Leonardo de Souza
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Lavras/MG. Contato: leonardo.letras.claretiano@gmail.com
Resumo: Os estudos da Literatura e Teologia têm adquirido grande espaço no meio acadêmico, tanto por parte de teóricos da literatura como por teólogos. Nesse sentido, o presente artigo buscar apresentar a relação entre Literatura e Teologia contida na obra “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri em 1308 que marca o início do renascimento artístico. A obra é um poema composto de três partes, Inferno, Purgatório e o Paraíso, tendo o próprio Dante Alighieri como personagem central, que desce ao Inferno e ao Purgatório conduzido pelo poeta romano Virgílio (70 a.C). Em seguida Dante Alighieri é conduzido por sua amada de infância Beatriz ao Paraíso. Portanto, buscamos nos estudos literários e teológicos uma comparação entre o escrito de Dante Alighieri e seu pensamento teológico medieval com os estudos atuais da teologia. Fundamentamos como referência os autores da Teologia moderna e estudiosos da vida e obra de Dante Alighieri. A cada canto do poema é uma viagem ao pensamento teológico medieval, com sua riqueza simbólica, como Beatriz, que para Dante Alighieri é símbolo da fé e São Bernardo,que representa a oração, a mística que no dizer de Dante a razão não é suficiente para alcançar a Deus, mas com fé e oração.
Palavras-chave: Dante Alighieri; Teologia; Literatura; Idade Médi
Abstract: The studies of Literature and Theology have acquired great space in the academic environment, both by literary theorists and theologians. In this sense, this article seeks to present the relationship between Literature and Theology contained in the work “The Divine Comedy”, by Dante Alighieri in 1308, which marks the beginning of the artistic renaissance. The work is a poem composed of three parts, Hell, Purgatory, and Paradise, with Dante Alighieri himself as the central character, who descends into Hell and Purgatory led by the Roman poet Virgil (70 BC). Then Dante Alighieri is led by his childhood love Beatriz to Paradise. Therefore, we seek in literary and theological studies a comparison between Dante Alighieri's writing and his medieval theological thought with current studies of theology. We base our reference on the authors of modern theology and scholars of the life and work of Dante Alighieri. Every corner of the poem is a journey to medieval theological thought, with its symbolic richness, like Beatriz, who for Dante Alighieri is a symbol of faith, and Saint Bernard, who represents prayer, the mystique that, in Dante's words, the reason is not enough to reach God, but with faith and prayer.
Keywords: Dante Alighieri; Theology; Literature; Middle Ages
Os estudos entre Literatura e Teologia iniciou-se na Europa, com os escritos de Romano Guardini, na obra “Figuras religiosas na obra de Dostoievski”, de 1933; de Henri Bremond, com as “Histórias literárias do sentimento religioso na França”, de 1915 e do dominicano Pie Duployé com a obra “A religião de Péguy”, de 1965. Encontramos também o teólogo suíço Hans Urs Von Balthasar com sua tese de doutorado intitulado “O problema escatológico na Literatura Alemã”, de 1928. Na Alemanha temos o teólogo Karl-Josef Kuschel que analisa obras literárias à luz da teologia com sua obra “Os escritores e as escrituras: retratos teológicos-literários”, de 1991. Na América do Norte encontramos autores e obras nessa temática, com Robert Alter, Harold Bloom, Jack Miles e Northrop Frye. O Brasil se faz presente nos caminhos teoliterários com José Carlos Barcellos, Antonio Magalhães, Alex Villas Boas, Maria Clara Bingemer etc. Contudo, a relação entre a Literatura e Teologia são bem profundas como afirma José Carlos Barcellos (BARCELLOS, 2009, s/p)
As relações entre a teologia e a literatura são muito complexas e diversificadas e só recentemente têm sido objeto de uma reflexão sistemática. No Ocidente, desde a consolidação da escolástica nos séculos XII e XIII - com teólogos do porte de Santo Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino ou São Boaventura até o século XX, a teologia acadêmica quase sempre ignorou completamente a existência e a importância da literatura, não obstante a evidente relevância das questões teológicas nas obras de autores como Dante, Gil Vicente, Camões, Calderón, Milton, Hopkins, Antero de Quental ou Dostoiévski, por um lado e, por outro, o frequente recurso à linguagem poética por parte de alguns dos mais insignes místicos cristãos, como São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila, ou ainda a manifesta qualidade literária dos textos de oradores sacros como Vieira ou Bossuet. Ao longo do século XX, registra-se um paulatino e crescente interesse pelo estudo das relações entre teologia e literatura, tanto por parte de teólogos, quanto por parte de críticos literários.
O estudo das relações entre Teologia e Literatura é um campo amplo e de acordo com Manzatto e Boas (2015, p. 8) essa relação “permanece aberta porque há a necessidade de possibilitar leituras múltiplas das duas áreas de expressão”. Nessa perspectiva nosso estudo recai sobre uma das obras da Literatura do período renascentista que é marcado pelo surgimento da obra “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri em 1308. O estudo dessa obra nos leva, conforme afirma Manzatto sobre a relação entre Literatura e Teologia, a “compreender o humano através da compreensão do mundo onde ele vive sua vida” (2012, p. 13).
Para nós é primordial entender quem somos e para onde vamos, o que podemos fazer, como podemos e devemos agir para viver uma vida livre, justa, feliz e responsável neste conturbado século XXI, mas para Dante Alighieri, segundo Carmelo Distante (1998, s/p):
Para o homem da Idade Média, tudo isso não bastava, já que o fim supremo do homem, para ele, não devia se restringir à existência mundana. Portanto, se para nós, homens modernos, tudo consiste em entender quem somos e a função que temos nesse mundo no qual vivemos, para Dante, a questão central, pelo menos para o Dante maduro da Comédia, é ver o lugar limitado que ocupa o homem no universo, criado e dominado por Deus.
O poema escrito por Dante Alighieri (1265-1321) é um clássico da literatura universal. Escrito durante o período do Renascimento entre os séculos XIV e XVI. A extensa obra, toda composta em versos, é dividida em três partes escritas em épocas diferentes, sendo o Inferno, de 1304 a 1308, o Purgatório, de 1308 a 1313 e o Paraíso, de 1314 a 1320, contudo há divergências entres os estudiosos de Dante Alighieri. Cada uma das três partes possui exatamente 33 cantos, simbolismo a idade de Cristo. A Comédia foi escrita em Florentino, no início do século XIV e pretendia fazer uma síntese do conhecimento científico, filosófico e teológico da Idade Média. Nos primeiros anos de exílio por questões políticas, entre 1304 e 1305, escreveu Convívio e o De vulgari eloquentia, obras que Dante deixou inacabadas. A partir de 1307 dedicou-se a composição de sua obra-prima, Comédia. Mais tarde passa ser nomeada de A “Divina” Comédia, chama assim por Giovanni Boccaccio, em 1555, que foi grande poeta e estudioso da obra de Dante Alighieri, que requer um grande conhecimento para entender o poeta que pode ser considerado o marco intelectual de toda a cultura medieval, a qual soube produzir um poema literário e teológico.
O homem sem Deus para Dante Alighieri é uma pessoa perdida, no sentido de que jamais poderá encontrar a razão última e verdadeira da própria vida em si mesmo. O drama da vida humana perante Dante Alighieri consiste na fraqueza do homem que não sabe resistir à atração que exercem sobre ele os bens terrenos, falsos e antiquados, que, se amados por si mesmos, afastariam-no da salvação espiritual. Salvação possível apenas para quem possuir as quatro virtudes cardeais que são a força, justiça, prudência e temperança em união com as três virtudes teologais, sendo a fé, esperança e caridade, que nos conduzem a Deus.
Nesse sentido, entramos no centro da cultura medieval, ou seja, a conexão da cultura clássica com a cultura cristã. As quatro virtudes cardeais não eram desconhecidas à cultura clássica, mas certamente eram as virtudes teologais, que eram a base da vida cristã, especialmente da cristã medieval. A união clássica cristã caracteriza todo o pensamento medieval, que encontra em Dante Alighieri o seu poeta e um dos principais expoentes. Dante Alighieri é especialmente eclético, isto é, abraça e faz, sem discriminação, todas as correntes de pensamentos que haviam precedido e que estavam recorrentes em seu tempo.
Sabemos pouco de sua educação, possivelmente estudado em casa de forma autodidata. Segundo Hilário Franco Junior, Dante Alighieri passou tempo no convento franciscano de Santa Croce e no convento dominicano de Santa Maria Novella que havia vários elementos de formação universitária no qual Dante Alighieri teve contato mais profundo com a Teologia e a Filosofia (FRANCO JR, 2000, p. 53). É provável que por influência de Brunetto Latini que Dante Alighieri, no ano de 1280, tenha estudado na Universidade de Pádua. Nos anos seguintes de 1286 a 1288 e 1304 a 1306, Dante frequentou a Universidade de Bolonha e em 1309 a 1310 frequentou a Universidade de Paris, a mais importante da época, na qual Dante Alighieri deve ter tido contato com a produção intelectual dos autores do passado o que explicaria o seu vasto conhecimento aplicado na criação da Comédia. De acordo com Boccaccio (apud FRANCO JR. 2000, p. 54), Dante Alighieri apesar de ter concluído as disciplinas na Universidade de Paris não obteve o título de doutor em Teologia.
Contudo, não sabemos ao certo se Dante realizou esses estudos, mas os estudos revelam ser uma pessoa autodidata, o que explica as citações dos vários nomes do mundo medieval, é suficiente para nos mostrar como era grande o conhecimento cultural de Dante Alighieri. E esse conhecimento é comprovado nos versos da Comédia a começar pelo seu guia que Dante Alighieri escolhe. No início do poema escolhe o poeta romano Virgílio (70 a.C a 19 a.C) “meu senhor, meu mestre, oceano de sabedoria” (cf. Inf. II, 2019, p. 36) autor de Eneida, no qual Dante Alighieri atribui a personificação da razão que guia o homem em meio a “selva escura” da vida (cf. Inf. I, 2019, p. 25).
Em síntese, apresentamos uma abordagem literária-teológica da obra de Dante Alighieri com sua linguagem simbólica. A princípio, a obra é narrada na primeira pessoa com uma narrativa simultânea, ou seja, a narração ocorre no presente. O próprio Dante Alighieri usa como voz narrativa a intradiegética, no qual o próprio narrador também é o protagonista. A Comédia é narrada em ordem temporal. No início do poema Dante Alighieri retrata: “A meio caminhar de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura” (cf. Inf. I, 2019, p. 25). Nesse verso Dante nos chama a tenção para dois fatos. O primeiro, para a idade que possui, aos 35 anos, já que Dante Alighieri nasceu em 1265. A perspectiva de vida na Idade Média era aproximadamente de 70 anos. A Comédia começa a ser escrita em 1300. O segundo fato, reside na expressão “selva escura” que simboliza a vida de pecados do homem. Mais adiante no poema Dante Alighieri narra estar diante de três animais que impedem a sua passagem: “uma onça” (cf. Inf. I, 2019, p. 26 v. 32); “um leão” (cf. Inf. I, 2019, p. 26 v. 45) e “uma loba” que são as personificações dos três tipos de pecados que impedem o homem de subir a colina divina: a onça simboliza a ira; o leão lembra a violência e a loba nos remete a fraude que são discutidos por Dante Alighieri e Virgílio no canto XI (cf. Inf. XI, 2019, p. 85).
Dante Alighieri narra sua viagem pelo mundo dos mortos na Semana Santa do ano de 1300. Assim Rocha (1999, p. 24) afirma:
Em várias ocasiões, no poema original, o autor descreve a posição das constelações e astros como forma de nos informar a hora e a data. Através dessas observações, podemos deduzir que o Canto I começa na noite da quinta-feira santa (quando se acreditava que as posições dos astros seriam as mesmas de quando o mundo foi criado) e termina no início da noite da sexta-feira.
A primeira parte do Inferno, Dante Alighieri narra sobre as pessoas que se encontram no limbo que forma o primeiro círculo “o mais longo e mais próximo à Terra, pois o Inferno tem a forma de um cone invertido, estão os não batizados e os pagãos” (cf. FRANCO JR., 2000 p. 70). A questão do limbo foi proposta por Santo Agostinho de Hipona no qual as crianças que morreram sem receber o Sacramento do Batismo não poderiam entrar no Paraíso. Elas ficariam à margem, como o próprio nome limbo, em latim “limbus” significa “orla” ou “margem”, portanto, as crianças que não conhecem o Evangelho de Cristo pelo Batismo ficavam à margem, na “periferia” da Salvação, sem acesso a graça Divina.
Meu mestre a mim: ‘Não te ouço perguntar que espíritos são esses que tu vês: eles, te explico antes de mais andar, não pecaram, mas não têm validez, sem batismo, seus méritos, e isto faz parte dessa fé na qual tu crês; e os que tenham vivido antes de Cristo não adoram Deus devidamente, e eu dessa condição também consisto. Somos por essa causa, essa somente, perdidos, mas nossa pena é só esta: sem esperança ansiar eternamente (cf. Inf. IV, p. 44).
Da época de Dante Alighieri até meados do século XXI ainda perdurava a mentalidade do limbo para as pessoas que morreram sem serem batizadas. O Magistério da Igreja nunca definiu o limbo como questão de fé e, portanto, não é citado pelo Catecismo da Igreja Católica. O papa Bento XVI autorizou, em 21 de abril de 2007, a publicação do documento da Comissão Teológica Internacional que aborda a questão das crianças que morrem sem o batismo. Na conclusão da Comissão no documento assim afirma:
A nossa conclusão é que os muitos fatores que acima consideramos oferecem sérias razões teológicas e litúrgicas para esperar que as crianças que morrem sem Batismo serão salvas e poderão gozar da visão beatífica. Sublinhamos que se trata aqui de razões de esperança na oração mais do que de conhecimento certo. Existem muitas coisas que simplesmente não foram reveladas (cf. Jo 16,12). Vivemos na fé e na esperança no Deus de misericórdia e de amor que nos foi revelado em Cristo, e o Espírito nos impele a orar em gratidão e alegria constante (cf. 1Ts 5,18).
Assim, podemos entender que todos que homens, mulheres e crianças que morrem sem o Sacramento do Batismo que na “misericórdia e amor” de Deus gozam das alegrias eternas. Com a morte de Jesus é a possibilidade do homem crer e de encontrar-se com Deus. Cristo, Senhor é o caminho que possibilita o homem voltar a Deus, entregar-se a Ele e recompor a aliança tornada definitiva pelo sangue na cruz. Dante Alighieri, após passar o primeiro círculo que está o limbo, passa a caminhar em direção aos outros círculos.
O inferno de Dante Alighieri (cf. Inf. XI, 2017, p. 85) é composto de nove círculos: o primeiro é o limbo onde se encontra as almas que não conheceram Cristo ou nasceram antes que Ele se tornasse o verbo encarnado no seio da Virgem Maria (cf. Lc 1, 31). No segundo círculo estão os que cometeram o pecado da luxúria, ou seja, levaram uma vida de desejos passionais, sensuais e materiais. No terceiro estão os pecadores da gula, do desejo insaciável por comida e bebidas. No quarto círculo encontra-se os pecadores da avareza, do excesso de bens materiais, do dinheiro e colocando Deus em segundo plano. O quinto círculo os pecadores da ira: pessoas descontroladas do sentimento da raiva, ódio, rancor e o desejo de vingança. No sexto círculo encontramos os hereges que foram contra os dogmas da Igreja e do próprio Deus. No círculo seguinte, o sétimo (cf. Inf. XII, 2017, p. 91) é subdivido em três grupos: o primeiro estão as pessoas que cometeram violência contra o próximo, os assassinos; no segundo as pessoas que praticaram violência contra si mesma, os suicidas; no terceiro, as pessoas que foram contra Deus, “blasfemos, sodomitas e usurários”. (cf. FRANCO JR, 2000 p. 70).
O oitavo círculo (cf. Inf. XVIII, 2017, p. 127) chamado por Dante Alighieri de “Malebolge” que significa “maus bornais” é subdividido em dez grupos: o primeiro estão os rufiões, ou seja, aqueles que exploram atividades de prostituição, os alcoviteiros que intermediam as relações amorosas causando o adultério. No segundo estão os falsos aduladores (bajuladores), hipócritas e pródigos. O terceiro círculo estão os simoníacos, colocados de cabeça para baixo em buracos e sendo torturados com fogo nas plantas dos pés, são pecadores que vendiam favores divinos, bênção e cargos eclesiásticos. No círculo quarto ficam os feiticeiros e os enganadores, impostores, mentirosos etc. No quinto círculo encontram os corruptos e trapaceiros; no sexto encontram os hipócritas (pessoas falsas e fingidas); o sétimo localiza-se os ladrões; o oitavo as pessoas fraudulentas; no penúltimo círculo, o nono, ficam as pessoas que promoviam o cisma religioso e a discórdia e por fim, no décimo grupo ficam os falsários.
No último círculo do inferno (cf. Inf. XXXII, 2017, p 211) encontra-se o próprio Lúcifer e os traidores das famílias, da pátria e de amigos. Na concepção de Dante Alighieri na criação da Comédia, como víamos acima, divide o inferno em partes para cada tipo de pecado da humanidade. Em cada círculo que passa, Dante Alighieri encontra-se com conhecidos, intelectuais da época e antepassados de Renascença Medieval. Segundo o Frei Clodovis M. Boff (BOFF, 2012, p. 91):
“Por muito tempo, precisamente dos séculos XIV ao século XVIII, segundo o historiador J. Delumeau, vigorou na Igreja a ‘pastoral do medo’, apresentando o inferno com todos os seus horrores: fornalhas de fogo, diabinhos torturando os condenados etc.”
No cotidiano a humanidade pode fazer as escolhas contrárias a Cristo, o homem pode se fechar no “não” a ponto de negar sua própria existência. Esse pensamento em vida nos leva, consequentemente, para o afastamento de Deus na eternidade. Não podemos pensar que seja uma vingança divina, mas é uma condição de escolha da própria pessoa ao longa da caminhada. Àqueles que fazem essa opção e centram sua vida, deixando de lado o amor e a misericórdia de Deus, não terá condições de desfazer suas escolhas, assim “aqueles que não ama permanece na morte. Todo aquele que odeia seu irmão é homicida; e sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele” (cf. 1Jo 3,14-15). Na análise de Franco Jr., Dante Alighieri e Virgílio andam pelas profundezas do inferno em três dias e encontram no pé da montanha à entrada do Purgatório (cf. FRANCO JR, 2000, p. 71). Nessa perspectiva, Dante Alighieri simboliza a ressurreição de Jesus que “desceu às profundezas da terra, o que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, a fim de plenificar todas as coisas” (cf. Ef 4,9) ressuscitando ao “terceiro dia” (cf. 1Cor. 15,4) no Domingo de Páscoa.
Transcorrido os três dias no inferno, Dante Alighieri e Virgílio caminham por um caminho longo e tortuoso, atravessam um rio a contracorrente e chegando ao pé de um alto monte. O monte, na interpretação de Sayers (apud ROCHA, 2007, s/p):
“Representa no nível místico a ascensão da alma a Deus. No nível moral, é a imagem do arrependimento. Pode ser escalado diretamente pela estrada certa, mas não pela selva selvagem porque ali os pecados da alma são expostos e aparecem como demônios (as feras) com um poder e vontade próprios, impedindo qualquer progresso.”
Eles saem ao anoitecer, “fora da aura morta” (cf. Purg. I, 2017, p. 14) conseguem o ver o céu estrelado, no qual Dante Alighieri narra: “voltei-me à destra, dirigindo a mente àquele polo, e avistei quatro estrelas não vistas mais fora da prima gente” (cf. Purg. I, 2017, p. 14). Nesse verso de Dante Alighieri temos dois significados, as quatros estrelas representam as virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança.
As virtudes cardeais são perfeições habituais e estáveis da inteligência e da vontade humana que controlam nossos atos, ordenam os nossos sentimentos e conduzem nossa conduta de acordo com a razão e a fé. As virtudes são adquiridas e fortalecidas por atos de bondade e repetidos, e ao mesmo tempo são elevadas pela graça de Deus. Outra expressão usada por Dante Alighieri é “prima gente”, uma referência a Adão e Eva, os primeiros viventes a contemplarem o céu na criação e faz referência a constelação da Ursa Menor do hemisfério Norte.
Os viajantes chegam às portas do Purgatório que é guardada por Catão de Útica (cf. Purg. I, 2017, p. 15; ALBERGARIA, 2010, p. 41), um legista do Império Romano. Dante estrutura sua narrativa do Purgatório em círculos semelhante ao inferno, contudo, segue uma visão mais moral e menos pessoal, com referência aos sete pecados capitais: o orgulho, a inveja, a ira, a preguiça, a avareza, a gula e a luxúria. Contudo, há um aspecto a ser levado em conta nessa parte da Comédia. Durante a narrativa do inferno, Dante Alighieri é apenas um narrador observador dos fatos, juntamente com Virgílio. Porém, ao criar a segunda parte da obra, o Purgatório, Dante Alighieri não apenas narra como também participa, tendo passado a cada círculo tem um pecado perdoado.
No primeiro círculo (cf. Purg. I-IX, 2017, p. 10 - 66) encontramos o que Dante Alighieri chama de Antepurgatório, encontramos as pessoas insensíveis, negligentes, omissos e aqueles que voltaram para Deus no fim de suas vidas. Seguindo a viagem, Dante Alighieri e Virgílio, iniciam a subida do purgatório, no primeiro círculo eles encontraram os orgulhosos (cf. Purg. X, 2017, p. 67), também conhecida como soberba ou arrogância que nasce do sentimento de superioridade em relação as outras pessoas. Passando ao segundo círculo (cf. Purg. XIII, 2017, p. 85) encontramos os invejosos, cujas almas negam seus próprios bens materiais e passa a cobiçar os bens, status e habilidades dos outros.
No terceiro círculo (cf. Purg. XV, 2017, p. 99) os peregrinos encontram-se com o pecado da ira, mais suave que a do inferno, seria uma ira mais branda que não se apega a raiva ou ao ódio e nem gera desejo de vingança. O quarto círculo, do pecado da preguiça (cf. Purg. XVII, 2017, p. 111) que de acordo com o Catecismo da Igreja Católica (cf. CIC 2094, p. 480):
Pode-se pecar de diversas maneiras contra o amor de Deus: a indiferença, negligência ou recusa a consideração da caridade divina; menosprezar a delicadeza da caridade divina e negar a sua força. A ingratidão omite ou se recusa a reconhecer a caridade divina e a pagar amor com amor. A tibieza é uma hesitação ou uma negligência em responder ao amor divino, podendo implicar a recusa de se entregar ao dinamismo da caridade”
Passando ao quinto círculo da avareza e pródigos (cf. Purg. XIX, 2017, p. 123). A avareza consiste em um apego excessivo e descontrolado por bens materiais. Como diz o ditado popular: “quando mais se tem, mais quer ter”. O pródigo é o contrário da avareza. É a falta de controle sobre os próprios bens e gasto desequilibrado de sua riqueza (cf. Lc 15, 11-32). No sexto círculo, vemos os pecadores da gula (cf. Purg. XXII, 2017, p.143) com o desejo insaciável de comida e bebida descontrolados. Mostra o egoísmo humano de quer sempre mais além do necessário. No último e sétimo círculo do purgatório vemos os pecadores da luxúria (cf. Purg. XXV, 2017, p. 163). “A luxúria é um desejo desordenado ou um gozo desregrado do prazer venéreo. O prazer sexual é moralmente desordenado quando é buscado por si mesmo, isolado das finalidades de procriação e de união” (cf. CIC 2351, p. 530).
Segundo Frei Clodovis Boff (2012, p. 65):
A fé no Purgatório não está na Bíblia, mas surge a partir da mensagem geral da Bíblia. Nesta fala-se da ‘prova do fogo’ por que se há de passar: o ‘fogo comprovará o que vale a obra de cada um’: se foi feita ‘com ouro, prata ou pedras preciosas’ ou se foi ‘com madeira, ferro ou palha’ (cf. 1Cor.3,12-15).
O Deus de bondade, amor e misericórdia exige dos que o busca a santidade e pureza (cf. Is 33,14-15). “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (cf. Mt 5,8). Portanto, nós precisamos de purificação para chegar à Santidade de Deus. Como disse Jesus: podemos ter tomado banho (confissão: estado na graça), mas trazemos conosco sempre uma poeira (os pecados leves ou veniais), “quem se banhou, só necessita lavar os pés” (cf. Jo 13,10). Portanto, cada um de nós que buscamos a Deus “será salgado pelo fogo” (cf. Mc 9, 49).
Em síntese, o purgatório é uma situação espiritual na busca de purificação e não um local de castigo e horrores; é uma graça particular que Deus nos concede para nos purificarmos de nossos pecados. É uma purificação exigida pelo amor e misericórdia de Deus Pai. Não é uma condição definitiva, é para nos salvar, assim afirma o Catecismo da Igreja Católica (cf. CIC 1030, p. 247):
Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida a sua salvação eterna, passam, após a morte, por uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrarem na alegria do céu.
Dante Alighieri e Virgílio chegam as portas do Paraíso (cf. Purg. XXVII, 2017 p 177) guardada por um anjo e pelas chamas da purificação. Transpondo o fogo (cf. Purg. XXIX, 2017, p. 189, chegam a um jardim florido e perfumado. Carregado de simbologia, Dante Alighieri vê uma procissão no qual há um candelabro de setes velas que fazem referência aos sete dons do Espírito Santo que iluminam o céu com cores do arco-íris (“sete listras” cf. Purg. XXIX, 2017, p. 191); “vinte quatro senhores, com a prescrita coroa de lírios” (cf. Purg. XXIX, 2017, p. 192); em seguida vê “quatro animais coroados” (cf. Purg. XXIX, 2017, p. 192) que para Mauro é uma referência ao Antigo Testamento; “um carro, triunfal, no colo de um grifo era puxado” simboliza Cristo que guia a sua Igreja; “três damas à direita” que são as virtudes teologais; “outras quatro na esquerda” são as virtudes cardeais; dois anciãos que seriam Lucas e Paulo; outros sete senhores que simboliza os Atos dos Apóstolos e as Epístolas e ao final João, Evangelho e o Apocalipse, e um trovão fecha a marcha. (cf. MAURO, 2017, p. 189)
Durante sua narrativa, Dante Alighieri é guiado por Virgílio, poeta e mestre da antiguidade que escreveu Eneida. Dante Alighieri provavelmente conheceu as obras de Virgílio que pode ter influenciado no seu estilo poético. Portanto, aqui Virgílio é a representação da razão que torna a humanidade conhecedora das virtudes cardeais, que ajuda os homens no que é justo e correto. Contudo, a razão não é suficiente para chegar até Deus, é preciso ter fé, simbolizada por Beatriz e pela mística e oração, na figura de São Bernardo, doutor da Igreja, que serão seus guias no Paraíso.
Na última parte de sua peregrinação no céu, Dante Alighieri nos mostra o pensamento filosófico-teológico da Idade Média, a relação entre fé e razão. Ao escolher o poeta Virgílio, Dante Alighieri o personifica como sendo a razão (“oceano de sabedoria”, cf. Inf. II, 2017, p. 36) que o guia no inferno e no purgatório. Agora, para guiá-lo pelo céu temos Beatriz que representa a fé e São Bernardo, a oração e a mística. Dante Alighieri nos revela que somente a razão não é suficiente para alcançar a Deus. Percebe também os limites da razão se não estiver acompanhada pela fé e oração. Dante Alighieri segue a interação entre fé e razão que Santo Tomás de Aquino propunha em seus escritos na Suma Teológica.
Nesse pensamento nos recorda os escritos de São João Paulo II em sua Encíclica Fides et Ratio, de 14 de setembro de 1998, que assim expressa na introdução:
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
O céu, assim como o inferno e o purgatório, é dividido em nove círculos até chegar ao Empíreo, que segundo Santo Tomás de Aquino, na Summa Theologiae (I, q. 61, 4), identifica-o como o lugar em que Deus criou os anjos, a “morada” de Deus, “que não é visto como um céu material, mas pura fonte de luz, iluminando e movendo as esferas abaixo” (cf. FRANCO JR., 2000, p. 73). No primeiro círculo do céu (cf. Par. III, 2017, p. 25), Dante Alighieri encontra-se com religiosos que não puderam cumprir seus votos. Passando ao segundo céu (cf. Par. V, 2017, p. 37) estão em viva luz as almas dos ambiciosos, que têm agido com bondade, mas sempre com intuito de fama e honras. No terceiro círculo ficam “as almas sensíveis ao amor físico, mas que conseguiram se salvar” (cf. FRANCO JR., 2000 p. 73).
No quarto círculo (cf. Par. X, 2017, p. 71), Dante Alighieri coloca os teólogos, no qual encontra-se Tomás de Aquino e seu amigo e mestre Alberto de Colônia (cf. Par. X, v.97, 2017, p.74), Santo Isidoro, Beda e Ricardo de San Vittore etc. No quinto círculo (cf. Par. XVIII, 2017, p. 127) as almas que morreram nas guerras santas pela Igreja e pela fé. No sexto círculo (cf. Par. XX, 2017, p. 141) encontramos os reis, rainhas e príncipes que souberam governar com amor, justiça e bondade o povo confiado por Deus. O sétimo círculo (cf. Par. XXI, p. 149) encontramos as almas dedicadas à contemplação divina. No penúltimo círculo, o oitavo (cf. Par. XXIII, 2017, p.163) Dante Alighieri e Beatriz encontram-se com Cristo Jesus “a maravilhosa luz” (cf. ALBERGARIA, 2010, p.81), os santos, São Pedro e São Paulo e a Virgem Maria.
Por fim, Dante Alighieri chega ao nono céu (cf. Par. XXVIII, 2017), onde encontra a visão de Deus “um círculo com um ponto de fogo era rodeado por outros nove círculos” (ALBERGARIA, 2010, p. 84) formado por seres angelicais: querubins, serafins, tronos, potestades, virtudes, dominações, arcanjos e anjos. Dante Alighieri encontra-se com São Bernardo “meu condutor ao final da peregrinação. Mandou-me olhar para o alto, onde Maria ocupava seu trono, incendiando com seu fulgor o centro da rosa” (cf. ALBERGARIA, 2010, p. 86). São Bernardo intercede para que Dante Alighieri possa elevar seu olhar até Deus, na Trindade Santa, “do alto lume na clara subsistência, três círculos agora aparecem de três cores, em uma só abrangência” (cf. MAURO, 2017, p. 233).
Dante Alighieri nos releva nessa última parte de seu poema, principalmente, nos versos finais uma questão de nossa fé que é poder ver a Deus face a face (cf. Ap. 22, 4). Em quando vivemos na terra à luz da fé, pois buscamos gozar as alegrias do céu, “alegremo-nos e exultemos, demos glória a Deus, porque estão para realizar as núpcias do Cordeiro” (cf. Ap. 19, 7). Na busca pelo céu, Boff ressalta:
O céu cosmológico, chamado também na Bíblia de “firmamento”, não é o céu da fé, mas apenas seu símbolo. O céu teológico é a morada de Deus. Para significar o ‘céu de Deus’, a Bíblia fala nos ‘céus dos céus’ (cf. Sl 148, 4; 1Rs 8, 27), no ‘mais alto dos céus’ (cf. Sl 115, 16), no ‘terceiro céu’ (cf. 2Cor. 12, 2). Cristo subiu ‘acima de todos os céus’ (cf. Ef.4, 10). (cf. BOFF, 2012, p. 75).
O magistério da Igreja nos ensina que o céu é estado de felicidade perfeita e eterna reservada àqueles que viveram na amizade de Deus, que testemunharam com fidelidade Seu nome e que morreram em estado de graça. Sendo assim, o “céu” entendemos por um estado de felicidade suprema e eterna. Os que morreram na graça de Deus e que não têm necessidade de purificação, são reunidos em torno de Jesus, Maria, dos santos e anjos. Formando a Igreja Celeste, no qual eles veem Deus “face a face” (cf. Ap. 22, 4), permanecendo em comunhão de amor à Santíssima Trindade e intercedendo por nós (cf. CNBB, 2005, p. 71).
O Catecismo da Igreja Católica, declara:
Com nossa autoridade apostólica definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas de todos os santos mortos antes da Paixão de Cristo (...) e de todos os outros fiéis mortos depois de receberem o santo Batismo de Cristo, nos quais não houve nada a purificar quando morreram, (...) ou ainda, se houve ou há algo a purificar, quando, depois de sua morte, tiverem acabado de fazê-lo (...), antes mesmo da ressurreição nos seus corpos e do juízo geral, e isto desde a ascensão do Senhor e Salvador Jesus Cristo ao céu, estiverem, estão e estarão no céu, no Reino dos Céus e no paraíso celeste com Cristo, admitidos na sociedade dos santos e anjos. Desde a paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, viram e veem a essência divina com uma visão intuitiva e até a face a face, sem a mediação de nenhuma criatura (cf. CIC 1023, 1993, p. 246).
É comum situar o céu, assim como o inferno e purgatório, dentro de uma visão cosmológica, como nos é proposto na Idade Média, no qual o céu era situado em cima da terra, o inferno em baixo e o purgatório no centro, como se vê na Divina Comédia. A obra de Dante Alighieri tem inspirado muitas pesquisas e estudos. É muita enigmática, cujo sentido exato somente o próprio Dante Alighieri poderia nos dizer, ele mesmo confessa ser uma obra multifacetada (cf. FRANCO JR., 2000, p. 73). A Divina Comédia, embora faça duras críticas a Igreja, foi reconhecida como inspiração de fé na Encíclica do papa Bento XV, In Praeclara Summorum, em comemoração ao seiscentésimo aniversário de morte do poeta no qual declara:
Com efeito, se não é escasso o número de grandes poetas católicos que combinam os negócios com o prazer, em Dante é singular o fato de fascinar o leitor pela variedade das imagens, pela vivacidade das cores, pela grandiosidade das expressões e pensamentos, o leva ao amor da sabedoria cristã; nem ninguém ignora que ele declara abertamente que compôs seu poema para fornecer alimento vital a todos. Na verdade, sabemos que alguns, ainda recentemente, de longe sim, mas não avessos a Cristo, estudando a Divina Comédia com amor, pela graça divina (cf. PS, 1921).
Segundo o site zenit.org (2020, s/p) afirma que a Divina Comédia foi uma inspiração ao papa Bento XVI na criação de sua primeira encíclica “Deus Caritas Est” – Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 16). O papa Bento XVI citou a famosa frase de Dante Alighieri na qual “o amor que move o Sol e as outras estrelas” (cf. Par. XXXIII, 2017. p. 234), para explicar o significado do documento. Na oração do Angelus de 8 de dezembro 2006, Bento XVI afirmou durante sua mensagem que Maria foi escolhida “por sua humildade” e comentou que Dante Alighieri, no último Canto do Paraíso da Divina Comédia, diz: “Virgem Madre, filha de teu Filho, humilde e alta criatura” (cf. Par. XXXIII, 2017, p. 229).
O Papa Francisco, em 04 de maio de 2015, também recordou a obra do poeta italiano Dante Alighieri, na comemoração dos 750 anos de seu nascimento. Em uma mensagem enviada ao presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, Cardeal Gianfranco Ravasi, assim o papa expressou:
“Com esta mensagem, eu também gostaria de me juntar ao coro daqueles que consideram Dante Alighieri um artista do mais alto valor universal e que ainda tem muito a dizer e doar através de suas obras imortais” (...) “para aqueles que desejam trilhar o caminho do verdadeiro conhecimento. A verdadeira descoberta de si mesmo, do mundo e do significado profundo e transcendente da vida”.
O Papa Francisco recordou como muitos de seus predecessores recorreram em seus trabalhos à figura de Dante Alighieri por sua “atualidade e sua grandeza não só artística, mas também teológica e cultural”. Entre eles, Francisco retoma a encíclica In Praeclara Summorum de 1921, do papa Bento XV, dedicada a morte de Dante Alighieri chamando-o de “sumo poeta”, e o papa Paulo VI também dedicou a Dante Alighieri o documento Altissimi Cantus, em 1965 em comemoração ao sétimo centenário de seu nascimento, assim expressou sua santidade sobre a obra:
O Poema de Dante é universal: em sua imensa amplitude, abrange céu e terra, eternidade e tempo, os mistérios de Deus e os acontecimentos dos homens, doutrina sagrada e disciplinas profanas, ciência extraída da revelação divina e aquela extraída da luz. os dados da experiência pessoal e as memórias da história, da sua época e das antiguidades greco-romanas, ao mesmo tempo que se pode dizer que é o monumento mais representativo da Idade Média. Em seu conteúdo está a sabedoria oriental, o logos Civilização grega, romana, e em síntese o dogma e os preceitos da lei do cristianismo na elaboração de seus doutores. Aristotélica na concepção filosófica, platônica na tendência ao ideal, agostiniana na concepção da história; na teologia é fiel seguidor de São Tomás de Aquino, tanto que a Divina Comédia é, entre outras coisas, em fragmentos, quase o espelho poético da Soma do Doutor Angélico. Se isso é verdade em termos gerais, é igualmente verdade que Dante está aberto a influências profundas de Sant'Agostino, San Benedetto, de 'Vittorini, San Bonaventura, e não é desprovido de alguma influência apocalíptica do abade Joachim da Fiore, uma vez que geralmente estende a mão para coisas que estão nascendo ou que, ainda não nascidas, estão no ventre do futuro. (PAULO VI, 1965)
Dante Alighieri deixou uma obra que grande valor literário à sociedade e instiga estudo. A Divina Comédia marca a coexistência de duas concepções de mundo opostas, Deus como centro do universo e alcançável pela fé e o homem norteado pela filosofia e a razão, sem as quais o homem não vive e que são necessárias pela chegar a Deus.
Os estudos atuais mostram a profundidade entre a Literatura e a Teologia o que permite um amplo caminho de estudos. As relações entre Literatura e Teologia são um campo de estudos que precisa ser mais explorado, tanto pela teoria literária como por teólogos nas Universidades públicas e privadas. É um campo em aberto, buscando “possíveis contribuições do diálogo entre Teologia e Literatura” (BOAS, 2016, p.11). Buscamos compreender que o Dante Alighieri é o homem que representa o homem na busca de Deus. O homem que precisa compreender a si mesmo para conhecer a Deus. A viagem que Dante Alighieri percorre representa o caminhar que cada um de nós percorrerá até a jornada final da vida na terra e poder alcançar a vida eterna que é nos dada como bênção pelo sangue de Cristo na cruz (cf. Ef 1,3).
A obra de Dante Alighieri é uma extraordinária criação teoliterária carregada de grandes significados com suas simbologias que pudemos observar ao longo do texto. Sabemos que a Comédia narra o caminhar da humanidade, de cada um de nós, na pessoa do próprio poeta que na “selva escura” no mundo de pecado, desamor, egoísmo e outros males que nos cercam simbolizadas pela narrativa do inferno. O poema leva o homem a pensar sua condição de pecador e suplicar a purificação de seus erros no purgatório, como nos apresenta Dante Alighieri na narrativa do Purgatório, e assim, finaliza o poema com uma teologia do céu sobre o amor no paraíso que é o desejo de todos de estar “face a face” com o criador que é a esperança dos cristãos e daqueles que estão no purgatório “unidos a eles, esperamos também nós saciar-nos eternamente da vossa glória” (cf. Missal Romano, p. 482)
A cada canto do poema é uma obra-prima insuperável da criação do intelecto humano de todos os tempos. Por fim, a única certeza que temos é que “a trajetória percorrida por Dante Alighieri, da selva escura à colina iluminada, é a trajetória de todos os homens” (cf. FRANCO JR., 2000, p. 75). Apesar de haver estudos recentes no campo teoliterário, ainda há muito a pesquisar, novos métodos a desenvolver, que contribuam ainda mais para esse campo de estudo em expansão. As relações entre essas duas áreas do conhecimento merecem ser aprofundadas pelas Instituições de Ensino Superior, nos cursos de Letras e Teologia, pois uma tem muito a contribuir com a outra, quando se busca ler o teológico pelas veredas da Literatura.
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