Bianca Vicêncio Leis*
Glauco Barsalini**
*Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCampinas). Contato: bianca.vccleis@hotmail.com
**Pós-Doutor em Teologia pela Loyola University Chicago, Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Campina (PUC-Campinas). Contato: glaucobarsalini@gmail.com
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Resumo:
Se Jesus Cristo é o Messias, a redenção ocorreu desde o evento da Paixão e, por isso, não se justifica, em toda a cristandade, a reprodução da violência mimética. A crucificação do nazareno libertou a humanidade do ciclo da violência e da seleção de bodes expiatórios. Entretanto, de acordo com o pensador francês René Girard, o mecanismo sacrificial não desapareceu, ao contrário, se fortaleceu por meio de práticas sofisticadas utilizadas por instituições sociais. Na cristandade, a mimesis permanece e o duplo monstruoso, contágio coletivo da violência, assume diversas formas. Aqui, a figura de Jesus Cristo é aplicada para justificar os estereótipos e a violência sobre as vítimas, em contradição profunda com a sua verdadeira mensagem de libertação em relação ao mal. Girard traz luzes acerca desta temática. A partir de sua obra, o presente artigo perscruta o esquema do bode expiatório e a interpretação girardiana acerca da violência associada ao mal, bem como da salvação, vinculada ao evento histórico da morte de Cristo.
Palavras chave: sacrifício; mal; salvação; violência; bode expiatório
Abstract
If Jesus Christ is the Messiah, redemption took place since the event of the Passion and, therefore, the reproduction of mimetic violence is not justified in today’s Christianity. The crucifixion of the Nazarene freed humanity from the cycle of violence and scapegoating. However, the French thinker René Girard, the mechanism of sacrifice did not disappear, insead, was strengthened through practices used by social institutions. In Christianity, mimesis remains and the monstrous double, collective contagion of violence, assumes different forms. Here, the figure of Jesus Christ is applied to justify the stereotypes and the violence about the victims, in contradiction profound with its message of deliverance from evil.Girard sheds light on this theme. Based on his work, the present article examines the scapegoat scheme and Girard’s interpretation of violence associated with evil, as well as the salvation linked the historical event of Christ’s death.
Keywords: sacrifice; bad; salvation; violence; scapegoat
Este artigo tem por fim contribuir para o debate sobre o fenômeno do mal e o tema da salvação, a partir de um recorte epistemológico específico, em que a antropologia e a teologia se conectam, tendo como um dos pontos centrais o estudo do sentido literário dos mitos. Trata-se da perspectiva do pensamento do francês René Girard.
Girard é uma das grandes expressões intelectuais da contemporaneidade que se dedicam ao estudo sobre a violência humana e o sagrado, ambos, para ele, umbilicalmente associados ao bode expiatório. Referenciado em obras literárias, investiga as origens míticas da violência e a importância que a mimese, definida por Aristóteles (2003), como o ato da imitação congênita dos indivíduos, ocupa no universo social. Ao colocar sua lupa sobre as relações humanas, de modo especial em sua obra Mentira Romântica e Verdade Romanesca (2009b), Girard identifica a mimese nos desejos, tornando-os imitativos. Os desejos imitativos estabelecem relações triangulares compostas por um sujeito, o seu modelo e um objeto. É destas relações triangulares imitativas que nascem os conflitos entre os indivíduos, ameaçando a estrutura social.
Muitas sociedades deram conta de mitigar tais conflitos por meio dos rituais sacrificiais de caráter religioso, pelos quais as vítimas sacrificiais, animais ou sujeitos escolhidos por preencherem determinados estereó-tipos socialmente estabelecidos, as purificavam. O mecanismo do sacri-fício – do bode expiatório – implica, pois, na reprodução dos mitos por meio dos rituais sacrificiais. De acordo com Girard (2008a), os mitos cor-respondem a histórias reais, acontecimentos passados, e sua existência é decorrente da anterior violência desestruturante, diretamente associa-da ao processo de indiferenciação social. O sacrifício, o mecanismo do bode expiatório, portanto, amparam-se no mito.
Segundo Girard (2008a), a religião é, pois, violência, mas Jesus Cristo, enquanto messias, liberta os seres humanos desta. O cristianis-mo, por sua vez, religião construída sobre o evento histórico messiânico é, para Girard, libertador em relação à violência, quando a denuncia, assumindo o lado da vítima; por outro lado, pode tomar outro rumo, tor-nando-se responsável por selecionar bodes expiatórios e inspirando a violência. Girard pesquisa a violência entre os seres humanos e percebe que há duas formas, opostas entre si, de viver o processo mimético: os sujeitos são livres para renunciar à violência, imitando a Cristo; ou po-dem, não obstante, atrelar-se ao senso de pecado intrínseco à mitologia da crucificação do filho de Deus, trazendo para si todo a carga desse assassinato imperdoável e, a partir dela, reproduzir a violência, agora de modo gravemente extensivo, como forma de expiação de sua culpa.
Aplicando o método bibliográfico, o presente artigo investiga o mito e o sacrifício na ótica de René Girard, teoria fértil na busca pela compre-ensão do mal no mundo e da salvação da humanidade.
Na formulação sobre o mecanismo do bode expiatório, René Girard tomou por base o discurso mítico, concentrando suas investigações em mitos gregos e bíblicos. Para ele, as sociedades se organizam em es-truturas religiosas que influenciam seus membros através das histórias míticas. Girard, em diálogo com Jean-Michel Oughourlian, em sua obra Coisas ocultadas desde a fundação do mundo, transcreve a fala do pes-quisador (2008a, p. 152) em relação aos mitos: “Os mitos sempre bus-cam rememorar o que os rituais buscam reproduzir: sempre a mesma sequência de acontecimentos, cuja hipótese se impõe, independente-mente da forma religiosa considerada.”
No curso de suas pesquisas sociais Girard aproxima-se de Mircea Eliade, para quem os mitos representam as histórias das origens, histó-rias sagradas distintas do tempo histórico que revelam significados hu-manos, os quais, sem os mitos, permaneceriam desconhecidos. Como afirma Dorneles (2018, p. 183):
Os mitos descrevem, portanto, “como uma coisa foi pro-duzida, como começou a existir”. Para Eliade, as nar-rativas míticas revelam a essência da realidade e, sem elas, os valores e os significados essenciais da condi-ção humana permaneceriam “desconhecidos ou, pelo menos, compreendidos imperfeitamente”.
Eliade está próximo a Girard por reiterar que os mitos são necessá-rios para a representação em rituais religiosos, nos quais os sujeitos en-contram sentido para sua existência, imitando suas divindades por meio dos rituais: “Eliade reafirma que ‘um objeto ou uma ação só se tornam reais na medida em que imitam ou repetem um arquétipo” (DORNELES, 2018, p. 184) e que “Os acontecimentos históricos primordiais são narra-dos numa linguagem específica que os insere na dimensão do sagrado” (DORNELES, 2018, p. 187). A imitação das histórias míticas através dos rituais de uma comunidade, descrita por Eliade, é, para Girard (2008a), uma manifestação dos desejos miméticos inseridos nos sujeitos, e o sa-crifício do bode expiatório é o fato que revela os mitos. Entretanto, é importante destacar que Girard e Eliade diferem entre si em relação à in-fluência da religião no ser humano e ao tempo histórico, pois, para este, os sujeitos são naturalmente religiosos, enquanto para aquele a religião é simplesmente uma construção social. Para Eliade “o mito é distinto do tempo histórico” (DORNELES, 2018, p. 182) mas, para Girard, ele se dá na história.
Girard (2004) identifica nos mitos o caráter da violência. Constata que há três estereótipos que a determinam e, para que seja possível ob-servá-los, traz o exemplo do mito de Édipo Rei. O primeiro estereótipo é algo que desestabiliza todo conjunto social como, em Édipo, a peste que assola Tebas; o segundo estereótipo corresponde a um crime cometido por aquele que é considerado o bode expiatório, como a responsabilida-de de Édipo em matar o seu pai e desposar sua mãe - pois, o crime co-metido resulta em um contágio violento que seleciona Édipo como bode expiatório, gerando uma perseguição da multidão contra a vítima, que, em meio a uma crise e na busca por exterminar a violência internalizada, transmite para a vítima toda sua violência, e o influencia a acreditar em sua própria culpa, levando-o a submeter-se ao sacrifício. Como afirma Girard (2004, p. 34-35): “O parricídio e o incesto servem abertamente como intermediários entre o individual e o coletivo; tais crimes são de tal forma indiferenciadores que sua influência se estende por contágio à so-ciedade inteira.”; e, por último, o terceiro estereótipo é determinado pelas marcas vitimárias, características responsáveis por prescrever o bode expiatório. A pessoa identificada com tais marcas tem maiores chances de ser considerada enquanto aquela que dá causa à desordem social, podendo se tornar a vítima expiatória a ser sacrificada.
Quanto mais um indivíduo possuir marcas vitimárias, mais chances terá de atrair o raio sobre a própria ca-beça. A enfermidade de Édipo, seu passado de criança exposta, sua situação de estrangeiro, de afortunado, de rei fazem dele um verdadeiro aglomerado de marcas vi-timárias. (GIRARD, 2004, p. 35)
Dessa forma, ao explicar sobre os estereótipos que confirmam o fe-nômeno da violência no mito, Girard (2004) afirma que os mitos sempre são reduzidos a um único traço, como “O céu e a Terra se comunicam: os deuses circulam entre os homens e os homens entre os deuses. Entre o deus, o homem e o animal não há nítida distinção. O sol e a lua são irmãos gêmeos; lutam entre si perpetuamente e não conseguimos distingui-los.” (GIRARD, 2004, p. 42-43). Ao destacar que o sol e a lua estão em constante conflito, associa a indiferenciação entre indivíduos que causam a violência, pois, se “O dia e a noite confundidos significam a ausência de sol e a decadência de todas as coisas” (GIRARD, 2004, p. 43), é esta indiferença que resulta em crise sacrificial na sociedade, sen-do necessárias as marcas vitimárias para que se possa diferenciar os in-divíduos e exterminar a violência sob um único sujeito, o bode expiatório.
Os mitos que passam a “inventar a morte” na realidade não a inventam, mas a distinguem claramente da vida, enquanto no “princípio” uma e outra se confundem. Isso quer dizer, penso, que é impossível viver sem morrer ou, em outras palavras, que a existência é mais uma vez insuportável. (GIRARD, 2004, p. 43)
Logo, o fato de Girard (2004) identificar a violência fundadora conti-da no mito torna possível explicar de onde surge o mecanismo do bode expiatório, sendo, aquele, o discurso que revela a instrumentalização da sociedade em termos de sobrevivência. O mito instituído pela religião alcança os sujeitos e os submete a rituais que pretendem representá--lo, externalizando a violência contida socialmente e restabelecendo a ordem. A vítima, em um primeiro momento, é considerada, como afirma Girard (2009, p. 81), um pharmakós1 convertendo-se em pharmakón: “a vítima propiciatória se transforma em droga maravilhosa, certamente terrível, porém, na dose certa, capaz de curar todas as doenças.”.
À vista disso, Girard (2009a), em sua obra A rota antiga dos homens perversos, realiza a comparação entre os mitos de Édipo e Jó, constatando as semelhanças e as diferenças entre eles. Édipo é o bode expiatório acusado de crimes abomináveis, o parricídio e o incesto. Jó também é acusado de violações terríveis por seus próprios amigos. A di-ferença central é que Édipo se admite culpado pelos crimes, e Jó não. A multidão se posta contra o bode expiatório e, por sua força em afirmar os crimes por ele cometidos, tende a convencer as próprias vítimas da acu-sação. Édipo submete-se ao sacrifício, impossibilitando os acusadores de se questionarem sobre a postura deles mesmos, como afirma Girard (2009a, p. 44): “O que transforma a perspectiva dos perseguidores em verdade indiscutível é a submissão final de Édipo ao veredicto imbecil da multidão.” Mas, diferentemente de Édipo, Jó em nenhum momen-to se diz culpado, ao contrário, está sempre afirmando sua inocência, mesmo quando os seus amigos tentam convencê-lo de sua culpa para estabelecer o mecanismo da vítima expiatória. Quando movida pela per-seguição ao culpado, a comunidade tende a divinizar a culpa do indiví-duo, considerando estritamente necessário sacrificá-lo em um ritual para reestabelecer a ordem. A violência ocorre, pois, por meio do sagrado: “Onde quer que seja, os perseguidores arrastam suas vítimas pelos ‘ve-lhos caminhos’, e essas viagens só chegam até nós como epopeias da vingança divina, constituindo representações transfiguradas dela. É a isso que chamamos de mitos.” (GIRARD, 2009a, p. 41).
Girard (2008a), ao investigar os mitos e seu caráter antropológico, visita Lévi-Strauss o qual, em O totemismo, descreve mitos de comuni-dades originais marcados intensamente pela violência. O primeiro per-tence aos índios Ojibwa, do norte dos Grandes Lagos americanos. Nele, os cinco clãs “primitivos” correspondem a seis seres sobrenaturais, que saem dos oceanos para se misturarem entre os homens. Um deles es-tava com os olhos vendados, não podendo enxergar os índios. Não se controlando, este retira de seus próprios olhos o véu e, fixando seu olhar em direção a um determinado índio, mata-o. Imediatamente, os seres que o acompanhavam o obrigam a retornar para o fundo do oceano, permanecendo na terra, então, apenas cinco seres sobrenaturais, os quais concedem bençãos aos índios. O segundo mito pertence aos Tikopias, que habitam o Oceano Pacífico. Lévi-Strauss, segundo Girard (2008a), descreve que os deuses dessa tribo não se distinguiam na terra, repre-sentando clãs. Um deus estrangeiro, chamado Tikarau, um dia, resolveu fazer uma visita, o que influenciou os outros deuses a um “festim”, mas também antes organizando provas de força e velocidade para se compa-rarem ao estrangeiro. No entanto, no meio do circuito da corrida, Tikarau finge tropeçar e se diz ferido. Fingindo-se de manco, o deus salta sobre a comida armazenada para levá-la para as colinas. Como resposta, os deuses se lançaram sobre ele e o derrubaram de verdade, conseguindo retomar os frutos roubados, retornando-o para os céus sem nada. Em ambos os mitos se nota o banimento daquele que gerou desordem so-cial, apresentando-se, nos bodes expiatórios, a marca vitimária. Porém, Girard (2008a) observa que Lévi-Strauss não enxerga a violência que pode ocorrer com o indiferenciado, pois, para o antropólogo estrutura-lista, ela não passa de uma representação fictícia da gênese cultural. Girard escreve (2008a, p. 135):
Como se vê, na interpretação de Lévi-Strauss termos como subtração, destruição, eliminação radical retor-nam constantemente, mas eles nunca se aplicam a uma violência real contra um indivíduo real. Trata-se sempre de objetos que ocupam certo espaço num campo to-pológico. No mito ojibwa, os elementos eliminados são a divindade antropomórfica que é “expulsa”, mas são também as plantas totêmicas levadas por Tikarau, mais que o próprio Tikarau.
A lógica de Lévi-Strauss não enfatiza a violência das sociedades, porque, para ele, os mitos são histórias poéticas filosóficas, não as con-siderando no plano da realidade. Entretanto, Girard interpreta os mitos como descrições passadas que fundaram o linchamento, rememorado pelos sujeitos nos rituais do grupo. O erro de Lévi-Strauss, para Girard (2011), é acreditar que o linchamento mítico é uma metáfora e, por esse motivo, ele afirma não entender o sentido do sacrifício. Preso à perspectiva linguística, o antropólogo não observa a passagem da indiferencia-ção para a diferenciação por meio dos mitos e dos ritos.
Girard (2008a) destaca outro mito, dos índios Yahunas, descrito por Theodor Koch-Grünberg. Trata-se da narrativa de um pequeno menino, de nome Milomaki, que cantava muito bem e com isso impressionava os homens que se reuniam ao seu redor para escutar a bela canção. Acontece que, após os homens ouvirem o canto da criança e voltarem para suas casas, ao comerem seus peixes, morriam e, com isso, com passar dos tempos, Milomaki ficou identificado como o responsável por causar as diversas mortes na tribo. Para acabar com o ciclo de seu canto mortal, todos os parentes das vítimas o queimaram em uma fo-gueira, na qual, até o fim, continuou a cantar. O mito descreve que das cinzas do menino surgiu a palmeira Paschiuba, cuja madeira serve para produzir flautas que reproduzem o som de Milomaki. Quando as frutas da palmeira amadurecem, os membros da tribo tocam as flautas ao seu redor, homenageando Milomaki. Este terceiro mito, diferentemente dos outros dois, remete à história de um menino estrangeiro e não de um ser divino. Por envenenar o alimento dos homens com seu canto, Milomaki se torna o bode expiatório da comunidade. Após sua morte, é divinizado e sempre relembrado em rituais em volta da palmeira.
É através da descrição dessas mitologias que Girard (2008a) afirma que os mitos assinalam condutas individuais qualificadas negativamente e condutas coletivas qualificadas positivamente. As condutas individuais negativas corresponderiam, no caso do mito de Ojibwa, ao erro cometido pelo ser sobrenatural, que, sem conseguir se controlar, retira seu véu e assassina um homem; no de Tikopia, o erro seria o roubo de Tikarau; e, no de Milomaki, o envenenamento dos peixes que resulta nas mor-tes dos índios. Diferente destas, as condutas coletivas são qualificadas como positivas: no de Ojibwa, a intervenção dos outros seres sobrena-turais, que expulsam o autor do crime; no de Tikopia, a ação coletiva dos deuses acima de Tikarau; e, no de Milomaki, a atitude do povo em queimá-lo na fogueira.
A nosso ver, a qualificação negativa não passa de uma acusação da qual a vítima é alvo. Como ninguém colo-ca em dúvida sua verdade, como a comunidade intei-ra adota essa acusação, vê-se aí um motivo legítimo e urgente para se matar a vítima. Se o bode expiatório ojibwa só tem tempo de matar um único índio, é porque a intervenção rápida dos outros cinco impede o olhar “forte demais” de continuar com seus massacres. Da mesma forma, o roubo dos bens totêmicos por Tikarau justifica a expulsão violenta desse deus. É a mesma coisa, é claro, no caso de Milomaki. Se não tivesse se livrado da vítima expiatória, a comunidade inteira teria perecido envenenada. (GIRARD, 2008a, p. 138-139)
Contudo, Girard (2008a), ao analisar esses mitos - indígenas, gre-go e hebreu - tem como objetivo demonstrar o mito como narrativa do assassinato fundador da sociedade, que justifica a morte da vítima ex-piatória. Para que seja possível compreender a importância da violên-cia como fundadora da sociedade, Girard segue descrevendo o mito de Caim, filho de Adão e Eva. A Bíblia de Jerusalém conta a história do homem que conheceu Eva e teve com ela dois filhos: Caim e Abel. O primeiro cultivava o solo e, o segundo, um rebanho. Caim ofereceu o fruto de seu trabalho a Iahweh, que o negou, mas aceitou o de Abel, pois mais valeriam a carne e o sangue derramado da vítima. Em fúria, Caim assassina Abel, e Iahweh, desaprovando o seu ato, sentencia que Caim não poderá morrer por sua culpa, e que aquele que se atrever a matá-lo será vingado sete vezes. É dessa forma que Caim constrói uma cidade e aumenta sua família, observando Girard que o mito que funda o mundo corresponde à violência como forma de construção de uma comunidade.
Logo, o mito, segundo Girard (2008a), é a descrição de como se fun-dam uma sociedade e suas normas, expondo a violência como mecanis-mo fundador, que continuará a se manifestar, de tempos em tempos, por meio dos rituais, geralmente, religiosos. Os mitos descrevem as origens de tudo e os sujeitos tendem a representar suas divindades utilizando-se dos ritos. Porém, como é possível notar, os mitos apresentam vítimas expiatórias a serem perseguidas pela multidão e o ritual é a prática da volta ao momento fundador que está descrito no mito. Girard (1990, p. 118) cita uma passagem escrita por Adolphe Jensen:
O pensamento mítico retorna sempre àquilo que se passou na primeira vez, ao ato criador, considerando corretamente que é ele quem traz sobre um fato deter-minado, o mais vívido testemunho... Se o assassinato ocupa um lugar tão importante (no ritual) é preciso que ele tenha um lugar particularmente importante (no mo-mento fundador).
Logo, é por meio das práticas rituais baseadas nos mitos que com-põem um conjunto social, que os indivíduos ficam presos a um ciclo vio-lento, sempre sendo necessário reproduzir a instrumentalização do bode expiatório para manter a ordem social. Girard (1990) afirma que os mitos são representações de assassinatos coletivos, textos sob o viés dos per-seguidores. Os rituais de sacrifício, pelos quais se reestabelece a ordem entre os membros da comunidade, inscrevem em si uma dualidade:
Esta dualidade reflete a metamorfose da qual a vítima ritual, após a violência originária, deveria ser o instru-mento; ela deve atrair toda a violência maléfica para transformá-la, através de sua morte, em violência be-néfica, em paz e fecundidade. (GIRARD, 1990, p. 122)
Como exemplo de imolação de uma vítima expiatória em um ritual, Girard (1990) cita a população Dinka, es-tudada pelo etnólogo Godfrey Lienhardt. O intelectual francês destaca a importância do animal como vítima para o povo Dinka, relatando que, como parte do ritual, os sujeitos amarram próximos de si um animal ao tron-co. As pessoas, então, costumam se dirigir até o animal para insultá-lo. A aproximação deste animal da comuni-dade faz parte do rito, porque, segundo Girard (1990), é necessário incluir a vítima em meio aos seus membros, como se ela fizesse parte daquele povo. Os indivíduos se aproximam do animal para descarregar seus desejos violentos e, por fim, no momento esperado, sacrificá-lo, apaziguando a violência canalizada.
Se a vítima carrega consigo na morte a violência re-cíproca, então ela desempenhou o papel esperado; a partir deste momento, considera-se que ela encarna a violência, tanto na sua forma benévola quanto malévola, ou seja, a onipotência que domina os homens do al-tíssimo; após ter sido maltratada, parece razoável que receba as mais extraordinárias honras. (GIRARD, 1990, p. 125-126).
Desse modo, o rito apazigua as forças maléficas que estão contidas na comunidade, ao direcioná-las a uma vítima expiatória que, após ser sacrificada, é cultuada pelo povo, o qual acredita estar recebendo as bençãos divinas ao oferecer o sangue de uma vítima e ao devolver à sociedade a ordem que a estabelece. Girard (1990) explica que os rituais constituem duas substituições, a primeira é a substituição de todos os membros da comunidade por um único sujeito, o bode expiatório, que representa todo o seu povo. E, a segunda, é a substituição da vítima original - a descrita no mito - por uma vítima que pertence à sociedade e por suas características próprias, as quais inspiram a sua seleção pela comunidade, como vítima a ser sacrificada. Afirma Girard (1990, p. 131): “O rito é certamente violento, mas ele é sempre uma violência menor, que funciona como uma barreira contra uma violência pior; [...].”.
Um segundo exemplo que Girard (1990) descreve são os índios Tupinambá, que se concentram no nordeste do Brasil e em relação aos quais há registros etnográficos sobre a prática do canibalismo. As pesso-as aprisionadas por eles em razão de guerras, em um primeiro momen-to, faziam parte de um ritual, sendo integradas na comunidade, respei-tadas e tendo a permissão, até mesmo, de se relacionar com mulheres da tribo. Esta situação poderia durar anos, até que chegasse o dia do sacrifício: “O prisioneiro é objeto de um tratamento duplo, contraditório: às vezes é tratado com respeito, quase com veneração. Seus favores sexuais são procurados. Em outros momentos, é insultado, coberto de desprezo, de violência.” (GIRARD, 1990, p. 334). Aproximando-se do dia do sacrifício da vítima, o prisioneiro era encorajado a fugir, ou a cometer alguma transgressão, algo que infringisse as regras da tribo, causando distúrbios que dariam azo à perseguição, à violência do povo contra a vítima: “Em resumo, as ações ilegais da futura vítima são encorajadas, ela é instigada à transgressão.” (GIRARD, 1990, p. 334). Explica Girard (1990) que a aproximação da vítima à comunidade é a mesma que os Dinka pretendem com suas vítimas animais: é necessário integrá-las ao grupo para depois sacrificá-las no ritual. No entanto, os Tupinambá iam além, influenciando a vítima a cometer diversos crimes para que a comu-nidade concentrasse sua violência sobre o prisioneiro.
O prisioneiro deve atrair para si todas as tensões interio-res, todos os ódios e rancores acumulados. Pedem-lhe que, através de sua morte, transforme toda esta violên-cia maléfica em um sagrado benéfico, e que devolva o vigor a uma ordem cultural deprimida e cansada.(GIRARD, 1990, p. 335-336).
Em A rota antigas dos homens perversos, Girard (2009a) faz duas associações acerca do rito de sacrifício de Jó.
Na primeira, compara-o com uma criança órfã. Algumas sociedades que praticam o sacrifício humano, diversas vezes, utilizam como vítimas crianças órfãs, procurando, com isso, evitar o risco da reação vingativa de pessoas que poderiam ser próximas da criança. Com os pais mortos ou desaparecidos, o ritual em que a criança é ofertada possui maiores chances de ocorrer sem intervenções exteriores: “Imolando um órfão, reduz-se ao mínimo a tentação, para os membros da comunidade, de se tornarem os vencedores da vítima; consequentemente, diminui-se o risco de alimentar o fogo da violência. Crescem as chances de um sa-crifício eficaz.” (GIRARD, 2009a, p. 89). A comparação de crianças órfãs com Jó deve-se ao fato de que, prestes a ser submetido ao sacrifício, ele não possui nenhuma pessoa a seu favor, nem mesmo os seus amigos, sendo abandonado por todos, como uma criança órfã, um bode expiató-rio. Afirma Girard (2009a, p. 89-90):
Jó se compara implicitamente à vítima ideal, ao ser que não tem mais pais, nem servos, nem vizinhos, nem mesmo um amigo para defendê-lo. Podemos escolhê--lo, sem temer despertar as divisões que o sacrifício é destinado a curar. Jó repete em termos sacrificiais tudo o que ouvimos dizer em estilo realista. Ele é abandona-do por todos; o vazio impera em seu entorno. Seus pre-tensos amigos agravam a situação, insinuando verem nele o último (do ponto de vista temporal) dos “malvados”, dos “perversos”, dos “inimigos de Deus”.
A segunda comparação ao sacrifício de Jó é com um monarca. Girard (2009a) descreve que o rei de uma sociedade é geralmente opressor, arrogante e bruto. Entretanto, é idolatrado, divinizado por seu povo, como Jó também era na sua comunidade. Para fazer com o que o rei também seja generoso, pedem-lhe que assuma a responsabilidade por diversos crimes, transformando-o em bode expiatório, como afirma Girard (2009a, p. 101): “O rei deve demonstrar sua aptidão para exercer a função socialmente fundamental de ‘homem perverso’.” A associação da figura do monarca com Jó, em um primeiro momento, se dá pela ido-latria do povo a qual, no entanto, se transforma em ódio, fazendo de Jó a vítima expiatória, direcionando para ele toda violência contida na socie-dade, tal como ocorre com o rei. E, como este, Jó também é influenciado em acreditar nos crimes de que lhe acusam, mas, diferente do monarca, Jó, afirma ser inocente, até sua morte. Nesse contexto, Girard (2009a, p. 103) conclui: “O esquema do rei tirânico, opressor, incestuoso e, fi-nalmente, sacrificado, real ou simbolicamente, nada mais é do que uma ‘rota antiga’ tão bem balizada que se torna imperceptível.”
Desse modo, Girard (2009a) afirma que não é possível manipular um sacrifício, sonegando-lhe a vítima que realmente deve ser imolada, dado que o mito, manifesto através do rito, se constitui como o alicerce de tal sacrifício, determinando quem deve ser a vítima expiatória. Afirma Girard (2009a, p. 95), sobre a perseguição ao bode expiatório: “Ele não é espontaneidade pura, mas depende muito do comportamento imprevi-sível da multidão para ser nitidamente ritual.”
O exemplo central nas obras de Girard (2008a) como mecanismo da violência fundadora de um grupo social é a história da Paixão, a partir da qual o autor descreve como a morte de Jesus estabeleceu uma nova re-ligião: o cristianismo. Para Girard (2008a), por não acreditar na palavra do nazareno, a humanidade submeteu-o à crucificação, criando, poste-riormente, o cristianismo histórico, sobre uma leitura sacrificial do mito, ocultando, com isso, a revelação realizada por Jesus: a de que sua mor-te não remete a um sacrifício, ao expurgo transitório do mal da violência, mas à salvação. Girard (2008a) encontra, nas Epístolas dos hebreus, o olhar sacrificial à morte de Jesus, operação interpretativa que possibilita aos seres humanos o livramento de sua culpa, de sua responsabilidade sobre o assassinato que cometeram:
O autor da Epístola aos hebreus seria com certeza o primeiro a reconhecer que o Cristo foi injustamente mor-to, mas em sua leitura sacrificial a responsabilidade dos homens na morte do Cristo não desempenha nenhum papel. Os assassinos são apenas instrumentos da von-tade divina: não se vê no que consiste sua responsabili-dade. Essa é a objeção mais corrente à teologia sacrifi-cial, e ela é legítima. (GIRARD, 2008a, p. 278)
Entretanto, Girard (2008a), em sua leitura antropológica, contradiz a Epístola dos hebreus. Remetendo aos Evangelhos, afirma que em ne-nhum momento a morte de Jesus, diferentemente do que se evidencia em todos os outros mitos bíblicos, se apresenta como um sacrifício pois Jesus repudiava a violência:
Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pe-los que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está no Céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. (BÍBLIA, Mateus 5, 44-45)
Portanto, considerar a morte de Jesus fora da esfera do sacrifício significa compreender a revelação que o filho do Pai demonstra aos ho-mens, desvendando o ciclo do desejo mimético e oferecendo aos huma-nos a oportunidade de se livrarem do mecanismo da violência. Segundo Girard (2008a), a morte de Jesus é o momento que liberta todas as antigas vítimas expiatórias já descritas: “Em suma, são as vítimas assassinadas desde a fundação do mundo que começam a retornar a esta terra para serem reconhecidas.” (GIRARD, 2008a, p. 282-283). Porém, “‘aqueles que têm ouvidos para não ouvir e olhos para não ver’” (GIRARD, 2008a, p. 253), permanecem dentro dos esquemas do mecanismo da violência, não entendendo o verdadeiro significado da morte de Jesus, fundando uma cultura cristã, que, por mais diferente que seja, ainda assim mantém os indivíduos presos em sua fé a um Deus profano:
Essa leitura permite que, por sua vez, o texto cristão funde aquilo que em princípio ele nunca deveria ter fun-dado; uma cultura certamente não igual à outras, pois contém os germes da sociedade planetária que a su-cedeu, mas ainda suficientemente igual às outras para que se possam ser reencontrados nela os grandes prin-cípios legais, míticos e sacrificiais constitutivos de qual-quer cultura. (GIRARD, 2008a, p. 298)
Em decorrência dos mitos citados, com destaque para o da Paixão e do conceito de Girard (2008a) sobre o sacrifício, é que este afirma serem os mitos, na verdade, textos de perseguição, revelados enquanto tais justamente a partir da leitura não sacrificial da morte de Jesus. O mecanismo do bode expiatório que compõe todos os mitos até aqui des-critos e, principalmente, o que se atribui à Paixão, se inicia com os de-sejos miméticos reprimidos socialmente. A religião, procurando manter a ordem entre os sujeitos, desencadeia o mecanismo que possui como base um mito religioso, realizando o ritual, a cerimônia. Assim, ocorre a seleção do bode expiatório, que corresponde aos indivíduos portadores de características discriminadas socialmente, ou a animais identificados com características de semelhança aos seres humanos. A vítima, então, mediante a cerimônia ritualista, torna-se vítima sacrificial, sendo assassi-nada por seu povo, mas com o objetivo de libertá-lo de todo mal que nele se encontra. O bode expiatório, após sua morte, é cultuado pelo povo, sendo visto como um ser divino, pois foi perante o seu sangue oferecido às divindades que o fenômeno religioso conseguiu manter a paz na co-munidade. Na contramão do sacrifício, todavia, a Paixão destinou-se a encerrar todas as formas de sacrifício produzidas pelos homens.
A palavra sacrifício significa a oferenda de uma vítima ou de algo a uma divindade mediante um ritual2, o qual se apresenta de duas manei-ras opostas: “ou como ‘algo muito sagrado’, do qual não seria possível abster-se sem negligência grave, ou, ao contrário, como uma espécie de crime, impossível de ser cometido sem expor-se a riscos igualmente graves.” (GIRARD, 1990, p. 13). A bíblia demonstra que o sacrifício não liberta completamente da violência social, sendo necessário recorrer a ele novamente de tempos em tempos. Nesse sentido, Jesus revolucio-nou ao negar o rito da expiação (GODOY, 2019).
René Girard faz uso da palavra sacrifício em associação à etapa final do mecanismo do bode expiatório, a morte da vítima. Conforme o autor (GIRARD, 2008a), os indivíduos são movidos por desejos imitati-vos que são mediados de duas diferentes formas nos sujeitos: a externa e a interna. A mediação externa acontece quando o sujeito está distante do seu mediador do desejo, de seu modelo, seja por camadas sociais, por tempos históricos ou até mesmo por narrações científicas. Como exemplo, Girard (2009b) destaca a obra de Miguel Cervantes, publicada em 1605, denominada Dom Quixote de La Mancha. Ela narra a história de Dom Quixote, que possui como mediação externa a sua admiração pelo cavaleiro lendário Amadis de Gaula, desejando ser sua imitação ainda mais perfeita: “Dom Quixote renunciou em favor de Amadis à prer-rogativa fundamental do indivíduo: ele não escolhe mais os objetos de seu desejo, é Amadis quem deve escolher por ele. O discípulo se lança em direção aos objetos que o modelo de toda cavalaria lhe indica, ou parece lhe indicar.” (GIRARD, 2009b, p. 26). Mas, como Dom Quixote está separado de seu modelo por espaço e tempo, Amadis não é trans-figurado como obstáculo ao personagem, não havendo a possibilidade de Dom Quixote o atribuir como seu rival. Afirma Girard (2009b, p. 33):
“O herói da mediação externa proclama em alto e bom tom a verdadeira natureza de seu desejo. Ele venera abertamente seu modelo e declara--se seu discípulo.”
No entanto, o mesmo não se assemelha às mediações internas. Segundo Girard (2009b), estas significam que o sujeito está próximo de seu modelo e, conforme intensifica-se sua atração pelo objeto, o modelo antes admirado pode se tornar um obstáculo a ser superado, havendo a possibilidade de conflitos, caso os sujeitos se admitam como rivais: “O impulso em direção ao objeto é no fundo impulso na direção do mediador já que este mediador deseja, ou talvez, possua, esse objeto.” (GIRARD, 2009b, p. 34). Dessa forma, um conjunto social é composto por media-ções internas, devido a proximidade dos sujeitos. Os indivíduos, para conviverem em harmonia, são submetidos a normas e regras que impe-dem suas ações quando impulsionadas por desejos miméticos, evitando a violência direta. O problema é que ao reprimir as vontades humanas, os indivíduos produzem violência interna, ressentimentos, que se canali-zam socialmente, necessitando de mecanismos para libertá-la, evitando um conflito generalizado. Girard (2008a, p. 46) afirma:
Em numerosos ritos, a assistência inteira deve tomar parte da imolação que se assemelha demais a uma es-pécie de linchamento. Mesmo onde a imolação é reser-vada a um sacrificador único, é em regra geral em nome de todos os participantes que ele atua. É a unidade da comunidade que se afirma no ato sacrificial e essa uni-dade surge no paroxismo da divisão, no momento em que a comunidade se sente dilacerada pela discórdia mimética, entregue à circularidade interminável das represálias vingativas. À oposição de cada um contra cada um sucede-se bruscamente a oposição de todos contra um. À multiplicidade caótica dos conflitos parti-culares sucede-se de repente a simplicidade de um an-tagonismo único: toda a comunidade de um lado, e de outro a vítima. Não é difícil compreender no que consis-te essa resolução sacrificial; a comunidade encontra-se inteiramente solidária, em detrimento de uma vítima não somente incapaz de se defender, mas totalmente impo-tente para suscitar vingança; seu abate não poderia pro-vocar novos distúrbios e fortalecer a crise; pois ela une todos contra si própria. O sacrifício não é apenas uma violência a mais, uma violência acrescentada a outras violências, mas é a última violência, é a última palavra da violência.
O sacrifício corresponde, nessa perspectiva, a uma forma de violên-cia que consiste em eliminar a própria violência que abriga a sociedade, diferentemente de um ato de assassinato. O assassinato de um indiví-duo também acontece devido à violência implícita no homem, podendo, ou não, ser transmitida coletivamente, mas que desencadeia no sujeito o sentimento de vingança, da imitação de um assassinato anterior, como se fosse transmitido de geração para geração de um grupo social - eis o que define a vendeta: “De fato, no estágio da vingança do sangue trata-se sempre do mesmo ato, o assassinato, executando do mesmo modo e pelas mesmas razões, em imitação vingativa de um assassinato ante-rior” [...] “Ela reduz os homens à repetição monótona do mesmo gesto assassino.” (GIRARD, 2008a, p. 33). Já no contexto do sacrifício, Girard (1990) aduz que a comunidade deve a sua permanência na ordem ao sagrado que realiza o sacrifício em seus rituais. É a partir do desejo mi-mético que se constrói a instrumentalização do bode expiatório, para que este, em um ritual religioso, ocupe a posição de vítima sacrificial e liberte todo o seu povo do desejo de violência:
A violência não saciada procura e sempre acaba por en-contrar uma vítima alternativa. A criatura que excitava sua fúria é repentinamente substituída por outra, que não possui característica alguma que atraia sobre si a ira do violento, a não ser o fato de ser vulnerável e de estar passando a seu alcance. (GIRARD, 1990, p. 14)
No entanto, a seleção de um indivíduo inocente como vítima é um processo inconsciente nos sujeitos, porque, caso contrário, o ato da ex-terminação da violência por meio do sacrifício não se concretizaria, uma vez que o sujeito não deve ter consciência de que submete um inocente à morte: “Como vimos, a operação sacrificial exige um certo desconheci-mento. Os fiéis não conhecem, e não devem conhecer, o papel desempenhado pela violência.” (GIRARD, 1990, p. 20).
Girard assevera (1990, p. 327) que o rito sacrificial acontece com base em duas formas de substituição: “a primeira é fornecida pela vio-lência fundadora que substitui todos os membros da comunidade por uma vítima única”; e a segunda “única propriamente ritual, substitui a vítima expiatória por uma vítima sacrificial”. Nesse ponto, é importante ressaltar que a vítima expiatória não é um sujeito diverso da vítima sacri-ficial, mas apenas uma versão transfigurada, protegendo os membros da comunidade de considerarem uns aos outros substituíveis como vítimas: “[...], é porque a vítima expiatória pertence antes de tudo ao sagrado. A comunidade, pelo contrário, emerge do sagrado.” (GIRAD, 1990, p. 329).
O sacrifício de uma vítima expiatória tende a se suceder em intervalos de um período de tempo, iniciando novamente o ciclo do desejo mimético na comunidade, para que no momento exato se realize o ritual sacrificial. Ele possui um único objetivo: salvar todos os seus membros de uma guer-ra que resultaria na morte da maioria, como escreve (1990, p. 20-21): “É a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas ex-teriores.” A vítima expiatória, porém, nem sempre corresponde a um ser humano, mas a um animal: “[...], que a imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta proteger, canalizando-a para ou-tros, cuja morte pouco ou nada importa.” (GIRARD, 1990, p. 15). A par da substituição sacrificial, quando humanos, os sacrificados devem possuir características específicas, próprias das vítimas potenciais: “os prisionei-ros de guerra, os escravos, as crianças e os adolescentes solteiros, os in-divíduos defeituosos, ou ainda a escória da sociedade, como o pharmakós grego.” (GIRARD, 1990, p. 25).
Dessa forma, como é possível observar, a instituição responsável pelo sacrifício é a religiosa. Segundo Émile Durkheim (1996), a religião é um fato social que tem a capacidade de estabelecer a coerção social, conquistando a confiança dos sujeitos e os coagindo a obedecerem às regras e às normas impostas socialmente. Em remissão ao sociólogo, Girard (2008b) afirma que a existência da religião se inicia com a hu-manidade, pois a humanidade sem a religião, segundo Durkheim, não existiria. A religião, como afirma Girard (1990), é o fenômeno que está disposto a qualquer coisa para controlar os membros da sociedade e, por esse motivo, instaura o mecanismo do bode expiatório e os ritos sacrificiais.
A prevenção religiosa pode ter um caráter violento. A violência e o sagrado são inseparáveis. A utilização “ar-dilosa” de certas propriedades da violência, e em espe-cial de sua capacidade de deslocar-se de um objeto a outro, dissimula-se por trás do rígido aparato do sacrifí-cio ritual. (GIRARD, 1990, p. 33)
Ao identificar a religião como mantedora da ordem social através do aparato do sacrifício, Girard observa que é através de um ritual que a religião consegue direcionar toda violência interna de seus membros para um único indivíduo:
O sacrifício bem sucedido impede que a violência torne--se imanente e recíproca, ou seja, ele reforça a violência enquanto exterior, transcendente, benéfica. Ele traz ao deus tudo o que ele precisa para conservar e aumentar seu vigor. É o próprio deus que “digere” a imanência ma-léfica para convertê-la em boa transcendência, ou seja, em sua própria substância. (GIRARD, 1990, p. 324)
Escolhida a vítima expiatória, a cerimônia ocorre e sacrifica a vítima, que, após ser morta, é cultuada por meio do fenômeno religioso, tornan-do-se sagrada, pois é a sua morte que salva o seu povo de uma guerra, ao oferecer-se o seu sangue ao divino.
As palavras sacrifício, sacri-ficar possuem o sentido preciso de tornar sagrado, de produzir o sagrado. O que sacri-fica a vítima é o golpe desferido pelo sacrificador, é a violência que mata essa vítima, que a aniquila, e que ao mesmo tempo coloca-a acima de tudo tornando-a, de certo modo, imortal. O sacrifício é produzido quando a violência sagrada apodera-se da vítima; é a morte que produz a vida, assim como a vida produz a morte, no círculo ininterrupto do eterno retorno comum a todas as grandes reflexões teológicas diretamente implantadas na prática sacrificial, aquelas que nada devem à desmi-tificação judaico-cristã. (GIRARD, 2008a, p. 273)
O sacrifício, dessa forma, tem como função oferecer a vítima a uma divindade, sendo a violência maléfica representada pelo ato da imolação no ritual religioso. Esta violência se torna benéfica no momento em que a sociedade a liberta. O sagrado vinculado ao rito do sacrifício está no mesmo jogo da violência, constituindo, todos eles, o mesmo sistema, porque o sagrado só é capaz de manter a ordem social se utilizando do aparato violento, pois, sem a vítima expiatória, a estabilidade da comu-nidade não seria possível.
Identificar a violência fundadora é compreender que o sagrado reúne todos os contrários. Não por diferir da violência, mas porque a violência parece diferir dela mesma; ora ela refaz a unanimidade a seu redor para salvar os homens e edificar a cultura, ora, ao contrário, esforça-se por destruir o que havia edificado. [...] A não--violência aparece como um dom gratuito da violência, e esta aparência não é sem razão, pois os homens só são capazes de se reconciliar à custa de um terceiro. O que os homens podem fazer de melhor na ordem da não-violência, é a unanimidade menos um da vítima ex-piatória. (GIRARD, 1990, p. 315)
À vista disso, a violência está instituída em um ciclo sem fim, somen-te sendo capaz de controlar a si própria com um outro ato violento. A me-táfora do túmulo (Girard, 2008a), ligada ao enterro do morto, demonstra a importância de os sujeitos esconderem de si mesmos a violência que cometeram com outra vítima. O túmulo não serve apenas para a honrar a morte, mas também para escondê-la, dissimulando o cadáver, para que ele não seja mais visível e não retorne à memória o sacrifício come-tido contra alguém inocente. Para Girard (2008a), essa metáfora explica que os sacrifícios coletivos e fundadores se assemelham aos túmulos, porque os homens procuram enganar não só a si mesmos, mas também a toda a comunidade que eles influenciaram através do duplo monstruoso3, culpando uma vítima inocente. Como afirma: “Coisa estranha: é preciso matar, e matar sempre, para não saber que se mata.” (GIRARD, 2008a, p. 207).
Contudo, a omissão da morte e a inconsciência dos indivíduos me-diante a instrumentalização do sacrifício, corresponde, segundo Girard (2008a), aos efeitos de Satã: o homicídio original e a mentira. O ser hu-mano, ao mentir sobre seus homicídios e considerá-los como algo lícito mediante a figura divina, é estimulado a cometer outros assassinatos. A relação estabelecida com Satã se dá pela mentira, pois, ao dissimular sobre a violência que cometeu para si mesmo e para os outros, está apto a cometer outros atos de sacrifício. Satã corresponde ao processo mi-mético, ele é a fonte da rivalidade e da desordem entre os seres humanos e das mentiras que estes sustentam. É o próprio Satã que, utilizando do mecanismo criado pela humanidade para libertar a violência, impede o estabelecimento da palavra evangélica, da revelação de Jesus Cristo: “Ser filho de Satã é a mesma coisa que ser filho daqueles que mataram seus profetas desde a fundação do mundo.” (GIRARD, 2008a, p. 204).
Inseridos dentro da lógica sacrificial, os seres humanos seguem os feitos de Satã, disseminando a mimesis um ao outro, por meio do duplo monstruoso, gerando linchadores e perseguidores de bodes expiatórios. O verdadeiro divino, porém, afirma Girard (2008a), é o Deus transmitido através das palavras e das ações de Jesus, que ignora a reciprocidade da vingança e se entrega à morte para honrar sua palavra com Deus e atribuir a si todos os pecados mundanos, libertando a todos do meca-nismo do bode expiatório em seu ato de amor. Não é, portanto, o Deus criado pela própria humanidade, a exigir o sacrifício de um bode expia-tório para manter a paz social. Está-se, por fim, diante do conflito entre o mal e a salvação.
Para Girard (2008a), o intuito de Jesus foi o de revelar aos seres humanos o mecanismo da violência que eles mesmos criaram, libertando--os de tal mecanismo. No entanto, ao oferecer aos homens o Reino de Deus, o nazareno é ignorado e, assim, faz uso do próprio mecanismo de Satanás para revelar os segredos instituídos nos mitos, demonstrando que a necessidade da morte do outro para o estabelecimento da paz é obra do mal: “Se os fariseus fossem verdadeiramente hostis a Satanás, eles não deveriam reprovar Jesus por expulsar Satanás por Satanás; mesmo que tivessem razão, o que Jesus acaba de fazer contribuiria para a destruição final de Satanás.” (GIRARD, 2004, p. 241). Dessa forma, Girard (2004) concebe as ações de Jesus como divisora do reinado de Satanás: “Satanás dividido contra si mesmo” (GIRARD, 2004, p. 240), pois, ao se dispor em seus planos, revela aos homens a violência in-serida socialmente: “Se estiver dividido contra si mesmo, o reinado de Satanás não se manterá.” (GIRARD, 2004, p. 241). A morte de Jesus não deve, portanto, ser considerada um sacrifício como tantos outros descritos na Bíblia, mesmo que ele represente a posição de bode expia-tório e tenha sido julgado pelo povo que pressionava Pilatos. Ao se inse-rir no mecanismo vitimário, é visto pela sociedade como bode expiatório. Entretanto, mesmo sendo concebida pela comunidade humana como um bode expiatório, a morte de Cristo não deve ser considerada como mero sacrifício, porque, segundo Girard (2008a), ela se diferencia, na medida em que Jesus é o Messias e, por sua morte, livra, de fato, todos os seres humanos da violência:
Livrar-se da violência é uma tarefa à qual Jesus convi-da todos os homens e ele a concebe em razão da ver-dadeira natureza dela, das ilusões que ela suscita, da maneira pela qual ela se propaga, e de todas as leis que tivemos mil vezes oportunidade de verificar durante esses nossos encontros. (GIRARD, 2008a, p. 243)
Ao se submeter à morte, Jesus realiza o desejo de Deus. Por não se juntar aos homens e ser indiferente à violência que continua a acontecer, prefere a morte.
Se os bodes expiatórios não podem mais salvar os homens, se a representação persecutória se desmorona, se a verdade brilha nos lugares excusos, isso não é má, mas boa notícia: não há Deus violento; o verdadeiro Deus nada tem que ver com a violência e não é mais por intermediários distantes que ele se dirige a nós, mas di-retamente. O Filho que ele nos envia está profundamen-te unido a ele. A hora do Reino de Deus soou. (GIRARD, 2004, p. 247)
Posto isso, Girard (2008a) afirma que os seres humanos, ao não ouvirem a palavra de Cristo e ao não diferenciarem sua morte de um sacrifício, tendem a fundar uma nova religião, o cristianismo, dissimu-lando o verdadeiro significado da morte de Jesus, não percebendo a escravidão que a violência lhes impõe, utilizando do religioso como mé-todo para não atribuírem culpa própria mediante aos assassinatos que continuam a cometer, impondo a si mesmos uma falsa visão divina. A vinda de Jesus é a última chance de os sujeitos se livrarem da violência recíproca e encontrarem o Reino de Deus. O fracasso não é atribuído diante do Reino, mas, segundo a perspectiva evangélica, ao fato de a sociedade não ouvir a mensagem divina, caminhando da crucificação de Jesus para o apocalipse.
A sociedade, ao não reconhecer a mensagem de Deus através do Messias, está sujeita à violência mundana. O apostolado de Cristo, bem como a religião cristã e, com ela, o reestabelecimento da diferenciação entre os seres humanos, nascem somente após o derramamento do sangue de um inocente, e o cristianismo institucionaliza-se a partir de uma hermenêutica de viés coercitivo. As proibições religiosas recalcam os desejos humanos, que resultam em ressentimentos. Maiara Rúbia Miguel (2021), em sua tese doutoral O ressentimento e o sagrado em René Girard, sublinha que, em Girard, o problema não está apenas em desejar o mesmo objeto de uma outra pessoa, mas em cobiçar o inimigo, e, com isso, tudo aquilo que ele deseja. Por essa razão, a bíblia utiliza da palavra cobiçar ao invés de desejar: “Não cobiçarás a casa do teu próxi-mo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo.” (BÍBLIA, Êxodo 20, 17). Como analisa Miguel (2021, p. 99): “Há uma enganosa diferença que pode vir a ser engendra-da dessas proibições, uma vez que o objeto cobiçado hoje é um, ama-nhã será outro e a dança das cadeiras do desejo continua.”
Dessa forma, observa-se que proibir os desejos e a cobiça huma-na não evita os ressentimentos e os conflitos como consequências. A proibição “só funciona na medida em que o antagonista legalmente pos-sui o objeto da rivalidade e essa legalidade não encoraja a harmonia.” (MIGUEL, 2021, p. 98). Diante da intensidade mimética, o indivíduo inter-naliza uma atração por seu rival, uma vez que este já foi o ídolo daquele, e, ao mesmo tempo, uma repulsão pelo próprio rival, porque disputa o mesmo objeto. Nessa contradição estabelece-se a repressão que o su-jeito promove internamente contra sua pulsão destrutiva, o que faz surgir o ressentimento, acúmulo de ódio, inveja, de sentimentos ruins que um sujeito traz consigo que, em rivalidade aguda, produz a indiferenciação, possibilitando uma crise sacrificial. É no ápice da violência que surge o mecanismo do bode expiatório sob o controle do método sacrificial. No entanto, explica Miguel (2021) em leitura a Girard, que as normas impos-tas pela religião e pelo judiciário perdem o seu objetivo, que é recuperar a diferença, porque na contemporaneidade está presente a vingança, que integra o ressentimento. Antes de impor normas e regras sociais para conter a violência, é necessário primeiramente evitar a vingança: “A vingança é um dos sentimentos que formaliza a base patológica da violência: o ressentimento. O ressentimento obscurece a real face dos desejos que culminam em rivalidades.” (MIGUEL, 2021, 159).
A partir disso, observa-se a força das normas sociais estabelecidas no recalque dos desejos dos sujeitos. Entretanto, em algum momento a violência desses indivíduos precisa ser externalizada. As comunida-des originais utilizam-se dos sacrifícios, mas as sociedades complexas tendem a não praticar a violência pura, ocasionando conflitos constan-tes. Sobre a disseminação da violência, escreve Girard (1990, p. 147): “É esta indiferenciação violenta que constitui o verdadeiro recalcado do mito, que não é essencialmente desejo, mas terror, terror da violência absoluta”. Nas sociedades complexas o ressentimento é visível, isto por-que não há métodos possíveis de conter a violência e, desta forma, os sujeitos reprimem os seus impulsos e produzem ressentimentos. Os su-jeitos presentes nas sociedades complexas estão mais vulneráveis aos ressentimentos, uma vez que o capitalismo intensifica os desejos huma-nos e não proporciona recursos acessíveis para conquistar o almejado. Conforme Miguel (2021) assinala, o rito, seja ele religioso ou jurídico, não é capaz de conter a violência perante o ressentimento, deixando de ser eficaz.
De acordo com Girard (2011), há dois estágios que titulam a presen-ça de Jesus no mundo como revelação: o primeiro, é a passagem do mito para a bíblia e, o segundo, a vinda de Deus no mundo para libertar os seres humanos de sua violência. Ao denunciá-la, Jesus oferece à humanidade a possibilidade de se libertar da violência e viver no Reino de Deus; entretanto, a sociedade, movida pela reciprocidade violenta, nega-se a renunciar a ela. O cristianismo surge, pois, como resposta, a si mesmos, daqueles que mataram Jesus (Girard, 2008a):
O cristianismo devolve aos homens a violência que eles sempre projetaram sobre as suas divindades. É exata-mente por isso que o acusamos de nos culpar. E nesse ponto temos razão, mas a narrativa evangélica tem mais razão ainda, pois, para defender as nossas vítimas, ela fica obrigada a condenar os seus perseguidores, isto é, nós próprios. (GIRARD, 2011, p. 167)
A Paixão, afirma Girard (2010), em diálogo com Gianni Vattimo, está para além da revelação do mecanismo do bode expiatório, já que é a revelação do amor, na verdade antropológica cristã, é a reabilitação da vítima acusada: “o cristianismo é uma revelação do amor, mas não ex-cluo que seja também uma revelação da verdade. Porque, no cristianis-mo, verdade e amor coincidem e são a mesma coisa.” (GIRARD, 2010, p. 48). Após a revelação de Cristo e a denúncia do mecanismo do bode expiatório, é possível resistir à mimesis. O Messias liberta a humanidade para a livre escolha entre a violência ou a sua renúncia. Ela passa a ter a opção de imitar os acusadores de Jesus ou as suas atitudes, porque a imitação está tanto nos moldes de Satã quanto nos de Cristo: “Ai do mundo por causa dos escândalos! É necessário que haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o escândalo vem!”. (BÍBLIA, Mateus 18, 7). Girard escreve:
Toda a minha reflexão gira em torno de se o cristianismo não é aquilo que revela o outro lado, o lado escondido dos mitos. E com isso não quero dizer que nos esteja dizendo a verdade sobre Deus do ponto de vista cientí-fico, mas nos diz uma verdade sobre mitos e sobre toda cultura humana. (GIRARD, 2010, p. 45).
Girard inspira a interpretação de que o cristianismo, de uma parte, destrói o ciclo sacrificial religioso que mantinha a anterior ordem social e, de outra, reinstitui a presença do mito como elemento mobilizador das condutas humanas, reforçando, desde a narrativa que o edifica, o senso de pecado, e recolocando, através dele, os indivíduos no círculo da culpa (pela morte de Cristo). A culpa reinscreve a humanidade no anterior estado de latência da violência assassina, demandando, com isso, a expiação a qual, no entanto, agora, é fortemente reprimida pois, no mundo pós sacrificial, na sociedade secularizada, ela não pode ocor-rer mais sob qualquer modo. Por outro lado, a premissa da absoluta igualdade de todos perante a Deus estabelece o império da indistinção. A impossibilidade da recuperação do esquema do bode expiatório ou de sua instauração inauguram uma crise sacrificial inaudita, pela qual a sociedade se vê comprimida de uma forma tamanha que seu próximo passo será criar meios para dar vazão à toda essa carga da violência contida, criando aparatos de poder destinados a realizar justamente o que o sacrifício pode evitar, a saber, a vingança. Então, as sociedades complexas passam a punir em ampla escala para controlar as mani-festações de seus membros. Presas à reciprocidade mimética, punem seletivamente. Descolando a ideia de igualdade perante a Deus da con-cepção de igualdade perante ao Estado, instituem diversos estereótipos, associados à cor da pele, ao gênero, à sexualidade, à pobreza, entre outros, considerando-se autorizadas a castigar, em viés generalizado, as pessoas identificadas com tais estereótipos.
A morte do Jesus histórico reinaugura a história da perseguição. Todavia, porque Jesus Cristo é Deus, e porque foi morto, não há mais a quem ofertar-se o sacrifício. A aurora do mundo secularizado firma a má-xima nietzscheniana - “Deus está morto”! – e bem defronte a ela está a crise sacrificial, na qual o sacrifício perdeu espaço para a vingança. Aqui, ao invés de libertar a humanidade do pecado, o assassinato do Messias gritou novamente pela maldade, autorizando-a a, caxinguelê, passear descomedidamente entre os seres humanos.
Conforme lembra Girard (1990, p. 68):
A crise sacrificial, ou seja, a perda do sacrifício, é a per-da da diferença entre a violência impura e a violência purificadora. Quando se perde esta diferença, não há mais purificação possível e a violência impura, conta-giosa, ou seja, recíproca, alastra-se pela comunidade.
A crise sacrificial é o ápice da violência humana, é a eterna vingança aos inocentes sacrificados pelos antepassados. Não há nada que pos-sa frear a reciprocidade mimética. Jesus alertou, mas os sujeitos não o ouviram e, hoje, rezam para se manterem vivos em meio à violência cíclica. Apenas a autodestruição será capaz de revelar aos humanos que o apocalipse já começou.
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MIGUEL, Maiara Rúbia. O ressentimento e o sagrado em René Girard. 2021. 236 f. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, Juiz de Fora (MG), 2021.
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[1] No grego clássico, pharmakós significa “ao mesmo tempo o veneno e seu antídoto, o mal e o remédio, e finalmente qualquer substância capaz de exercer uma ação muito favorável ou muito desfavorável, dependendo dos casos, das circunstâncias, das doses empregadas; o pharmakon é a droga mágica ou farmacêutica ambígua, cuja manipulação os homens comuns devem deixar àqueles que gozam de conhecimentos excepcionais e não muito naturais, sacerdotes, mágicos, xamãs, médicos etc.” (Girard, 1990, p.125).
[2] Conforme Émile Benveniste (1995, p. 223), “Em védico, yaj – é propriamente “sacrifi-car”, mas em primeiro lugar – a própria construção do verbo o atesta: acusativo do nome do deus, instrumental do objeto – é honrar o deus, solicitar seu favor, reconhecer seu po-der por meio de oblações. Aqui entramos no estudo dos atos positivos e das cerimônias pelas quais se define e se sustenta o sagrado: são as oferendas, que realmente cons-tituem “sacrifícios”, meios de tornar sagrado, de fazer o humano passar para o divino.”
[3] O duplo monstruoso é a fonte da perseguição ao bode expiatório. Ocorre quando um coletivo de pessoas é induzido a uma rivalidade mimética única, transmitida a partir de um terceiro para o todo, do que resulta o sacrifício.