância do tempo para se alcançar a redenção e, consequentemente, para alcançar a evolução espiritual. Termina o poema associando o tempo que nos regra às provas, expiações e dores, que nos devem despertar para a missão de melhoramento e quitação de débitos cármicos (“Mas o tempo que nos fere,/Em provas, serviço e dor,/É o melhor de todos eles,/É o nosso despertador.”).

Cartilha da Natureza abre-se e fecha-se conclamando o leitor ao trabalho edificante, à atividade reparadora e à ação construtiva através de metáforas que envolvem elementos da natureza (rios, árvores, animais) e feitos e obras humanas (usina, carro, ponte), todas, em verdade, benesses divinas repletas de lições e ensinamentos que não deveriam passar despercebidos, pois representam grande presente de Deus a nos rodear e ensinar.

1.3. Sobre Gotas de Luz

Gotas de luz, de 1953, é o terceiro livro solo de Casimiro Cunha, mais uma vez psicografado por Chico Xavier. Assim como os demais livros, esse traz o prefácio assinado por Emmanuel que reconhece mais uma vez a capacidade poética de Cunha em tratar dos temas caros ao espiritismo. O prefácio é intitulado Um Pássaro Espiritual e compara os poemas e Cunha à história de uma pessoa que estava pronta para cometer um assassinato, mas foi demovida do intento ao ouvir o canto de um canário. O canto providencial da ave foi interpretado pelo aspirante a assassino como um sinal divino. Extasiado com o canto, o homem, tomado de bons pensamentos, foi-se embora sem cometer o crime. Para Emmanuel, os poemas de Cunha são como o canto do canário, capazes de levar luz às mentes sombrias, resultando verdadeiras gotas de luz para os leitores.

São 43 poemas que versam sobre diversos assuntos, todos sob o prisma cristão espírita, temas já tratamos nos outros dois livros abordados e presentes como muita frequência na produção de Cunha, a saber: trabalho, caridade, respeito, amor ao próximo, autorreflexão, incentivo a conhecer e seguir os passos de Jesus Cristo pelos evangelhos.

Os poemas são intitulados, em sua maioria, com palavras ou expressões que remetem a coisas pequenas, exíguas, sucintas; o mais das vezes, referem-se à ideias e pensamentos expressos de forma sintética, por exemplo: Máximas, Anexins de sempre, Provérbios, Aforismos, Ilações. Outras vezes, assumem características evidentes de certa intimidade com o leitor, como se os versos que trazem fossem verdadeiros recados a ele; é o que se vê em: Mensagem de vigilância, Comentários, Recados, Lembretes, Temas. Outros títulos ainda fazem menção àquilo que na natureza é pequeno e, por vezes, passa despercebido, como: Centelhas, Grãos de verdade, Grãos de luz, Gotas, Pétalas, Seixos, Pingos. Todas essas referências àquilo que é diminuto, compõem bem o título do livro, uma vez que as quadras de Cunha, pequenas em sua extensão, convidam o leitor à reflexão, proporcionando-lhe momentos de luz.

Quanto à estrutura, os textos seguem aquilo que, a meu ver, é uma característica de Cunha: quartetos em redondilha maior, com rimas no esquema ABCB. Os poemas não trazem, em sua maioria, uma unidade temática, não são poemas sobre um assunto específico. O que à primeira vista pode parecer um descuido, mostra-se, ao contrário, acuro. A evidente diversidade interna dos poemas se justifica se tomarmos como referência o leitor que lê poucos ou apenas um poema por dia (algo bastante comum, principalmente em se tratando de poemas espíritas, lidos, às vezes, como aberturas ou encerramentos de reuniões públicas ou domiciliares, antes de se dormir, ao acordar; por fim, como um texto de reflexão que abre ou fecha um dia ou encontro de pessoas). Tal leitor teria, portanto, em algumas quadras, posso mesmo dizer, trovas, reflexões sobre mais de um assunto ou tema, enriquecendo esse rápido momento dedicado à leitura com mais de uma informação validada para seu dia. Noutro momento de leitura, novamente o contato com diversos assuntos. Assim, Gotas de luz garante ao leitor, em um único poema, lembretes, máximas, grãos, gotas de luz para suas reflexões espirituais. O que aparentemente era falta de unidade textual, ganha unidade poética e simbólica. 

Vejamos como exemplos os poemas Gotas (CUNHA, 2016, p.57) e Palhetas (CUNHA, 2016, p. 63).

GOTAS

1. 

Insultos, provocações,

Não retenhas na memória.

A inveja é sempre um tributo

Que a mesquinhez rende à glória.

2. 

Não te esqueças da bondade

No trato com toda a gente.

É tão difícil ser justo

Que mais vale ser clemente.

3. 

Quando estamos dominados

Pelo egoísmo vibrante,

O mal alheio é um cabelo

E o nosso é sempre um gigante.

4. 

Humilhações do caminho

São golpes e ulcerações.

Mas quem humilha a si mesmo

Recolhe grandes lições.

5. 

Realmente, somos donos

Dos olhos, dos pés, dos braços,

Mas Deus é sempre o Senhor

Da força de nossos passos.

6. 

A riqueza que garante

Bondade, paz e alegria,

Caminha por toda a parte

Como o Sol que se irradia.

7. 

Foge à sombra da tristeza

E ao gelo do desengano.

Amargura dentro da alma

É como a traça no pano.

8. 

Alma grande consagrada

À virtude meritória

Converte todo fracasso

Em plantação de vitória.

9. 

A luz só encontra a luz

No brilho do próprio seio.

Quem muitas nódoas possui

Vê nódoas no rosto alheio.

10. 

Miséria parada e escura

É sempre triste labéu,

Mas pobreza que trabalha

É condução para o Céu. 

O título do poema, Gotas, refere-se a algo tão comum e corriqueiro que poucas vezes nos chama a atenção. Parte da expressão popular, Isso foi a gota d’água, largamente conhecida e usada, a palavra gota evidencia a importância das pequenas coisas que mesmo dentre tantas outras, às vezes iguais, como gotas, são importantíssimas para a composição geral, o que nos lembra outra conhecida expressão, De grão em grão a galinha enche o papo, assim, é também de pequenos fragmentos que enche a barriga, no caso da expressão, ou o nosso dia, nossa mente, nossa alma, no caso do poema.

A primeira estrofe, que podemos chamar de quadra ou trova, trata tanto de ofensas e de insultos frutos da inveja, quanto de não dar atenção a eles, pois são mostras da mesquinhez alheia. Assim agindo, não se atrai para si más energias, evita-se contaminar-se com pensamentos negativos e mostra que não se importa com opiniões maldosas a respeito de si.

A segunda trova, trata da bondade incondicional, aquela que se deve ter para todo e qualquer ser independente de amigo ou de inimigo, de merecedor ou não de sua boa ação. Alertando para a dificuldade de ser justo e, consequentemente, fazer o bem apenas a quem o mereça. Por isso, melhor ser bondoso com todos para eliminar o risco de ser injusto.

A próxima trova aborda tema importantíssimo ao espiritismo, o egoísmo, considerado uma das maiores chagas morais da humanidade e responsável por retardar o desenvolvimento espiritual de muitos. O poema alerta para o fato de que quando o egoísmo domina o ser, toda e qualquer coisa que se passe com ele é maior, mais importante e urgente do que aquilo se dá com o próximo, afastando assim o egoísta da caridade.

A trova seguinte, quarta estrofe do poema, discorre sobre a resignação.  A mensagem acalanta àquele que sofre com os percalços da vida tratando-os como obstáculos que aceleram o desenvolvimento. Mais mérito e maior desenvolvimento terá aquele que aceita os problemas com resignação.

Marcando a metade do poema, a quinta trova reconhece a autonomia individual sobre o corpo e sobre o que se faz dele, mas lembra que tal visão é materialista e que é Deus que sustenta os passos. Dessa forma, pouca valia tem o extremo cuidado com o corpo, o narcisismo e a altivez, uma vez que sem a fé todo esse conjunto corporal de que se considera dono, perde força na jornada.

A sexta estrofe alude à riqueza e seu uso. Argumenta que aquele que detém grande riqueza e a utiliza para o bem e para o cuidado do próximo emana luz, alegria e amor. Ser rico, portanto, longe de ser algo contrário aos ensinamentos de Jesus, é uma grande oportunidade para que o rico prove seu valor fazendo bom uso de sua fortuna.

A próxima estrofe, a sétima, aborda temática mais intimista. Alega que amargurar-se, guardar tristezas ou outros sentimentos negativos pode desencadear problemas. De modo que, uma vez assimilada a causa da tristeza, superada a amargura, a pessoa deve se reerguer e tentar usar a lição aprendida para crescer. Do contrário, as emoções negativas vão corroê-la e provocar problemas mais sérios.

Oitava trova, a sequência do poema agora chama a atenção para o fato de se reconhecer em cada desencontro, cada contrariedade na vida, uma oportunidade de reparação de débitos anteriores, de crescimento espiritual. Traz, portanto, ao leitor, um acalanto diante das adversidades cotidianas e oferece um modo mais suave de encarar a vida.

Na penúltima trova uma reprimenda ao leitor. Se ele almeja a luz, a paz, a calmaria, por fim, boas vibrações; deve, ele mesmo, emanar tais aspectos para atrair para si as mesmas intenções. Se, pelo contrário, leva o dia a maldizer o próximo, a apontar seus defeitos e deslises, além de nada de benéfico atrair para si está a mostrar que ela mesma está repleta de tais características. Em outras palavras, não aponte as falhas alheias.

A trova que fecha o poema faz nova menção às condições financeiras, dessa vez tratando da pobreza. Mais uma vez a resignação se faz importante. Aceitar a miséria é importante para acabar com ela. O fato de alguém ser pobre não o impossibilita de fazer caridade, pois sempre há quem precise de algum tipo de ajuda, inclusive, e não poucas vezes, de ajuda que não envolve dinheiro. Assim, ser pobre não é desculpa para a inatividade.

Como pôde ser visto, o poema não tem uma unidade temática e as estrofes podem ser lidas como trovas isoladas sem prejuízo do total. Ainda que alguns temas se repitam ou dialoguem entre si, o poema funciona como um multivitamínico, traz mensagens variadas para nutrir as necessidades variadas que o leitor possa ter ao longo do tempo da leitura. 

Sobre o título do próximo poema, Palhetas, parto da seguinte definição: “4. Esc. Lâmina de madeira com que os entalhadores e escultores modelam obras de gesso ou de outra substância maleável” (AULETE DIGITAL). Dentre outras definições, essa parece-me a mais indicada pois coaduna melhor com a finalidade do texto, qual seja, amparar, sustentar, orientar, instruir, por fim, moldar. Se não molda na acepção mais restrita da palavra, por se tratar do leitor a matéria a ser moldada, ao menos intenta fazê-lo com as afirmações dadas nas trovas a seguir. 

PALHETAS

1. 

Sê calmo, por mais que a dor

Surja negra, triste e má.

Ninguém sabe o rumo certo

Do minuto que virá.

2. 

Trabalhe incessantemente

Quem busque ventura e paz.

Se a preguiça segue à frente,

A miséria surge atrás.

3. 

Em teus modos e costumes

Sê generoso e conciso.

Maus modos, em qualquer parte,

São fontes de prejuízo.

4. 

Constrói sobre a retidão

A tua felicidade.

Abismos chamam abismos,

Bondade chama bondade.

5. 

Há dois males que nos fazem

A vida escura e enfermiça:

A chaga da ignorância

E a ulceração da preguiça.

6. 

A queixa de todo instante

É lagarto triste e feio

Que afasta de nossa luta

A bênção do amparo alheio.

7. 

Não menoscabes o ensejo

De servir e de aprender.

Todo minuto é momento

De dar ou de receber.

8. 

Jamais te esqueças na vida

Deste aforismo profundo:

“Quem é bom, dentro de casa,

É bom para todo o mundo.”

9. 

Quem sabe sacrificar-se

Numa questão pequenina,

Revela trazer consigo

A força da Luz Divina.

10. 

Em tua missão no bem,

Sê diligente e tenaz.

Nada se deve no mundo

Àquele que nada faz.

O poema é aberto abordando o tema da paciência e da resignação. Independentemente do que aconteça, das dores que apareçam, é preciso manter a calma, ter fé e paciência para aguardar momentos mais calmos. A incerteza do futuro não pode ser um fator desestabilizante, de modo que tudo pelo que se passa é necessário passar.

A segunda trova trata de dois temas muito constantes nos textos de Cunha: trabalho e preguiça. Muitas vezes discorridos como antíteses, são duas forças conflitantes para o bom desenvolvimento espiritual. Cunha incentiva sempre que possível ao trabalho, à ação, alertando que a inação, a preguiça, são maléficas para uma vida progressista. Essa é a essência da estrofe em questão, trabalhar sempre para galgar degraus mais elevados; o contrário, a preguiça, atrasa a caminhada.

A trova que segue versa sobre comportamento, sobre como se portar ante as situações, indicando que é necessário ser generoso sem ser expansivo ou alardear o bem que se está fazendo, uma vez que para a doutrina espírita, mais mérito tem a caridade silenciosa, aquela que tem como objetivo verdadeiro ajudar o próximo e não o de autopromoção. A estrofe segue alertando o óbvio, mas tão necessário de ser lembrado, maus modos geram apenas prejuízos. Prejuízos estes de toda sorte: nos relacionamentos, nas vibrações emanadas e recebidas, nos potenciais carmas gerados. Por fim, deve-se agir da melhor maneira possível, visando o bem alheio, e evitar alterações.

A estrofe seguinte liga-se de alguma forma à anterior se pensarmos que atenta para o fato de que a bondade atrai a bondade, a felicidade atrai a felicidade; em contrapartida, a maldade atrairá a maldade, a tristeza, mais tristeza. Portanto, tal qual a estrofe anterior, o poeta alerta que a conduta que se tenha gerará conduta semelhante dos outros.

Segue o poema com a retomada do tema preguiça agora juntamente com o da ignorância. Tratados como dois males que atrapalham a vida e retardam o desenvolvimento. Mais uma vez Cunha alerta para a necessidade de não se estacionar, de agir sempre. Se pensarmos os temas em diálogo, é possível afirmar que a preguiça nessa estrofe se refira à falta de vontade ou de iniciativa para os estudos doutrinários e evangélicos que, por sua vez, tiram o indivíduo da ignorância. O espiritismo é reconhecido pelo incentivo ao estudo como base de uma fé raciocinada.

A estrofe seguinte, a sexta, volta a abordar a resignação pela vertente das queixas. Em outras palavras, quer o poeta dizer que a reclamação constante, que demonstra incompreensão dos desígnios e das provas pelas quais se deve passar, afastam aqueles que nos poderiam ajudar. Logo, resignar-se, aceitar os problemas, e não manifestar a todo momento insatisfação, atrai ajuda.

A sétima trova toca o ponto de aproveitar todas as oportunidades, mesmo aquelas que pareçam ruins, para o aprendizado e para a caridade. O aprendizado, no caso, seria o empírico, muito mais eficaz que o teórico e que, por sua vez, dá a oportunidade de colocar em prática o que se estudou. Dessa forma, toda situação é importante que o progresso particular.

O poema chega à oitava estrofe retomando, em certa medida, a terceira. Fazendo referência a um aforismo que prega que a bondade deve começar dentro de casa, portanto, para com o núcleo familiar mais próximo; o poeta relembra ao leitor que ser caridoso com estranhos e desconhecidos tem, evidentemente, seu valor, no entanto, as boas ações devem começar para com aqueles com quem convivemos todos os dias em nossos lares. O núcleo familiar é, para o espiritismo, onde se concentram as principais provas e expiações pelas quais devemos passar.

A penúltima estrofe sobreavisa da importância das pequenas coisas, das situações corriqueiras, que não devem ser negligenciadas pois constituem importantes ensejos para a caridade. Fazendo jus ao título do livro, essa estrofe busca lembrar que a cada instante Deus nos coloca em situações nas quais podemos mostrar nosso valor.

Fechando o poema, o poeta relembra a importância de sempre estar em atividade, com tenacidade, ágil e solícito, pois a existência nesse plano terrestre deve ser cheia de missões e ajustes de contas; nada será resolvido, nenhum mérito terá a pessoa que pouco ou nada fizer em sua estada na Terra.

Por fim, o poema privilegiou temas como resignação, trabalho, preguiça, paciência; postos de modo a contemplar mais de um estado de ânimo do leitor. Se pensado como um conjunto de trovas que podem ser lidas separadamente, o poema possibilita com agilidade e rapidez, acesso a algumas questões caras à doutrina espírita, instigando o leitor a refletir sobre todas elas ou sobre aquela que lhe pareça mais adequada no momento.

Se a falta de unidade pode parecer um índice de má qualidade poética, revela-se, pelo prisma aqui apresentado, uma qualidade. Pensando nas mais diversas aflições pelas quais o leitor pode estar passando no momento da leitura, Cunha oferece várias vias de escape, de autoentendimento, de consolação e de ânimo necessários para motivar o leitor e elevar seu padrão vibratório.

Gotas de luz, cumpre o que promete, oferecer fragmentos de poesia, poemas-pílula a la Oswald de Andrade (sem a carga irônica e cômica), para iluminar o instante da leitura, para levar o leitor a reflexão sobre sua conduta e suas ações por meio de uma linguagem simples, direta e musical.

Considerações finais

Pela análise dos três livros de Cunha é possível afirmar que se trata de um poeta comprometido com a causa espírita, mas, mais que isso, comprometido com o ser humano. A parte de toda e qualquer crítica que se possa fazer sobre a literatura espírita e sobre obras que possam ser taxadas de autoajuda e, consequentemente, de menor valor literário; é preciso ter em conta que os poemas de Cunha têm um propósito muito claro: colaborar na evolução espiritual do leitor trazendo-lhe conforto e convidando-lhe à reforma íntima. O mesmo propósito é defendido por Rocha quando afirma que: 

A função dos poemas [...] é a de levar a mensagem de que a vida não cessa após a morte, a de contribuir para o progresso espiritual e a de reconfortar aqueles que se debatem nas paixões terrestres, reavivando-lhes as esperanças. (2001, p. 213).

Tendo-se, pois, isso em mente, percebe-se o valor das trovas de Cunha, a quem passo chamar de o Trovador do Evangelho. Seus poemas simples conseguem alcançar uma gama de leitores que busca mensagens que a possa tocar, comover, incentivar ou repreender, mas que acima de tudo, a incentive a persistir tendo como parâmetro os ensinamentos de Jesus. O trovador mostra-se hábil em construir versos concisos com imagens singelas, de fácil entendimento por um público nem sempre habituado à verborragia e à metafísica de textos, considerados por alguns, mais elaborados. A simplicidade de Cunha é proposital dado o compromisso evangelizador de sua poesia. Compromisso, aliás, de toda a literatura espírita, de acordo com Rocha que atesta as

finalidades educativas deste tipo de literatura, que pretende alargar nossas noções de realidade, apresentando novos fatores de compreensão e novos mundos, que seriam capazes de demonstrar, entre outras pretendidas revelações, a validade das leis morais presentes nos evangelhos e interpretadas pelo espiritismo. (2001. p.217).

Sua qualidade como poeta, se alguém a quiser questionar, pode ser vista, por exemplo, nos quinze poemas publicados no Parnaso de Além-túmulo, de 1932, no qual, ao lado de poetas consagrados, pouco ou nada deixa a desejar em labor artístico em relação aos outros poetas. 

Quando um poeta consegue escrever tantos poemas sobre a mesma temática, ou pelo menos, sobre um mesmo campo temático, sem se repetir e com o mesmo vigor ao longo de mais de sessenta anos (considerando os livros psicografados por Chico Xavier entre 1932 e 1999) percebe-se que realizou seu projeto poético e, no caso específico de Cunha, seu projeto evangélico.

Muito provavelmente, a utilização de Chico Xavier pela espiritualidade para materializar por sua psicografia tantos livros de poemas seja uma dádiva para os mais necessitados, pílulas de amor a serem ministradas sem moderação e sem contraindicações. Por fim, o estudo mostrou que a poesia espírita tem grande potencial e carece de mais estudos.

Referências

AUBRÉE, Marion. Entre História e Mito: a dinâmica da literatura espírita no Brasil. Revista Caminhos - Revista de Ciências da Religião, Goiânia, v. 10, n. 2, p. 145-156, mar. 2013. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/2459/1521. Acesso em: 17 nov. 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.18224/cam.v10i2.2459.

AULETE DIGITAL. Disponível em: https://www.aulete.com.br/palheta. Acesso em 08 out. 2021.

CUNHA, Casimiro. (Espírito). Cartas do Evangelho. Psicografado por Francisco Cândido Xavier (diversos espíritos). São Paulo: LAKE, 1983.

CUNHA, Casimiro. (Espírito). Cartilha da natureza. Psicografado por Francisco Cândido Xavier (diversos espíritos). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1979.

CUNHA, Casimiro. (Espírito). Gotas de luz. Psicografado por Francisco Cândido Xavier (diversos espíritos). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2016.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

ROCHA, Alexandre Caroli. A poesia transcendente de Parnaso de além-túmulo. 2001. 226p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1591286. Acesso em: 17 nov. 2022.

SILVA, Ana Cláudia da; ABREU E SILVA, Verônica Bemvenuto de. Quem lê livros espíritas?. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 57, p. 1-15, 8 jul. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2316-4018578. Acesso em 20 out. 2020. 

SILVA, Ana Cláudia da; ABREU E SILVA, Verônica Bemvenuto de. Literatura espírita e figurações do feminino em “Há Dois Mil Anos”, de Emmanuel. Cerrados, Brasília, v.53, p. 15-36, dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/issue/view/1944. Acesso em: 10 set. 2022.

SOARES, Ana Lorym. Circulação e recepção da literatura psicografada a partir da coleção A vida no mundo espiritual (1944-1968), de Chico Xavier. albuquerque: revista de história, v. 11, n. 21, p. 40-57, 11 jan. 2020. DOI: https://doi.org/10.46401/ajh.2019.v11.9371. Acesso em: 17 nov. 2022.

WANDERLEY, Naelza de Araújo. Gonzaga e Dorotéia: um amor que renasce e se reconta através dos séculos. Cerrados, Brasília, v.53, p. 37-68, dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/issue/view/1944. Acesso em: 17 nov. 2022.

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Notas

[1] Este artigo é parte da pesquisa pós-doutoral intitulada Da biblioteca à farmácia: a poesia de Casimiro Cunha e a biblioterapia, realizada na Universidade de Brasília durante o ano de 2021, sub a supervisão da Profa. Dra. Ana Cláudia da Silva. A pesquisa tinha o intuito de estudar a aplicabilidade da poesia espírita como recurso biblioterapêutico e a proposição de uma intervenção biblioterapêutica junto à adultos hospitalizados. A pandemia de COVID-19 impossibilitou a realização da intervenção biblioterapêutica durante o ano de 2021. Durante o ano de 2022, além da pandemia, outros fatores impossibilitaram sua realização. Espero poder colocá-la em prática a partir de 2023 e divulgar os dados empíricos em artigos tão logo estejam prontos e analisados.

[2] Para mais informações, confira: https://jornal.usp.br/artigos/novas-badaladas-de-machado

[3] Estima-se que a venda de livros espíritas em 2017 tenha sido algo próximo a 73 milhões de reais. Para mais informações, confira: https://www.espiritualidades.com.br/Artigos/F_autores/FRANZOLIN_Ivan_tit_Mercado_Editorial_Espirita_2017.htm 

[4] MANSUR, Alexandre; CORDEIRO, Tiago. Sucesso do outro mundo. Época. Rio de Janeiro: 2003. On-line. Disponível em: https://glo.bo/2QaU86W. Acesso em: 29 agosto 2021.

[5] Para mais informações sobre obras espíritas adaptadas para televisão, consultar: SOARES, A. L. Circulação e recepção da literatura psicografada a partir da coleção A vida no mundo espiritual (1944-1968), de Chico Xavier. albuquerque: revista de história, v. 11, n. 21, p. 40-57, 11 jan. 2020. DOI: https://doi.org/10.46401/ajh.2019.v11.9371

[6] Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1591286

[7] Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/issue/view/1944

[8] O periódico mantém parceria com a Associação Latino Americana de Literatura e Teologia (ALALITE), com o Centro de Estudos de Literatura, Teorias do Fenômeno Religioso e Artes (CELTA) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e com o Centro de Investigação em Teologia e Estudos da Religião (CITER) da Universidade Católica Portuguesa (UCP). A revista pode ser acessada no endereço: https://revistas.pucsp.br/index.php/teoliteraria

[9] A busca do referido diretório foi realizada em 17 de novembro de 2022. Evidentemente que, se ampliada a busca por termo relacionados, há mais chances de obter-se mais resultados. A busca mais apurada não foi realizada por não se tratar do foco deste artigo.

[10] Poeta vassourense, patrono da cadeira de número 7 da Academia de Letras de Vassouras (RJ). Ficou cego aos 16 anos, casou-se e teve dois filhos. Em vida escreveu: Singelos; Efêmeros; Aves Implumes; Pétalas; Perispíritos; Álbum de Delba (publicado postumamente).

[11] Editado pela Editora da Federação Espírita Brasileira, o livro é facilmente encontrado em sebos e livrarias. Recomendo a leitura do artigo Chico Xavier e a construção simbólica do “Brasil” enquanto “coração do Mundo” e “Pátria do Evangelho”, de Túlio Augusto Paz e Albuquerque, disponível no link: https://periodicos.ufrn.br/mneme/article/view/7960